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Romanos Exposicgao sobre Capitulo 14 LIBERDADE E CONSCIENCIA D. M. Lloyd-Fones FES PUBLICACGOES EVANGELICAS SELECIONADAS Caixa Postal 1287 01059-970 — Sao Paulo - SP www.editorapes.com.br Titulo original: Liberty and Conscience Editora: The Banner of Truth Trust Primeira edigdo em inglés: 2003 Copyright: Lady Catherwood e Sra. Ann Beatt, 2003 Tradugao do inglés: Odayr Olivetti Revisao: Antonio Poccinelli Cooperador: Luis Christianini Capa: Sergio Luiz Menga Permissao gentilmente concedida pela Banner of Truth Trust para usar a sobrecapa da edigéo inglesa Primeira edi¢4o em portugués: 2004 Impressao: Imprensa da Fé Prefacio . I. aoe Relagées entre os cristaos: problemas sobre “questées indiferentes” —ana- lise geral de 14:1-15:4 — cristaos fracos e fortes — razGes que explicam a diferenga: capacidade, temperamento, diligéncia, tempo e ensino — diversas manifestag6es. 2 srersnees woe 34 Nosso dever de dar boa acolhida aos fracos ~ acrescentando conhecimento a f€ - regras para discussao, argumentacao e didlogo — a arte de ensinar uns aos outros em amor, B sssssereenes 53 Saltando para conclusées — a questo dos alimentos — tipos de vegetarianismo — a comida e a lei cerimonial — desprezando e julgando — o espirito de temor levando ao legalismo ~ 0 ascetismo ¢ o movimento de temperanga, Ilustragdes do legalismo — divisées e disciplina ~ aparentes contradigdes de Paulo —n4o pondo tropego ~ prova de sermos bem recebidos por Deus. Os cristéos como servos de Deus — permanecendo firmes na liberdade pelo poder de Deus~.a compreensao contrastada com a perseveranga final ~testemunho derivado das Escrituras e de grandes hinos. O sdbado e o dia do Senhor - observando outros dias especiais - sem extremos ou fanatismo - estando seguro em seu proprio 4nimo (ou, persuadido em sua prépria mente) -— educando a consciéncia. Motivagdo no servico do Senhor ~ glorificando e dando gragas a Deus ~ nao desejando a morte: William Tennent e George Whitefield - sempre prontos para morrer: Richard Baxter, Pedro, Joao e Estévao, O senhorio de Cristo mediante Sua morte e ressurreigao — Sua vitéria sobre a morte e 0 sepulcro — 0 diabo e o medo da morte derrotados - os cristéos superam todas as coisas, inclusive a morte, sssscccrsnasssennsasnevsncecsssnsvovossosonttsenessocosecsunnsnssooesesgutsannssoennegts 156 IrmAos, nao juizes — o tribunal de Cristo, que é Deus — todos os homens prestarao contas a Deus—o julgamento dos crentes: recompensa ou perda, nao destino final. A abordagem indireta de Paulo completada — pedras de tropego e lagos: jamais devemos ser obstaculo para um irmao —a autoridade apostélica de Paulo — nada é imundo (ou impuro) em si mesmo — Pedro e Cornélio. ll . . senscsasassoeanesensens 190 Considerar aqueles que tém convicgées diferentes — duas c cauisas de tristeza ~ forte na doutrina, fraco no amor — 0 sentido de “destruir” um irmao: 0 naufragio da fé - seguindo o exemplo do sacrificio de Cristo. 12 secsesrsecssensnsesnn o 204 As boas agbes, em si mmesmas, n nem n sempre convém — a importancia da consciéncia — a consciéncia boa, fraca, pura, manchada ou cauterizada - sua fungéo como salvaguarda. 13 .. rosee 220 A perseveranga final ‘dos santos — Hebreus 6: vy 6 —lidando com aparentes contradigées — assergdes determinantes sobre o propésito de Deus - o uso de adverténcias para preservar — os fracos devem ser déceis ao ensino — os limites da acomodagao. 14 veeessseeessenees esnesesee sirerensees 238 Magnifica declaragéo em resumo — uma questao de equilfbrio e de proporcdo — a importancia da unidade da Igreja - denominagées e movimentos — exames e escolas teolégicas - oragio de encerramento. 15... serves 255 Regras para pensar no reino de Deus —considerar sempre as partes em relacdo ao todo - 0 homem completo tem que estar envolvido — comegar pelo reino de Deus em Cristo - relembrando o lugar exaltado da pessoa no reino futuro. 16. . 269 Os cristéos devem pensar diferentemente, como convém a cidadaos do Reino - a Igreja nao é uma democracia ~ procurar primeiro 0 reino de Deus - 0 Reino é maior do que qualquer aspecto individual — como se deve demonstrar essa grandeza ao mundo, 17. . 285 Justiga: imputada ou ética? — relagGes pessoais corretas ~ mais que mera exposic¢ao ética — pertencendo ao dominio da justiga— os cristéos sao como. Jesus Cristo, o Justo. 18 vessessneeon . 299 A escrupulosidade mérbida arrufna a paz — leva a um espfrito censor — Pprejudica a nossa relagéo com Deus - paz que vem do Deus da paz - a reconciliagéo com Deus leva a paz interior e uns com os outros — regozijando-se no Principe da Paz. 316 Apéndice: A Série de Romanos .... PREFACIO Na noite de sexta-feira do dia primeiro de margo de 1968, com a idade de sessenta e oito anos, Martyn Lloyd-Jones foi para o seu ptlpito, como de costume, na Capela de West- minster, Londres, para pregar sobre a Epistola aos Romanos. As poucas folhas de anotagdes que ele levou consigo foram numeradas como 0 seu 372° sermao da série sobre Romanos, iniciada dez anos e meio antes, no dia 7 de outubro de 1957. Ele tinha chegado agora ao capitulo 14, versiculo 17: “Porque o reino de Deus nao é comida nem bebida, mas justiga, e paz, e alegria no Espirito Santo”, e, embora nao o soubesse, naquela noite, comentando a palavra “paz”, ele concluiria seu ministério de trinta anos no coragao de Londres. Para muitos dos seus mil ou mais ouvintes das noites de sexta-feira, esse ministério duraria mais que toda a sua vida, e que pudesse terminar repentinamente estava longe dos seus pensamentos. Mas o que ele sempre dizia sobre a “vida e peregrinagao terrena curta e incerta” era verdade; antes de poder voltar ao pilpito na manha do domingo seguinte, o diagnéstico indicou uma condicao que levou a uma cirurgia ¢, dois meses depois, em maio, a decisio de aposentar-se. Dificilmente se poderia pensar em palavras mais caracteris- ticas da sua vida e ministério do que as do texto dessa primeira sexta-feira de marco de 1968. Certamente nao seria essa a sua propria estimativa; com todaa seriedade ele disse mais tarde a um grupo de ministros que ele havia sido impedido antes de completar o versiculo 17 porque ainda nao estava preparado i para pregar sobre a “alegria no Espirito Santo”. Com sua firme fé na absolutamente abrangente provi- déncia de Deus, o Dr. Lloyd-Jones nao ficou desanimado com a stibita concluséo em Westminster. Durante anos tinha sido sua preocupacgéo que lhe fosse dado tempo para preparar alguns dos seus sermées sobre “a mais grandiosa Epistola de Paulo” para publicacio, e ele via o encerramento do seu ministério pastoral como a oportunidade dada por Deus para o cumprimento desse desejo. Contudo, nao havia nenhum precedente moderno que indicasse como 0 ptiblico reagiria a um magnum opus' sobre Romanos envolvendo muitos volumes. Na verdade, o pregador nunca previu o encaminhamento da obra toda a imprensa. Sua proposta inicial aos seus editores era um primeiro volume, comegando em Romanos 3:20, com o titulo “O Coragéo de Romanos”, em parte para testar 0 mercado. Contestamos esse titulo com base no fato de que pareceria um aviso de que a publicagao da série toda nao estava em vista. Houve acordo, e esse titulo foi abandonado, mas 0 primeiro volume foi sobre Romanos 3:20-4:25, e intitulado Expiagdo e Fustificagéo. Em seu Prefacio de julho de 1970, ano da publicacao, o autor falou da sua esperanca de “varios volumes”. Essa esperanga foi excedida em tal medida que agora, com 0 presente volume, a totalidade da sua obra (sobre Romanos) est4 disponivel desde 0 capitulo primeiro, versiculo primeiro.” Seria forcar os registros que sobrevivem dizer quantos exem- plares dos volumes, separadamente, foram vendidos até hoje; a marca de um milhdo foi ultrapassada hd muitos anos, e varios volumes também tiveram um editor americano.? ' Magna obra. Nota do tradutor. ? Em portugués j4 foram publicados treze volumes por Publicagées Evangélicas Selecionadas (PES). Nota do tradutor. 3 A Baker Book House foi a editora nos Estados Unidos, de 1970 a 1977. A partir do volume sobre Romanos, capitulo 10, Saving Faith, 1997 (em portugués, Fé Salvadora, PES, 2003), os editores originais tém sido responsdveis pelo mercado mundial. 12 Assim como o ministério piblico de Lloyd-Jones sobressaiu como amplamente diferente da maior parte da pregacéo contemporanea, assim também sua obra Romanos entrou nas livrarias com uma forca de atragao que pegou muitos de surpresa. Nao poucos achavam que a natureza do seu ministério no ptilpito inibiria a sua continuidade no papel impresso — “Ele precisava ser ouvido, nao lido”. Todavia, os que tinham essa opiniado estavam localizando mal o ponto em que sua forga jazia. Jazia, primeiramente, na verdade que ele proferia, néo em sua comunicagéo. Além disso, 0 seu conceito geral de pregacdo significava que ele se dirigia ao coracdo e a consciéncia, como também a mente, e esse tipo de material de sermao nunca deixou de prender a atengéo dos leitores, bem como dos ouvintes. O tempo haveria de provar que a sua mensagem alcancaria muito mais pessoas por seus livros do que jamais seria possivel mesmo ao seu ministério tao difundido. Acresce que os livros seriam traduzidos para muitas linguas, e a sua obra, Romanos, seria lida por milhares, em nagodes que se estendem do Brasil 4 Coréia. Quando o primeiro volume da série intitulada Romanos veio a luz em 1970, um resenhista da revista Christianity Today escreveu: “Este nao é um livro mediano ou comum. Tampouco vocé o lerd indiferentemente. E 0 tipo de livro que vai agarrar sua mente e seu coracdo... j4 faz muito tempo que nao leio um livro de que tenha gostado tanto como este”. Para uns, os volumes da série sobre Romanos tém sido literalmente o meio pelo qual eles foram introduzidos no reino de Deus. Para outros, seu ensino causou verdadeira revolugdo no pensa- mento e mudou ministérios. Como Apéndice deste volume, ver-se-4 uma lista dos catorze volumes que compéem a série e as datas da primeira publicagao de cada um deles. Parte alguma deste material teria sido possivel obter, nao fossem as gravagdes em fita, pois os esbogos do pregador consistiam pouco mais de titulos ou divisdes e idéias principais. Assim, o contetido de todos os 13 volumes passou a forma de originais para a imprensa como foi tomado das gravagées. Foi entéo o Dr. Lloyd-Jones que, até sua morte ocorrida em 1981, assumiu a maior parte do trabalho para a edigdo, e a palavra final era sempre dele. Esse processo ele empreendeu com muita reflexéo e cuidado, com a assessoria da Sra. Lloyd-Jones, sua filha mais velha, Lady Catherwood, e o Sr. S. M. Houghton (que morreu em 1987). A Sra. Lloyd-Jones continuou envolvida nos trabalhos de editoracgéo até sua morte, em 1991, e dessa data em diante Lady Catherwood tem sido a tnica responsdvel, com a inapreciavel cooperagao da Sra. Rhona Pipe, de Watermark. Os principios com base nos quais os trabalhos de edicdo foram empreendidos permaneceram os mesmos 0 tempo todo. Em nome dos editores, eu gostaria de expressar a nossa gratidao as filhas do Dr. Lloyd-Jones, Lady Catherwood e Sra. Ann Beatt, e suas familias, pela feliz relagéo de que pudemos compartilhar durante tanto tempo. Acima de tudo, juntamo- -nos a todos quantos dao gracgas a Deus pelo ministério do Seu servo. Que a gléria seja dada unicamente a Deus era a principal preocupacao do autor, gloria em cujo gozo ele agora entrou, em toda a sua plenitude. IAIN I. MURRAY Edimburgo Agosto de 2003 1 “Ora, quanto ao que estd enfermo na fé, recebei-o, nado em contendas sobre dividas.” —- Romanos 14:1 Chegamos agora ao comeco do capitulo 14, e aqui passamos a outra subdiviséo desta segunda parte maior da Epistola aos Romanos. A grande divisdo desta Epistola, por certo vocés se lembram, é a seguinte: os onze capitulos inici- ais tratam de assuntos doutrinarios; depois, no inicio do capitulo 12, 0 apdéstolo passa a considerar a aplicacao da doutrina na pratica e no viver diario. E muito importante entender o método do apéstolo, nao somente para que possamos entender o contexto dos versicu- los em estudo, mas também a fim de que possamos fazer a devida apreciagaéo da maravilha e do encanto das Escrituras. A mente deste grande apédstolo me fascina. Gosto do seu modo de pensar. Ele sempre procede a sua prépria maneira. Por isso, € importante que compreendamos algo da argumentacao de Paulo neste ponto. Lembrem-se de que nos dois versiculos iniciais do capitulo doze ele introduz toda a diviséo pratica com as palavras: “Rogo-vos, pois, irmaos, pela compaixdo de Deus, que apresenteis os vossos corpos em sacrificio vivo, santo e agraddvel a Deus, que € 0 vosso culto racional. E nao vos conformeis com este século, mas transformai-vos pela reno- vacéo do vosso entendimento, para que experimenteis qual seja a boa, perfeita e agraddvel vontade de Deus”. E devemos comecar por esses dois versiculos, porque todo o contetido do capitulo catorze é coberto por essa introducao. 15 Liberdade e Consciéncia Que é que 0 apéstolo faz nesta parte pratica? Bem, permitam-me oferecer-lhes um apressado sumdrio dos capitulos 12 e 13. Antes de mais nada, ele fala das nossas relagdes com outros membros da igreja no que se refere aos nossos dons espirituais, mostrando que podem surgir problemas e desarmonia por nao se entender a verdade concernente a este ensino. E depois ele prossegue e trata de outros aspectos da nossa relacéo com outros cristaéos, antes de abrir um pouco mais a discussdo para tratar das nossas relag6es pessoais com os que no sao cristéos. As Escrituras sdo muito praticas. Tornar-se cristéo nao resolve todos os seus problemas. Vocé continua a viver neste mundo e com as pes- soas como elas sao. E por isso o apéstolo considera todos estes assuntos.” Depois, no principio do capitulo 13, 0 apéstolo nos dé valioso conselho e ensino com vistas 4 importante questao da relagéo do cristao com “as potestades que ha” —reis, principes, magistrados, presidentes, governadores, tudo aquilo que esta envolvido na concepgdo do Estado. E nos faz um grande apelo em termos da lei: “O cumprimento da lei € 0 amor”, diz ele (13:10). Cumpram, pois, a lei, fagam estas coisas, e esta- rao cumprindo a lei do amor. E, finalmente, 0 apédstolo esclarece 0 seu ensino e no-lo impée, lembrando-nos que 0 nosso tempo neste mundo é muito limitado, muito curto. Na verdade, o tempo do mundo inteiro é limitado: “A noite é passada, e o dia é chegado” (versiculo 12), e, dentre todas as pessoas, nds devemos dar-nos conta disso. Todas as nossas atividades e toda a nossa conduta sempre devem ser vistas a luz da eternidade, a luz desta gloriosa esperanga que contemplamos e em diregao 4 qual marchamos. Mas agora, no capitulo 14, 0 apdstolo se dedica a outro assunto. Por isso digo que temos ai uma nova subdivisao. "Ver Romanos: Exposigéo do Capitulo 12: A Conduta Crista, 2003. “* Ver Romanos: Exposigao do Capitulo 13: Vida em Dois Reinos, 2004. 16 Romanos 14:1 Lembrem-se de que ainda estamos sob o titulo geral referente A conduta e a nossa relagaéo com outras pessoas, dentro ou fora da igreja, e aqui ele retorna a nossa relagéo com pessoas de dentro da igreja. Vocés véem o método de Paulo? Ele tinha tratado dos grandes, dos maiores, problemas e relagdes, e, tendo feito isso, passa a tratar de quest6es mais particulares. No entanto, ainda sao problemas que tendem a inquietar os cristéos, s4o problemas que tendem a deixar-nos transtornados, e, acima de tudo, séo problemas que tendem a dividir-nos; por isso ele os considera. Claro esté que ele se ocupa destes proble- mas porque estavam de fato criando dificuldade para a igreja da cidade de Roma, mas nés sabemos que eles tém dado surgimento a dificuldades através dos séculos, até o presente. Quais sao, entao, esses problemas? Bem, aqui Paulo esta primariamente preocupado com as chamadas “questées indi- ferentes”. Este assunto é muito importante. Existem questées relacionadas com a vida crista que sao absolutamente essenciais. Ha, porém, outras que sao muito importantes mas que nao sao essenciais, e é concebivel que os cristaos tenham diferentes pontos de vista sobre elas, como veremos. E por isso que geralmente se faz referéncia a essas quest6es como “questdes indiferentes”. As que o apéstolo toma em particular sao as concernentes a comer e beber, e a de separar dados dias como “dias santos”. E esse, entao, o tema desta subdivisao. E interessante perguntar: esse ponto sobre “questdes indiferentes” tem alguma conexéo com o imediatamente anterior? Penso que talvez tenha. Nao quero ser muito dogmatico, porém de- certo vocés lembram como Paulo terminou a parte anterior: “Andemos honestamente, como de dia: néo em glutonarias, nem em bebedeiras, nem em desonestidades, nem em dissolugdes, nem em contendas e inveja. Mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo, e nao tenhais cuidado 17 Liberdade e Consciéncia da carne em suas concupiscéncias”.* Pois bem, penso que é apenas possfvel que, ao referir-se a “glutonarias” e “bebedeiras”, e ao perigo de abrir caminho para a licenciosidade, para a luxtiria e para os excessos, 0 apéstolo pensa imediatamente no oposto disso, que é uma espécie de escrupulosidade mérbida com relagdo 4 conduta. Naturalmente nao podemos provar isso, mas me parece que a discusséo do capitulo 14 é uma decorréncia l6gica do capi- tulo 13. Ha pessoas cujo perigo é algum tipo de excesso, porém ha outras que tendem a ir para 0 outro extremo, e aqui Paulo se ocupa do caso de tais pessoas. Lembro a vocés que a divisao das Escrituras em versiculos ecapitulos nao é divinamente inspirada. Foi sé relativamente ha pouco tempo que as Escrituras foram divididas dessa maneira, e ndo concordamos necessariamente com a divisio que foi feita, Aqueles que a fizeram eram apenas homens como nés, e eu penso que neste ponto eles perderam 0 rumo. Sugiro-lhes que a divisdo natural vem, nao no fim do capitulo 13, e sim, no fim do versiculo quatro do capitulo quinze. Pois bem, ha alguns que dizem que esta parte vai até o fim do versiculo doze, ou mesmo do versiculo treze do capitulo quinze. Contudo eu discordo disso. Parece-me que no ver- siculo 5 do capitulo 15 0 apéstolo alarga, amplia, um principio que havia formado, mostrando que sua aplicacao vai além da 4rea pertencente a comida, bebida e dias, e se estende a quest6es maiores e a maiores catsas de divisdo e de dificuldade. E evidente que nenhum destes pontos € essen- cial, mas eu penso que, por amor de um pensamento ordenado edo entendimento do ensino, é bom que tenhamos em mente algum tipo de classificagao. E sempre bom pensar de maneira ordenada. Meu parecer é, pois, que a referida parte comeca *VA: “endo facais provisdo para a carne, para cumprir os seus desejos”. NVI: “...e nao fiquem premeditando como satisfazer os desejos da carne”. Nota do tradutor. Romanos 14:1 no versiculo primeiro do capitulo 14 e termina no versiculo 4 do capitulo 15. Ora, este nao é o tinico lugar das Escrituras em que se discute o problema de comida e bebida. Vocés verao algo muito parecido em 1 Corintios, capitulo 8, onde Paulo trata de um problema que tinha surgido em funcao da questao de comer carne de animais que haviam sido oferecidos a idolos. Nao vou entrar nisso agora, porque penso que ha pouca diferenca entre 0 propésito do apéstolo aqui e o seu propésito em 1 Corintios, capitulo 8, porém ele lida com o mesmo principio. Este assunto é tratado também em 1 Corintios, capitulo 10, e em 1 Timéteo, capitulo 4. Penso que o paralelo mais préximo de Romanos, capitulo 14, acha-se na passagem de 1 Timoteo, e para mim é interessante observar que muitos comentadores parecem nAo ter notado isso. Esta, obviamente, era uma questo que causava dificuldade dentro da Igreja Primitiva, e é por essa razdo que 0 apéstolo trata dela mais de uma vez, e é por essa razéo que nds também devemos consideré-la. Penso que quando vocés comecarem por uma nova porcao biblica, é sempre bom procedimento procurar ter uma visio panoramica do argumento. Portanto, 0 préximo passo 6 examinar a estrutura desta parte. Quando a analisa- mos, vemos que ha uma progressao no pensamento, e que 0 apéstolo avanca de estaégio em estagio. Por isso me proponho dividir esta parte em cinco segoes: a primeira vai do versiculo primeiro ao versiculo 12, a segunda, do versiculo 13 ao 16,a terceira, do versiculo 17 4 primeira parte do versiculo 20 (20 a) — estou até discordando da divisao feita pelos eruditos em versiculos, como também com a diviséo em capitulos! Depois, a quarta secao vai do versiculo 20 ao versiculo 23, e a secao final sao os quatro versiculos iniciais do capitulo 15. Bem, que faz Paulo nessas segdes? Aqui esta: 1. 14:1-12 _O versiculo primeiro é a declarac&o da causa, a 19 Liberdade e Consciéncia declaracéo do principio determinante ou controlador do argumento. E 0 que o apéstolo sempre faz. Ele comega com uma espécie de proposigéo — “Ora, quanto ao que esté enfer- mo na fé, recebei-o, nado em contendas sobre diividas”. Aj, se lhes parece bem, esté 0 texto que vai levar ao sermao, embora eu prefira colocd-lo em termos de “uma declaragdo da causa a ser considerada, e do principio que governara 0 tratamento dela”. Depois, tendo exposto a questdo em geral, Paulo agora passa as suas particularidades. Espero que aprendamos disto a medida que continuarmos. Nunca partamos dos detalhes, ou, no minimo, se o fizerem, vocés estario cometendo um grande engano e logo ficaréo confusos em seu pensamento. Comecem, pois, com um principio, e depois apresentem ilustragdes ou exemplos desse princfpio. E isso que Paulo faz. Nos versiculos 2 a 4 vemos este principio aplicado a questao de comer certos alimentos. O versiculo 5 e parte do versiculo 6 tratam do mesmo principio aplicado aos dias santos de guarda. Os versiculos 6 b a 12 mostram a maneira pela qual essas duas questées, e todas as demais, sempre devem ser consideradas, a saber, 4 luz da nossa relagéo com o Senhor, e especialmente, como por certo nos lembramos, a luz do fato de que Ele é 0 Juiz diante de quem todos nés teremos que comparecer. 2. 14:13-16 Nos versiculos 13 a 16, 0 apéstolo nos adverte de que nunca devemos considerar estas questdes sem lembrar que somos “irmaos”, que todos nés somos filhos de Deus. Nao devemos discutir estas coisas teoricamente, no abstrato, mas devemos sempre lembrar-nos de que somos e seremos govet- nado por essa consideragao. Se néo procedermos assim, todas as nossas opiniées serao destituidas de qualquer valor e faremos mais mal que bem. 20 Romanos 14:1 3. 14:17-20a Também devemos lembrar-nos sempre da natureza da Igreja Crista, da natureza do reio de Deus. E espantosa a facilidade com que, em nossa discussao dos deta- thes e minticias, esquecemos 0 todo maior. Acredito que é isso que est4 acontecendo na Igreja no presente. Com toda essa conversa sobre ecumenismo, com toda essa discussdo sobre bispos e formas de ordenagao, e com todos os argumentos acerca de detalhes do que se deve fazer na Igreja, as pessoas se esqueceram do que é a igreja — e houve a mesma tendéncia nalgumas partes da Igreja Primitiva. Por isso 0 apéstolo diz: nunca se esquecam do que éa Igreja a qual vocés pertencem, nunca se esquecam de que vocés sao cidadaos do reino de Deus, pois, se se esquecerem, estaréo argumentando no abstrato, e estarao todos errados em seu espirito, seja o que for que vocés sejam em seu intelecto e em seu entendimento. 4. 14:20b-23 A seguir Paulo resume 0 argumento sobre estas questées e nos lembra que, embora devamos ter sempre em mente 0 fato de que somos irmaos e irmas, nao obstante, cada um de nés é um individuo e cada um de nds é responsavel perante a nossa consciéncia, e devemos ter todo 0 cuidado de nunca violar os ditames da consciéncia. 5. 15:1-4 Depois, tendo feito isso tudo, o apéstolo nos faz um grande apelo final — novamente um apelo no sentido do espirito com o qual devemos levar a efeito o ensino. E um apelo que, como sempre acontece com os apelos finais de Paulo, eleva-nos diretamente ao Senhor, a nossa relacao geral com Ele e especialmente ao que Ele j4 fez por nds. Temos af, pois, a andlise geral dessa parte. Penso que de imediato veremos que é uma parte sumamente pratica e muito importante, principalmente na época atual. O problema aqui tratado é um que, em suas varias manifesta- des, freqiientemente tem causado dificuldade dentro da Igreja, e esta causando hoje. 21 Liberdade e Consciéncia Ha sempre dois perigos, dois extremos, no qual temos a tendéncia de cair. Um deles, como ja dissemos, é um tipo de escrupulosidade mérbida, 0 que significa que estamos sempre com espirito de temor, sempre perguntando o que devemos fazer, ou estamos constantemente ficando em grande dificuldade, porque esse espirito nos leva a criticar e condenar os outros. As pessoas que padecem de escrupu- losidade mérbida estéo sempre tentando baixar regras e regulamentos sobre como todos os outros devem portar-se, e estéo sempre em dificuldade quanto a si mesmos e quanto a outros, O outro perigo, no outro extremo, € 0 de antinomismo. Este se refere ao tipo de cristéo que varre para um lado todas as regras e mais ou menos afirma que nao importa 0 que vocé faz, agora que se tornou cristao. Licenga e legalismo! Estas duas atitudes sempre foram propensas a causar dificuldade no seio da Igreja Crista, e é extraordinario como elas continuam existindo. BE pois, muito importante que consideremos esse ponto, e que tratemos dele perfeitamente, nesta passagem que estamos estudando, Devemos comegar com o primeiro versiculo: “Ora, quanto ao que est4 enfermo’ na fé, recebei-o, nao em contendas sobre dtividas”. Este é 0 problema que esta diante de nés, e desde logo Paulo nos da uma idéia de como devemos lidar com isso. Mas, primeiro, examinemos as expressdes, que so muito interessantes e importantes. “Ora, quanto ao que esta fraco na £6”, diz o apéstolo. Que significa? Para comegar, notem que Paulo nao diz “fraco de fé”. Ha uma diferenga entre as duas frases. Ser fraco de f€ significa que nao ha poder em sua fé. Vocé cré em certas coisas mas nao esta disposto a fiar-se nelas. George Miiller era um homem que tinha uma fé muito forte. Ele podia crer e confiar em Deus, a despeito de todas as aparéncias. H4, porém, outros que tém fé fraca. * ARA: “débil”; NVI: “fraco”. Nota do tradutor. 22 Romanos 14:1 Aqui, no entanto, no versiculo primeiro, Paulo nao esta falando acerca de fé fraca, e sim, da pessoa ser “fraca na fé”, dela ter um fraco entendimento do ensino concernente 4 salvacdo cristé. O apédstolo esté se referindo a homens e mulheres que entram em dificuldade e ficam confusos e atoleimados com relagéo 4 maneira de externar adequada- mentea sua fé. Qual seria ent&o 0 sentido do termo “fraco”? Aqui, de novo, é importante que a nossa tradugdo seja correta. O apéstolo esta pensando numa pessoa que é fraca por algum tempo. N&o permanentemente. Ele esta dizendo: “Pois bem, vocé tem que lidar com pessoas que no momento, ou por enquanto, estado muito fracas ou débeis na fé. Elas podem tornar-se fortes, e devem, esperemos que se tornem, mas 0 ponto em questao é que no momento elas estao fracas na fé”. A maneira pela qual 0 apéstolo o diz em grego compele-nos a interpretar o seu significado desse modo. Ele nao usa um adjetivo, nao diz que os crentes sao fracos. Eles estéo fracos no momento, estao em dificuldades, e estéo um tanto débeis nesta questio da fé. Observando agora a frase completa, “fraco na {é”, vemos que Paulo quer dizer que esta se referindo a cristdos verdadeiros — nao hé diivida sobre isso. Estao na fé; nasceram de novo; séo membros de igreja, e tém todo o direito de estar. Tém claro entendimento quanto a sua culpa e a sua pecaminosidade; arrependeram-se; entenderam 0 caminho da salvagao; e, além disso, esta bem claro para eles que esto justificados pela fé no Senhor Jesus Cristo. Se vocés [hes fizerem perguntas sobre estes pontos, obteriio deles as respostas corretas. Nao teriam sido admitidos na igreja, se nao estivessem bem esclarecidos sobre estas coisas. Onde, entao, estas pessoas erraram? Assim foi: embora vissem claramente o grande e central tema da salvagao, quando ele chega aos detalhes particulares da vida e do viver incons- cientemente retrocederam da posicao de fé a um velho modo de pensar legalista e pré-cristéo, e se puseram a pensar em 23 Liberdade e Consciéncia termos da justificacao pelas obras. Bem, os judeus tinham sido criados sob a lei, e um dos seus grandes problemas quando se tornavam cristaos era a incapacidade de pensar de maneira coerentemente crista, a incapacidade de pensar sempre e completamente em termos da fé. Era a diferenca entre crer na verdade acerca da salvacao, e aplicar essa verdade o tempo todo a toda a sua conduta, a toda a sua vida e a todo o seu modo de viver quando se deparavam com questées e problemas particulares. Espero que isso esteja bastante claro para vocés. E seguramente verdade a respeito de todo cristao. Por certo nos vimos caindo neste mesmo erro muitas vezes, e vimos outros fazerem exatamente a mesma coisa. N4o se segue que, se vocé estiver certo sobre 0 principio principal, estaré sempre certo na aplicacao desse principio aos diversos detalhes e proble- mas com os quais se defronta. Com efeito, esse € 0 tipo de problema do qual o apédstolo estd tratando. E o perigo de que, embora vocé creia que foi justificado pela fé, quando chega a questdes particulares, recai nas obras. Ou, como Paulo o expressa para os galatas, tendo comegado pelo Espirito, vocés tendem a continuar pela carne (Galatas 3:3). E isso que significa “o que esta fraco na fé”. Eis aqui pessoas na igreja, estes homens e mulheres; sao cristaos, todos eles, e, todavia, alguns deles estao em dificuldade quanto a certos problemas e, por causa dessa divergéncia, eles ten- dem a julgar uns aos outros, e a brigar uns com os outros, e alguns sao até desprezados por outros. Assim, aqui nés temos que encarar novamente um dos principios basicos relacionados com a vida cristé. Vamos, pois, examinar isso por um momento. Como é que esta distingao entre “fraco” e “forte” se torna possivel na vida crista? “O que esta fraco na f€”, diz Paulo aqui. Depois, no comeco do capitulo 15, ele diz: “Mas nés, que somos fortes...”. Noutras palavras, é ébvio que os cristaos podem ser classificados como “fracos” ¢ “fortes”, ou, em todo caso, como aqueles que estao fracos e 24 Romanos 14:1 aqueles que estao fortes “na fé”. Reconhecemos isso? Ao considerarmos este importantissimo assunto, de novo somos ajudados pelo fato de que Romanos, capitulo 14, nao é o tinico lugar, no ensino do grande apéstolo, em que nos deparamos com esta distingdo. Em 1 Corintios também Paulo mostra que havia uma divisdo em dois tipos de pessoas e que isso ocasionou problema naquela igreja. Alguns cristaos de Corinto diziam que tinham “conhecimento”, e isso levou Paulo a escrever: “Ora, no tocante as coisa sacrificadas aos fdolos sabemos que todos temos ciéncia.” A ciéncia incha, mas 0 amor edifica. E, se alguém cuida saber alguma coisa, ainda no sabe como convém saber” (1 Corintios 8:1,2). Assim vemos que, nesta questo da fé, a igreja de Corinto estava dividida entre fortes e fracos, entre aqueles que entendiam e aqueles que nao entendiam, e Paulo lida com 0 problema em sua carta aos corintios de maneira muito semelhante pela qual o faz aqui. E assim eu espero que todos nés percebamos com perfeita clareza que é certo dividir os cristaos deste modo. Permitam entao que lhes apresente algumas implicacdes desta simples e tinica observagao: “o que esta fraco na fé”. Primeiro, desde que alguns cristaos sao descritos como fracos na fé, e alguns sao descritos como fortes, s6 pode ser verdade que os cristaos nao sao todos idénticos, nem todos sao iguais. Essa é uma proposi¢ao geral, e € um principio muito impor- tante. E uma coisa que nunca se diz sobre os membros de uma seita, os quais sao descritos como iguais. Todos os ensinos falsos erram neste ponto; eles igualam as pessoas de maneira errénea. Mas as Escrituras reconhecem a divisdo em fracos e fortes. Depois, 0 meu segundo ponto é que ser cristo nao é algo magico; nao é algo que acontece automaticamente. Ha muitos que parecem pensar que é algo magico no sentido de que pensam que todo cristo recebe uma iluminagao direta do Espirito. E, sendo direta, e nao dependendo da capacidade “VA eNVI: “conhecimento”. Nota do tradutor. 25 Liberdade e Consciéncia humana, dizem eles, todo cristéo tem que estar exatamente na mesma posi¢do de todos os outros cristéos e tem que ser igual a todos os outros cristaos. O argumento segue assim: “Vocé sempre ensina que nao entramos na vida cristé em conseqiiéncia do nosso préprio entendimento; que nao entramos na vida cristé como resultado de qualquer coisa que fagamos. Mas, se € tudo de Deus, entaéo nos é dado a todos o mesmo entendimento imediato. Se é tudo obra do Espirito, temos, todos, esta “luz interior”, esta “jluminagao interna”, todos nés temos a mesma inspiragao direta sobre todo e qualquer assunto e questao”. Vocés estao familiarizados com essa posigao. E virtual- mente o ensino dos quacres, e é por isso que, com o passar dos anos, os quacres foram dando cada vez menos atencao as Escrituras. Vocé nao precisa das Escrituras, se lhe é dada luz e iluminagao direta sobre todos os assuntos. Esse ensino sempre foi um problema. Lembro que uma vez ouvi uma discussaéo sobre algumas quest6es numa reuniao de igreja. Alguém tinha citado o apéstolo Paulo, enquanto que outro havia citado o ensino do apéstolo Pedro. Entéo um homem se levantou e disse: “Nao importa 0 que Paulo e Pedro dizem, qualquer deles ou ambos: eu sei”. Ele tinha recebido inspiragao direta - ou assim pensava ele. Freqiientemente tenho ouvido cristéos dizerem coisa pare- cida com isso, e é algo muito perigoso. Entretanto a conclusao obvia das palavras de Paulo na passagem em foco é que, se os cristéos podem ser divididos em fracos e fortes na fé, entaéo ser cristéo néo é uma coisa automatica ou magica. Nao é algo que acontece a parte de nés. Mas, como conciliar essa divisao em fracos e fortes com 0 ensino de quea nossa salvacao é total e inteiramente pela graca de Deus e mediante a fé? Aqui esté a resposta: a regeneracao é inteira e exclusivamente ato de Deus; néo desempenhamos parte alguma em nossa regeneragéo. Conseqiientemente, nao faz a menor diferenga quem somos, e que dons temos. A vida 26 Romanos 14:1 que levamos e as obras que praticamos absolutamente nao importam. Somos todos iguais no que se refere a regenera- go; somos todos iguais no que se refere a justificagdo. Todos nés nos tornamos cristéos da mesma maneira. Claro que nao estou querendo dizer que as manifestacdes particulares da experiéncia sao idénticas, e sim, que hé unicamente um meio de tornar-se cristao: € a justificagéo somente pela f€, é a regeneracao, e, como isso € um ato de Deus, é sempre 0 mesmo. Todavia a regeneracdo é apenas 0 comeco. Dai em diante, a diferenca para a qual o apdstolo esta chamando a atengao torna-se evidente. Eis o que acontece: em nossa regeneracao é inserida em nés a semente da vida, e semente é semente; nao estA plenamente desenvolvida. E algo que vai crescer — é af que a diferenga entra em cena. Nao ha diferenca na semente, a diferenga esta no que acontece com a semente. E assim vocés verdo que nas Escrituras séo tragadas distingdes. “Vocés estéo se comportando como carnais”, diz praticamente Paulo aos corintios, “e nao deve ser assim” (1 Corintios 3:1). Vocés poderao ver Joao classificando as pessoas como “criangas”, “filhinhos em Cristo”, “jovens”, “velhos” — todos estes termos indicam diferengas, e ele se dirige aos cristaos com diferentes expressdes. $6 0 plantio da semente, s6 a doacao de nova vida, é que €a mesma; daf em diante eue vocés estamos envolvidos e as diferengas se tornam manifes- tas. Ent4o alguns de nés podem ser fracos na fé, ao passo que outros de nés podem ser fortes. Que é que causa as diferengas? Como é que elas entram? Sugiro-lhes que alguns dos seguintes fatores tm uma parte a desempenhar. Primeiro — e comego por este porque nao estou muito seguro a respeito. Penso que é um fator, e, todavia, nao tenho muita certeza! Que € que vocés pensam sobre isso? A capacidade natural faz alguma diferenga? Pois bem, eu reitero que a capacidade natural nao faz nenhuma diferenga no ato pelo qual vocé se torna cristao, mas, 27 Liberdade e Consciéncia sera que faz alguma diferenga depois que vocé se tornou cristéo? Sugiro-Ihes que faz. Isto nao é uma ponderacao sobre os homens e as mulheres que tém menor capacidade, mas é importante que eles tenham consciéncia de que sao menos dotados. Assim 0 apéstolo fala, por exemplo, sobre homens que sao “aptos para ensinar”. Nem todos tém capaci- dade para ensinar, e nem todos os homens foram destinados a pregar e a ensinar — hd aqueles que nao podem fazé-lo, nio tém capacidade natural para isso. Muito bem, ha um ensino que parece dizer que no momento em que nos tornamos cristdos, todos nés podemos, e devemos, fazer as mesmas coisas. Mas esse ensino é muito errado e é uma violacéo do que o apéstolo j4 nos tinha ensinado no capitulo doze de Romanos. No entanto, estou opinando que, em acréscimo a isso, a questo dos dons e capacidades naturais entra, e omitir isso é correr perigo. Segundo — o temperamento! Nao importa qual é o seu temperamento quanto ao ato de vocé se tornar cristaéo. Gracas a Deus, 0 cristianismo nao é um meio de salvacao $6 para um certo tipo de personalidade. Aqui esté um evangelho que pode salvar qualquer tipo de pessoa. Mas, lembrem-se sempre de que em sua regeneracao 0 seu temperamento nao sofre mudanga, e ele se manifestaré, Ha alguns que por natureza tendem a estar nervosos, ansiosos, sempre inquietos. Nasceram assim — todos nés nascemos com algum temperamento particular, e nao nos cabe julgar os outros. E alguns ha que sao naturalmente ansiosos. Bem, tudo o que estou dizendo é que quando um ansioso se torna cristao, ele ou ela nao deixa de ser um ansi- oso. Eos ansiosos sempre sao pessoas que tendem a entrar em dificuldade no ponto sobre o qual 0 apéstolo est4 falando aqui. Ora, espero que vocés se examinem. Concordam com isso? Ou vocés sempre pensaram que no momento em que nos tornamos cristéos, 0 que éramos antes nao pesa, que, se eu era um ansioso, ja néo sou mais? Contudo isso nao é 28 Romanos 14:1 cristianismo, isso é “Ciéncia Crista”. Aqui nas Escrituras nos é dito que a nossa personalidade essencial - o nosso temperamento — nao muda. O apéstolo Paulo é um perfeito exemplo disso. Ele era um perseguidor violento, e se tornou um pregador vigoroso, impositivo. Ele era mais zeloso que ninguém na perseguigao aos cristaos, e se tornou mais zeloso que ninguém na pregacio. E esse tipo de coisa que estou querendo dizer. Portanto, vocés devem esperar que, quando certos indi- viduos se tornam crist&os, terao um certo tipo de problema. E, na verdade, eles tém, e essa € a razdo pela qual o apéstolo trata disso. Outras pessoas, nao entendendo este ponto deveras fundamental, tendem a criticd-los e a perguntar: “Afinal, eles s4o cristaos? Vejam como se angustiam por causa destas coisas! Nao deve haver nenhuma preocupacao na vida crista”. Ora, é sua ignorancia que os leva a tomar essa atitude. Um terceiro fator que tende a fazer diferenga entre os cristéos é o seguinte: nossa diligéncia e aplicagdo quando entramos na vida crista. A vida nos é dada, a semente é inserida em nés; um novo espirito nos é dado, o espirito da nossa mente érenovado. Ah, sim, mas se vocé negligenciar as Escrituras, se nao ouvir o ensino e a pregacao, vocé nao crescera e, em conseqiiéncia, vai se envolver em dificuldades. Eu nao preciso ficar sobrepondo isso a vocés. O apéstolo diz em 1 Corintios 3:1: “Nao vos pude falar como a espirituais, mas como a carnais”. Ele diz: vocés me tornaram isso impossivel. Porque vocés nfo se desenvolveram e nao cresceram, nao posso dar-lhes o ensino que gostaria de lhes dar. O autor da Epistola aos Hebreus é ainda mais explicito. No fim do capitulo 5, ele praticamente diz aos seus leitores: “Eu queria dizer a vocés muita coisa sobre o nosso Senhor como nosso Sumo Sacerdote segundo a ordem de Melqui- sedeque, mas nao posso; vocés nao exercitaram os seus sentidos, Se téo-somente tivessem feito isso”, diz ele, “eu poderia ter tratado disso e lhes teria dado maravilhoso fortalecimento 29 Liberdade e Consciéncia e consolo, mas vocés nao 0 fizeram, e eu tenho que comegar de novo com os primeiros rudimentos do evangelho de Cristo. Tenho que alimentar vocés com leite; néo posso dar- -lhes mantimento forte, porque vocés nao o podem receber” (Hebreus 5:11-14). E entao Pedro, referindo-se a estas Epistolas de Paulo, diz: “Entre as quais ha pontos dificeis de entender, que os indoutos e inconstantes torcem e igualmente as outras Escrituras, para sua propria perdicaéo” (2 Pedro 3:16). Portanto, se negligenciarmos os meios de graca, se deixarmos de usar todas as coisas que nos vao tornar fortes, e nao nos engajarmos nelas, forgosamente continuaremos fracos. Este assunto é da maior importancia. Acredito que é um dos maiores problemas da Igreja Crista na atualidade. Os tolos — evangélicos — dizem: “Mas eu nao consigo ver nada errado no catolicismo romano. Atualmente somos todos um”. Todavia isso é pura ignorancia. Tais pessoas nao estéo bem instrufdas, nado exerceram “os seus sentidos”, nao conhecem nem as suas Escrituras nem a sua histéria. Por isso esto fracas, €, visto que estao fracas, esto sujeitas a deixar-se iludir por falsos mestres e a serem “levados em roda por todo vento de doutrina, pelo engano dos homens que com astticia enganam fraudulosamente” (Efésios 4:14). O quarto fator é a extensio do tempo em que estamos na vida crista. Vocé nasceu bebé, e um bebé nAo sabe coisa alguma. O bebé tem que crescer e desenvolver-se, precisa receber ensino e instrugdo. Esse é 0 sentido geral destas Epistolas, € por isso que elas nos foram dadas. Ha na Igreja pessoas chamadas presbiteros, anciaos, e a designacao para esse oficio envolve idade e experiéncia. Nao estou dizendo que nunca se deve ter presbitero jovem, mas estou dizendo que ele precisa dar prova de que é maduro no conhecimento e na experiéncia, do contrério nao deve ser eleito. Os presbiteros sao deliberadamente chamados “anciéos”: séo homens de experiéncia. 30 Romanos 14:1 Eu poderia ilustrar todos estes pontos. Lembro que estive numa conferéncia internacional de estudantes evan- gélicos na qual os delegados estavam decidindo que todos os paises deveriam estar representados e que todos os paises deveriam ter virtualmente 0 mesmo poder de voto. E em certo estagio dessas discussdes eu tive que me levantar para assinalar - muito mansamente, espero — para alguns dos nossos amigos que tinham vindo de paises que nao fazia muito tempo que tinham o evangelho mas que estavam falando como se tivessem posigéo igual 4 dos que estavam na vida crista durante longo tempo e que viviam em paises que tinham muitos séculos de tradigdo e experiéncia crista — tive que dizer-lhes que nao deviam supor que, devido serem cristaos, j4 possuiam completo entendimento. Tive que instrui-los, e dou gracas a Deus porque eles puderam enxer- gar este principio. Aprendemos 4 medida que avangamos. A experiéncia conta. Por isso as Epistolas nos dizem que jamais devemos ordenar um nedfito, Mas sao ordenados ne6fitos, nao sio? A tendéncia atual é pegar o convertido, ainda verde, e pé-lo para pregar no dia seguinte. Ora, néo devemos fazer coisas tais com neéfitos. Devemos experimentar e provar as pessoas; elas precisam crescer, precisam ter experiéncia. Tudo isso é ensino cristo. Vocés consideram isso carnal? E voltar para a carne? Nao; é ensino espiritual, e o que é carnal é néo compreender isso e pensar que todos os cristaos sao iguais. Nao sao. E dito aos jovens que ougam os seus ancidos, e que os tratem com respeito. Se nao fazem isso, significa qué sdo cristaos muito fracos e muito pobres. Naturalmente o mundo nfo gosta deste ensino: os jovens devem ser os lideres; s6 eles 6 que estao certos. Mas, uma vez que vocés entram na fé crista, tm uma nova mentalidade; vocés nao se conformam com este mundo, porém sao “transformados pela renovagio do vosso entendimento” (Romanos 12:2) e pensam de maneira crista. Este é o método de Deus: todas as 31 Liberdade e Consciéncia coisas vivas, flores, 4rvores, animais, comecam a crescer e€ continuam crescendo, desenvolvem-se e amadurecem. Esse é, pois, outro fator de toda esta questao. O quinto ponto é 0 ensino que recebemos. Alguns séo fracos na fé porque nunca foram ensinados. Nao é culpa deles. Existem muitos cristéos iletrados neste pais atualmente. Foram convertidos verdadeiramente, nasceram de novo, mas, desafortunadamente, nao h4 nenhuma igreja evangélica em sua vizinhanca. Conhego muitas pessoas que foram converti- das no Avivamento Galés de 1904 e 1905 e que nunca receberam qualquer ensino. E é importante lembrar isso porque, se vocés nao ensinarem os convertidos, poderao manipula-los fraudulosamente. Creio que tive que aconselhar jovens ministros mais sobre este ponto do que sobre qualquer outro. Eis um ministro que vai para uma igreja na qual ha um nticleo de pessoas que sAo crentes mas que nunca receberam nenhum ensino. Em tais ocasides eu sempre tive que dizer: “Lembre-se de que, se essas pessoas sao fracas na fé, a culpa nao é€ delas; elas nunca foram instrufdas. Seja paciente com elas. Nao espere repentina perfeicdo, nao espere que elas estejam no ponto em que vocé est. Vocé esteve lendo; vocé recebeu instrugao. Deve acaté-las assim como estéo, como pessoas que nunca tiveram uma oportunidade. Se vocé nao agir assim, serd injusto com elas e nao as ajudard; na verdade, vocé sera um empecilho para elas”. E esse conselho é muito necess4rio. Vé-se, ent&o, que a fraqueza na fé pode ser devida a falta de ensino. E, por tiltimo, gostaria de comentar as variagées que ocorrem na manifestagdo de fraqueza na fé. Obviamente, os judeus estavam fracos em certos pontos por causa dos seus antecedentes, e os gentios estavam fracos noutros pontos. Vocés podem imaginar o que significava para um judeu que tinha sido criado sob a lei de repente entrar numa posicéo de liberdade? Nao é de admirar que os judeus tivessem difi- culdade! Ascendéncia, nacionalidade, antecedentes, todas 32 Romanos 14:1 estas coisas entram. E vemos isso no presente. Cristaos evangélicos igualmente bons tém diferentes opinides sobre a observancia do repouso semanal, sobre fumar e sobre beber. Bem, so esses tipos de coisas que teremos que considerar juntos. Nunca vou esquecer a ocasiao em que pela primeira vez me encontrei com cristaéos do continente europeu. Eram de fato cristaos fortes, estavam sendo treinados para o campo mission4rio. Eu e outros ficamos chocados ante o compor- tamento deles no dia de descanso: foram fazer compras! Achavam isso perfeitamente certo. E eles ficaram igualmente surpresos em face de coisas praticadas por crist4os neste pais. Vocés sabem que foi s6 na década de 1830 que os ministros e os lideres da Igreja comegaram a ser abstinentes quanto as bebidas? Antes dessa data, os ministros, todos os cristaos, tomavam bebidas alcodélicas e nao achavam nada de errado nisso. E a maioria deles fumava. Vocés poderao encontrar velhos registros nas igrejas ~ muitas vezes os vi — com artigos como estes no orgamento: um xelim para o feno do cavalo do pregador, o mesmo para 0 tabaco do pregador e 0 mesmo para a cerveja do pregador! Hoje achamos isso pavoroso — porém, vocés afirmariam que aqueles homens nao eram cristaos? Alguns deles foram poderosos avivalistas, grandes evangelistas, homens que foram extraordinariamente usados por Deus. Quando se iniciou o movimento pré temperanga, sofreu oposigao de muitos dos grandes santos antigos. Eles diziam que isso era violar o principio da liberdade crista. Nao devo continuar: sao esses os tipos de problemas que © apéstolo vai desdobrar agora para nés. Eis ai um homem que foi iluminado direta e imediatamente pelo Espirito Santo. Ele fala com autoridade, com a autoridade singular de apés- tolo, e é nosso privilégio acompanhar o seu ensino inspirado, exp6-lo e colocd-lo em pratica. 33 2 “Ora, quanto ao que esté enfermo na fé, recebei-o, nado em contendas sobre duvidas. Porque um cré que de tudo se pode comer, e outro, que é fraco, come legumes. O que come nao despreze o que nao come; € 0 que néo come nao julgue o que come; porque Deus o recebeu por seu. Quem és tu, que julgas o servo alheio? Para seu préprio Senhor ele esté em pé ou cai; mas estaré firme, porque poderoso é Deus para o firmar.” -Romanos 14:1-4 Temos comegado a nossa consideracgdo desta nova subdivisao, e eu assinalei que aqui 0 apéstolo, tendo tratado no capitulo 13 da nossa relagéo mais geral com as potestades que ha, e nos tendo dado os dois grandes motivos para o viver cristao, passa agora a outro problema que surge na esfera da Igreja. Esse problema, como ja vimos, relaciona-se com pontos que sao “questées indiferentes”, Permitam-me salientar novamente que é essencial que tenhamos claro em nossa mente o que se quer dizer com “questoes indiferentes”. Aqui o apéstolo esté tratando da nossa atitude, como auténticos cristéos e como membros da Igreja, para com coisas que n4o sao definidamente proibidas no Novo Testamento. Por isso as chamamos “indiferentes”. Se uma coisa é proibida, nao ha necessidade de discuti-la, nao se argumenta a respeito. Se é proibida, é proibida; se foi ordenada, foi ordenada. Mas ha questées relacionadas com a vida crist& a respeito das quais nao temos claro mandamento e sobre as quais nao ha nenhuma proibigao definida. E, como temos visto, embora indiferentes, muitas vezes levam a consideravel difi- culdade, como evidentemente aconteceu na igreja da cidade 34 Romanos 14:1-4 de Roma e também na igreja de Corinto. E por isso, entao, que o apostolo teve que tratar dessas questdes, e é por isso que nés também nao devemos ignora-las, Apesar de nao serem essenciais para a salvacdo, é importante que pensemos clara e corretamente a seu respeito. Vimos também que 0 apéstolo desenvolve isso em termos do que ele descreve como aqueles que estéo “fracos na fé”, e como aqueles que estao fortes na fé. E nds assinalamos que ele nao est falando sobre se temos fé forte ou fraca, mas sobre a forca do nosso entendimento da fé, 0 que é coisa muito diferente. Portanto, o assunto de que Paulo esta tratando éa nossa elaboragdo das implicagées da nossa posigéo como cristéos e do ensino do evangelho cristaéo em termos da vida e do modo de viver regular e didrio, Comecemos, pois, pela compreensao de que ha diferengas entre os cristaos: uns sao fortes em seu entendimento, outros nao, e é ai que entram as dificuldades. E 0 apdstolo agora passa a mostrar-nos como devemos manejar estas questoes. Como Ihes mostrei em nossa primeira andlise completa, o versiculo primeiro simplesmente langa o principio geral — as particularidades virao nos versiculos subseqtientes. E no primeiro versiculo, a primeira coisa que 0 apéstolo nos diz é que devemos compreender que temos um dever para com todos os nossos companheiros na relagéo de membros da Igreja. O fato de que alguns podem ser mais fracos na fé que nds, ou mais fracos do que nds achamos que somos, nao nos deve levar a nos julgarmos independentes deles, ou que nao precisamos preocupar-nos com eles, ou que nao podemos incomodar-nos com eles. Obviamente, esse é 0 primeiro ponto no qual Paulo in- siste aqui. Temos que fazer algo acerca dos cristaos mais fracos porque nao podemos separar-nos deles. Comeco por este ponto porque esta claro que em Corinto a igreja estava em parte dividida em cristaéos mais fracos e mais fortes. Alguns irmaos que diziam e achavam que 35 Liberdade e Consciéncia tinham conhecimento se enfatuaram e estavam se segregando e formando um pequeno e seleto grupo daqueles que tinham conhecimento e entendimento avangados e nao queriam perder tempo com os outros. Essa era realmente a situacéo em Corinto, e hd indicios de que ocorria algo parecido na igreja de Colossos e em todo o grupo de igrejas que havia ao redor de Colossos. Ademais, certamente tem sido essa a situacdo muitas vezes dali para ca, na longa historia da Igreja. Por isso comegamos fazendo a declaracao bastante ampla de que na Igreja é sempre errado haver facg6es, grupos ou divisdes baseados no conhecimento. Seja qual for a nossa posigéo, nunca devemos achar que somos independentes dos outros e que n&éo temos por que preocupar-nos com eles. E dai que Paulo comega. Mas depois 0 apéstolo apresenta uma negativa bem definida: “nao em contendas sobre ditvidas”. Tem havido muita argumentagao em torno do sentido dessa frase, pelo que examinemos as palavras. O sentido da raiz da palavra tradu- zida por “contendas” é “pensar deliberadamente consigo mesmo sobre certa questéo”. Noutras palavras, €é um termo que cobre um processo de raciocinio ou questionamento interior. Nés todos arrazoamos com nés mesmos, nao é? Paulo, por exemplo, em seu discurso diante de Agripa e de Festo, diz: “Tinha eu imaginado” (Atos 26:9). Vocé se poe contra um problema, e a seguir tem uma discussdo consigo proprio. Depois, a palavra traduzida por “sobre dtvidas” significa a capacidade de distinguir entre certo e errado, entre bom, melhor e 6timo. Refere-se a um processo de discernir ou de julgar. Por conseguinte, alguns dizem que essa frase deveria ser assim traduzida: “Aquele que est fraco na fé, recebei vés, nao porém para julgamento dos pensamentos”. Af estd este irmado mais fraco, ele e seus pensamentos, ¢ ele est4 um tanto perplexo. Pois bem, vocé nao deve reunir-se com ele com 0 propésito de julgar as opinides pessoais dele. 36 Romanos 14: 1-4 Isso nos leva a esséncia mesma deste assunto. Este irmao mais fraco sabe destes diversos pontos de vista. Ele esta pensando consigo mesmo e estd tentando chegar a um jul- gamento, e, em conseqiiéncia, sua mente fica um tanto perturbada. Ele tem um espirito temeroso. Seu anseio é fazer © que € certo, porém tem diividas e hesitagées. Todos nds conhecemos bem pessoas — na verdade, isso pode dizer respeito ands mesmos ~ que vivem perpetuamente preocupadas com essas coisas. Elas perguntam: “Devo fazer isto, ou nao? Sera certo fazé-la, ou seré errado?” Elas tém uma consciéncia hipersens{vel, quase morbida. Elas tém aquilo que eu descrevi como “escrupulosidade mérbida”. Vivem agitadas. Esse é 0 quadro que temos aqui, e 0 apéstolo esté dizendo que o irmao mais forte nunca deve agravar a condicao do mais fraco. Vocé pode agravar os problemas dos cristaéos mais fracos simplesmente por estar sempre levantando exatamente aquela quest4o que os agita, e discutindo com eles sobre ela, ou talvez fazendo perguntas sobre ela de maneira jocosa. Vocé sabe que eles tém esse problema, e sempre lhe vem a tentacéo de se fixar nisso e dizer: “Bem, agora, que € que ha? Vocé continua preocupado?” Mas o apéstolo diz que vocé nao deve ficar sempre repetindo isso dessa maneira. Se vocé sabe que uma coisa € problema para outros cristaos, nao o fique revivendo e nao os faca pensar que toda vez que se encontrarem com vocé ou que vierem as suas reuniGes, vocé vai estar constantemente se referindo a isso. Se vocé 0 fizer, acabara por torné-los ainda mais agitados do que a principio eram. Outro modo de piorar as coisas para as pessoas que se acham nessas condicées é, naturalmente, brincar a respeito: “Imagine, preocupar-se com isso!” Todavia para elas 6 uma quest4o importante e muito séria, e, embora nao o seja para vocé, se vocé as ridicularizar, aumentar4 os problemas delas e agravard a agitacdo que jd sentem. A seguir, a terceira maneira, e esta acontece freqiien- temente, é vocé tentar acossar as pessoas mais fracas ou 37 Liberdade e Consciéncia impingir-lhes as suas opinides. Para vocé este assunto esté claro, porém para elas nao esta; vocé se sente em liberdade, ao passo que elas se acham numa escravidao, e a tentagao é querer forgd-las a ver quao erradas elas estao. Mas vocé nao deve fazer isso, diz Paulo. Vocé nao deve traté-las de molde a aumentar-lhes o problema, em vez de diminui-lo. E se vocé tentar pressiond-las e impingir nelas a sua clareza de entendimento, vai fazer-Ihes muito mais mal que bem. E importante que tenhamos claro entendimento disso e que protejamos esta exposigao, evitando que seja mal com- preendida. Do que estive dizendo nao se segue que nunca se deve discutir estas questdes, Paulo nao estd dizendo que, visto que esta questao é dificil para algumas pessoas, vocé nunca deve mencioné-la e nunca deve tratar dela. E ébvio que ele nao pode querer dizer isso porque, se estas questdes nado forem discutidas, estas pessoas nunca poderao ser ajudadas, e elas precisam de ajuda. Paulo mesmo ministra ensino a respeito, tanto aqui como noutros lugares. Portanto, o que ele faz nao é uma proibigao total. O que preocupa 0 apéstolo éa maneira pela qual tentamos dar-lhes ajuda. Pois bem, ha pessoas que adotam a atitude segundo a qual é melhor nao dizer nada. Agem assim nao somente quanto as questées levantadas em Romanos, capitulo 14, mas também com relagao a outros pontos — a interpretacao profética, por exemplo, ou a doutrina da Igreja, ou o batismo. Ja indiquei que talvez essa seja uma das fraquezas de muitos movimentos evangélicos na atualidade. Se acham que um assunto vai transtornar alguém, evitam-no por completo. Justamente por essa razao tem havido grave falha durante o presente século* por nao se considerar a doutrina geral da Igreja nos movi- mentos interdenominacionais. E certamente isso é um erro, Nao é o que Paulo esta dizendo. Digo de novo que a sua * Século vinte. Nota do tradutor. 38 Romanos 14: 1-4 preocupacao é inteiramente com a maneira pela qual levantamos estes assuntos. Aj estd, pois, a injungao negativa. Entao, positivamente, que € que devemos fazer? E a resposta dada pelo apéstolo é: “Recebei-o”. Nao apenas nao devem ostracisar os cristéos mais fracos, nem os tratarem com indiferenga, porém, positivamente, vocés devem recebé-los. E a palavra que 0 apostolo emprega indica a maneira de recebé-los. Ela traz consigo toda a idéia de oferecimento de cordiais boas-vindas. Vocés néo murmuram. Vocés néo dizem: “Claro, tenho que suportar isso, mas é uma amolacao. Isso esta me inibindo. E um aborrecimento”. Totalmente o contrario. Vocés dao aos cristéos mais fracos uma calorosa acolhida e mostram que tém profundo interesse por eles. Notem como o apéstolo expressa isto. Ele o eleva a um nivel que o torna bastante claro. No versiculo trés ele diz: “O que come nao despreze o que nao come, e 0 que naéo come nao julgue o que come” — por qué? — “porque Deus 0 recebeu por seu”. Deus o recebeu — a mesma palavra empregada no versiculo primeiro. Devemos receber este irmao mais fraco exatamente do mesmo modo como Deus ja 0 recebeu, e do mesmo modo como nés mesmos fomos recebidos por Deus. Paulo se preocupa tanto com isso que 0 repete no versi- culo sete do préximo capitulo: “Portanto, recebei-vos uns aos outros, como também Cristo nos recebeu para gléria de Deus”. E desse modo que devemos ver e receber este irmao ou esta irma que nado concorda conosco nestas questées particulares consideradas indiferentes. Devemos receber tais irm4os com a mesma cordialidade, com o mesmo amor, com © mesmo prazer que o Senhor mostra para com eles, para conosco e para com eles e nds todos juntos. Assim é que Paulo eleva este assunto geral a este nivel maravilhoso. Temos ai entao a norma geral do apéstolo, e este primeiro versiculo cobre tudo aquilo que ele discute no restante deste capitulo e, na verdade, abrange o sumdrio que ele apresenta 39 Liberdade e Consciéncia no infcio do préximo capitulo. Ao que me parece, Paulo jé nos havia indicado alguns principios da maior importancia pratica para todos nés no presente. Agora permitam que os esclarecga sobre o que espero fazer. Nao vou dar-lhes imedi- atamente a resposta final do apdstolo sobre estas questdes indiferentes. Nao posso fazé-lo porque ele mesmo nao a da enquanto nao chega ao fim do capitulo. Ele desenvolve 0 seu argumento, e eu devo fazer o mesmo. Mas estou dizendo que j4, logo no primeiro versiculo, antes de chegar a resposta, cle nos mostra alguns principios que, penso que vocés concorda- rao comigo, sio da maior importancia possivel para nés em nossa conduta uns para com os ouros na esfera da Igreja. Quero salientar que estamos lidando com esta questao primariamente na esfera da Igreja. Digo isso porque, natural- mente, nao sé estamos envolvidos na Igreja, mas, em acréscimo, todos nés sabemos, talvez estejamos ativamente engajados em certas organizagées interdenominacionais — sociedades missionarias, por exemplo, ou uni6es cristas, quer na drea do comércio, quer na das profissdes liberais, quer entre estu- dantes. Bem, no momento nfo estou preocupado com 0 que se pode fazer em tais sociedades. S6 estou tratando do que 0 apéstolo diz aqui em termos do nosso comportamento dentro da Igreja. Assim, aqui estdo os principios como os vejo: Primeiro: estas quest6es indiferentes nao sao centrais, e nao determinam se somos cristdos ou nao. Isso € importante porque h4 pessoas que as tornam essenciais para a nossa salvacdo. Ha aqueles que julgam se somos cristdos ou néo pelo que fazemos relativamente a estas quest6es indiferentes. Conheci, por exemplo, muitos cristéos que nao hesitariam em dizer que quem fuma no pode ser crist4o. Todavia, o apéstolo jA nos disse que nao é esse 0 caso. Sejam quais forem as opinides dos outros cristéos, deve- mos recebé-los. E, lembrem-se, Paulo est4 falando nao sé sobre os fracos, mas também sobre os fortes; néo somente sobre a atitude dos fortes para com os fracos, e sim, igualmente 40 Romanos 14:1-4 sobre a atitude dos fracos para com os fortes. Esta injungao aplica-se aos dois lados. Estas quest6es, sejam caracterizadas como forem, nao s4o centrais, e nao determinam se nés somos cristaos ou nao. Segundo: estas questdes “indiferentes” nao constituem, portanto, a base sobre a qual admitimos alguém ao rol de membros de igreja. Tenho que dizer isso porque existem algumas denominagées religiosas que definidamente fazem da opiniao da pessoa sobre estas questdes uma condigao para ser aceita ou néo como membro de igreja. Mas 0 apéstolo nos diz no versiculo primeiro que isso é patentemente erréneo. Qualquer que seja o ponto de vista sobre estes pontos, diz ele, recebam uns aos outros, tenham consideracdo uns pelos outros, como filhos unidos na Igreja de Deus. Por conseguinte, 0 terceiro ponto é que todos nés sempre devemos lembrar que, mesmo em nossas melhores condigées, somos imperfeitos. Todos erramos nalgum aspecto, todos e cada um de né6s. E espantoso como hé4 pessoas prontas a condenar certas coisas que véem noutras, enquanto sdo completamente cegas para coisas que ha nelas e que outras pessoas condenam nelas. Depois, em quarto lugar, 0 nosso conhecimento da fé nunca é completo. Devo dizer isso porque 0 perigo que o irmao forte corre é 0 de sempre achar que abarca todo o conhecimento, que nao ha mais nada que ele precise apren- der, Mas todos nés devemos lembrar-nos sempre de que o nosso entendimento da fé nunca € perfeito. Isso também é muito importante. Escrevendo aos efésios — e isto é muito relevante para a nossa presente discussio — 0 apéstolo fala sobre 0 Cristo exaltado. Ele escreve: “Subindo ao alto, levou cativo 0 cativeiro, e deu dons aos homens... E ele mesmo deu uns para apéstolos, e outros para profetas, e outros para evangelistas, e outros para pastores e doutores”. Para qué? Bem, “querendo o aperfeigoamento dos santos, para a obra do ministério, para a edificagio do corpo de Cristo; até que 41 Liberdade e Consciéncia todos cheguemos 4 unidade da fé, e ao conhecimento do Filho de Deus, a vardo perfeito, 4 medida da estatura completa de Cristo” (Efésios 4:8, 11-13). Vocés percebem o que isso significa? Ainda nao chega- mos aesta “unidade da fé”. Obviamente, Paulo nao esté falando da fé salvadora, porque j4 chegamos ao conhecimento dessa fé. E por isso que devemos firmar-nos na idéia de que em Romanos 14:1 “a fé” nao é a fé salvadora ou justificadora, e sim, 0 seu desabrochar, isto é, a aplicacaéo da verdade geral da salvacao aos detalhes particulares. E aqui, em Efésios, capitulo 4, o apéstolo indica com muita clareza que esse conhecimento deve prosseguir, aumentar e ser desenvolvido. Nao sé existem diferengas de opiniao sobre as questées de comer e beber, e da observancia de dias especiais, mas, como indiquei, também sobre as questdes de profecia, batismo, etc. Haveria um grande dia em que todos nds veremos estas coisas de maneira abso- lutamente clara, dia em que todos os cristéos pensarao exatamente da mesma maneira quanto a estas quest6es, mas esse dia ainda nao chegou, e urge que avancemos. Ou vejam outra declaracao talvez ainda mais clara. Em sua segunda carta, Pedro, tendo lembrado as pessoas que Deus ja providenciou para nés “tudo o que diz respeito a vida e piedade, pelo conhecimento daquele que nos chamou por sua gloria e virtude”, continua e diz: “E vés também, pondo nisto mesmo toda a diligéncia, acrescentai a vossa fé a virtude, eA virtude a ciéncia” (ou, VA: “conhecimento”) (2 Pedro 1:3, 5). Esse é justamente o principio com o qual estamos lidando. Vocé j4 tem a fé justificadora, salvadora — nao pode ser cristéo sem essa f€. Vocé entendeu o caminho da salvagao. JA creu nele ese confiou a ele. Vocé tem conhecimento nesse ponto. Mas, diz Pedro, “acrescentai a vossa fé” — e 0 que vocé deve acres- centar sua fé é, entre outras coisas, “conhecimento”. Pois bem, dou énfase a isto a fim de mostrar novamente que, se imaginamos que estamos todos exatamente na mesma posicéo no que se refere ao nosso conhecimento da fé, 42 Romanos 14:1-4 ha algo radicalmente errado com o nosso conhecimento. As Escrituras nos ensinam que h4 pessoas em diferentes niveis no alcance do conhecimento referente a esta fé. Nenhum de nds chegou 14, nenhum de nés tem conhecimento perfeito ou completo. Uns tém acrescentado pouco, outros tém acres- centado muito, e outros tém acrescentado ainda mais. E, portanto, siga vocé em frente com toda a diligéncia, acres- centando a sua fé este conhecimento. E isso, naturalmente, explica por que temos estas Epistolas do Novo Testamento. E para isso que elas existem. O nosso entendimento é incompleto. Nos as estudamos juntos para acrescentar conhecimento a f€ e ao entendimento que jd temos. Portanto, todos devemos juntar-nos agora, dispostos a aprender e a progredir, o irmao fraco e o forte: o apéstolo lanca isto como um principio geral que abrange todo o assunto relacionado com a maneira de manejar e considerar estas quest6es indiferentes. Passo, entéo, ao quinto principio, que realmente compreende todos os outros, Devemos lembrar-nos de que somos membros da mesma familia, a familia de Deus, e que devemos ajudar-nos uns aos outros como membros dessa familia. Que pensariam vocés dos membros de uma familia que desprezasse ou ignorasse ou negligenciasse uma crianca pertencente a sua familia que aconteceu nao ter se desenvol- vido como os demais membros, que talvez tivesse algum leve defeito? Nao, diz o apéstolo, vocés tém que compreender que sao todos um, foram recebidos pelo mesmo Cristo e pelo mesmo Deus. Devem amar-se uns aos outros, ¢ a maior preocupacéo de vocés deve ser ajudar-se uns aos outros. Esse é 0 grande principio. O quinto principio nos leva 4 proxima questéo que devemos considerar. Hd aqueles que argumentariam no sen- tido de que tudo o que o apéstolo esta dizendo no primeiro versiculo é que o irm4o forte nunca deve sentar-se em jufzo contra os escrtiipulos do irmao mais fraco. Mas nao concordo 43 Liberdade e Consciéncia que é isso que ele esté dizendo. Como j4 mostrei e como 0 apéstolo vai mostrar claramente, ele nao est4 sé falando sobre o irm§o forte, e sim também sobre o mais fraco, e ele tem 0 que dizer ao irmao fraco exatamente como tem o que dizer ao forte. Sou de parecer que nesta passagem ele esté instruindo 0 forte e o fraco, pois, como ele nos vai mostrar, ambos caem em erro neste ponto. Por isso defendo a tradugao feita pelos nossos tradutores da Verséo Autorizada: “Aquele que é fraco na f€ recebei vés, mas nao para discussées duvidosas”. Nao é s6 que nao devemos emitir julgamento sobre os escripulos do irmao fraco. Comecamos por ai, porém nao devemos parar nesse primeiro ponto porque Paulo realmente levanta aqui um principio sobre a questao geral do lugar da discusséo na vida crista, espe- cialmente a discussdo sobre estas questées indiferentes. Quais serao entao as regras sobre as discussdes entre os cristaos na vida da Igreja? Passo a vocés 0 que entendo que € o ensino geral do Novo Testamento sobre esta questao, ensino que vem sumariado, penso eu, nesta grande injuncio do apdstolo. Recebam os cristéos mais fracos: recebam-nos com cordialidade, recebam-nos como irm4os, recebam-nos exercendo graca, “mas nao para discussées duvidosas”. E assim eu desejo indicar que ha certas regras que devemos ter sempre em mente quanto a discussdo de qualquer assunto, de qualquer questao, na esfera da Igreja. Primeira regra: nunca discutam por discutir. O mundo faz isso, nao faz? O mundo gosta de debates; ele forma seus grupos de debate sé para que haja debate. Nunca se deve fazer isso na esfera da Igreja. Néo somos do mundo, somos fora dele, e ter uma discusséo meramente por amor da discussao é algo que me parece inteiramente alheio ao contetido global do Novo Testamento, Segunda: segue-se obviamente que vocés nunca devem ter discussao acerca de alguma coisa da vida crista meramente por prazer e entretenimento. Bem, talvez vocés digam que 44 Romanos 14:1-4 estas injungdes séo desnecessdrias, mas posso assegurar a vocés que nao sao, e, como alguém que no passado foi cul- pado justamente nesta drea, acho esta segunda injungao muito importante. H4 algumas pessoas para as quais nao existe maior forma de entretenimento do que discutir religiao. E uma das coisas mais interessantes e fascinantes nas quais as pessoas podem envolver-se. Houve famosos debates na historia da Igreja que muitas vezes nao passavam de entre- tenimento ou diletantismo. No entanto, sempre devemos ter o cuidado de evitar tais discussées. Terceira: nunca entre numa discussao para exibir-se. Ha alguns que gostam de ouvir sua propria voz, nao hé? Estaio sempre ansiosos por falar e vocalizar suas opinides. Gostam de exibir seu conhecimento, de mostrar como sao inteligentes e quanta habilidade tém para argumentar, mas isso é com- pletamente alheio 4 atmosfera geral do Novo Testamento e nao deve acontecer na Igreja. N&o esquecam 0 ponto em que insisti em nosso estudo anterior — que, embora vocés tenham nascido de novo, ainda tém o seu antigo temperamento, Cada um de nds tem suas propria batalhas nas quais combater. Sei que o que estou dizendo sobre gosto por discussées nao se aplica a alguns de vocés. Como homens e mulheres naturais, vocés sempre detestaram discussées, nunca argumentaram, nem sobre politica, com ninguém, e gostariam de sair quando comega alguma discussao. Tudo bem, mas vocés também tem algo especial que os inquieta. E quanto a alguns de nés, embora tendo nascido de novo, a nao ser que sejamos muito cuida- dosos, no momento em que comecamos uma discussao, a velha natureza se impée. Minha quarta injungao € que estas quest6es nunca devem ser discutidas de maneira apaixonada e descontrolada. Isso também € muito importante. Tenho visto pessoas perderem as estribeiras quando discutem questées religiosas, questdes cristas, e pontos semelhantes aos aqui levantados. Fui criado 45 Liberdade e Consciéncia em Gales numa época em que nao somente as criancas, mas todos, iam 4 Escola Dominical. Eu pertencia a uma Escola Dominical na qual havia uma classe para homens de mais de setenta anos de idade, e outra para mulheres de mais de setenta. E todos os domingos, no fim da Escola Dominical, havia uma espécie de reunido geral de catequese. Todas as classes se juntavam e era designado um homem para formular as perguntas. Alguém dava uma opinido sobre um ponto qualquer, e ele dizia: “Todos concordam com isso?”, e alguma outra pessoa dava outra opiniao., Sempre trago comigo o quadro de uma ocasiao em que a Escola Dominical terminou com trés homens, de pé, falando ao mesmo tempo, cada um deles tendo perdido o controle emocional! Esse é 0 tipo de coisa que estou dizendo que nunca deveria acontecer. No momento em que vocé se descontrola emocional- mente numa discussdo, sejam quais forem os pontos certos e errados do assunto que esta sendo discutido, vocé passa a estar patentemente errado. Os cristéos que nao conseguem controlar-se néo devem dar opiniao sobre coisa alguma. A primeira coisa que eles precisam aprender é o dominio préprio, e depois, s6 depois, terao direito de discutir estas questées. Ora, é preciso falar disso na Igreja. Spurgeon constantemente advertia os seus alunos dos problemas causados pelas discussées. Ele dizia: “Bem, quando vocés forem 4s igrejas, veréo que ha pessoas que numa reuniao de oragéo oram como anjos, mas no momento em que vao a uma assembléia da igreja e discutem os negécios da igreja, essas mesmas pessoas viram deménios”. Isso é ver- dade, nao é? Pensem nas brigas que ocorrem nas igrejas e no dano que fazem a causa crista. Tudo porque muitos nunca aprenderam a discutir estas questées uns com 0s outros. Em quinto lugar, precisamos aprender a tracar sempre uma distingo entre discussao e debate. As discussdes sao essenciais, contanto que sejamos cuidadosos — séo um bom método de ensino — porém os debates polémicos sao errados. 46 Romanos 14:1-4 Qual ser4, entao, a diferenca entre uma discussdo e um debate? Bem, ha uma palavra que est4 sendo muito empregada no presente, especialmente entre os interessados no ecumenismo, uma palavra que confesso que néo me agrada porque penso que ela tende a confundir as coisas: a palavra “didlogo”. Com “didlogo” as pessoas querem dizer que vocé nao deve ter as velhas brigas que costumavamos ter, mas deve trocar opini- es e procurar ver o ponto de vista da outra pessoa. Bem, “didlogo” é exatamente aquilo em que penso que 0 apéstolo, aqui, nos esté dizendo que devemos engajar-nos. Todavia, onde os nossos amigos do movimento ecuménico erram tanto € que eles estimulam o didlogo com catélicos romanos, por exemplo, ou com pessoas que negam até mes- mo os elementos da fé crista. E a minha réplica € que vocé nao deve, nao pode, ter didlogo com pessoas que negam totalmente a fé, ou lhe acrescentam tanta coisa que com isso a negam. O didlogo, como o temos na passagem que estamos estudando, significa que ha algo em comum, que todos os que se retinem sao cristaos. E nao se deve considerar cristéo quem quer que, homem ou mulher, negue os elementos da fé cristaé e que diga, por exemplo, que vocé deve ir a Deus por intermédio de Maria e dos santos, ou que vocé é salvo pelo batismo. Af nao ha base para didlogo. Uma discussao, um didlogo, pressupde uma base comum, um alicerce comum, e 0 apéstolo esta dizendo que, como todos vocés foram recebidos pelo Senhor, como todos vocés so cristéos e membros da mesma familia, entao, sobre essa base, examinem estas questdes. A diferenca essencial entre uma discussao e um debate é, pois, a seguinte: se vocé esté num debate, geralmente esta apenas pelo desejo de vencer, de provar que vocé esta certo, € € por isso que, geralmente, 0 debate nao é boa coisa. Nao é muito Util em parte alguma, mas é muito ruim na esfera da Igreja Crista. Vocé nao deve estar s6 interessado em defender a sua posi¢éo em vencer os outros e derrubé-los. Por qué? Porque isso sempre tem 0 efeito de levar o outro a antagonizar-se. O 47 Liberdade e Consciéncia problema do debate é que, no fim, vocé esta mais seguro da sua posigao, porém a mesma coisa acontece com a outra pessoa. Vocé enrijeceu a posicao dela e provavelmente a tornou mais obstinada. Seu oponente vé que vocé esté tentando derriba-lo, e isso o torna determinado a defender a posigéo dele custe o que custar, e assim fica descartado qualquer acordo, Em ambas as partes 0 espirito é mau, ea conseqiléncia € que o debate sempre faz mais mal que bem. Entao coloco a minha sexta regra sobre discussées nestes termos: sempre deve ser nosso desejo obter um melhor entendimento da verdade e ajudar-nos uns aos outros. Robert Haldane, em seu comentario da Epistola aos Romanos, diz virtualmente que discussdo nunca faz bem algum, e que ninguém jamais foi persuadido por uma discussao. Contudo eu penso que ele vai longe demais. Eu estou asseverando que ha realmente um lugar para a discusséo, com a condigao de que observemos as regras que estou dando, com a condigao de que a discussdo seja manejada cuidadosamente e de que seja efetuada de maneira espiritual e crista. Penso que o método socratico de discuss4o, assim chamado, tem-se justificado através dos séculos, embora, naturalmente, tenha também os seus perigos: nao ha nada que nao tenha os seus perigos. A pregac&o tem os seus perigos, como também o ensino, e, se a discussdo nao puder ser efetuada apropriadamente, ou se sempre tender a degenerar virando debate polémico, nao se envolva nela de modo nenhum. Mas eu acho que ¢ ir longe demais eliminar totalmente a discusséo com base em que nunca tem valor algum. Como se deve manejar uma discussiéo? A conclusio a que chego é: 0 apdstolo realmente nos diz nesta passagem que todos nés devemos aprender a arte de ensinar. Devemos ensinar- -nos uns aos outros, devemos ajudar-nos uns aos outros. Oh, como precisamos aprender isso! As vezes penso que os jovens pastores precisam, acima de qualquer outra coisa, aprender a ensinar. Muitas vezes vi jovens excelentes entrarem em 48 Romanos 14: 1-4 dificuldade nas igrejas porque nunca entenderam este ponto. Seus motivos sdo excelentes, e o que querem fazer é certo, porém a sua maneira de fazé-lo é errada. De tal modo se esqueceram de tudo 0 que o apéstolo ensina aqui que, em vez de ensinarem seus ouvintes, dividem as suas igrejas, e as vezes tém que retirar-se delas. Entretanto essa falha n4o esta restrita aos pastores. Alguns de vocés podem ter-se envolvido precisamente nesta questao. Com freqiiéncia tenho encontrado este pro- blema no caso de jovens cristaos ao se casarem, especialmente aqueles que foram convertidos vindos de uma familia irreligiosa ou talvez até de uma familia ateista. Pois bem, freqiientemente o problema surge desta maneira: foram feitos os arranjos para as niipcias e para a recep¢do posterior, mas ha uma dificuldade. A noiva diz: “Meus familiares ndo sao cristaos, e eles querem muito que haja vinho na festa do casamento. Mas nds decidimos que, como cristaos, para nés € absolutamente errado ter vinho em festa de casamento”. E os nubentes estaéo determinados a firmar pé nisto e a dar seu testemunho — seus motivos sao excelentes. Ora, se eu Ihes causo choque ou nao, nao sei, mas o meu conselho sempre tem sido que se deve servir vinho. Digo isso por diversas razées. Uma é que a recepgao nao €é oferecida pelos nubentes, e sim, pelos pais da noiva. Em segundo lugar, se eles querem realmente influenciar estes pais incrédulos em favor do cristianismo, nao devem agir como se propuseram fazer. A recepcao nao é responsabilidade dos noivos, nao esta- rao fazendo nada errado, e certamente acabaréo dando uma impresséo completamente falsa da fé crista a estes pais incrédulos e aos convidados que nAo sao crentes. A posig&o de um pastor jovem é freqiientemente esta: ele € chamado para uma igreja na qual é costume a realizagao de bazares e atividades similares para levantamento de recursos, e ele nao acredita em bazares. Por isso se opGe, nao 86 baixando norma contra bazares, mas também banindo varias outras 49 Liberdade e Consciéncia coisas que infelizmente acontecem hoje em dia nas igrejas. Em tais casos, qual seria a norma, qual seria a esséncia da arte de ensinar? Penso que é algo como 0 seguinte: Primeiro: é dever do mestre sempre compreender a posic&éo daqueles que estéo sendo ensinados. A primeira coisa que o mestre deve fazer € uma avaliacao das pessoas que cle esté ensinando, sejam criangas, sejam adultos. O bom profes- sor nao sai simplesmente do seu escritério com sua ligao totalmente preparada, sublinhada e duplamente sublinhada, ea expée. Se ele age assim, nao é apto para ensinar. Segundo: o mestre deve aprender a nao esperar demais de criangas e criancinhas. Se vocé esperar demais de uma crianga, podera ser muito cruel para com ela. Que € que vocés pensam do tipo de professor que pune uma crianga porque ela nfo consegue acompanhar alguma coisa que ele disse? Vocés concordariam que ele nao é apto para ensinar. Mas muitos fazem isso com adultos. Estes sao “meninos em Cristo” (1 Corfntios 3:1), sao “fracos na fé”, nao entendem —e, contudo, esses mestres impacientes os intimidam, agridem-nos, acusam-nos e os levam a ficar antagonizados. Por qué? Porque nunca se deram ao trabalho de compreender a situacdo dessas pessoas. Eu poderia apresentar-lhes casos pessoais sobre isso. A primeira igreja da qual fui ministro era 0 tipo de igreja que estou descrevendo, e a primeira coisa que vi foi que essas pessoas eram ignorantes — espiritualmente ignorantes, quero dizer — nestas questées. Elas nunca tinham recebido ensino. Nao era tanto que erravam deliberadamente, mas o fato era que realmente nunca tinham sido levadas a encarar estes pontos. Portanto, se vocé comecar com uma crianga, lembre- -se de que ela é crianga; e se comecar com uma crianca na fé, lembre-se de que ela é crianga. Por conseguinte, no seja cruel com ela. Nao espere dela o que ela nunca esteve em condigées de ser ou ter. Depois, 0 terceiro fator é a necessidade de paciéncia. Vocé 50 Romanos 14:1-4 deve estar preparado para responder perguntas, deve estar disposto a repetir ensinamentos, deve estar pronto a enfrentar dificuldades. Naturalmente, vocé verd, como professor, que algumas pessoas inteligentes acham que vocé esté desper- digando tempo. Elas j4 conhecem isso tudo. “Imagine, passar por tudo isso outra vez!”, dizem elas. Vocé precisa saber lidar com essas pessoas também. Pode fazer algo com elas, de passagem, uma vez ou outra, e mostrar-lhes a presuncio delas, e ajudd-las a entender que nem sempre sabem quanto pen- sam que sabem. Tais pessoas vdéo ser muito impacientes com vocé; nao ligue, porém; apenas seja vocé paciente. Seja paciente com as pessoas que esto se esforgando, com as criangas na fé. Atenda as suas perguntas, responda-lhes pacientemente, esteja preparado para fazer-Ihes demonstracao do ensino pelas Escrituras. O que o professor nunca deve fazer é levantar-se e anunciar: “Eu digo”. Nao, vocé deve demonstrar © ponto que esta defendendo, deve fazer uso das Escrituras, deve considerar as possibilidades, e deve expor tudo deta- lhadamente - e tudo isso requer paciéncia. Acima de todas as outras qualidades, o professor precisa ter paciéncia. E depois, em quarto lugar, nunca esqueca nem deprecie o valor do exemplo. Eis aqui um homem que esté numa genuina dificuldade sobre alguma coisa; muito bem, achamos que ele estd errado e nés certos. Mostre isso a ele, mostre isso em sua vida, mostre-o por seu exemplo, mostre-lhe um caminho melhor. Quantas vezes os pastores jovens comegam estabelecendo uma lei! Bem, sempre digo que eu mesmo tive que aprender essa licéo. Lembrando-se de que essas pessoas nao conhecem nada melhor, nao insista em forgar a lei, porém arrazoe com elas e diga: “Meus amigos, vocés estao dispostos a tentar um novo caminho? Estao dispostos a dar uma oportunidade a outra maneira? Permitam que eu lhes mostre”. E geralmente eles se deixaréo conduzir por vocé. Quando vocé Ihes da as suas explicagées, geralmente eles ficam admirados. Nunca tinham pensado nisso e se dispdem a 51 Liberdade e Consciéncia dar-lhe ocasiao para uma experiéncia. Muitas vezes soube que aconteceu que onde um jovem ministro teve que lidar com questdes como a da existéncia de um bazar para levantar dinheiro e ele disse “Agora vamos tentar isto s6 uma vez, vamos pedir aos irméos que tragam suas ofertas”, as pessoas aceitaram isso. E 0 resultado foi que talvez tenham obtido duas ou trés vezes mais que a soma que sempre obtinham com os seus miserdveis bazares! E assim que se faz. Nada de fincar pé, por assim dizer, e baixar a lei. Entdo, em quinto lugar, e acima de tudo, a esséncia do ensino € vocé manifestar um amoroso interesse por aqueles que vocé esta ensinando. Essa forma de abordagem conseguira infinitamente mais que todos os seus argumentos. Repito que nao estou eliminando as discusses — elas sio essenciais — contudo, se nao forem feitas com esse espirito de interesse amoroso, serao intiteis. Uma vez que as pessoas fiquem coma impressdo de que vocé esté realmente interessado em ajudé- -las, e nao em acusé-las ou desprezé-las, no momento em que elas sentem que vocé tem por elas um amoroso interesse, elas darao ouvidos a vocé, e entao vocé podera ajuda4-las, e juntos poderao chegar a uma opiniio comum, a um consenso, com relacao a todas estas quest6es indiferentes. Ai estd, pois, como eu vejo isso. Aqui o apéstolo, lembrem- -se, 86 esté tratando da conduta na esfera da Igreja, onde todos so juntamente membros, tendo todos sido recebidos por Deus. Por essa razéo, devemos receber uns aos outros da mesma maneira, e ajudar uns aos outros. 52 3 “Ora, quanto ao que esté enfermo na fé, recebei-o, ndo em contendas sobre dividas. Porque um cré que de tudo se pode comer, e outro, que é fraco, come legumes. O que come nao despreze o que nao come; e 0 que nao come nao julgue o que come; porque Deus o recebeu por seu. Quem és tu, que julgas o servo alheio? Para seu proprio Senhor ele esta em pé ou cai; mas estara firme; porque poderoso é Deus para o firmar.” — Romanos 14:1-4 Ja consideramos 0 primeiro versiculo, e nele vimos que o apéstolo nao somente introduz a discusséo dos pontos que descrevemos como “questées indiferentes”, mas também langa o principio controlador e orientador que governa toda a sua discussao. E agora, tendo feito isso, podemos considerar o primeiro caso que ele coloca diante de nds, qual seja, a questo geral referente a comer alimentos particulares, especialmente a questdo de comer ou nao comer carne. De novo, é muito importante que tenhamos em mente o fato de que Paulo nao trata aqui de assuntos sobre os quais existe claro mandamento. Em vez disso, ele trata de coisas acerca das quais se espera que apliquemos o ensino geral do evangelho a fim de chegarmos a uma deciséo com respeito a elas. Se nao nos lembrarmos disso, o argumento geral do apdstolo nao nos comunicaré nada. Em segundo lugar, precisamos lembrar que ainda nao cheguei ao estégio que permita tirar alguma conclusao. Ainda estamos no estagio da exposicaéo. Estamos mostrando exata- mente como 0 apéstolo lida com estas quest6es. Naturalmente, ao fazer isso, para esclarecer bem 0 ponto, usei uma ilustragao 53 Liberdade e Consciéncia relacionada com o casamento e com 0 uso de bebida, etc. Mas nao tirem nenhuma conclusao disso. Simplesmente ilustrei o perigo de fazer justamente aquilo sobre o que o apéstolo est4 falando aqui. Portanto, ainda nao pronunciei nenhuma opiniaéo pessoal minha sobre qualquer destas quest6es particulares, e ainda nao vou fazer isso, porque o nosso dever é verificar exatamente 0 que 0 apostolo est4 dizendo. Depois disso tiraremos as nossas conclusées, Permitam-me salientar mais isto: a metade dos nossos problemas na vida cristé sao devidos & nossa tendéncia de tirar conclusées antes de estarmos em condigdes de poder fazé-lo. Ha pessoas que fazem isso por onde andam. Todavia, num tribunal é péssimo juiz aquele que decide com exatidao qual vai ser o veredicto antes de ouvir os dois lados da causa em processo; igualmente péssimo € 0 jtri que faz a mesma coisa. Oucam os fatos. Procurem obter uma exposic&o clara primeiro. O apéstolo faz isso; esse é 0 objetivo que ele tem em todo o seu ensino. Muitos de nés gostam de uma espécie de cristianismo tipo calculadora automatica. Temos um problema, vamos 4 nossa calculadora —resposta imediata! Mas nao ha nada disso no Novo Testamento — jamais! O apéstolo ocupa o capitulo inteiro para tratar desta questéo, de modo que neste estagio nfo estamos em condigdes de dizer o que pensamos. Vocés nao devem saltar para uma conclusao, devem ir até 14. Podem saltar noutros aspectos, porém nao para conclusées! Consideremos entao 0 primeiro caso apresentado por Paulo: “Um cré que de tudo se pode comer, e outro, que é fraco, come legumes”. Aqui vamos considerar a quest4o de comer, e mais adiante, neste capitulo, o apéstolo trata da ques- tao de beber, e o faz exatamente da mesma maneira. E assim aqui, no versiculo 2, diz ele que o irm&o mais fraco nao come carne de nenhuma espécie, mas s6 come legumes. Que é que Paulo tem em mente aqui? Bem, ele nao est4 54 Romanos 14:1-4 escrevendo para o mundo, esta escrevendo para os membros de uma igreja, e essa igreja incluia judeus que se haviam tornado crist&éos. Como ja assinalei, a nossa vida crista é afe- tada pelo que éramos antes de nos tornarmos cristaos. Todos nés temos propensao para levar conosco certas coisas, Embora renascidos, nao estamos todos na mesma situagao, e, gracas ao claro ensino do Novo Testamento, é perfeitamente ébvio que na Igreja Primitiva os cristéos que tinham sido judeus tiveram problemas diferentes dos problemas dos crist4os que haviam sido gentios, Os cristaos judeus estavam em dificuldade desta manei- ra: todo judeu tinha sido criado sob a instrugao de que certos alimentos, particularmente alguns tipos de carne, como a de porco, € certos tipos de peixe, eram proibidos. Existem listas desses alimentos proibidos na lei cerimonial do Velho Testamento, no livro de Levitico em particular. Acresce que, de acordo com essa mesma lei cerimonial, em certos dias especiais nao se podia comer carne nenhuma. Esse era 0 cendrio de fundo, e, embora estes judeus tivessem entrado na vida crista, alguns ainda ficavam preocupados quanto a se as referidas leis ainda se aplicavam a eles. Havia depois mais um problema. A Igreja Crista incluia também ex-pagaos. Estes, naturalmente, tinham no passado 0 habito de ir aos seus templos pagaos, onde faziam as suas oferendas de carne aos seus idolos, Depois da apresentagao feita no templo, parte dessa carne era vendida nos “matadouros” ou “agougues”, como narra a descric¢éio, isto é, nos mercados publicos de carne. Os judeus achavam errado comer dessa carne, achavam que de algum modo estava contaminada por sua associacéo com a idolatria. Entao, por esse motivo, abstinham-se de comer carne. Os gentios também vacilavam quanto a comer carne que tinha sido oferecida a idolos. Uma vez que a carne tinha sido oferecida a um fdolo, era considerada carne sagrada, e alguns cristaéos gentios achavam que comé-la era voltar a 55 Liberdade e Consciéncia tomar parte no culto idélatra. Daf, nao sabendo quais carnes vinham dos templos pagios, abstinham-se de toda e qualquer carne. Mas, em acréscimo a tudo isso, parece-me mais que claro que havia ainda outro elemento nesta questao das pessoas se refrearem e néo comerem carne, e esse é um elemento geral que se deve descrever simplesmente como vegetarianismo. “Um cré que de tudo se pode comer” — toda espécie de alimentos — “e outro, que é fraco, come legumes”; s6 come legumes. A palavra traduzida por “legumes” é um termo genérico e inclui néo somente o que chamamos legumes, e sim, tudo o que nasce da terra — vegetais, frutas, etc. Obvia- mente, esse era entéo um elemento. Dou énfase a isso porque alguns comentadores limitam 0 ensino de Paulo aqui sé 4 questao dos judeus e da lei do Velho Testamento, e aos pagios com seus sacrificios idolatricos. No entanto, eu penso que a énfase a legumes nos obriga a interpreté-lo também num sentido mais amplo. O tipo de coisa que tenho em mente é algo de que 0 apés- tolo trata em sua Primeira Epistola a Tim6teo, e me causa assombro 0 fato de tantos comentadores, ao que parece, terem perdido de vista isso completamente. Paulo diz: Mas o Esptrito expressamente diz que nos tiltimos tempos apostatarao alguns da fé, dando ouvidos a espiritos enga- nadores, e a doutrinas de deménios; pela hipocrisia de homens que falam mentiras, tendo cauterizada a sua propria consciéncia; proibindo o casamento, e ordenando a abstinéncia dos manjares que Deus criou para os fiéis, e para os que conhecem a verdade, a fim de usarem deles com ages de gracas; porque toda criatura de Deus é boa, e nao hd nada que rejeitar, sendo recebido com agées de gracas. Porque pela palavra de Deus e pela oragéo é santificada. Propondo estas coisas aos irmaos, seras bom ministro de Jesus Cristo, criado com as palavras da fé e da boa doutrina 56 Romanos 14:1-4 que tens seguido. Mas rejeita as fabulas profanas e de velhas, e exercita-te a ti mesmo em piedade. Porque o exer- cicio corporal — 0 que nao significa exercicio fisico, significa esta grande atengao ao aspecto fisico — para pouco aproveita, mas a piedade para tudo é proveitosa, tendo a promessa da vida presente e da que hd de vir (1 Tim6teo 4:1-8). Pois bem, af Paulo est4 tratando de um ensino que proibia 0 casamento e que também ordenava ao povo que se abstivesse de carne. Isso tudo fazia parte do que ele chama “espiritos enganadores e doutrinas de deménios”. Ele se refere aquelas estranhas misturas de idéias que eram populares no mundo do primeiro século, como populares séo hoje — uma espécie de “religiao de mistério”, como alguns desses ensinos eram chamados. Era uma curiosa mescla de religiao, filosofia, magia, em certo sentido, misticismo e uma espécie de ascetismo, todos embrulhados no mesmo pacote. E uma espécie de religiao falsa, que da grande atengao ao cultivo do corpo, e, naqueles dias, como agora, seus adeptos tendiam a ser vegetarianos. Essas idéias sempre foram populares nos paises orientais, e tem os seus seguidores hoje, mesmo no ocidente. Esse tipo de ensino infiltrou-se na propria Palestina, e por certo era popular num lugar como Roma, que era a metrépole e o centro do império. E, pois, necessdrio que, ao lado dos problemas particulares dos judeus e dos gentios que se haviam tornado cristaos, devemos incluir este ensino sectario, propenso a afetar todo tipo de cristao. Entendamos bem, entao, que nesta passagem o apéstolo nao esta discutindo o vegetarianismo como tal, e, portanto, tampouco nos o faremos. Talvez alguns de vocés sejam vegetarianos. Tudo bem, desde que o sejam por razées de satide e medicinais. Este 6 um assunto para os dietistas e os fisiologistas discutirem. E questao de constatar o que é melhor para 0 corpo. Mas 0 apéstolo preocupa-se quando as pessoas 57 Liberdade e Consciéncia fazem disso uma questao religiosa, uma questao de conscién- cia, insistindo em que é absolutamente vital. Pois bem, é preciso que isso fique bem claro. Repito que o apéstolo nfo tem nada contra o vegetariano que o é por motivos medicinais. Portanto, aqueles de vocés que se acham nessa posicéo nao precisam sentir-se condenados. Contudo, se isso faz parte da sua fé cristé em geral, e se vocé faz disso uma coisa obrigatéria e se pde a dizer que se nao somos vegetarianos nao somos crist4os, entao vocé esta com problema. Como eu disse, aquele paralelo de 1 Timéteo, capitulo 4, é bastante pertinente a esta questao. Como Paulo esclarece em sua carta a Timoteo, havia aqueles que faziam da abstinéncia de carne questo de consciéncia, e no momento em que alguém faz isso, cai neste erro com o qual ele esta preocupado. A tese de Paulo é, pois, que ha uma diferenga entre cris- taos fortes — aqueles que estdo fortes em seu entendimento da fé, lembrem-se — e aqueles que estado mais fracos, durante um tempo, em seu entendimento da fé. Ea diferenca, diz 0 apéstolo, entre os dois grupos é que os que est&o fortes passaram a entender que toda essa disting&o entre carnes, que fora ensinada aos judeus sob a antiga dispensacdo, nao se aplica mais. Os cristéos que estavam fortes na fé também podiam ver que nao havia nada de errado em comer carne oferecida a idolos, porque idolo € coisa que n4o existe, outro deus nao existe, s6 ha um Deus. | Corintios, capitulo 8, trata disso em detalhe. Visto que nao ha outros deuses, quando as pessoas vio a um templo pagiao e oferecem carne, nao acontece absolutamente nada com a carne. Ela nao se torna sagrada. Assim, os cristéos mais fortes sentiam-se perfeitamente bem em comer todo tipo de carne. E eles viam com igual clareza a loucura daquelas religides e seitas de mistério, com todo 0 seu tolo ensino sobre a proibigdéo de comer carne, etc. Bem, provavelmente acontecia que muitos cristéos “fracos na fé” tinham resolvido deixar de comer carne com 58 Romanos 14:1-4 tanto temor de estarem fazendo algo errado, se comessem, que diziam que o tinico passo seguro era néo comer carne alguma. Se vocé nao tocar nenhuma carne, qualquer que seja a sua espécie, nao poderd errar. Por isso se tornaram vegetarianos e sé comiam legumes por essa razdo puramente religiosa. Eessa é a situacao da qual o apéstolo esté tratando. O cristao mais forte havia entendido o ensino ministrado pelo nosso Senhor. Ele dissera: Nada hd, fora do homem, que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai dele, isso é que contamina o homem... N&o compreendeis que tudo o que de fora entra no homem nao 0 pode contaminar, porque n@o entra no seu coracaéo, mas no ventre, e é langado fora, ficando puras todas as comidas? (Marcos 7:15,18,19). E ai que o nosso Senhor sempre chocava os fariseus. Eles diziam que Ele era violador da lei, um homem que escar- necia das leis dadas por Moisés. Eles nfo conseguiam ver que Ele era o cumprimento da lei, e que a Sua vinda e a obra perfeita realizada por Ele para a nossa salvacao tinham dado fim 4 lei cerimonial. No versiculo trés de Romanos, capitulo 14, 0 apéstolo diz que desta questéo surgem dois grandes perigos, e ele trata de ambos: “O que come nao despreze 0 que nao come; e o que n&o come n&o julgue o que come”. Notem que os dois tipos de cristéo enfrentam perigos diferentes. O perigo do cristao mais esclarecido é desprezar os seus irmaos e irmas mais fracos. Penso que nao é nem um pouco dificil entender isso. O entendimento intelectual tende a produzir arrogancia, e © perigo que sempre corre o tipo de pessoa mais intelec- tual é desprezar aqueles que sféo menos intelectuais ou que n4o sao to intelectuais. O orgulho intelectual € um pecado terrivel que esta sempre mais que pronto a dominar aqueles que tém entendimento. 59 Liberdade e Consciéncia Claro est4 que este perigo de arrogancia se vé no nivel natural; todos nds conhecemos bem isso. Os gregos, que eram um povo muito intelectual e culto, dividiam 0 mundo todo em “gregos” e “barbaros”, “sdbios” e “nao sabios”, e olhavam com desdém para as pessoas carentes de conhecimento. “Estas pessoas”, diz o homem oua mulher de cultura, “sao ignorantes. Nao tém leitura. Que é que elas sabem? Quem sio elas?” Ena Igreja o arrogante diz: “Estas pessoas nada sabem de teologia. Tudo o que elas tém é um pouco de experiéncia”. E dao gragas a Deus porque nao sao “como os demais homens” (Lucas 18:11), especialmente como 0 tipo de cristao mais emocional. O apéstolo conhece a sua gente, conhece a natu- reza humana, e sabe que o orgulho € 0 perigo particular, o pecado envolvente, das pessoas capazes de ver as coisas mais claramente. “Nao desprezem os outros”, diz ele. E que aqueles que pertencem a este grupo tenham o cuidado de nao cair neste pecado, O perigo do irmao mais fraco é muito diferente. Paulo escreve: “E 0 que nao come nao julgue o que come”. Vocés nao esperavam isso, esperavam? Essa reviravolta os surpreendeu? Vocés nao teriam pensado, talvez, que o mais forte corria 0 perigo de julgar o mais fraco? Mas 0 apéstolo sabe o que diz. Ele esta absolutamente certo: é 0 irmao fraco que sempre se faz culpado de julgar. Ele nao tem do que se orgulhar e, por conseguinte, nfo despreza os outros. O perigo a que est sujeito €0 de julgar o mais forte. Com “julgar” Paulo quer dizer que o grande perigo que confronta o irmaéo mais fraco quando ele vé seu irmao mais forte comendo todo tipo de comida e de carne, € 0 perigo de dizer: “Aquele homem nfo € cristéo porque, se fosse, nao comeria essas coisas”. Ora, vocés devem ter notado que o irmao mais forte nao tende a dizer que o irmao mais fraco nao é cristao. “Naturalmente, ele é cristao”, diz ele, “suponho que temos que admitir isso, mas...”, e entéo o despreza. Todavia o 60 Romanos 14:1-4 problema do irm&o mais fraco é que a sua tentacao é dizer que 0 outro irm4o nao é cristéo coisa nenhuma. Ele o julga e passa 0 veredicto final sobre ele. E se ele nao vai até ao fim em sua condenacio, esta pronto a dizer que, em todo caso, ao outro homem faltam muita fidelidade para com a verdade e muito zelo como cristao. E muito interessante que a tendéncia de se pér a julgar outros cristaos em termos da conduta deles e inquirir se séo crist&os afinal ¢ 0 defeito particular do irmao fraco, e eu quero demonstrar isso para que fique perfeitamente claro para nés. Essa tendéncia é quase invariavelmente sinal de fraque- za, nao de forca. Qual seré a explicac&o disso? Penso que nao ha muita dificuldade em suprir uma resposta. Deve-se isso unicamente ao espirito de temor. O problema do irmao fraco sempre é que ele é escravo do espirito de temor. Porque nao entende bem as coisas e porque, por definigéo, € um tipo temeroso de pessoa, sempre anseia salvaguardar a sua posi- do, certificar-se de que esta certo. E devido ao seu pensamento ser controlado, nao tanto pelo ensino como por seu espirito de temor e pela necessidade de proteger-se, ele, muito naturalmente, tende a multiplicar regras e regulamentos. Mas 0 irmao mais fraco nao se contenta em fazer listas para si. Porque ele faz isso para si mesmo, acha que todos deveriam fazé-lo. E assim, ele pega a sua lista e a aplica, nao somente a si, porém a todos os outros também, e ele quer que todos se amoldem 4a sua idéia e ao seu modelo. Deve-se essa insisténcia inteiramente ao fato de que ele é de espirito temeroso. Tem tanto medo de errar na questo de comer carne, que tende a dizer: “A tinica coisa segura que se pode fazer é cortar tudo. Vocé nao poderé errar, se s6 comer legumes”. Assim, por causa da sua fraqueza em n4o entender a fé crist4, a tendéncia do irmao mais fraco é tornar-se legalista. Por fim ele julga a posigao e a postura cristé dos outros em termos destas questées, e unicamente destas. E é disso que 0 apdstolo esté tratando. 61 Liberdade e Consciéncia Permitam que eu lhes propicie alguns paralelos para mostrar-lhes a importancia deste ponto. Vejam, por exemplo, 0 relato feito em Atos, capitulo 15, sobre o grande concilio reunido em Jerusalém, Paulo e Barnabé tinham subido de Antioquia para consultar seus irm4os, os apdstolos e os anci- os da igreja de Jerusalém, sobre exatamente o que se deveria exigir dos cristaéos gentios. A discussio nao foi s6 sobre a cir- cuncisdo, Havia um grupo de cristaos chamados judaizantes, os quais diziam que os gentios que se haviam tornado cristaos deviam submeter-se a toda a lei cerimonial, que a deviam adotar completa. Esse era 0 ponto em questao. Durante um tempo houve “grande contenda”, e entao somos informados de que Pedro se levantou para falar. Ele comegou lembrando ao concilio o que o préprio Deus tinha feito: “E Deus, que conhece os coragées, lhes deu testemunho, dando-lhes o Espirito Santo, assim como também a nds; e nao fez diferenca alguma entre eles e nés, purificando os seus coracgées pela fé” (Atos 15:8,9). Bem, alguns parecem pensar que esse é o texto que fala da santificagéo completa ou da perfeicéo isenta de pecado. Mas néo tem nenhuma relagao com isso. As palavras “purificando os seus coragdes” significa téo-somente que Deus tinha habilitado os gentios a crerem na verdade para salvacéo exatamente da mesma maneira como habilitara os judeus. E Pedro continuou: “Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discipulos um jugo que nem nossos pais nem nds pudemos suportar? Mas cremos que seremos salvos pela graca do Senhor Jesus Cristo, como eles também” (versiculos 10,11). Com efeito, reitero que os tais judaizantes estavam insistindo em que realmente nao se deve dizer que estas ou aquelas pessoas no s4o cristas, se elas nao se colocam debaixo da lei judaica. “Oh, sim”, diziam eles, “vocé precisa ter fé em Jesus Cristo, mas isso ndo é suficiente; tem que assumir estas outras regras também.” Mas os membros do concilio 62 Romanos 14:1-4 disseram que isso era puro legalismo. E assim chegaram a sua grande e famosa decisao, que foi apresentada por Tiago: “Mas escrever-Jhes que se abstenham das contaminagées dos idolos, da prostituicaéo, do que é sufocado e do sangue” (Atos 15:20). Isso foi tudo. NAo devo entrar nisso agora, embora seja tentador fazé-lo. Talvez vocés digam: “Essa decisao nao foi, em si mesma, uma concessaéo comprometedora?” Nao, n4o foi, porque o concilio tinha estabelecido o principio, e o principio era que 0 con- vertido gentio nao tinha que se tornar judeu, por assim dizer. Mas, ao mesmo tempo, para evitar problema e para evitar escandalizar os judeus, e para agir bem nesse periodo de transi¢&o, o concilio recomendou que os cristaos gentios nao fizessem certas coisas. Espero expor isso mais adiante, quando chegarmos ao amago deste capitulo catorze, porque ha pessoas que parecem pensar que o apostolo Paulo foi incoerente, mesmo aqui.” E eu poderei mostrar a vocés que 0 apdstolo Paulo também nado foi incoerente.™ Ele se man- tinha firme no essencial, porém se dispunha a ser caridoso nas coisas nao essenciais. Vemos um segundo exemplo, e muito importante, no capitulo dois da Ep{stola aos Gdlatas. Pedro tinha chegado a entender muito bem estas coisas, mas, em Galatas, capitulo 2, o apéstolo Paulo rios diz: E, chegando Pedro a Antioquia, lhe resisti na cara, porque era repreenstvel. Porque, antes que alguns tivessem chegado da parte de Tiago, comia com os gentios; mas, depois que chegaram, se foi retirando, e se apartou deles, temendo os que eram da circuncisdo. E os outros judeus também dissimulavam com ele, de maneira que até Barnabé se deixou levar pela sua dissimulacdo. Mas, quando vi que nado andavam bem e No contexto do Concilio de Jerusalém. Nota do tradutor. “No contexto das suas Epistolas. Nota do tradutor. 63 Liberdade e Consciéncia direitamente conforme a verdade do evangelho, disse a Pedro na presenca de todos... (Gélatas 2:11-14). Pois bem, esse é realmente 0 mesmo ponto. Essa heresia gé- lata consistia em dizer que nao é suficiente crer no Senhor Jesus Cristo, que a justificagéo somente pela fé nao basta, e que é preciso acrescentar-lhe algo. E aqueles que vieram “da parte de Tiago” até persuadiram Pedro, por algum tempo, de que nao lhe ficava bem, como ex-judeu, agora cristo, comer com ex-gentios, agora cristaos. E Paulo mostra claramente que, ao fazer isso, Pedro estava inconscientemente negando o centro mesmo do evangelho. Foi por isso que Paulo teve que resistir a Pedro na cara, em ptblico, apesar de Pedro ser apdéstolo, Paulo estava lutando pela propria esséncia da fé cristaé. E, portanto, prossegue e diz: “Estai pois firmes na liberdade com que Cristo nos libertou, ¢ nao torneis a meter- -vos debaixo do jugo da servidao” (Galatas 5:1). E, depois, o mesmo ensino entra em Colossenses, capitulo 2, onde o apéstolo diz: Portanto ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sdébados, que sdo sombras das coisas futuras, mas 0 corpo é de Cristo. Ninguém vos domine a seu bel-prazer com pretexto de humildade e culto dos anjos, metendo-se em coisas que néo viu; estando debalde inchado na sua carnal compreensdo, e ndo ligado & cabega, da qual todo o corpo, provido e organi- zado pelas juntas e ligaduras, vai crescendo em aumento de Deus. Se, pois, estais mortos com Cristo quanto aos rudimen- tos do mundo, por que vos carregam ainda de ordenangas, como se vivésseis no mundo, tais como: né&o toques, néo proves, ndo manuseies? As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens; as quais tém, na verdade, alguma aparéncia de sabedoria, em devocao voluntaria, humildade, e em disciplina do corpo, mas 64 Romanos 14:1-4 ndo sao de valor algum sendo para a@ satisfagdo da carne (Colossenses 2:16-23). Notem as palavras, “devogao voluntaria, humildade... disciplina do corpo”. Algumas dessas pessoas deram-se a rigorosas praticas ascéticas com a impressao de que isso as tornava mais santas. E essa é a razao pela qual algumas seitas atuais ainda defendem praticas similares. Mas elas tem uma idéia errada do corpo, considerando-o pecaminoso e mau, e isso € heresia. O ensino crist&o nao diz isso. Este complicado sistema do que comer, do que tocar e do que fazer é uma nega- ¢40 do evangelho, diz Paulo. Vocé esta sendo privado da liberdade que recebeu como cristao. E é isso que o apéstolo tem em mente aqui em Romanos, capitulo 14. Vejamos agora a relevancia disso tudo para nds hoje, para que ninguém pense: “Oh, bem, tudo certo. Esses eram os problemas do século primeiro, mas néo tém nada a ver conosco”. Contudo eles tém, e permitam que lhes mostre como. Esse é 0 erro do ensino catélico-romano neste ponto. Vejam, por exemplo, a regra que proibe comer carne nas sextas-feiras. E uma invengao humana; nao esté nas Escritu- ras. Mas esse é apenas um exemplo de um sistema completo que a igreja catélica romana introduziu: regras e regulamen- tos estabelecidos para dizerem as pessoas o que fazer e 0 que nao fazer. A idéia geral que est4 por tras da quaresma também é precisamente esta questao da qual estamos tratando. Ora, nao é simplesmente que os catélicos romanos opinam que estes regulamentos podem ser bons e titeis. Nao, o problema é que os declaram obrigatérios. E quando as pessoas consideram o seu discipulado cristao defeituoso se vocé nao segue estas regras é que elas se enquadram na cate- goria sobre a qual o apéstolo esté falando aqui. E isso é verdade, nado s6 sobre o catolicismo romano, como também sobre o anglicano-catolicismo e sobre todos os outros tipos de imitagéo 65 Liberdade e Consciéncia do romanismo ou de pseudo-romanismo, dos quais existem muitos no presente. Nao pensemos, porém, que estamos livres de culpa, nés, que no subscrevemos essas tradigées catdélico-romanas na Igreja. Eu, pessoalmente, nao hesito em dizer que o movi- mento pr6-temperanca, quando foi apresentado como parte do ensino cristio, caiu precisamente no mesmo erro. E por isso que eu nunca falei numa reunidéo de temperanga reali- zada sob os auspicios da Igreja. Esse movimento surgiu na década de 1830 e comecou a ser assimilado pelos pregadores cristéos. Pregacéo da temperanga! Pregacao contra bebida! Depois houve pregacdo contra 0 tabaco e diversas outras coisas — posteriormente o cinema, depois a televisdo — e essa tem sido a matéria-prima, por assim dizer, de certas prega- gdes. Pois bem, para mim, aqueles que pregam dessa maneira sao culpados exatamente do mesmo erro a que Romanos, capitulo 14, se refere, e eu vou mostrar a vocés por qué. Entretanto eu quero deixar bem claro que penso que todo e qualquer movimento ou sociedade tem perfeito direito de tracar suas regras e seus regulamentos, e, se vocé se filiar a uma sociedade ou a um clube ou a uma instituigéo ou a um movimento, € seu dever cumprir os seus regulamentos. Se nao concorda com eles, nao deve pertencer a dita sociedade. Mas, se fizerem dessas regras uma parte vital do discipulado, se de alguma forma for insinuado que elas constituem uma parte essencial da carreira crista, entéo aqueles que insinuam isso caem na categoria condenada por Paulo. E legalismo. Bem sei que alguns de vocés vao pensar que eu nao acre- dito em temperanca. Ora, vocés so os tais saltadores para conclusdes a que me referi anteriormente, e receio que nao tenho mais nada a acrescentar, exceto apelar no sentido de que vocés tornem a lembrar-se de que nao estou extraindo conclusées nesta altura, porém estou simplesmente pondo o assunto diante de vocés para que vejam 0 que 0 apéstolo est4 dizendo. No momento em que vocés comecarem a fazer 66 Romanos 14:1-4 essas estipulagées, estarao correndo o risco de introduzir legalismo, e, naturalmente, isso é uma coisa que tem aconte- cido muitas vezes. Eu mesmo fui criado numa atmosfera legalista. A impress4o que eu tinha do cristianismo em minha mocidade era que o cristao era alguém que nao fazia certas coisas. Nao bebia, nao fumava, n4o fazia outras coisa que 0 povo do mundo fazia. A inevitavel conseqiiéncia dessa atitude é que, quando vocé vé um homem fazendo essas coisas, vocé diz: “Esse homem nao pode ser cristéo”. Essas regras passaram a ser o padrao pelo qual se avalia o cristao. Acaso vocés nao conseguem enxergar o erro dessa posi- cao? Vocés tornaram a ficar sob a lei; mudaram-se da posigao da justificagao somente pela fé, ou, como Paulo 0 expressa em Galatas 5:4, “Da graga tendes cafdo”. Ora, essa frase também é freqiientemente mal entendida. Paulo nfo esta se referindo a idéia de que o homem que nasceu de novo pode cair em pecado e deixar de ser um renascido, depois voltar a nascer de novo, e depois tornar a cair. Ele nao esta tocando nisso, Tudo © que ele esta dizendo é que vocé se apartou da posicao que ensina que a salvagao ¢ unica e inteiramente de graca, mediante a fé. E é isso precisamente que tinha acontecido com estes cristaos de Roma, e é por isso que Paulo esta tao preocupado. Ele esté dizendo: quando vocé julga o seu irm&o em termos da questao se ele come ou no come esses tipos de carne, vocé abandonou a posigao da graca; vocé esta negando a doutrina da justificacéo somente pela fé porque estd virtualmente dizendo que € 0 que as pessoas fazem ou nao fazem que determina se elas sfo ou nAo cristis. E isso 6 uma coisa que vocé jamais deve fazer. Todos nés devemos examinar a nds mesmos. Seriamos nés culpados de atitude legalista? Como indiquei, mesmo que vocé seja cristo, 4s vezes pode, inconscientemente, cair de volta na posicao da justificagao pelas obras. Pode ser que nem sempre seja coerente em sua aplicacéo e em sua execucaio 67 Liberdade e Consciéncia pratica da doutrina. Essa espécie de apreensdo nervosa, essa tendéncia de julgar, essa tendéncia de exaltar estas quest6es secundarias elevando-as a uma posigdo central e de fazé-las determinantes da posigao e do status de uma pessoa quanto a sua relacdéo com Deus, é sempre um sinal de fraqueza. E puro legalismo, e quando isso 0 leva a julgar 0 seu irmao ou a sua irma, esta sua posigao vem a ser, na verdade, muito grave e perigosa. Esse é, entao, 0 caso, e, como veremos na tiltima frase do versiculo trés,e no versiculo quatro, o apéstolo dé a resposta temporaria. Antes de dar sua opiniao sobre as coisas em si mesmas, ele diz: ouga! Vocé nao deve julgar seu irm4o. Por que nao? Primeiro, porque “Deus 0 recebeu por seu”. Segundo, porque vocé nao tem direito de julgar um servo alheio. E, terceiro, porque vocé nao precisa se preocupar com esse homem mais forte. H4 um meio pelo qual ele é mantido firme, e esta sua apreens&o nervosa, este espirito de temor, é errado. Vocé nao esta fruindo a liberdade dos filhos de Deus, nao est4 se apegando firmemente a “liberdade com que Cristo nos libertou” (Galatas 5:1). 68 4 “Ora, quanto ao que estd enfermo na fé, recebei-o, néo em contendas sobre dividas. Porque um cré que de tudo se pode comer, e outro, que é fraco, come legumes. O que come ndo despreze o que nao come; e o que nado come nao julgue o que come; porque Deus o recebeu por seu. Quem és tu, que julgas 0 servo alheio? Para seu proprio Senhor ele esté em pé ou cai; mas estard firme; porque poderoso é Deus para o firmar.” — Romanos 14:1-4. Estivemos considerando os perigos, os pecados opressi- vos, tanto dos irm4os fortes como dos fracos na aplicagao da fé crista 4 nossa vida. E terminamos o nosso estudo anterior mostrando que a dificuldade do tipo mais fraco de irmao é que, embora tenha crido na verdade central concernente & salvacéo, quando ele a desdobra em seus varios detalhes, inconscientemente nega as coisas nas quais j4 creu. Natural- mente, € por isso que todos nés precisamos crescer na graca e no conhecimento do Senhor. E por isso que precisamos receber ensino. E por isso que, quando o nosso Senhor subiu ao alto, deu nfo somente apéstolos, profetas e evangelistas, mas também pastores e mestres. E vimos que a questao de comer ou nao comer carne nao é problema sé do século primeiro, e que o nosso interesse nao é meramente tedrico e académico. Esse problema e outros similares — “quest6es indiferentes” — ainda estao conosco, e eu dei alguns exemplos de maneiras pelas quais eles também podem tornar-se centrais na vida da Igreja. Se na verdade sao admissiveis, € uma questéo que vale a pena considerar; po- rém quando sdo feitos centrais, certamente ultrapassamos o Liberdade e Consciéncia os limites e estamos no erro. Assinalei também que, em muitos circulos e sociedades evangélicos, hd uma tendéncia de impor um padrao de con- duta aos convertidos. Logo que alguém é convertido, homem ou mulher, dizem-lhe: “Agora vocé precisa fazer isto, isso e aquilo”. No fim do estudo da sexta-feira passada um membro do grupo de participantes me disse que freqitentava certa igreja, e ela me contou que quando se tornou crista lhe foi dito que a primeira coisa que devia fazer era comprar um despertador. No momento em que é convertido, vocé compra um despertador para levantar-se numa determinada hora para ter 0 seu perfodo de oragao e de leitura da sua porcao das Escrituras. O ensino 6, virtualmente, que, se vocé néo tiver um periodo tranqiiilo numa hora especifica da manha, € duvidoso que vocé se tenha tornado cristo. Vocés estado familiarizados com esse tipo de tendéncia, com esses peque- nos legalismos que sao introduzidos. O motivo é sempre bom, claro, como bom era o motivo dos irmaos mais fracos de Roma, mas a pergunta é: esse ensino estaria de acordo com as doutrinas fundamentais da fé crista? Bem, a primeira resposta que 0 apdstolo da a essa per- gunta esta, como j4 vimos, no fim do versiculo trés - “Deus 0 recebeu”. E isso que decide se uma pessoa € crist4 ou nao, diz 0 apéstolo. Nao se decide isso vendo se a pessoa come carne ou legumes. E Deus quem decide. Isso € importante porque, como indiquei, hé sempre o perigo, a tendéncia, na verdade, de algumas pessoas da Igreja irem mais longe que o proprio Senhor e de inventarem regras, regulamentos e testes que nao podem ser justificados pelas Escrituras. Elas se tornam legalistas sem o perceber e, em conseqiiéncia, tornam-se infelizes, elas préprias, e tornam infelizes outras pessoas. Graves injusticas tém sido feitas com freqtiéncia, grande problema tem entrado muitas vezes na igreja, por causa de tais pessoas. Por isso quero expor um pouco mais este assunto para vocés. 70 Romanos 14: 1-4 Uma vez me foi informado por um dos homens mais piedosos que conheci, diretor de um excelente semindrio teolégico, homem dotado de um intelecto extraordinaria- mente brilhante, que em seus tempos de juventude, sendo ele um jovem cristao, tinha passado por um estagio de legalismo, embora nao tenha compreendido na época que era isso. Disse ele que se preocupava profundamente com a observancia do dia do Senhor, nao o violando de modo nenhum. Ele achava que era essencial 4 sua posicao cristé em geral que nao se fizesse domingo nenhum trabalho que se pudesse fazer sdbado ou segunda-feira. A fim de guardar o dia do Senhor, como na época ele o entendia, calgava suas botas e as amar- rava sdbado a noite para nao ter que fazé-lo domingo de manha. Ele fez isso durante algum tempo, e entao, de repente, percebeu que era puro legalismo, que era, por assim dizer, tornar ridi- culo o ensino das Escrituras, e foi emancipado disso. Bem, dou-lhes precisamente esse exemplo para mostrar a vocés como pode acontecer que venhamos a dar preemi- néncia a certos detalhes que nao vém especificados nas Escrituras. Por certo, na verdade, esse homem viu-se culpado das mesmas coisas das quais os fariseus eram culpados. Os fariseus estavam constantemente provocando 0 nosso Senhor em fungao da Sua inobservancia das regras deles. Ele tinha curado um homem num s4bado, e eles disseram que Ele nao devia ter feito isso porque era trabalho; ou, levantaram objecéo quando viram os discfpulos colhendo espigas e comendo cereal quando passavam por uma lavoura num sdbado, porque isso também era trabalho. Como jé vimos, nés mesmos temos que ter cuidado com a tendéncia de julgar os outros pelos padrdes que nés mesmos estabelecemos. H4 um exemplo famoso no caso dos discfpu- los. Lemos no Evangelho Segundo Lucas: “E, respondendo Joao, disse: Mestre, vimos um que em teu nome expulsava os deménios, e lho proibimos, porque nao te segue conosco. E Jesus lhes disse: nao 0 proibais, porque quem nao € contra 7 Liberdade e Consciéncia nés é por nés” (Lucas 9:49,50). Porque aquele homem nfo pertencia ao grupo deles, nao era como eles em todos os aspectos, os discipulos acharam que ele nado era um seguidor e nao tinha nenhum direito de expul- sar deménios. Mas tinham deixado de notar que esse homem estavam expulsando deménios em nome do Senhor, e, de acordo com o Senhor, era isso que importava. Os discipulos estavam errados, e 0 nosso Senhor negou-Se a accitar 0 padrao que eles estavam estabelecendo. O incidente que acabamos de considerar é de particular interesse para nés hoje, quando temos bem presente diante de nés toda a questo da unidade da Igreja. Naturalmente, todos nds devemos interessar-nos pela unidade da Igreja, mas com a condicaéo de que saibamos o que é a Igreja e de que nao creiamos meramente em instituigées e nalguma organiza- cdo mec4nica; contanto, igualmente, que concordemos que Lutero estava certo no que fez com relagéo a Roma. Mas todos nés devemos anelar por sermos “um”. O nosso Senhor nos ensinou pessoalmente isso em Joao, capitulo 17. A historia da Igreja mostra que muitas vezes as pessoas se dividiram por razées erréneas. Fizeram-se culpadas de cisma porque elevaram um ensino secundério a uma posigao central. Portanto, 0 assunto que agora estamos considerando é real- mente de importancia bastante pratica no presente. Alguns de nés sustentam a idéia de que s6 ha uma grande divisaéo do que se chama Igreja: a igreja mundial, da qual tanto falam os ecumenistas, e que incluiria a igreja cat6lica romana, ea Igreja dos evangélicos.* Pois bem, os evangélicos tém o dever de estar unidos. Mas ha dificuldades, porque, como as coisas sio agora, os cristaos esto divididos a respeito da mesa do Senhor. Algu- mas pessoas nao tém permissdao de juntar-se para participar Dos que procuram ser fiéis ao evangelho, aos princ{pios biblicos. Nota do tradutor. 72 Romanos 14:1-4 do pao e do vinho em memoria da morte do nosso Senhor por elas. Algumas igrejas excluem pessoas dessa ordenanga puramente baseadas na sua conduta pessoal. Recordo haver estado numa celebrag&o da Ceia do Senhor no qual o homem a quem coube administrar a ordenanga afirmou clara e francamente que todo aquele que possuisse um aparelho de televisio nao teria direito de participar do pao e do vinho. Mas, de onde ele obteve autoridade para dizer isso? Das Escrituras nao lhe veio autoridade nenhuma para isso. Ele e outros que concordavam com ele tinham elaborado os seus proprios regulamentos. Depois ha outros que com alegria acolhem vocé ao culto na igreja deles, mas, quando vocé vem 4 celebragao da Ceia, nao lhe permitem participar do pao e do vinho, se vocé nao foi batizado por imersao quando adulto. Eles sabem que vocé cré na morte do nosso Senhor, como eles créem, que vocé cré na justificagéo pela fé, etc., porém nao lhe permitem anunciar com eles a morte do Senhor porque, na profissao de fé, vocé nao foi batizado por imersao. E depois ha outros que perguntam: vocé foi confirmado por um bispo? Esse € 0 teste deles. Se nao foi, eles também nao permitirao que vocé venha a Ceia do Senhor. Com efeito, estes sao fatos, e todos eles séo apenas exemplos de regulamentos feitos pelo homem e que de modo algum encontram justificagéo nas Escrituras. Sado separatistas; separam cristdos que, em conseqiiéncia, séo impedidos de ter acesso a um dos mais sensiveis e gloriosos pontos de toda a economia crista. E essa atitude pode ser até ridicula. Recentemente foi publicado um livro intitulado Power without Glory (Poder sem Gl6ria). Esse livro, escrito pelo professor Henderson, da Universidade de Glasgow, apresenta um dos mais notdveis ataques ao movimento ecuménico ja feitos. O professor Henderson conta que lhe solicitaram que fosse um professor em visita numa escola para capelaes do exército, e durante 73 Liberdade e Consciéncia uma semana ele foi o principal preletor. Os capelaes que 14 estavam eram exclusivamente anglicanos — esse foi o ponto-e ele estava lecionando ali a convite deles, mas 0 que foi grotesco foi que, quando celebraram a Ceia do Senhor, no fim da semana, nao lhe foi permitido participar com eles.* Mas houve algo ainda mais ridiculo: entre esses capelaes estava um noruegués, e o professor notou que o noruegués compareceu a Ceia. Obviamente ele tinha sido convidado para participar, e o professor Henderson achou isso estranho porque sabia que a Igreja norueguesa nao é reconhecida pela Igreja da Inglaterra no que se refere 4 Comunhao. Por isso ele foi ter com aquele homem e disse: “Como é que vocé teve permissao para participar da Ceia do Senhor? Eu nao tive, e, naturalmente, n&o esperava ter, porque sou da Igreja da Escécia, mas, como é que lhe permitiram estar 14?” O noruegués riu e respondeu: “E algo extraordinario, e puramente acidental”. E contou que tinha estudado num semindrio teologico da Noruega, porém em 1940, pouco antes dele ser devidamente ordenado, os alemées ocuparam a Noruega. Ele conseguiu fugir para a Suécia e, como tinha feito 0 curso completo e estava preparado para ser ordenado, sujeitou-se 4 ordenacao realizada por um bispo sueco que pertencia a Igreja Luterana. Assim, inteiramente em con- seqiiéncia do fato acidental da guerra, ele foi ordenado por um bispo sueco, embora sendo noruegués, e, por causa desse fato acidental, teve permissao para participar da Ceia. Mas, “Uma vezo Rev. Hip6lito de Campos, metodista, foi convidado para pregar numa igreja de outra denominacao. Depois da pregagdo, houve administragao da Ceia. Ele foi convidado a ficar com o pastor ¢ os oficiais a mesa da Ceia, mas nao foi servido. Quando o oficial que serviu os companheiros de mesa foi se afastando, deixou cair um pedago de pao. O Rev. Hipdlito abaixou-se, pegou 0 pao e o levou A boca, dizendo: “Os cachorrinhas se servem das migalhas que caem da mesa dos seus senhores”. Tremendo impacto! Serviram-lhe depois 0 vinho. Nota do tradutor. 74 Romanos 14:1-4 se tivesse sido ordenado por um bispo noruegués, nao teria tido essa permissao! Pois bem, conto isso a vocés por uma tinica razdo, que € mostrar-lhes a situacao ridicula a que chegamos quando elevamos regulamentos humanos e os tornamos centrais. E os homens e as mulheres que créem no mesmo Senhor sao divididos por esses regulamentos. E justamente disso que oapéstolo esta tratando. “Mas”, alguém perguntar4, “a coisa seria tao simples assim? No seria tudo resultado do problema da disciplina?” Num sentido 6, e devemos acreditar na disciplina. Con- tudo, é muito interessante observar de que maneira 0 ensino do Novo Testamento lida com estas questées. O que 0 apéstolo diz acerca da participacgaéo da mesa do Senhor é 0 seguinte: “Examine-se pois 0 homem a si mesmo, e assim coma...” (1 Corintios 11:28), E nisso que Paulo coloca o énus. Vamos, porém, um pouco mais longe. O ensino das Escrituras é claramente que, se alguém, homem ou mulher, € culpado de algum pecado flagrante, se esta vivendo em pecado, a Igreja tem que disciplina-lo e nfo lhe permitir participar da Ceia do Senhor. Isso esta perfeitamente claro. Mas, tendo dito isso, certamente a énfase das Escrituras 6 em geral sobre 0 espirito, e o ensino é que o nosso objetivo nao deve ser excluir pessoas, e sim convidé-las e alegrar-nos com a sua vinda. Deve-se fazer tudo com espirito de amor. E assim, efetivamente o apéstolo diz: “Quem é vocé para dizer que aquele homem nao € cristéo porque come carne? Quem é vocé para exclui-lo? Quem é vocé para dizer que ele nao é apto para vir e participar da Ceia do Senhor? Vocé sabe”, diz Paulo, “Deus o recebeu, e, se Deus 0 recebeu, que direito tem vocé de recusd-lo?” Esse foi o argumento, e continua sendo; é0 ensino do Novo Testamento por toda parte. Mas hé um problema que entra nesta altura, e, de novo, é muito interessante e fascinante. Alguns pensam que o apés- tolo € culpado de contradicao neste ponto. Ele parece dizer 75 Liberdade e Consciéncia aqui, e veremos isso mais claramente conforme prosseguir- mos, que estas questdes sdo indiferentes — esse é todo o seu argumento — ¢ ele apela para a caridade. Todavia quando vocé 1é o que ele diz em Galatas, capitulo 4, a principio pode achar que hé uma contradi¢do. Eis 0 que ele escreve: Assim que ja nao és mais servo, mas filho; e, se és filho, és também herdeiro de Deus por Cristo. Mas, quando néo conhecteis a Deus, servteis aos que por natureza nGo sdo deu- ses. Mas agora, conhecendo a Deus, ou antes, sendo conhecidos de Deus, como tornais outra vez a esses rudimentos fracos e pobres, aos quais de novo quereis servir? Guardais dias, e meses, é tempos, e anos. Receio de vés, que néo haja traba- lhado em vado para convosco (Galatas 4:7-11). Nessa passagem Paulo condena fortemente os cristéos da Galacia que queriam guardar “dias, e meses, e tempos, e anos”. E também os condena por dizerem que os cristéos precisam ser circuncidados. Ou, novamente, vejam as palavras de Paulo no fim de Colossenses, capitulo 2: Portanto ninguém vos julgue pelo comer, ou pelo beber, ou por causa dos dias de festa, ou da lua nova, ou dos sdbados. Que sao sombras das coisas futuras, mas o corpo é de Cristo. Ninguém vos domine a seu bel-prazer — Paulo lhes esta dizendo: nao déem ouvidos a esses tais. De novo, é condena- ¢ao — com pretexto de humildade e culto dos anjos... por que vos carregam ainda de ordenancas, como se vivesses no mundo, tais como: nao toques, néo proves, nao manuseies? As quais coisas todas perecem pelo uso, segundo os preceitos e doutrinas dos homens” (Colossenses 2:16-18, 20-22). E entao, o apéstolo estaria se contradizendo? Aqui, em Romanos, capitulo 14, ha aparente brandura, tolerancia, recusa a tomar lado, e nessas outras passagens, forte condenagao, 16 Romanos 14:1-4 quase inflexivel. E, claro, a resposta é que nao. No assunto aqui tratado, perante a igreja da cidade de Roma, Paulo esta lidando com a fraqueza e a escrupulosidade. Essas pessoas sentiam-se infelizes por causa do seu fraco entendimento da fé, e tinham consciéncia hipersensivel. Assim, quando o apostolo vé isso, é brando e os tolera. Mas, quando as pessoas tornavam as suas regras absolutamente essenciais, como aconteceu particularmente no caso dos gilatas, ele os condena totalmente e nao quer ter nada com eles. Quando os irmaos mais fracos se tornam legisladores, estabelecem condigdes € dizem que vocé nao é cristéo verdadeiro se nao faz o que ele dizem, nada mais lhes resta sendo pura condenagao. Bem, este ponto é tao interessante que eu quero dar-lhes outro exemplo de aparente contradigao do ensino do apéstolo. No capitulo dezesseis de Atos lemos isto: E chegou a Derbe e Listra. E eis que estava ali um certo discipulo por nome Timéteo, filho de uma judia que era crente, mas de pai grego; do qual davam bom testemunho os irmdos que estavam em Listra e em Icénio. Paulo quis que Timéteo fosse com ele; e, tomando-o, o circuncidou, por causa dos judeus que estavam naqueles lugares; porque todos sabiam que seu pai era grego (Atos 16:1-3). Entretanto depois, em Galatas, capitulo 2, o apéstolo diz: Mas nem ainda Tito, que estava comigo, sendo grego, foi constrangido a circuncidar-se; e isto por causa dos falsos irmdos que se tinham entremetido, e secretamente entraram a espiar a nossa liberdade, que temos em Cristo Fesus, para nos porem em serviddo; aos quais nem ainda por uma hora cedemos com sujeigdo, para que a verdade do evangelho permanecesse entre vds (Galatas 2:3-5), Paulo circuncida Timéteo, porém se recusa absolutamente a 17 Liberdade e Consciéncia permitir que Tito fosse circuncidado. Mas, novamente, isso também nao € contradicao: 0 apéstolo esta agindo com base exatamente no mesmo principio. Permitam, porém, que lhes lembre mais uma peca de prova, antes de declarar o princfpio franca e ousadamente. Como ja vimos no relato sobre o concilio reunido em Jerusa- lém, havia dificuldade quanto aos convertidos gentios: deveriam ser obrigados a sujeitar-se inteiramente a lei judaica? E a conclusao a que o concilio chegou foi que nao. “Mas”, com efeito disseram, “embora digamos que eles nao tém que submeter-se a lei e a tudo como se fossem judeus, ha certas coisas que devem ser observadas.” Tiago, que presidiu a reuniao, disse: “Julgo que nao se deve perturbar aqueles, dentre os gentios, que se converteram a Deus, mas escrever-lhes que se abstenham das contamina- codes dos idolos, da prostituic&o, do que é sufocado e do sangue” (Atos 15:19,20). E isso nao foi um compromisso, mas sim uma deciséo tomada em termos que irei demonstrar a vocés. Depois, outra vez, em Atos, capitulo 21, lemos sobre o apostolo Paulo, dentre todas as pessoas, este apdstolo dos gentios, este homem que, dentre todos os demais, dedicou-se a pregar a doutrina da justificagéo somente pela fé, que, quando subiu a Jerusalém, os lideres da igreja de Jerusalém 0 chamaram de lado e lhe disseram que havia muito problema porque os judeus nao entendiam o que ele estava fazendo, e corriam boatos acerca dele. Eles disseram: “Ja acerca de ti foram informados de que ensinas todos os judeus que estaéo entre os gentios a apartarem-se de Moisés, dizendo que nao devem circuncidar seus filhos, nem andar segundo o costume da lei (dos judeus)” (Atos 21:21). Por isso Tiago e os anciaos da igreja fizeram esta suges- tao a Paulo: “Temos quatro varées que fizeram voto. Toma estes contigo e santifica-te com eles, e faze por eles os gastos para que rapem a cabeca, e todos ficaraéo sabendo que nada ha daquilo de que foram informados acerca de ti, mas que 78 Romanos 14:1-4 também tu mesmo andas guardando a lei” (Atos 21:23,24). Ent§o citaram a decisao tomada pelo concflio, descrita em Atos, capitulo 15. E assim lemos: “Entéo Paulo, tomando consigo aqueles varées, entrou no dia seguinte no templo, j4 santificado com eles, anunciando serem j4 cumpridos os dias da purificagao...” (versiculo 26). Acaso Paulo estava agindo incoerentemente af? Nao, hé um principio que rege as acdes de Paulo nos casos que citei, como também o seu ensino em Romanos, capitulo 14, distintamente de Galatas, capitulo 4. O princfpio € 0 seguinte: os cristaéos devem fazer tudo 0 que puderem para nao causar escAndalo, para nado serem pedra de tropeco. Ao que parece, esse foi o ensino da Igreja Primitiva. L4 estavam estes judeus; tinham-se tornado cris- t4os, sim, mas, como jé vimos, nao entendiam bem estas coisas. E 0 apédstolo e todo o concilio de Jerusalém disseram: nao devemos escandaliza-los. Por causa desse princ{pio, Paulo acedeu & solicitagéo da igreja. Quando alguns cristaos disseram nervosamente: “Vocé se importa em juntar-se a estes homens que tomaram voto? Importa-se em rapar sua cabeca?”, 0 apéstolo disse: “Estou perfeitamente disposto a fazer isso”. E o fez. Que é rapar a cabeca? Que é tomar voto? Ele proprio era judeu. Ele admi- tia que os gentios jamais fossem forgados a obedecer 4 lei cerimonial, mas, se isso fosse ajudar os judeus a chegarem ao pleno entendimento da f6, estava disposto a cumprir regras que, em si mesmas, ele considerava completamente indiferentes, Paulo nao cstava abandonando nenhum principio; ainda mantinha firmemente o seu evangelho, sua fé e o que tinha ensinado aos gentios, porém, a fim de evitar um escandalo e um tumulto, a fim de evitar inquietagéo e confusio no entendimento das coisas em Jerusalém, estava disposto a tomar voto. Eo fez por amor da paz e da propagagao do evangelho, e para ajudar aqueles que estavam tendo genuina dificuldade. 79 Liberdade e Consciéncia E perfeitamente claro que a Igreja Primitiva, com a sabedoria que lhe foi dada pelo Espirito Santo, viu que atravessava um periodo de transic&o e, por isso, movia-se lentamente. Estabeleceu grandes e 6bvios principios e, quando alguém vinha dizer: “Olhem aqui, todos os gentios precisam ser circuncidados e submeter-se diretamente a lei”, a igreja dizia: “Evitem causar escdndalo quanto puderem, e, se houver algumas coisas indiferentes, vamos simplesmente pedir as pessoas que as observem”. E, obviamente, 0 grande apéstolo raciocinava com base nesses principios e premissas. Ajudem os fracos quanto puderem, mas nunca permitam que os fracos se tornem ditadores. Evitem ofender as pessoas, procurem esclarecé-las e sejam pacientes com elas. Sejam longanimos. Mostrem as pessoas que vocés esto dispostos a ir tao longe quanto pude- rem a fim de aplacé-las e ajud4-las. Mas nunca abandonem os principios, nunca voltem atrds nalguma coisa que é absoluta, e nunca permitam que a fraqueza delas venha a constituir-se nos principios que devem reger o governo da Igreja e a ordem da Igreja. E, acima de tudo, nunca permitam que “questoes indiferentes” sejam utilizadas para decidir quem é cristéo e quem nao é. Portanto, nao havia nenhuma contradicao, nem no ensino, nem na pratica do apdstolo. O interesse do evangelho estava em seu coracao. Ele era o grande apéstolo dos gentios, e todos sabiam disso (e era algo tremendo que os judeus, especialmente um homem como Paulo, estivessem dispostos até a receber gentios e a achar que era possivel um gentio estar em correta relagéo com Deus). Ah, se téo-somente a Igreja tivesse ficado sempre firme neste ensino! Contudo nao foi assim. Muitas vezes ela se afas- tou dele. “Eu defendo isto”, diz alguém, mas, tem ele direito de defendé-lo? Vejam as ilustragdes que lhes ofereci: onde est4 a justificacdo para separar irmaos cristéos com base nestas varias questdes? Certamente isso est4 errado. O proprio 80 Romanos 14:1-4 espfrito que ha nisso € errado. E aqui, em Romanos 14:3, 0 apdstolo resume tudo numa frase: “Deus o recebeu”. E, se Deus 0 recebeu, quem € vocé para recusd-lo? Sim, mas isso nos deixa com uma pergunta final. Esta muito bem dizer, “Deus o recebeu”, porém, como sabemos que Deus 0 recebeu? Esse é 0 ponto em questo. O irm4o mais fraco tende a dizer: “S6 fico feliz em acreditar que Deus recebe um homem se ele sé come legumes”. Qual sera a resposta de vocés a isso? Certamente, a resposta é que h4 algumas declaragées nas Escrituras que nos dao o direito de saber se Deus recebeu alguém. Por exemplo: Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigénito, para que todo aquele que nele cré ndo pereca, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho ao mundo, nio para que condenasse 0 mundo, mas para que 0 mundo fosse salvo por ele. Quem cré nele nao é condenado; mas quem niio cré ja esta condenado; porquanto ndo cré no nome do unigénito Filho de Deus (Joao 3:16-18). Assim, se um homem ou uma mulher professa esta f€, e diz: “Vejo que sou um pecador, que estou no mais completo desamparo, que as minhas obras sao intiteis. Descanso unicamente no fato de que o Filho de Deus morreu por mim e por meus pecados, nao tenho nenhuma outra coisa na qual descansar” - Deus recebeu tal homem ou tal mulher. No entanto, devemos acrescentar algo. E isso que as pes- soas dizem, essa é a sua profissao de fé, e isso nos dé uma forte prova presumivel de que elas sao cristas, mas se, em acréscimo a isso, elas expressam 0 desejo de unir-se a uma igreja crista, a deixar a convivéncia do mundo e fazer-se pare da convi- véncia do povo de Deus, isso também é, certamente, prova de que Deus as recebeu. E depois é preciso acrescentar a isso a conduta e 0 81 Liberdade e Consciéncia comportamento geral. Notem, porém, que estou colocando isso em termos de conduta e comportamento geral. As pessoas podem fazer algumas coisas que néo me deixam nem um pouco feliz, mas nao é esse o ponto em questo. Se essas pes- soas estéo vivendo em geral uma vida coerente com a sua profisséo de fé, e conforme ao ensino do Novo Testamento, entéo temos 0 direito de dizer que Deus as recebeu. Podemos estar errados, podemos enganar-nos. Pode ser que elas sejam como as que sao descritas em Hebreus, capitulo 6, mas nao importa. O que nos deve preocupar é que nao excluamos pessoas erroneamente. Se, tratando-as com amor e indo tao longe quanto pudermos em declarar que estes textos escri- turisticos parecem indicar que tais pessoas sao cristas e que, portanto, Deus as recebeu, néo devemos rejeité-las. Mais um teste escrituristico é dado pelo apéstolo Joao: “Nés sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmaos” (1 Joao 3:14). Depois, se as pessoas estiverem também ansiosas para aprender e para aprofundar-se no conhecimento da verdade; se se preocuparem com os perdidos; se se interessarem pela propagacao do evangelho e pela difusao da Igreja Crista, digo que Deus as recebeu e que nés nao devemos recusé-las. E, naturalmente, é bastante evidente no Novo Testamento —e eu diria que hoje também — que resta ainda um teste, e somos informados sobre ele no livro de Atos. O apéstolo Pedro era judeu e estava em dificuldade em sua vida crista inicial com relacga4o a estas mesmas quest6es. Vocés por certo se lembram de que ele teve uma visao — descrita no capitulo dez de Atos ~— na qual ele viu um lengol descendo do céu e con- tendo varias espécies de animais. Diz-nos 0 texto: No qual havia de todos os animais quadripedes e répteis da terra, e aves do céu. E foi-lhe dirigida uma voz: levanta- -te, Pedro, mata e come. Mas Pedro disse: de modo nenhum, Senhor, porque nunca comi coisa alguma comum e imunda. 82 Romanos 14: 1-4 E segunda vez lhe disse a voz: nao facas tu comum ao que Deus purificou. E aconteceu isto por trés vezes... E, estando Pedro duvidando entre si acerca do que seria aquela visao... (Atos 10:12-17). Entéo chegaram os homens enviados por Cornélio com o convite para Pedro ir 4 casa de Cornélio em Cesaréia. Entéo ele foi, e pregou o evangelho 14. A seguir lemos isto: E dizendo Pedro ainda estas palavras, caiu o Espirito Santo sobre todos os que ouviam a palavra. E os fiéis que eram da circuncisao, todos quantos tinham vindo com Pedro, maravi- ltharam-se de que o dom do Esptrito Santo se derramasse também sobre os gentios. Porque os ouviam falar linguas, e magnificar a Deus. Respondeu entéo Pedro: pode alguém porventura recusar a dgua, para que nao sejam batizados estes que também receberam como nés o Espirito Santo? E mandou que fossem batizados em nome do Senhor (Atos 10:44-48). Pedro praticamente estava dizendo ali: “E evidente que Deus recebeu estas pessoas, e, se Deus as recebeu, quem sou cu para negar-me a batizd-las?” Eo argumento do apéstolo Paulo: “Deus os recebeu”. Pedro vai recebé-las porque 0 Espirito Santo caiu sobre elas. A aparéncia delas, sua maneira, seu falar em linguas, sdo algumas das evidéncias. Existem muitas e muitas evidéncias da descida do Espirito Santo — do batismo do Espirito Santo — sobre um homem ou uma mulher. Nao é necessariamente o falar em linguas: ha pessoas que podem ser batizadas com o Espirito Santo e que nunca falam em linguas. Mas é 6bvio que elas foram batiza- das com o Espfrito Santo; vocé pode ver a diferenga nelas. E assim o apéstolo argumenta: “Pode alguém porventura recusar a 4gua, para que nao sejam batizados estes?” E depois vocés véem, em Atos, capitulo 11, que Pedro é pouco mais pouco menos que repreendido por aceitar estes 83 Liberdade e Consciéncia gentios. Mas ele diz aos irmaos de Jerusalém: “Portanto, se Deus Ihes deu 0 mesmo dom que a nés, quando havemos crido no Senhor Jesus Cristo, quem era entdo eu, para que pudesse resistir a Deus?” (Atos 11:17). Pois bem, esses sao alguns dos meios pelos quais pode- mos assegurar-nos de que Deus recebeu alguém. E, portanto, aqui o apéstolo Paulo est4 dizendo ao irmao mais fraco: nao se negue a receber esse homem. Nao julgue esse homem. Nao diga que ele nao é cristéo porque come carne. Deus 0 recebeu, e, se Deus 0 recebeu, vocé deve fazer 0 mesmo. Vocés véem, entao, a importancia deste argumento e a sua particular relevancia e urgéncia na atualidade? Todos nés somos herdeiros de tradigées, e isso tem sido sempre um dos grandes problemas da vida da Igreja. Se os evangélicos vao continuar em condigdes de separacao, de divisao e de recusa a estarem juntos a mesa do Senhor, embora saibam que sao igualmente filhos de Deus e que Deus os recebeu igualmente — se eles, por causa da posicéo que herdaram, na qual muitas vezes nunca pensaram bem mas simplesmente persistem numa tradigao e dizem “Sempre foi assim” — se eles vao fazer isso, entao merecem totalmente ir abaixo numa completa derrota e merecem ser completamente apagados da memoria. Meus amigos, sejamos cautelosos e tenhamos 0 cuidado de no recusar pessoas que Deus recebeu. Queira Deus dar- -nos plena graca para que nos examinemos 4 luz destes grandes principios. 84 5 “Ora, quanto ao que esta enfermo na fé, recebei-o, nao em contendas sobre dividas. Porque um cré que de tudo se pode comer, e outro, que é fraco, come legumes. O que come nao despreze o que ndo come, e o que nao come ndo julgue o que come; porque Deus o recebeu por seu. Quem és tu, que julgas o servo alheio? Para seu proprio Senhor ele esté em pé ou cai; mas estard firme; porque poderoso é Deus para o firmar. Um faz diferenca entre dia e dia, mas outro julga iguais todos os dias. Cada um esteja inteiramente seguro em seu proprio dnimo.” -Romanos 14:1-5 Aqui 0 apdstolo esta preocupado em pleitear tolerancia nas “questées indiferentes”, e entendimento e confianca miutua. Temos visto 0 perigo do surgimento de divisdes entre os cristaéos por questées como estas, especialmente o perigo de exaltd-las a tal posic&o que chegam a separar pessoas que deveriam estar se reunindo ao redor da mesa do Senhor. Jé comegamos também a considerar como 0 apéstolo lida com pessoas que tendem a cair nesse perigo, e vimos que a sua primeira resposta €: “Deus 0 recebeu” (VA). Se Deus recebeu alguém, quem é vocé para rejeitar essa pessoa? Passemos entdo agora 4 segunda resposta do apéstolo: “Quem és tu, que julgas o servo alheio? Para seu proprio Senhor ele esta em pé ou cai; mas estar firme; porque pode- roso € Deus para o firmar”. Essa é uma declaragao dupla. Na primeira parte deste versiculo quatro, o apéstolo toma e emprega uma ilustragéo — uma ilustragao que era bastante conhecida do povo daquele tempo, e que tem sido bem conhecida através dos séculos, embora talvez menos hoje em 85

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