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Conceituagao e aplicagao mitica na literatura rosiana Olga de si Resumo Na sociedade primitiva, ¢ o mito que marca o inicio e a origem das coisas. E por meio dele que o homem toma consciéncia de sua condi- cio humana, do estar-no mundo e ser-para-a morte. A partir dele, nhomeia e di vida a0 que o cerca. Pelos tempos afora, 0 mito transcen- deu seu sentido preferencial ~ pela oralidade, a audigio — hoje, nos tingindo por todas os demais. A midia moderna oferece-nos, cons- tantemente, releituras de hist6rias atemporais. Rosa, pela palavra es~ cerita renovada, recria 0 mito com todas as suas fungoes originais ‘Com isso interfere no mito original de tal modo que, mais que influ enciado por ele, 0 novo conto quebra as cadeias do tempo ¢ influen cia 0 proprio mito. O “diabolico” em sua dimensao mitica atravessa a ficgio de Guimaraes Rosa Palavras-chave: Diabélico; Mito; Guimaraes Rosa; Contos; Literatu: 1a brasileira; Teoria literaria. 40 querendo focalizar mais um mito em alguma obra de Guimaraes Rosa, ou toda, sem pretender demonstré-lo, nesta Comunicagao. Trata-se do “diabélico”, em um sentido que espero fique claro, nesta exposigao. E evidente que toda a escritura rosiana acaba por influenciar 0 mito original, ampliando-Ihe a significagao e inserindo o relato nas coordenadas do mundo das origens. O séc. XIX foi marcado, em muitos paises, pelo Positivismo. A plenitude hu- mana escapava a seus limites. Por isso, até a Ciéncia, sem falar da Arte, da Filoso- fia e da Literatura, questionou sua validade. A Metafisica, repudiada por ele & ca- tegoria de histéria da carochinha, reencontrou, hoje, seu lugar. Em meio as mudangas, ela se tornou uma instncia de continuidades; em meio as indagagées e dividas, se distinguiu como ponto de dislogo. Tomou-se consci- Pontificia Universidade Cavélica de Sio Paulo. Eo Olga de Si éncia de que 0 humano ultrapassa, de muito, as imposigdes da objetividade e 0 alcance dos laboratérios. Se isso tem a ver com a Filosofia € a Metafisica, que lidam com o tempo e 0 espago da condigao humana, que dizer do mito ~ rejeita- do pela Cigncia ~ que diz respeito ao homem, em todos os tempos? Foi preciso rever as posigées ¢ 0 filésofo, 0 escritor e o poeta, cada um em sua propria dimensio, nunca divorciados do poético e, portanto, do mito, se senti- ram mais a vontade, Instalou-se a consciéncia de que a razao é um caminho, mas nao 0 tinico. E 0 Racionalismo, somente uma vereda, em relacio 3s instancias da vida. Sensibilidade ¢ sentimento, imagens e simbolos, figuras e fcones, foram desafiando intérpretes, que nunca silenciados, podiam falar agora, conseguindo mais acolhida. CO escritor estava livre para exprimir 0 mistério; o leitor, desafiado, para aco- Ihé-Lo. Assim, 0 mito na origem do pensamento filoséfico sempre conviveu com 0 pottico e até — pela sua expressio totalitéria do ser, do homem e do mundo ~ 0 fundamentou, primitivamente. Se um escritor deseja exprimir a tragédia do homem contemporaneo, sujeito a “coisificagio”, preso a ansia da objetividade, poders talvez qualificar tal situagio existencial como “diabélica”. O diabo tudo separa e, na sociedade moderna, 0 objeto é que possui o sujeito. Eudoro de Sousa, citado por Fernando Bastos: © Diabo também iludiu os homens, levando-os a erer que as “coisas” esto a seu dis- por, a seu servico, quando a realidade nos diz. que somos nés os servigais, os que es- tamos a disposicio delas. Aqui, somos os servos, no os usustios. E se nao nos aper- cebemos da nossa servidio, é porque s6 incluimos na categoria de coisas os objetos fabricados, sem nos dar conta de que a fabricacio envolve todo “coisificado”, como, por exemplo relevante, palavras que designam “coisas”, conceitos que as definem ¢, portanto, mais inexoravelmente as isolam, idéias que Ihes vincam o perfil inaltersvel. (SOUSA, 1980, p. 68) Os textos de Guimaries Rosa expressam continuamente essa dimensio “dia- bolica” da realidade e, por isso mesmo, a denunciam. O que é“O espello”, quando nos devolve nosso rosto de onga, se nao o refle- xo do “diabélico” em nds? E quando, depois de sofrer e amar, aparecemos em sua superficie polida e vazia, com a fisionomia de um menino ~ fcone da infancia — capaz de conviver com o mistério? O pacto de Riobaldo com o diabo — em Grande sertao: veredas— nunca escla- recido, fonte de divida e angistia, nio expressa ele também nossa perplexidade diante do mal ¢ da culpa? Nunea sabemos se somos anjos ou deménio, se a mis tura de barro podre em nossa argila, nao compromete, irremediavelmente, nossa 282 TSCRIPTA, Rel Hontanta 9, m7 po DBT ING vem 3005 Concetuagao e aplicacao mitica na literatura rostana capacidade de sermos moldados em beleza e bem. Fizemos, afinal, o pacto, no misterioso espaco das Veredas Mortas? E Diadorim? Seu ser ambiguo, capaz de provocar nosso amor torturado, nao é também ele uma figura da perplexidade, nesse clima de “neblina”, propicio a fazer-nos confundir os seres? Se jé vemos “em enigma”, o que significa ver “em neblina”? im “Soroco, sua mie, sua filha” © “sombrio” esta do lado da loucura, que acaba por separar mae e filho, paie filha, numa dimensio de nostalgia e mistério, que 86 a cangio partilhada consegue minorar. Existe em nds um lado “sombrio”, ligado a noite e aos “fantasmas”, que nos divide e atormenta. Somos Medusa, cujos cabelos sao serpentes e que nado podemos fitar, sem morrer. Quem no tem seu duplo minotauro, touro feroz encerrado no labirinto dos proprios desejos e sonhos? Ou um Pegasus, cavalo alado que voa para o sol, mas pode também despencar no abismo? A travessia do Liso do Sussuario nossa travessia existencial, no dia-a-dia, pejado de rotina e denso de indagagoes. “Ser ou nao ser” &a formula metafisica de Hamlet ¢ © Liso é a formula brasileira desse conflito existencial, em Guima- ries Rosa Machado de Assis, em “A igreja do diabo”, encontra, num velho manuscrito beneditino, a hist6ria do Diabo, que “humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organizagio, sem regras, sem canones, sem ritual, sem nada” (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 369) resolveu fundar uma igreja. © Diabo tinha coneluido, depois de séculos de observagio, que as virtudes tém manto de veludo, rematado com franjas de algodao. £ s6 puxar as franjas ¢ clas iro para a sua igreja, seguidas das de seda pura Deus, consultado, retrucou que aquilo era pura retrica, que alids entediou todos os serafins e arcanjos do céu, mas Deus permitiu a fundagao. No principio, a igreja foi um sucesso. Todas as virtudes se alistaram e aderi- ram A nova ordem. Mas, depois de longos anos, o diabo notou que muitos de seus fiéis, as escon- didas, praticavam as antigas virtudes. A descoberta assombrou 0 Demo. Voou a céu e foi perguntar a Deus, qual a causa secreta do fendmeno. Deus esclareceu: “Que queres tu, meu pobre Diabo? As capas de algodo tém agora franjas de se- da, como as de veludo tiveram franjas de algodio. Que queres tu? Ea eterna con- ligio humana” (MACHADO DE ASSIS, 1994, p. 369). Essa contradigao significa que, em nossa vida, misturam-se 0 bem e o mal, “sombras” e “luzes”. Temos uma igreja para Deus e uma para 0 Diabo. Servimos sim a Deus e ao dinheiro, dois senhores a quem nos é interditado servir. Conse- SNA Rotem n Wp aaa Pam O83 Olga de Sa guimos, porém, transgredir. Alis, a transgressio, desde Adio, Eva e a setpente, énosso signo preferido. Basta dizer que “nao pode”, para que o Diabo, residente ign pI q pode”, p em nés, opte por “poder”. O “di existéncia, de cabo a ra- bélico” perpassa nos: bo, como um fio de tessitura, que tecemos de dia e desmanchamos de noite. Percorra vocé mesmo os contos de Guimaraes Rosa. Verd que neles esse clima mitico do “diabélico”, essa mistura de tintas e cores contaminam os espacos € os tempos, as personagens, inclusive muitas vezes, narrador, Riobaldo, narrador de Grande sertao: veredas, é marcado pela ambigiiidade, como Diadorim, numa dimensio mais fluida e diluida. Jagungo e filésofo, narra~ dor e personagem, declarando-se incapaz. de compreender as curvas da existén- cia, aliada & capacidade de questioné-la, Riobaldo é um “rio” que flui e um vazio (baldo), que se preenche com a propria narrativa. Na jagungagem, medroso ¢ chefe, aprende com Diadorim a observar a beleza, ama mulheres em situages li mites, ¢ a tessitura de seu passado Ihe escapa como fios, pelo vao dos dedos. “A hora e vez de Augusto Matraga” éa hora de quem e de qué? Augusto cum- pre um karma, para se redimir de uma existéncia cheia de orgulho e violéncia. Su- pera o “diabélico”, para provar sua “homéncia”, enfrentando corajosamente ¢ matando Joaozinho Bem-Bem. Essa, a lei do sertéo. Mas nio seri também ela uma vertente “diabélica”? Até que ponto, no extremo da vida, quando a bondade e amor deveriam ter molda- do nosso ser, a aptidio p. ‘matar nosso inimigo e a coragem de fazé-lo, dardo a dimensio de nossa grandeza? Sob tal enfoque, que karma é esse, que nao nos preparou para o perdio? Ou Joiozinho Bem-Bem nao é simplesmente um ho- mem, mas um simbolo, um icone do mal que devemos destruir para libertar os outros e nos redimir? Em “A terceira margem do rio”, que margem é essa? Realmente ela nao existe nem é terceira. Um rio tem duas margens. Sera entio 0 meio do rio, imagem do fluir constante, que marca a continuidade do tempo, na descontinuidade de sua mudanga? Sera nosso porto, quando morrermos? Esse homem foi morar no rio, sozinho, fugindo de qué? Indo ao encalgo de qué? Certamente, do visivel a0 in- visivel, do ponderavel ~ que tem peso ~ a0 imponderdvel, que nao pesa. Rio aci- ma, rio abaixo, rio afora, rio adentro, a margem trés rompe a dialética bindria das maquinas, dos computadores, dos sistemas digitais. Projeta-se, novamente, uma dialética da existéncia humana, que abrange nossas opgoes fundamentais para es- capar a0 “diabélico”, que nos atravessa. Poetas e es ores apoderam-se do mito, para exprimir tais dimensdes. “Ao dar interpretagées cada vez mais livres aos mitos fornecidos pela tradigio, 0 literato descobre em si mesmo um poder de demiurgo” (GUSDORE, 1979, p. 150) © poeta ou escritor cria novos mundos em que o homem dividido, separado 284 'SCRIPTA, Blo Horne, © 9, 7p 281-286, 2am 2008 Conceituagio ¢ aplicagio mitica na iteratura rosin de si mesmo, desgarrado da realidade e de Deus, deseja fazer o caminho do retor no. A existéncia se desestabiliza. O mito remete a unidade, da qual carregamos a nostalgia: desde o Eden, passando pelo “Banquete” de Platao, até os nossos dias. © homem, “criador de mitos novos, é ele, agora, que da sentido a0 mundo (.-) Faz-se mestre e possuidor da realidade pela criacio artistica, muito antes de a ciéncia ¢ a técnica estarem em condigdes de lhe conferir a livre disposicio das coisas e dos elementos” (GUSDORE, 1979, p. 151). O mito integra-se na reflexto. © homem adquire consciéncia de si mesmo. Sabe que esta nu como Adio diante de Deus, fez sua escolha, tem de assumi-la, “A perda do lugar ontolégico, garantido pelo mito, mas destrufdo pela refle- x20, 6 sentido como uma transgressio, geradora de inseguranga e angiistia” (GUS- DORE, 1979, p. 152). Toda obra de Guimaraes Rosa é uma arquitetura, que abriga essas questées. No universo do discurso, a paisagem mitica primitiva é esbocada em linguagem e a linguagem, como diz Heidegger, “é a casa do ser”, A Literatu) Provoca, sem jamais responder. A Literatura continua a oferecer perguntas sobre © mundo, desviando-nos da estreiteza e da rigidez, de nos julgar-nos donos da verdade. ser de linguagem, entrega-se & nossa busca de respostas que ela Abstract In the primitive society the myth marks the beginning and the origin of things. Through it man gives consciousness of his human condi- tion, his being in the world and his death. From ithe names and gives life to what is surround him. As the time passed the myth transcend cd its most important sense by oral to audition. Nowadays achieving all of our senses. The modern medium constantly offers us re-read~ ings of atemporal tales. Rosa by the renewed written recreates the myth with all its original funetions. Therefore it interferes in the orig inal myth so hard that more than influenced by it the new tale breaks the chains of time and it influences the own myth. The “diabolical” in its mythie dimension go through the fiction of Guimaraes Rosa. Key words: Diabolical; Myth; Guimaraes Rosa; Literature tales; Lit- erary theory. SRP Reo tomate a pI Bema (8S Referéncias BASTOS, Fernando. Mito e filosofia. Brasilia: Ed. Universidade de Brasflia, 1991, GALVAO, Walnice Nogueira. Mitolégica rosiana. Sio Paulo: Atica, 1978. Colegio Ensaios, 37. GUSDORF, G Convivio, 1979. GUIMARAES ROSA, Joao. Ficgdo completa. v. Te TI. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995. JABOUILLE, Victor et al. Mito ¢ literatura, Portugal: Inquérito, 1993. MACHADO DE ASSIS, Joaquim. A igreja do Diabo. In; Historias sem data, in Obras completas, v. II. Rio de Janeiro: Aguilar, 1994. VERNANT, Jean-Pierre. Mito ¢ pensamento entre os gregos: estudos de psicologia historica, Tradugio Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. ges. Mito e metafisica. Tradugio Hugo di Primio Paz. Sio Paulo: 286 ‘SCRITA, Bek Hoazonte 9m Wp IEG, vem 7005

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