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PARTE 3 + Técnica e matéria - arte de entresséculos e suas questies * Técnicas e tecnologias na produgao da imagem académica * Colegdes de objetos - migracées e re- significagdes ¢ Facetas e materiais da arte de entresséculos 157 Asobrevivéncia do pintor no século XIX: a pintura de retratos Vladimir Machado de Oliveira! 1.A fotografia como base para os retratos pictoricos eas foto-pinturas [ir 880, orthreror tr eater tperiat te Betas Artes etemict te Ara jo Porto-Alegre (1806-1879), propés trinta teses para serem discutidas pelo cor- po docente da Academia. Uma delas levantava a questéo sobre se a descoberta da fotografia foi dtil ou perniciosa a pintura. Porto-Alegre indagava: “ E se ela chegar a imprimir as cores da natureza, com a fidelidade com que imprime as formas monocromicamente, 0 que sera da pintura e mormente dos retratistas e paisagistas?”. Nao sabemos das respostas dos professores da Academia diante de tao pro- blematica indagagio. Mas sabemos que nesse mesmo ano Porto-Alegre enviava uma carta a Victor Meirelles que estava em Premio de Viajem na Europa, com 0 seguinte conselho: =_.Como homem pritico © como particular recomendo-Ihe muito estudo do re- trato, porque é dele que hi de tirar o maior fruto de sua vida: a nossa patria ainda no est preparada para a grande pintura [a Pintura de Historia] . O artista aqui deve ser uma dualidade: pintar para si, para a gloria, e retratista para o homem que precisa de meios”. Quase setenta anos depois, 0 pintor Candido Portinari (1903-1962), antes de partir em 1925 para Paris ¢ gozar 0 Premio de Viagem ao Estrangeiro, gamho com a pintura “Retrato de Olegdrio Mariano”, ouviu conselho semelhante do seu professor Rodolfo Chambelland (1879-1967): Como voce € acima de tudo um retratista, nao perca tempo em trabalhar fora de sua especialidade. Visite Londres ¢ estude cuidadosamente as obras dos mestres ingleses, que sto excelentes. Preste muita atengo aos quadros dos grandes pinto- res da escola inglesa de retratos, a melhor do mundo”, Todavia, as preocupagdes de Porto-Alegre e dos artistas da Academia com a chegada da Totogratia no eram intundadas, A pintura dos tradicionais retratos a 6leo comecou a ser ameagada diante da moda dos retratos fotograficos ¢ pelo ver- tiginoso desenvolvimento tecnolégico das cdmeras, das imagens perfeitas cada vez mais aperfeigoadas ¢ em produg4o macica de retratos. Durante a Guerra do Paraguai (1865-1869), os esttidios fotograficos atuantes no Rio de Janeiro, como o de Christiano Jr., anunciavam que tinham retratos de uma “...grande colegio dos homens mais célebres da guerra actual*”, Muitas dessas fotografias, como os retratos do General Osério, Duque de Caxias e do Conde d’Eu, foram utilizados como modelos para pinturas, desenhos e litogravuras nos Jornais [lustrados, nao s6 por Pedro Américo mas também por outros pintores como Jean Courtois, Ul- 159 rich Steffen e Joaquim Fragoso, 0 que deixava evidente o dialogo da pintura de retratos com a concorréncia dos estudios fotograficos, Diante de um campo de trabalho ja limitadissimo no Brasil, em que so a pintura de retratos garantia uma fonte de renda segura e estavel aos pintores, a moda dos retratos fotograficos com a foto-pintura entre a elite da Corte, foi ameagadora. Além do mais, a participagao dos fotdgrafos nas exposigdes da Aca- demia desde 1841, exibindo o desenvolvimento técnico da fotografia, era muito valorizada, os fotografos sendo distinguidos com prémios ¢ titulos honorificos em pé de igualdade com os pintores. Prova disso € que a propria Academia criou um novo titulo institucional, para dar espago 4 funcao de fotégrafo contratado, semelhante ao de “Fotdgrafos da Casa Imperial’ concedidos por Pedro Il. Na Exposigao Geral de 1860, Henrique Klumb expunha quinze trabalhos, ostentando 0 titulo de “Fotografo da Academia Imperial das Belas Artes”. Portanto, a crise real que iria ocorrer entre pintura e fotografia ndo era somente de ordem estéti- ca, em saber se a fotografia era arte ou nao, como ocorria na Europa. A pintura de retratos era, na verdade, 0 ganha-pao seguro dos pintores no Brasil, ja que 0 governo e os particulares encomendavam poucos trabalhos aos artistas fora desse aparelho solar “com proporgées de fazer retratos em tamanho natural, de pé ou sentado”, deve ter deixado os pintores da Academia ainda mais apreensivos ¢ preocupados com a sobrevivéncia Ate entao, a pimlura detinha alguinas forles vanlagens sobre a Tologralia. Havia criticas sobre a fragilidade do papel fotografico; a fotografia sé retratava em claro-escuro € com o passar do tempo, havia o amarelecimento gradativo dos tons. Havia também a questao do tamanho diminuto dos Cartes de Visite diante das grandes telas de Pintura Historica. A comprovada “durabilidade” centenaria da matéria pictorica da tela ¢ principalmente, a exclusividade de fazer retratos co- loridos imitando a cor local e em tamanho natural era um diferencial importantis- simo e de grande prestigio para os artistas preparados para realizar as sofisticadas pinturas de Histria, Na década de 1860, nao sé a fotografia ampliada sobre papel atingia o tamanho de 200 cm. X 130 cm., mas principalmente, porque estas foto- grafias de retratos eram ampliadas ¢ fixadas na “duravel” tela de pintor na qual se concluia com a pintura, colorindo-se a leo, aquarela ou pastel. A fotografia industrial, com reprodugdes em larga escala, e a foto-pintura a “pregos médicos” passaram a ocupar uma expressiva parte do lugar tradicional da pintura manual de retratos, que até entao era o sistema dominante de produgao. A industrializagao da fotografia oferecendo uma “semelhanga total” e moderna, feita com rapidez, colocava o sistema tradicional da pintura em crise. Na década de 1860, quando a fotografia atingiu as proporgées da pintura de cavalete e o hibridismo entre fotografia e pintura tornou-se pratica corrente, 0s pintores de retratos tradicionais comecaram a ter dificuldades econémicas. Podemos dizer que a crise atingiu a situagao social do artista, 0 qual passou de 160 criador e modelo intelectual “renascentista” 4 categoria de artesdo “medieval” ¢ funcionario dos fotgrafos. Para sobreviver, teriam que fazer como os pintores Jean Courtois ¢ Ulrich Steffen os quais tornaram-se funcionarios dos estiidios fo- togréficos de Cameiro & Gaspar e Augusto Stahl. Qu entio fazer como Joaquim Insley Pacheco, Karl Ernst Papf ¢ Poluceno da Silva, pintores que se tornaram fotografos ¢ produziam as suas proprias foto-pinturas. Enquanto os pintores so- breviviam pintando retratos em um mercado reduzido, sem grandes encomendas de Pintura de Historia e sem um bom atelié, 0 pintor Joaquim Insley Pacheco, levando a linguagem da pintura 4 fotografia, havia enriquecido. Em 1855 Insley anunciava no Jornal do Commercio, a abertura da sua Novissima e Espléndida Galeria de Retratos onde havia também uma Galeria de Pintura, na qual ex- punha suas foto-pinturas e que pode ser considerada a primeira galeria de arte particular da cidade. Seu estiidio fotografico estava localizado na Rua do Ouvidor 31, considerada o centro da moda no Império. A segunda Galeria de pinturas ¢ Jotografias foi a de outro fotdgrafo, Christiano Junior, estabelecido na Rua da Quitanda 45 também no centro da cidade do Rio de Janeiro. 1.1. A moda da foto-pintura: a convivéncia da fotografia com a pintura Como vimos acima, alguns mestres pragmiticos e prudentes consideravam naquele tempo o retrato como um género de pintura que dava dinheiro para salvar da fome muitos artistas. Alguns intelectuais ¢ artistas-pintores mais idealistas e rebeldes passaram a condenar publicamente em artigos ¢ livros, a perda de ener- gia, originalidade e independéncia artistica para pintar livremente. Consideravam essa situacdo degradante para os artistas por ser uma técnica que podia ser prati- cada por “qualquer um” sem ser necessario 0 aprendizado artistico e erudito da Academia. Em 1871 0 jovem escritor Luiz Guimaraes Jr, ao escrever a biografia precoce de Pedro Américo (entao com 28 anos), ressaltava os dotes intelectuais do artista como Pintor de Historia, ¢ aproveitava para fazer a apologiz renovagao das artes trazida por Pedro Américo, Criticava com veeméncia os pin- tores conformistas que viviam “a fazer retratos e a repelir a inspiracao.” Deplo- Tava 0 compromisso “canino” desses pintores, limitados pelas contingéncias da sobrevivéncia, de copiar servilmente a reprodugao dos retratos fotograficos em detrimento da invengao artistica. Era essa, em grande parte, a razio da condena- G40 e do protesto geral a moda das apropriagdes da fotografia, a qual desviava © artista-pintor do estudo da criagao direta do modelo vivo ou da “natureza, a grande mestra”, alienando-se ao copiar fielmente, somente um produto comercial feito pela maquina Os intelectuais cariocas lamentavam que artistas aptos, inteligentes e so- bretudo muito aproveitaveis para contribuir a uma mudanga cultural moderna no Império, terminassem por sucumbir ao desdnimo, como acontecia aos muitos Pintores da Corte. Mesmo Victor Meirelles, artista que conseguiu pintar painéis 161 de histéria importantes como a Batalha do Riachuelo (1860) e a Batalha dos Guararapes (1879) encomendados pelo governo, nao escapou de ser sarcastica- [inente criticado por ter pintado TeIratOs Mat Poses, CT Tetayay AOS Tes TAOS expostos no Saldo de 1872. O critico do Jornal do Commercio, com o pseud6ni- mo de Frascati Mangini afirmava que os retratos pareciam “cépias fiéis de pho- tographia”, Em relacao ao retrato do Conselheiro Paulino, por exemplo, o critico acusava 0 pintor de ter sido mais servil ao “aparelho photographico” do que um artista independente e criativo diante do modelo vivo a retratar. Lastimava que a moda generalizada dos que encomendavam um retrato ao artista, era “remeter uma photographia para copiar”. Os clientes, por pura comodidade e rapidez, visavam uma economia de tempo ea certeza da semelhanga sem ser necessario posar para o pintor. Mangi- ni em Sua ferina critica ao artista, ia mais Tonge ainda: adivinhava que por tas das cabecas dos retratados pintados por Victor Meirelles, estava a “oppus 1éte” fotografica, feita em parceria com um fotografo. Nesse contexto da moda febril da foto-pintura, podemos afirmar que o critico com todas as letras, sugeria que Victor Meirelles, o grande pintor de Historia da Academia Imperial, havia pinta- do 0s retratos sem recorrer ao modelo-vivo ¢ ao desenho prévio tradicional, mas pintado por cima das fotografias j4 ampliadas e impressas “sobre tela de pintor”, ou seja uma photo-painting. Mangini lamentava ainda que o pintor houvesse sub- jugado seu grande talento, colocando-o em companhia dos mediocres pintores empregados dos fotdgrafos, e pedia que o grande artista “escraviza-se menos 4 fidelidade da cépia fotografica”. Sta uma revelagao Ti 1 7 que pareciam devotos dos principios de pureza pictérico-artesanal como » Victor Meirelles, utilizavam-se das facilidades do territério da fotografia para pintar. As severas criticas tornadas piblicas em jornais importantes como 0 Jornal do Commercio, mostravam que a nova moda da foto-pintura e do retrato fotografico cartao-de-visita era to forte que a encomenda a um pintor para um retrato a dleo era sempre precedida de uma pose para fotografias no estidio do fotdgrafo, para que a foto servisse de modelo para o pintor, que poderia amplié-la apropriando- -se do arsenal fotografico. Como ja salientamos, os clientes se negavam a posar para o artista, obrigando-o a pintar o retrato com a técnica pictérico-artesanal, mas exigindo uma reprodugao fiel, semelhante as imagens técnicas da fotografia. Nao havendo encomendas das instituigdes do Estado ou de particulares: para a decoracdo de painéis, a maioria dos pintores terminavam na dura contin- géncia de pintar retratos a partir de copias de fotografias, abandonando proje- tos artisticos mais desafiadores como os grandes pain¢is da Pintura de Historia. Quando provocados a reagir a esse sistema de serem simples empregados dos fotdgrafos, eles diziam com resignagao: “O que rende é 0 retrato...”. Nesse vazio de estimulos materiais, os pintores que trabalhavam na Corte logo aderiram ao uso de fotografias e a foto-pintura de retratos para sobreviver. Os fotégrafos que 162 fixavam uma imagem real tal como vemos, desde o inicio da invengao da fotogra- fia, sentiam fortemente a falta da representagao das cores da natureza. Como ja vimos, a solugao foi recorrer ao pincel dos pintores para colorir os daguerrestipos e depois de 1851, as fotografias em cépias albuminadas sobre papel. Nas exposi- ges da Academia, esta pratica apareceu na maioria das mostras, cada vez apre- sentando alguma novidade tecnoldgica, como a mostrar o seu constante “progres- so” em acompanhar as tecnologias fotogrificas europeias ¢ norte-americanas Os fotdgrafos depois de 1855, com a invengao do retoque nos negativos, ja haviam tornado possivel a eliminagao dos detalhes realistas desagradaveis, sa- tisfazendo a vaidade dos retratados, mas ainda sem a cor. O pintor Jean Courtois, como ja referimos, passou a trabalhar para os fotégrafos Carneiro e Gaspar reali- zando as chamadas foto-pinturas, colorindo a tempera aquarela as fotografias em preto-e-branco, para dar a cor local da pele, dos olhos, roupas, etc. Seguia dessa forma a tendéncia dos fotégrafos em satisfazer um piblico avido por consumir uma maior ilusdo mimética, eliminando os defeitos e acrescentando a cor nas fotografias, com a pintura sobre o papel fotografico. Um claro exemplo sio as foto-pinturas assinadas por Jean Courtois sobre os retratos fi a d’Eu e da Princesa Isabel, feitos pelo estiidio de Carneiro e Gaspar, bem como as foto-pinturas do Imperador Pedro Il ¢ da Imperatriz (Figura 1). Arevolucionaria técnica de Photopaintingem a 1859: Figural “Fotografias sobre tela de pintor, coloridas & dleo Além desses retratos da eli- te do poder, durante a Guerra do Paraguai os fotdgrafos vendiam também fotografias dos principais personagens do conflito, como a fotografia do General Osorio, a qual foi muito utilizada pelos pin- tores no Rio de Janeiro para reali- zarem foto-pinturas. O pintor Jean Courtois, por exemplo, apropriou- ‘ORETRATO com @ oparencia mais teal -se integralmente da fotografia no Rio de Janel imperial para fazer uma foto-pintura do re- trato do general Osério (Figura 2). Dispensando a presenga do modelo-vivo, tendo a fotografia apenas como modelo, pintou a 6leo sobre tela a partir de uma foto prosaica do general com seu braco radii Mochoxso-2008, 163 apoiado sobre uma mesa e transportou-o para um cenario inventado de um acam- pamento militar na campanha da guerra do Paraguai Figura 2- Jean Courtois - Retrato do General Osorio. Foto-pintura sobre tela Diante dos recursos so- fisticados dos pintores da época (Pedro Américo, Victor Meirel- les, Agostinho da Motta, Joaquim Fragoso entre outros), Courtois pode ser considerado um artista “primitivo”, 0 que pode agradar a uma sensibilidade anti mimética de hoje. Tudo © que nao estava registrado na fotografia era canhestro e antinatural na pintura: as pernas sio curtas, as barracas duras como iglus piramidais, a bandeira esta petri- ficada e mesmo 0 rosto do retratado esta desproporcional. Como tentaremos mos- trar adiante, Pedro Américo, contemporaneo da pintura romantica de Géricault, Paul Delaroche e Delacroix, atingiu um nivel de representagao realista singular na sua pintura, entre a narrativa italiana ¢ a imaginagao descritiva, a qual atingia uma razio maior do que a simples exibigdo académica de dominio téenico. Se- guindo 0s apelos dos seus amigos da geragao de 1870, usando a mesma fotografia para pintar o retrato do General Osério na Batalha do Avahy o artista propunha reconstruir 0 aspecto simbdlico do novo herdi da na¢ao, 0 General Osério. Atento aos novos valores de um realismo roméntico na Pintura de Historia, a sua arte destacava um fato real e documental inédito da guerra ¢ reconstituia a expre: sdo das emocoes “tal qual se deu”. Esta fotografia, na sequéncia de varias obra que a tomaram como referéncia, revelava a antiquissima linguagem dos pintores, que manipulavam varios elementos para compor uma nova imagem. Na pintura realizada por Joaquim Fragoso 0 artista utilizou a mesma fotografia do general Oséria mas somente a parte da cabeca serviu de modelo. Estes exemplos nos parecem suficientes para compreendermos que 0 uso das fotografias para pintar era generalizado na Corte do Rio de Janeiro. Os pintores copiavam as fotos dire~ tamente, ou de segunda mio a partir das fotografias desenhadas pelos litografos 164 ¢ impressas ao lado dos textos nos jornais ilustrados. Ou indo ainda mais longe: ampliando ou imprimindo uma “fotografia sobre tela de pintor” para depois con- cluir a obra com as técnicas e materiais tradicionais da pintura. 2. As fotolitografias: imagem e texto A fotografia demoraria até o final do século XIX para ser impressa nos jorais. Assim, a litografia, com a possibilidade de imprimir seus meios-tons, apropriava-se da fotografia para interpreta-la com o lapis litografico [lapis gor- duroso que repele a agua, na impressao] e se mantinha no campo tradicional do mercado de estampas. Desse modo, a litografia copiava os retratos fotograficos ¢ difundia a imagem associada ao texto, satisfazendo a exigéncia do piiblico por mais “perfeigdo”, que a mao poderia também realizar, como se fosse uma foto- grafia. Esta vasta iconografia ressentia-se, porém, de fotégrafos que flagrassem as cenas do campo de batalha da Guerra do Paraguai, como fizeram Roger Fenton em 1859, na Guerra da Criméia, ¢ Brady, na Guerra de Secessao dos EUA. Quem supria essa falta de visualidade fotografia eram as litografias do jornal Semana Ilustrada, de Henrique Fleuiss, desde 1866. Os desenhos copiados. de fotografias por Fleuiss e seus alunos, reconstrufam como uma “pintura de hist6ria em quadrinhos” as noticias enviadas do Paraguai pelos correspondentes dos jornais da Corte. Nas fotolitografias de Fleuiss nota-se a dificuldade do artista em dar acao ao corpo, tendo como modelo somente retratos fotograficos estati- cos e nao da cena da batalha em movimento. Desse modo, a imagem resultava hibrida de exatidao, ligada as imagens técnicas da fotografia e A invengdo livre do desenho: a cabega era retratada de forma realista, copiada de fotografias, ¢ a imaginag’o dava forma ao resto do corpo em acio Provavelmente esses “defeitos” ndo eram levados em conta, sendo sufi- ciente que A Semana Ilustrada tornasse visiveis as noticias vindas dos enviados dos jornais, como do conservador Jornal do Commércio, na coluna Exterior, € do jornal liberal 4 Reforma, o qual recebia os informes das batalhas enviados do Paraguai pelo prprio Conde d’Eu, entao comandante do exército, substituindo 0 Duque de Caxias no campo de batalha. Fleuiss, desenhava os episédios mais co- mentados, como o ferimento no maxilar de Osério na Batalha do Avahy; a morte do filho de dezessete anos de um capitao e a perseguig’o do Conde d’Eua Lopez em Peribebuy, entre varios outros. [Seman Hastrade commnibain muito, com seus “quadrinhos de historia”, | para um imaginario ufanista nos primeiros anos da guerra. Ao fazer as litografias de retratos ¢ de cenas da guerra, Fleuiss referia-se francamente ao uso da fonte fotogrifica para construir as imagens. Na impossibilidade dos jornais imprimi- rem fotografias, 0 que s6 ocorreria no final do século XIX, Fleuiss assegurava ao pUblico que o desenho impresso nao era “imaginacao de artista” mas estava base- ado em fotografias da guerra, as quais eram consideradas objetivas ¢ auténticas; € que seu desenho, apesar de inventado, baseava-se em fatos reais. Esses fatos ilustram bem as pressGes estéticas da época por mais realismo. A fotografia estava presente na maioria das produgées ¢ lugares das artes plasti- cas: na gravura, nas exposigdes oficiais da Academia Imperial, nos retratos a dleo ¢ nas foto-pinturas. Com a crescente demanda por imagens realistas, os jornais descreviam com minucias a guerra, os Tologratos vendiam as duzias TeTatos Cos heroicos soldados e Generais. Por fim Fleuiss editava, em 1868, 0 album ilus- trado Episédios da Guerra do Paraguay, em que usava fotografias para fazer as litogravuras dos retratos. Nao é descabido pensar que Pedro Americo tenha se inspirado nesse album para realizar também um projeto com o mesmo nome comegando com o painel Batatha de Campo Grande em 1872. No entanto, a pre- tensaio de Pedro Américo nao era fazer “quadrinhos de hist nem tampouco sobreviver pintando somente retratos baseados servilmente em fotografias, como exigiam os clientes. Os retratos que pintaria estavam inseridos em acontecimen- tos significativos para a sociedade. Em 1872, recebeu a encomenda de pintar dois retratos hist6ricos: 0 retrato de D. Pedro I (no MNBA-RJ) e de D. Pedro II (no MIP-RJ), em épocas diferentes, mas ambos retratados na continuidade histérica da “Fala do Trono”. O primeiro na Abertura da Assembléia em 1822 e o segundo 50 anos depois. Para o retrato de D. Pedro I, sem a presenga do modelo ¢ sem fotografias, baseou-se em antigas gravuras e pinturas de Henrique José da Silva; mas todos os retratados presentes na pintura de D. Pedro II, a nosso ver, foram baseados em fotografias. Apesar da honraria do trabalho desses retratos, toda a audacia ¢ energia de Pedro Américo estavam posicionadas em outra direg’io. Seu objetivo era afirmar-se como artista nas grandes e complexas pinturas histéricas, semelhantes ds que ele viu na Gale- ria das Batalhas, em Versalhes e na matriz cultural dos Salons de Paris, na visao dos Panoramas ¢ da Pintura de Historia belga. 2.1. A nova tecnologia: “Fotografias obtidas sobre tela de pintor Em 1865 no Rio de Janeiro, o pintor Poluceno da Silva, de maneira franca, se apresentava em um antincio como um artista polivalente: “retratista a dleo, fo- t6grafo e professor de desenho” e encarregava-se de copiar e ampliar fotografias em ambrotipo e retratos no formato carte-de-visite (6em x 9em) para uma pintura a 6leo em tela de tamanho natural (cerca de 200em x 100cm). Com esses retra- tos, assim como outros pintores-fotdgrafos como Insley Pacheco, participava das Exposigées Gerais da Academia desde 1859, sempre com foto-pinturas e sendo contemplado pelo Jiri Académico com medalhas de ouro (1870) e 0 importante titulo Oficial da Ordem da Rosa (1872), 0 mesmo titulo oferecido neste ano ao entdo famoso pintor de Histéria, Pedro Américo. Isto demonstra que 0 uso da fotografia e das foto-pinturas era amplamente aceito pela sociedade da época. “Uma simples fotografia de carte-de-visite, ampliada pelo aparato aperfeigoado pela Disdéri Company, permite ao artista pintar ~ depois de somente uma ou duas poses — um retrato cuja semelhanga esta naturalmente garantida e realgada por 166, brilhante colorido... Convém lembrar que em uma era como a nossa, em que a ex- pressiio “o tempo vale ouro” se torna cada vez mais certa, 0 uso da photo-painting produz uma notivel economia”. Essa técnica da foto-pintura com 0 ampliador, desenvolvida por Disdéri, a qual permitia uma pintura rapida e com todos os detalhes, ja estava em uso no Brasil desde 1859, e difundida pela propria Academia, como vimos acima. Além disso, um ano depois dessa noticia no Le Monde Iilustré, a questao da ampliagio fotografica, com as dimensdes de um quadro de cavalete, estava estampada em um anincio do fotégrafo Cristiano Jr. de 1866, do “retrato em tamanho natural”, era essa a grande sensacao no Rio de Janeiro. Em 1867, o fotégrafo José Ferreira Guimaraes também exibia seus avancos técnicos na XIX Exposigdo Geral de Be- las Artes da Academia Imperial com um “retrato de grandeza natural” (200 cm. X 135 cm.) em que assinalou com orgulho no catilogo ser “a primeira feita no Rio de Janeiro em tais dimensdes” e “sem retoque”, sendo distinguido pelo jtri académico com a medalha de prata. E importante insistir que os fotégrafos e os pintores no Brasil estavam bem informados sobre estas novidades tecnolégicas, certamente foi a leitura de noticias semelhantes em livros e revistas fotogrificas da Inglaterra e da Franga, como 0 Le Monde Ilustré, que levou Victor Meirelles quando jurado na Exposigdo Nacional de 1866 no Rio de Janeiro, a juntar-se 4 critica internacional como sendo esta pratica da foto-pintura a decadéncia da pintura imaginativa: “Trata-se da arte de fazer um retrato a dleo, de dimensao natural, sem grande incé- modo para a pessoa que deseja ser retratada, sendo bastante o tempo indispensavel de alguns minutos, a fim de obter-se unicamente um retrato nas dimensdes de um cartéo de visita, que depois serve para reprodugao em grande [ou seja, no amplia- dor] sobre papel ou diretamente sobre a tela. Este primeiro trabalho obtido é en- tregue ao pintor que, considerando-o jd como um esbogo, encarrega-se de colorir. Esta arte de retratar, que estd hoje to em moda, tem desgracadamente de contri- buir para o regresso da verdadeira arte, a qual so deveria ser exercida segundo seus indeclinaveis preceitos. Por este novo meio, conhecido pelo nome foto-pintura, foram executados todos 0s retratos que ali vimos expostos entre a fotografia ¢ que, se algum merecimento pode ter é certamente devido ao pintor e nao ao fotdgrafo.” Pode-se observar facilmente a preocupagao de Victor Meirelles com o pe- rigo da “verdadeira arte” da Pintura de Historia, de artesanato lento e cuidadoso, vir a cair em desgraga diante das vantagens de rapidez de execucio e fidelidade do retratado oferecidas pelo novo meio da foto-pintura. Observe-se que todos os retratos da Exposic’o Nacional foram feitos com 0 hibridismo da ampliagao fo- tografica sobre tela ou papel ¢ depois pintados com a colaboragao de um pintor. A pratica generalizada desse novo meio pelos pintores € pelos fotdgrafos tornou-se moda na pintura de retratos, fossem nas Exposi¢des Nacionais ou na Academia, Nao longe de objetivos puramente comerciais para sobreviver recebendo enco- 167 mendas de retratos, este era um motivo suficiente para deixar inquietos pintores zelosos dos sofisticados métodos tradicionais. Os pintores, que tinham raras encomendas de pintura histérica, j4 sentiam uma possivel crise também nas encomendas da pintura de retratos e tentavam chamar a atencao do piblico, como fez Victor Meirelles no texto acima, para as qualidades do valor elevado da pintura, Porém, era inegavel a vantagem do prego das foto-pinturas ou das fotografias, multiplicada as diizias, as quais eram aces- siveis a uma grande clientela, enquanto 0 prego de uma obra tinica e original era| elevado, de lenta execugdo, reservada a poucos. No Rio de Janeiro, o fotégrafo Insley Pacheco, também pintor, era um apo- logista da foto-pintura na qual destacava as qualidades de “perfeigao”, beleza e principalmente um prego mais acessivel a uma clientela mais vasta. Isto pode ser constatado em um antincio que publicou no Correio Mercantil de 17 de Janeiro de 1858 em que ressaltava as vantagens da associagao da foto com a pintura, ¢ que “nem 0 daguerredtipo sozinho, nem o pintor s6 com o pincel, pode conseguir tal semelhanga, nem tanta finura de contornos, nem tanta beleza” tendo assim um retrato “perfeito, igual ao do mais excelente pintor por um prego médico...”. p———Obsesve-se-que-esta-mistura-de fotografia e pintura_com a ampliacdo foto. — grafica mecénica e quimica servindo como base para a pintura a dleo, fazia com que a “divisdo do trabalho tradicional” dos pintores continuasse em um novo meio. A forma, desenho e tons, que antes eram feitos manualmente diante do mo- delo vivo a ser retratado, agora ja estavam resolvidos rapidamente na ampliagio fotografica. Bastava apenas ao pintor — fossem eles Papf, Pacheco, Ulrich Steffen ou Jean Courtois, atuantes no Rio de Janeiro — agregar as cores na propria foto- grafia ou na ampliagao fotografica sobre tela. Dessa forma, conseguiam dar essa total perfeicao da cor local da pele, das roupas, dos cabelos etc., atingindo uma semelhanga que nem a fotografia (sem a cor) ¢ nem a pintura (sem 0 acabamento rapido e exato de todos os finos ¢ quase imperceptiveis detalhes) raramente podia oferecer, O que mudava de forma radical ~ e para melhor, do ponto de vista da rapidez ¢ perfeigdo — era 0 uso do instrumental mecanico/quimico da fotografia. Victor Meirelles, no entanto, levantava um problema: de quem seria 0 mé- rito dessa colaboragao entre pintura e fotografia? Na tradi¢ao dos pintores, 0 aca~ bamento final da obra vinha da mao do mestre. No século XVII, anterior a ideia romantica do artista solitario, 0 atelié de Rubens, na Bélgica em 1621, era uma espécie de “fabrica de quadros” e empregava varios jovens pintores ¢ artistas de valor como Jordaens, Teniers e mesmo Van Dick, que trabalhavam “em série”, a partir dos esbocos de Rubens ¢ imitando seu estilo. Rubens apenas terminava o quadro com alguns toques pessoais e a obra passava a ser sua, coma “griffe"” do atelié. Na foto-pintura, a fotografia ficava oculta pela pintura e, portanto, 0 mé- rito do efeito final, para Victor Meirelles, deveria ser da mao do artista-pintor ¢ nao da imagem técnica. Mas na pritica da divisdo do trabalho, misto de indiis- 168 tria mecdnica e artesanato, apesar do fotdgrafo ter o direito de assinar sozinho a obra por ser o dono do atelié e empregar o pintor, os dois “mestres” assinavam as foto-pinturas. A moderna fotografia mecanica, objetiva e fiel ao modelo real, cedia passo a transparéncia subjetiva da mao do pintor. Para satisfazer o desejo de “eternidade” dos clientes, o fotdgrafo precisava do pintor para substituir o papel efémero, fragil e descartavel da fotografia por uma tela de pintor, dentro da tradi- ao da “grande arte”. Mas ao assinar a obra ao lado do pintor, deixava claro que a “perfeicdo”, rapidez e custo menor, se devia a novidade do processo tecnolégico da uniao entre fotografia e pintura, produzida comodamente no seu estiidio foto- grafico. O fotégrafo Augusto Stahl, por exemplo, realizou um retrato fotografico do Barfo da Vitoria, possivelmente ampliado “sobre tela de pintor”, visando uma foto-pintura. Ele tinha como empregado o pintor surdo-mudo Ulrich Steffen, que acrescentou as cores a 6leo, ambos assinando a foto-pintura final, realizando um quadro de dupla autoria. O Esttdio Carneiro & Gaspar, que empregava 0 pintor Jean Courtois, assinou igualmente em conjunto as foto-pinturas da Princesa Isa- bel ¢ do Conde d’Eu, entre varias outras da familia imperial, feitas no processo fotografico albtimen sobre papel, terminada com pintura a aquarela. 3. Conclusao Alguns pintores, chamados por Baudelaire de peinires manqués, aderiram 4 industria fotogrifica como um refiigio, Talvez nao fosse porque tivessem fra- cassado devido a falta de talento, como acusava o poeta, mas sim para garantir uma melhor posi¢do na competi¢do com outros profissionais diante das pres- ses concretas de sobrevivéncia. Os fotografos ¢ suas apreciadas e imbativeis foto-pinturas rivalizavam com os pintores que viviam de pintar retratos. Alguns pintores, mais preparados ¢ com visao comercial, nao se contentaram em perder clientela nem tampouco em ser empregados dos fotégrafos. Fles acabaram por tornarem-se donos de seu proprio atelié fotografico, eliminando a intermediagao do fotégrafo ¢ a dupla autoria do quadro. A famosa ideia difundida da “rapidez de aprendizado” ao se ter a posse do instrumental fotografico, favorecia aos pintores. Pela demora no aprendizado da Pintura de Historia (cinco anos na Academia Imperial do Rio de Janeiro), os fote- grafos teriam que depender de contratar pintores para produzir e vender mais caro as suas foto-pinturas. No ganha-pao certo da pintura de retratos das vaidades, os pintores que também tornaram-se fotégrafos, fotografavam seus modelos ¢ a ima- gem ampliada com exatidao era fixada na tela sensibilizada com albumen. Essa agem em preto, branco e cinzas da fotografia era usada como um tradicional “grisaille”’, © familiar esbogo prévio ou “ébauche” que os pintores oriundos da Academia dominavam bem. A vantagem é que essa nova técnica permitia termi- nar de maneira mais rpida e com a perfeita semelhanga fotografica do retratado, na pintura final. E claro, com evidente sucesso comercial na competicao com os fotografos, visto a foto-pintura passar a ser uma obra unica e colorida, produzida 169 com a perfeigao dos detalhes e obviamente, custar mais caro que a fotografia co- mum, Para o pintor-fotdgrafo, a fotografia era uma indispensavel auxiliar silen- ciosa, oculta e tao eficaz como um Van Dick no atelié de Rubens. Semelhante aos antigos mestres, o artista deixava transparecer na obra final, somente o toque Agil dos pincéis - e importante - a autoria Unica ¢ artisticamente ‘subjetiva’ do gesto na matéria das cores realistas do modelo. O trabalho era rapidamente resolvido, mantendo a semelhanga e fidelidade ao modelo feito pela fotografia ampliada sobre tela, a qual era também de sua autoria. Desse modo ao assinarem sozinhos a foto-pintura, os pintores-fotografos, tinham a vantagem de nao dividir os lucros, nem a autoria de seus trabalhos com os seus concorrentes fotdgrafos-retratistas. Notas ‘Vladimir Machado de Oliveira é pintor ¢ Professor Adjunto no Curso de Pintura da Escola de Belas ‘Artes UFRJ. E autor da Tese de Doutorado “Do esboco pictérico as Rotundas dos Panoramas: a fotografia na pintura de batathas dle Pedro Américo”. Orientagdo Prof. Dr. Elias Thomé Saliba, FFLCH- USP-2002. 2Cf. anuncio no Almanak Laemmertz 1866. “Galeria Photographica ¢ de pinturas em todos os géneros, Rua da Quitanda, 45”. Referéncias BAJAC, Q- L ‘image révélée ~ L’invention de la photographie ~ ed. Decouvertes Gallimard /Réunion des Musées Nationaux,Paris,Franga, 2001,159pp.zi FRIZOT, M. ~ Etienne-Jules Marey - Ed. Centre National de Photographie, Paris, Franga,1987, 140pp.:il HENDRICK, G. 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