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ARTIGOS O ESTOPIM DE UMA QUERELA: CHARLES PERRAULT E SUA HOMENAGEM AO SECULO DE LUis XIV Sertério de Amorim e Silva Neto' Resumo: O objetivo deste antigo é a analise do poema de Charles Perrault Le Sitcle de Lois le Grand, investigando nele a eclosio © © amadurecimento de uma concepgio do modemo que se opde fundamentalmente ao idea! tradicional da imitagio dos autores antigos. No segundo momento do texto seri exposta, em torno da questio homérica, a posigio esitica de Bollea ¢ suas ressalvas modernidade elogiada por Perrault. Palavras-chave: modernos— antigos ~ Perrault — Boileau ~ Homero. 1. O mundo tetrado francés se abalaria € softeria uma rotura logo que Charles Perrault” fez cantar seu poema Le Sifde de Lonis le Grand em plena Académie Francaise, que naqucle 27 de janciro de 1687 se reunira solenemente para comemorar a satide do Rei Sol apés uma cirurgia de fistula, doenga que Ihe rendera uma longa e conturbada convalescenga’ Causou espanto numa patte da seleta plateia nio a simplicidade do estilo ¢ a modesta eloquéncia do poema, mas a au icia em equiparar o génio de Maynard, de Corneille, de Moliére ¢ outros artistas da época aquele dos mestres da antiguidade classica, a Homero ¢ a Virgilio. A reagio mais imediata e também a mais duradoura teve a frente Nicolas Boileau, um “imortal” que nfo se contendo mutmurou durante toda a leitura dos vetsos © protestou ' Profestor Adjunto do Instituto de Filosofia (FILO) da Universidade Pederal de Ubedndia (UEU) sertorio@defil.ufu.br. 0 sempre lembrado eseritor de contos de fase assesor do ste ministo de Las XIV, Colbert. ® A cing de Laie acorrcu em 18 de novembro de 1686 ¢ teve um pos-operatria complicado, com novas intervengbesconetoras, 6 podendo ser considera curado em 15 de feverciro de 1687 Coteros oie FhssfaPelea | Nimo 2 | Papa colericamente ao final da audigio, dizendo achar aquilo tudo vergonhoso*. Sua insatisfagio com o poema de Perrault seria traduzida depois em Epigrama: lio veio outro dia queixar-se ao deus dos versos Que em certo lugar do universo Foram ditos poetas estéreis, autores frios, Um Homero, um Virgo. [.] ‘Onde se podetia ter dito tal infirmia? Entre os Hurons, entre os Tupinambis? Foi em Paris. Foi entio num hospital «le loucos? Nio, no Louvre, em plena Academia.* O desagrado de Boileau cra o de uma tradi¢ao inteira ali interpelada, de uma cultura que desde a Patristica até © humanismo do Renascimento fixara como ideal e norte a inilatio © 2 aemulatio dos antigos. Perrault, do inicio ao fim do poema, relativiza a estimada “‘geandeza” dos antigos, da qual pes antiguidade foi sempre venerivel; palmente discorda, como anuncia os primeiros versos: “A bela Mas jamais cri que cla fosse adorivel. Vejo os antigos sem dobrar os joethos”, pois sio “de nés, homens parelhos”, Na visio dele, os antigos no foram superiores aos homens do seu século € por isso nada justificaria idolatré-los € torné-los autoridades maximas em matéria de arte, de filosofia e de ciéncia. Tal secular posicionamento 56 encontratia por fundamento “o especioso escolho, Que a crendice pde-nos defronte o lho”. O poeta conclamava entio 0 auditério a deixar de “aplaudir mil erros grosseitos” € passar a se servir dos “proprios luzeiros [propre umiers”, dissipando a supersticio « pondo em pé de comparacio o Século de Luis Aquele de Augusto. Em diversos aspectos, ele afirmou sem medo de represilias, foram os homens do XVII 05 realmente supetiores, como nas cigncias natutais. Nesse territério, Perrault verseja, “A douta antiguidade, em toda sua dutagio, Nao fez como em nossos dias igual iluminagio”®, Os ganhos da ciéncia natural inspirada no “famoso Aristételes” parcciam nulos em comparacio Aqueles oriundos da aplicagio do método experimental instrumentalizado pela luneta ¢ 0 microseépio. Desde esses adventos, estagirita deixou de ser fecundo ¢ perdeu seu * Estavam langadas as bases de um dos debates mais tieos ¢ acalorados do mundo letrado francés, a chamada Queile des Ancions et der Moderns, dispata eminentemente literiria, mas cujas origens a8 consequéncias $50 sentidas na flosofia dos modernos. S BOILEAU, Epigranme,p, 246 © PERRAULT. Le Sil de Loni Grand, p. 3. 7 PERRAULT. Le Side Louis fe Grand, p. 3. " PERRAULT. Le Site de Lonis lk Grand, p. 6. Coteros eta FhssfaPelea | Nimo 2 | Papa honorivel posto: “a decadéncia é notéria, Fim fisica menos seguro que Herédoto em hist6ria”” Mas no ocupou seu lugar, substituindo-o, um novo “notivel” — um Copémico, um Galileu -, mas um objeto, um “vidro [Vom] admirével", mengio poética as lentes das lunetas € mictoscépios, alargadores dos limites da experimentacio do livre da natureza, entiquecendo a sabedoria com inéditas descobertas astronémicas ¢ médicas. Os elogios de Perrault ao sew século dizem muito sobre o contexto em que foi apresentado 0 poema, Sem diivida, a cura de Luis XIV foi uma decorréncia necesséria do engenho moderno — se vivesse noutta época nao se saberia bem a fortuna daquele tumor fistular, cujas dores, no dia 5 de feverciro de 1686, acamaram 0 Rei. © que se seguiu a isso foi talvez 0 primeiro caso de investigasio clinico-terapéutico da histéria. O procedimento iningico - chamado por alguns de grand apération — envolveu meses de prepatacio, de tigor, diriamos, cientifico. As pessoas responsiveis pela satide do rei empreenderiam inémeros ensaias objetivando aferir a eficécia dos remédios ¢ das técnicas cindrgicas aconsclhados para 0 episédio clinico. Conforme os relatos da época, 0 Marqués de Louvois colocou a disposigio os quartos da Superintendéncia para que 0s temédios comumente recomendados pats fistulas fossem testados em doentes voluntitios. Simultancamente, o cirurgiio-real, Felix Tassy, “um "se dedicon por meses a0 desenvolvimento dos homens mais instrufdos desta época aperfeigoamento das técnicas cintrgicas indicadas para 0 caso do rei, operando todos os pacientes atendidos nos hospitais de Paris ¢ na Chanité de Versailles com a mesma doenga de Luis", Os ensaias de medicina, isto é, a experimentasio das terapias aplicadas 4 patologia real ¢ avaliadas em seus minimos efeitos, iduminariam as deliberacdes dos especialistas e o trabalho do bistuti nas mios de Tassy, de modo que o triunfo do Rei Sol, festejado pelos séiditos proximos, havia sido o triunfo da medicina praticada em seu Século, em suma, o triunfo da modernidade enaltecida por Perrault, Certamente € legitimo remontar 0 debate antigos-modemos 20 Renascimento ¢ & contenda de Petratca com os légicos da Universidade de Paris, como quis Fumaroli no famoso ensaio Ler Abeiles et Les Araignées, embora pate continuidade entre © embate renascentista ¢ a quercla francesa. Enquanto la cra Petrarca, amante da eaguentia ciceroniana, que se levantava contra a aridez ¢ 0 formalismo dos arriscado insinuar uma clara linha de “modernos escolisticos””, na Franga de Luis XIV, por sua vez, sio os inovadores Corneille, Perrault ¢ Fontenelle, carreados pelos progressos da ciéneia dos modernos, que combatem a idolatria da antiguidade bradando a exceléncia das artes do Grande Séeuls, Portanto, para além da permanéncia de uma temitica, prevalece nesse caso a inversio dos pontos de partida € a ° PERRAULT: Le Sil de Loni le Grand, pp. 4-5. "® VALLOT; D'AQUIN e FAGON, Journal dela Santé dt Ro Loais XIV, p. 396, " VALLOT; D'AQUIN e FAGON, Journal dela Santé de Roi Lois XIV, p. 399, " EUMAROLL. “Tes Abeilles et les Araignées”,p. 8 escola | Mimo 2 | Papa descontinuidade dos discursos — Petrarca argumenta com factindia em favor da cultura livresca (¢ patristica) para a qual sio os antigos “admiraveis modelos”, convicta de que “para escrever, para pensar € para viver quase no havia o que fazer seno imité-los™”, jé literatos como Perrault soam melhor “blasfemadores” enquanto repudiam aos sete ventos a nostalgia do passado: o lugar do antigo devia se tornar o da meméria, libertando a inteligéncia e 0 engenbo para softer a influéncia vigorosa e rejuvenescente, mesmo que efémera, do presente, do hie et mune. Bim vez de Petrarca, a principal referéncia norteadora da quercla literitia francesa foi Descartes € 0 racionalismo inspirado ncle. © filésofo francés € sua escola antepuseram & pesquisa da verdade o tema do etto, espago onde protagonizaram a explicita oposigio aos habitos livrescos da cultura da época. Se, para eles, os homens estio todos dotados de bom senso, da capacidade de distinguir 0 verdadeiro do falso, é fato também que nem sempre conduzem os pensamentos pelos melhores caminhos. Pode suceder com os investigadores da verdade 0 mesmo que com os viajantes desnorteados: mais seguem 0 caminho, mais se afastam do lugar onde desejavam chegat' Seria esse exatamente 0 caso daquela intelectualidade que se utre nas héras € nos antigos: mais cla se aprofunda ne mais se afasta da verdadeira ciéncia, Teria sido esse 0 sentimento do proprio Descartes a0 cabo dos longos anos de formagio letrada — se achava “enleado em tantas diividas eros” que concluiu ter aprendido ali somente a reconhecer a ignorincia, As ciéncias dos livros (da imitacio dos autores clissicos) menosprezam 0 uso da razio, substituindo-o pelo uso de faculdades menos nobres, como a meméria e a imaginagio, ou simplesmente interrompendo-o a0 oferecer © sereno refiigio das “opinides de mui diversas pessoas" Nio se adquire sabedoria lendo livros, mesmo os mais antigos, pelo contririo, se abre mio de obté-la com a supressio da faculdade de conhecer com certeza"”. Nesse aspecto, “o simples raciocinio que um homem de bom senso pode eferuar naturalmente com respeito as coisas que se Thes apresentam’”” esti mais préximo da efetiva sabedoria do que a pompa ¢ a erudicio dos literatos. .¢ dominio, "HAZARD. La erie dela concrine europe, p. 26. 'S MALEBRANCHE, De la Rebersbe dela Vert, pp. 269-270, 'S DESCARTES. Distours dela mihede,p. 20. "© DESCARTES. Disout dela mitbode, . 28 "T Malebranche indica 0 absurdo da siraagio comparando 0 uso do espitito aquele dos olhos, analogia bastante justa por sinal, que a razdo € dada a intwicde (a visio) das verdades. A experiéncia mostra que as pessoas que tenxergim sulcientemente preferem se servit dos olhos ¢ difieilmente os Fecha desejando setem conduzidos por ‘outtem, nio obstant, “no se server quase nunca de seu espirito para descabrie a verdade” (MALEBRANCHE, De fa Recheebe de la Vert, p. 270), cerram de costume 0 espirito ¢, em vez de intuir a verdade e conhecer ptoptismenteflando, se sastizcm com as opis ahcias amontoadss nos livros, ' DESCARTES. Discourse la mitbade,p. 28 Coteros oie FhssfaPelea | Nimo 2 | Papa A modemidade dirigiu os holofotes para a subjetividade da sabedoria, ocasiio emblematicamente expressa na decisio (autobiogrifica) do jovem Descartes de “no mais procutar outra ciéncia, além daquela que se poderia achat em mim proprio, ow entio no grande livro do mundo”®. Ou a ciéncia esti no sujeito ou no mundo que o cerca e afeta suas faculdades, mas, jamais, nos “léssicos”, de modo que investigé-la nos antigos seria o mesmo que escolher a menoridade e o governo heterdnomo dos pensamentos. © que explicaria entio a idolattia dos antigos? Uma nostalgia? Giambattista Vico, ocupando-se dos comesos da Aumanitas, no primeiro axioma de sua Scienga esbocaria uma possivel resposta ao afirmar que dois “costumes humanos comuns” estio na origem das opinides magnificas sustentadas sobre a remota antiguidade, ou seja, a de que “fama erescit eundo [a fama ctesce com 0 correr do tempol” € “ninuit praesentia famam |a presenga diminui a fama]”™. Apesar de proposta noutro contexto € com outros objetivos, a explicagio de Vico ajuda a ilustrar 0 espaco em que o poema de Perrault se desenrola. Scus versos parecem arguir a todo instante: os autores clissicos foram grandiosos realmente ou resultaram tais por causa do costume de louvat o longinquo? Nesse caso, boa coisa & averiguar a estima granjeada por esses autores em suas épocas: Menandro, espitito envolvente, Foi pelo teatro grego aplaudido raramente; Virgilio viu os versos de E:nio o gentil, Lidos, queridos, (.] Enguanto com langor os seus eram ouvidos;f.] Ermalerado a dogura de sua verve divina, ‘Ovidio fora conhecido apenas por sua Corina.” Perrault se inspira af para ressaltar, por outro lado, a nobre atte nascida na Franca. O poeta convida o seleto auditério a uma reflexfo: estando agora aqueles “incégnitos” no panteio dos fdolos, imaginem o posto reservado pelos porvindouros aos artistas de hoje, que em vida granjeiam jé os elogios € maiores louvores? “Destes raros autores, ao templo da "° DESCARTES. Dison dela mibode, p. 25, ® VICO. Siienge naun p. 77. Uma explicagio semelhante teria sido dada décadas antes por Malebranche, Segundo sua Recher, doxs inclinagdes, denere virias oucras (precisamente onze), ocasionariam a idolatria dos fantigos = seja por que tendemos a admirar as coisas afastadas, mais velhas, vindas de mais longe, de palses Tonginquos ¢ livros obscuros, eja por que as opinides a nés contemporiineas concorrem com a gléna das nossas ideas ¢ entio, quase por instinto de protegao, tendemos a menosperezi-las (MALEBRANCHE. Deda Rechrce de fa Verte, pp. 271-272, 2 PERRAULLT: Le See de Loui le Grand, p. 10. Coteron oie FhssfaPelea | Nimo 23 | Papa meméria, Nao se pode conceber qual seri a gléria”™, © que esperar do tempo em que desses autores s6 restar a nostalgia, a distincia temporal? Que alta classe de honra ni deverio conseguir Nos faustos sagrados dos séculos por vi, ‘Um Regnier, um Maynard, um Gombaud, um Malherbe, Um Godeau, um Racan, cujos escritos soberbos, [.] [u] desde que despontaram, De um laurel imortal se coroaram? [.] Mas qual seri a sorte de Corneille tio celebrado, [.] Que dos povos apressados viu cem vezes a afluéncia, or longos gritos de jabilo honsar sua comparéncia, Eos mais sibios Reis, de sua verve fascinados, Ouvir os Herdis por ele animados.”* Parece haver ali uma ironia. Embora sé a erenga no mito da Idade de Ourn justifique a adoragio dos antigos, 0 outro costume indicado por Vico — segundo o qual a presenga diminui a fama ~ vio foi capaz de minorar 0 prestigio das artes francesas do XVII. E como se as criagdes dos modernos tivessem uma exceléncia inume as ctengas mais arraigadas. As obras primas da antiguidade safram de mios habilidosas mais do que do domfnio dos melhores procedimentos. Os pintores antigos produziram cenas belissimas que fascinaram ¢ ainda fascinam os olhos, porém, nota Perrault, “O mais douto dentre eles conheceu somente fragilmente, Do claro e do escuro o enlagar-se plenamente”™, Os artistas sob o patrocinio de Luis, nao obstante, levaram sua arte perfeicio precisamente na medida em que conheceram ¢ aplicaram as regras da boa execugo e da bela composigio. Um bom exemplo foi o pintor Chatles Le Brun, chanceler da Académie Royale de Peinture et de Sculpture. Le Bran associou & profissio de pintor aquela de investigador da natureza. Parte importante do seu empenho como teérico da arte foi dedicado 4 fisiognomonia, ou scja, 20 estudo das fisionomias ¢ expressdes faciais enquanto linguagens das paixdes ¢ modos de interagio da alma com 0 corpo, inspitando-se fortemente na medicina das paixdes de Descartes®, Partindo da melhor teoria das paixdes da Idade Moderna, Le Brun elaborou as regras da composigio pictorica de expressdes faciais aptas 2 comunicar realisticamente as diferentes paixdes — as fisionomias da admiragio, do édio e da tristeza -, sapiéncia que, inexistindo entre os pintores € escultores Le Sie de Loni e Grad 1 Le Sil de Lose Grand, p11. Le Side Loni fe Grand. 13, % MIRANDA. “A Fisiognomonia de Charles Le Brun educagio da fice © educasio do olha”, pp. 18-23 > PERRAUI CoteroseiceeFhssfaPelea | Nimo 2 | Papa antigos, nfo péde garantirthes a precisa representagio das formas naturais tal como conseguitiam os modernos. Mesmo as consideradas obras primas da antiguidade no estiveram isentas desse déficit. Na opiniio de Perrault, o venerivel talhe do Laocoonte decai deasticamente na composicio dos seus dois filhos: “os timidos compos das sexpentes vis, Envolvem dois andes em lugar de dois guris”™*, O artesio teria falhado no dimensionamento € justa elaboragio da feigo dos filhos do Laocoonte, fazendo com que parecessem andes em vez de piiberes, assim como também falhou o feitor da estitua de Hércules ao distender fortalecer exageradamente os miisculos do heréi, dele subtraindo as belas © equilibradas formas do corpo humano. Perrault compara esta arte Aquela das esculturas ornamentos de Versailles, representadas nos cavalos espalhados por todos os lados do jarcim, que parecem saltar € marchar e “pelo relato dos olhos, crer-se-ia relincharem”. Nao por um acaso 0 Apolo de Girardon ¢ 0 Acis de Baptista “parecam cheias de vida”. Essas obras de arte modernas nascem todas da “sabia mao” do artista, isto é do habil manuscio dos instrumentos orientado pela iluminagio do entendimento e das regras da étima composigio aptendidas na observacio da natureza. Nio & a idade de uma obra o ctitério de sua beleza, mas os sentidos, 8 olhos € os ouvidos que captam os detalhes, ¢ nesse tocante, indica Perrault, é impossivel defender a superioridade da arte dos antigos em rclagao Aquela do Século de Luis. O poema de Perrault ecoa uma concepgio de tempo € histéria tipicamente moderna e diversa daquela renascentista™, Em vez da suposigio da Atlintida desaparecida, ele eré na cigncia dos modernos € no crescimento do saber com o tempo, portanto, em sintonia com a filosofia do XVII, cré que “a antiguidade é a juventude do universo, nowitas florida mundi, disse Luctécio”®. Num famoso axioma do Novum Onganum, Bacon jé notava que os modernos sim so os antigos, os mais maduros e enriquecidos de experimentos e observaces”, como também alertou Malebranche: rninguém considera que Atist6teles, Platio, Epicuro foram homens como nés € da mesma espécie que nés; mais do que isso, no tempo em que estamos 0 mundo € dois mil anos mais velho, hi mais experiéncia e deve ser mais 2 PERRAULT. Le Site de Louis e Grand, p. 15 2 PERRAULT. Le Sidele de Louis ke Grand, p. 15. 2 J clissica concepsio ciclica da histétia, herdada dos gregos, que partia da ctenga num petiodo originitio de excelsa grandezae cldade ~ uma Kade de Ouro, uma Anta ~arruinado em seguida por desatres nturis ou invasdes birbaras,O ideal das épocts era o da emulagio daquele periodo orgindno,desejava-se oar sempre thas adiante, ms sobre os ombtos de ggantes, os autores da antgidade. S'DESCHANEL Botan, Cans Pera p. 244, BACON. Nese! Omenon, p. 44. Coteros ete FhssfaPelea | Nimo 2 | Papa esclarecido; ¢ é a velhice do mundo e a experiéncia que levam & descoberta da verdade.™ curso das experiéncias progride a cién teis, por que seria diferente com as épocas? E. mais, por que nio as belas-artes? A mais ingénua observagio indica o modo como opera a natureza das coisas: reserva o prematuro para os comecos deixando a abastanga € 2 fortuna para as etapas posteriores. Nesse sentido, cantou Perrault, “o jovem carvalho em sua idade incipiente, Nao pode se comparar ao carvalho encanecent terra espacosa folhagem, Avizinha 0 céu com sua vasta galhagem”* Que lancando sobre a Assim como 0 carvalho, que s6 na idade adulta avizinha o céu, as belas-artes (a pintura, a escultura e a poesia) s6 como envelhecer conquistam, de fato, a perfei¢io € prestigio. Por que razio imaginar que ja nos primeiros tempos teriam clas adquirido pleno acabamento ¢ exceléncia? Ideia essa avessa & ordem da natureza que faz sempre os mesmos esforcos “Para formar os espiritos como para formar os corpos”™. Eis o critério a partir do qual estimar a vida do espitito, a cultura e as aries, bem como o patalelo entre antigos e modernos; escreve Perrault: “este itil conjunto de coisas que se inventa, Sem cessar, a cada dia, ou se depura, ou aumenta”™ conforme 0 curso do tempo, garantindo assim a exccléncia dos modemas ¢ 0 despautério de ‘uma cultura ainda ealcada na imitagio dos antigos. ‘Tudo evolui 2. Um antigo em especial comentado pot Perrault no Poema alimentaria a ita do seu maior adversério, Boileau. Fazemos referencia 4 critica ao principe dos poetas gregos, Homero, presente jé naquele poema e depois ampliada nos Paralele des anciense des modernes en ce qui regarde ha poesie. Em seguida, Boileau publicou o Réflexions critiques sur quelques passages di rhéteur Longin em tesposta 20s comentarios de Perrault, que ele chamou de “a coisa mais falsa "5, reinaugurando na modernidade a tradicional questio homérica. Os dois protagonizaram um debate to acalorado ¢ tio rico de matizes que se poderia dizer que do mundo terreno principal onde se enfrentaram antigos € modetnos foi naquele concemente ao estatuto da poesia homérica, Perrault sopesa a corregao da fama de poeta divino, abundante ¢ majestoso atribuida a Homero. Repetidas vezes ele diz reconhecer o valor e a grandeza de Homero, porém, imputa aos seus poemas uma série de imperfeices que obrigatoriamente deveriam extrai-lo do pantedo dos modelos. Dentre essas imperfeigdes indicadas por Perrault, duas nos interessario 3! MALEBRANCHE, Dede Recher de a Ver . 270. ° PERRAULT. Le Side de Louis ke Grand, pp. 22-23. © PERRAULT. Le Sie de Ln Grand, p23, 3 PERRAULLT. Le Sidete de Lonis de Grand, p, 22. ° BOILEAU, “Réflexions critiques sur quelques passages ds théteur Longin”, p. 170. CoteronseticaeFhssfaPelica | Nimo 2 | Papa tb aqui de perto, a saber, as inadequadas digressdes deixando os poemas enfadonhos € 0 déficit sapiencial do poeta, recheando-os das mais tolas inverdades. Para um século € uma nagio que aprenderam com 0 seu maior filésofo a valorizar a clareza ¢ a distingio das ideias, aquelas longas digressdes € prefaciagdes de Homero s6 poderiam parecer viciosas e contriias ao melhor estilo literatio. O poema de Perrault pode ser considerado um marco nio s6 pelo longo elogio As cigncias modernas ¢ & evolugio cultural possibilitado por elas, mas por que engendra um estilo em conformidade com os principios fixados por Descartes como metro dos pensamentos € da linguagem que os expressam®. O linguajar de Perrault nao é aquele ornado grandiloquente dos sublimes poetas antigos, mas 0 francés puro, admiravelmente preciso e simples do Diseours de la methide, © & essa opgio pela simplicidade e clareza do estilo a real fonte das opinides nada lisonjeiras sobre Homero. Para cle, as digresses do poeta grego sio extensas ¢ desnecessérias em sua maioria, provocando no Ieitor a desatengio dos acontecimentos que encadciam a compreensio da narrativa, isto é 0 alienam do fuxo dos fatos sem oferecer a garantia de depois reencontri-los. O poeta francés chacoteia dizendo que nem mesmo os herdis dos poemas aguentariam prefaciagdes tio exageradas: “Teus soberbos guerreiros, [.] Prontos a se trespassar pelo ferro longo da langa, Nao susteriam tanto tempo o brago erguido; [..] quando 0 combate deveria estar concluido”™”. Semelhantes disperses estio espalhadas pelo corpo dos poemas, mas sio bem ilustradas nas analogias ¢ comparacdes homéricas. Com o intuito de analisi-las, no Paralelle Perrault ofercce uma curiosa imagem: a dos vestidos ornados de longas caudas. uma princesa dé sinais de nobteza e magnificéncia ao atrastar sua vestimenta pelo chio portando uma longa cauda, a poesia reflete grandeza e sublimidade quando suas comparagoes tém ornamento e pompa. Mas para que se obtenha esse efeito ~ pondera Perrault ~ € preciso que haja equilibrio ¢ coeréncia interna entre uma coisa ¢ outra, entre 0 vestido ¢ a longa cauda, em suma, é necessério que a cauda seja do mesmo tecido e cor do vestido que oma, Uma cauda de brocado num vestido de veludo ¢ de tecido amarelo num vestido verde, “é certo que esas caudas, por longas que sejam, serio desagradiveis e ridiculas, até mesmo mais ridiculas quanto mais longas clas forem”. Fis 0 caso dos pocmas homéricos, conclui Perrault: “as comparagées de Homero no sio absolutamente da mesma cor e nem do mesmo tecido dos corpos das comparagdes 20s quais estio ligados”™. 5 Apesar do menosprezo pelas Letras, Descartes deve set considerado uma influéncia central do espitito ¢ da forma da iteratura abcess do Grund Sto, Descartes, nas palviss Boul, “no & somente o fundador da flosofia francesa, € ainda um dos fundadores de nossa lingua” (BOUILLIER. Hae eeu del ioation carton, p. 327, STDERRAULT. Le Site de Loi Gren. 8 ™ BOILEAU. Reflsionreitguer sur quelques pasages du rsteur Longin, pp. 65-6 Coteros eta FhssfaPelea | Nimo | Papa ot © exemplo é retirado do parigrafo 141 do Canto IV da Mada, logo que Menelau € ferido pela flecha de Pindaro. A coxa muita branca de Menelaa gotejada do seu sangue parecia, na compara¢io de Homero, um marfim sendo tingido de pirpura. Eis 0 corpo da comparacio, bem feito, agtadivel, belo ¢ justo. Mas Homero ajuntaria a esse equilibrado corpo uma longa calda, embora desajustada. O Poeta acrescenta um excesso de detalhes que empobrece a comparagio, em vex de aquilaté-la. Homero actescenta & imagem o fato de © marfim ter sido tingido por uma mulher Mednia ou Caria com 0 objetivo de adornar freios de cavalo € junta a isso, ainda, a ressalva de que se trata de adorno que muitos gostariam de ter, mas que clas guardam pata dar aos Reis, jé que 0 ornamento do cavalo é motivo de gléria para 6 cavaleiro, O que toda essa “longa cauda” tem a ver com a coxa de Menelau respingada de sangue? Nada mais que evidenciar os equivocos do poeta antigo ¢ a imperfeita feitura de sua poesia, responderia Perrault A Tada ca Odisseia se opéem 20 estilo filos6fico simples, preciso ¢ apto a favorecer 0 encadeamento logico ¢ facilitar a compreensio. Muito pelo contririo, impéem a inteligencia um inétil esforco de atengio © de reconstrugio das cenas, impedindo dese modo a consecugio dos verdadeiros objetivos da poesia, que devem ser, segundo Perrault, “a instrac3o ou o prazer”. Os poemas homéricos, em ver. disso, soam 20s ouvidos modernos tediosos, desagtadaveis € sem apelo pedagégico (formativo), exigindo por isso a cuidadosa aliagio dos literatos. © Reflexcions de Boileau oferece um aspero contragolpe a estas ¢ outras criticas de Perrault a0 “‘pai dos poetas”, mas serve também, assim parece, de alerta sobre os riscos de uma cultura, que, encantada com a facilidade do método a autonomia da raz metro getal a facilidade em todas as matérias, repudiando todo 0 trabalho Arduo € dispendioso, bem como as conquistas da bumanitas através dos tempos ¢ os sélidos patriménios do pasado. Nas entrelinhas das respostas pontuais as criticas de Perrault opera 0 tevide de Boileau & cultura cientificista em voga naquele século, Sua estratégia é evidenciar a posi¢io de Perrault como consequéncia de uma aversio artogante pela antiguidade € seus imOnios fundamentais. A estratégia dele, noutros termos, é mostrar que s6 se equivocando pode Perrault descobrir os supostos erros denunciados na obra de Homero. , adota como O Stcule de Luis, clogiado pelo brilho € perfeigio da arte, presenciaria ainda a eclos de um modismo perverso, capaz. de comprometer as ricas conquistas da época, a saber, “a moda [mode] entre os muitos espiritos pequenos, ignorantes tanto quanto orgulhosos ¢ plenos de si mesmos” de livremente “falar sem tespeito dos maiores escritores da antiguidade™. Boileau nio descjava interditat a critica aos antigos ¢ a Homero; pretendia antes combater PERRAULLT. Pale dancin de meres omc ui gre presi pA, “ BOILEAU, Rison etqus su quel pasa dtr Longin p. 20. Coteronseticae FssfaPelia | Nimo 2 | Papa 2 aquela atitude orgulhosa ¢ travestida de critica que tinha por objetivo “rebaixar a gléria destes grandes homens” em vez de “estabelecer a verdade de algum preceito importante’, Segundo cle, um aspecto fundamental a toda critica justa inexistia na eruzada de Perrault contra os antigos; faltaria a cla o duplo convencimento, da “justeza do espirito do censor” € “da grandeza do génio do esctitor censurado”®, persuasées necessariamente implicadas em toda ¢ qualquer censura que se queira fazer a autores do vulto de Homero, Platio, Virgilio e Cicero, venerados séculos 2 fio, pois, nesses casos, continua Boileau, a integridade do censor reside na confissio “de um niimero infinito de belezas”™®. Na opinio de Boileau, é a aprovagio dos pésteros (a notoriedade) a tinica maneira segura de estabelecer os méritos das obras € dos autores. Os elogios angariados em vida — como os dirigidos a Regnier, Maynard, Corneille e motivo de orgulho para Perrault — nfo afiancam exceléncia alguma, pois podem muito bem se assentar em um juzo efémero, em um gosto tipico da ocasiao ¢ varlavel no tempo: “a novidade do estilo, um gito do espirito em moda, de forma que © hoje elogiado pode set, logo depois, desprezado. Ora, embora pudesse ser esse 0 caso da atte sob a tutela de Luis XIV, definitivamente nio era o de Homero € Platio, de Virgilio e Cicero, venerados jé por tanto tempo. Boileau observa que s6 foi possfvel a Perrault censurar as comparagcs digressdes de Homero cometendo, antecipadamente, 0 deslize de desconsiderar por completo a tradicional arte retrice em que foram mestres os antigos. Este abandono esta sinalizado no poema®. Segundo Perrault, os antigos foram mestres em Retérica ¢ Floquéncia por que precisavam disso para solver os conflitos sociais € apaziguar os humores, mas com o desaparecimento daquela necessidade politica na Franca unificada sob a monarquia do Rei Sol desapareceria também a prépria arte retdrica”’ Jé que seu exercicio deixava de ser imperioso, para que aprendé-la? Fis a situasio de Perrault ¢ a fonte daqucla reprimenda desajustada a Homero. Isso que parece a0 poeta francés imperfeicio é, na verdade, uma qualidade ret6rica, que ele, em seu menosprezo do antigo, simplesmente ignorou. Esti estabelecido na Retorica, de acordo com Boileau, Que as comparagdes, nas odes e nos poemas épicos, no sio colocadas simplesmente para esclarecer ¢ ornar o discurso, mas para cntreter © para “' BOLLEAU. Réflsione critiques qulgue pacage du rer Longin, p. 20. © BOULEAU, Reflsion critique sr guelgue patages du rstenr Longin, p. 211 © BOILEAU, Réflsion critiques quclyues pasage du rhear Longin, p. 210. “ BOILBAU, Réflsion critique vr quelque pasages drier Longin, p. 235. ® PERRAULT. Le Sil de Louis Grand, p. 7. ‘ FUMAROLL, “Les Abeilles et les Aeaignées”, p. 19-20, Coferos settee FhssfaPelica | Nimo 2 | Papa 08 descontrair o espitito do leitor, desligando-o de tempo em tempo do sujeito principal e conduzindo-o a outras imagens agradaveis ao espirito." Diferente do que se imaginou Perrault, as comparagdes no poema épico nio devem ser concebidas tendo em vista 0 mero encadeamento € compreensio da natrativa, mas enquanto dilatam e enriquecem essa experiéncia, ou seja, enquanto descontraem 0 espirito eo desligam da pura sucessio dos acontecimentos, entretendo-o e tornando prazerosa a vivencia da longa narrativa. Para além da compreensio, 0 escopo delas é a promogio da experiéncia estética da obra, permitindo que a epopeia seja mais que narrativa de acontecimentos, mas poesia. Além disso, também ¢ justo dizer, com base na Retérica, que uma digressio nio pode ser considerada defeito do discurso se ela, como observa Vico, “permite conhecer com maior facilidade © que se vai dizer, ou uma mais profunda confirmagio, ou uma mais extensa amplificagio”™, requisitos que o exemplo citado por Petrault (da coxa de Menelau respingada de sangue) em nada deixa a desejar. Nao pode soat como equivoco ¢ digtessio excessiva dat prosseguimento Aquela imagem acrescentando-lhe que é costume das mulheres Me6nias ¢ Carias 0 tingimento do marfim e que o produto desse trabalho adorna os cavalos dos heréis. Ora, o que pensar de uma coxa allyina ensanguentada quando se a compara ao marfim sendo tingido de purpura? Poder-se-ia petguntar: quando o marfim € assim tingido, onde isso pot ventura ocorre ¢ qual a finalidade? Daf 0 extenso comentario de Homero, cujo objetivo, deve-se supor, era também o de facilitar a imagem, tornando o seu sentido quase espontineo para os que jé conhecem o trabalho daquelas mulheres ou j4 viram as heroicas montarias ricamente enfeitadas. Aquilo que era a riqueza da poesia de Homero, a Perrault, por desconhecimento c insensibilidade inadmissiveis a um literato daqucle vulto, soou como erro e imperfeicao do estilo. Homero lembrava a Perrault um infante eru que dispersa a atengio com perde na fala, mas nfo s6; também evocava a lembranga da crianga naquilo que tinha de impolido, gracas a ignorincia c barbara naturcza tipicas da Grécia onde nasceu, Nao por acaso seus herdis — vis, caprichosos © brutais — estariam longe de inspirar 2 dumanitas sutil © esclarecida do XVIL sim circunstincias favoriveis & excelente atuagio des Franga, Ao século em que vivemos te remetesse crianga, O século em que nasceste de cem falhas imputavel, Nunca profanaria tua obra incomparavel’”, Se assim o fosse, imagina o facilidade e se visio de Perrault nfo teria faltado a Homero génio e fantasia, m: se 0 c&u, favorivel & as faculdade: © BOILEAU, Réflsion critique sr quelque pasages du rhe Longin, p. 22. * VICO. Rusia, p. 56. © DERRAULLT. Le Sse de Loni e Grand, p 8 Coteros settee FhssfaPelia | Nimo 2 | Papa 0k poeta francés, sua obra revelar se-ia incomparavelmente mais esclarecida, seus herdis seriam de fato virtuosos e benevolentes, verdadeitos orgulhos da patria, ¢ a arte de Vuleano produziria um escudo para Aquiles “mais puro e menos rebuscado”®. Homero versejou em plena barbarie grega, numa fase da dumanitas em que as paixdes se sobrepunham aos fracos lumes de uma razio embrutecida, 0 que nos leva ao segundo género de imperfeigdes indicado por Perrault maquela poesia: um déficit sapiencial impossibilitando agregar sabedoria Aquele genio poético. No Parallde Homero é recriminado, pois teria cometido absurdos em matéria de naturalismo, de arte € de geogeafia. No Paralele esti dito que 0 poeta épico deve falar com pertinéncia ¢, para tanto, precisa conhecer suficientemente os assuntos abordados em sua poesia ou no seri considerado digno do epiteto; e mio era esse 0 caso do nosso poeta". © seu conhecimento de anatomia poder-se-ia dizer ridiculo, como corrobora a descri¢ao simpléria do canto IV da Tada, segundo a qual Menclau tinha os calcanhares nas extremidades das pernas™, Realmente, a observagio € ridicula, contudo, para Boileau, nao foi Homero o responsivel pelo buslesco e sim seu tradutor. A realidade é que Perrault se deixa enganar pela tradugo malfeita da “passagem muito sensata” da Mada, Em vez de exprimir 0 Sbvio, a passagem no original descreve a cena da perna de Menclau ferida: “tua coxa ¢ tua petna, até a extremidade do calcanhar, foram entio tingidas do teu sangue”®. Boileau niio abranda e insiste em pontuar a enorme gravidade do deslize do seu adversitio, ilustre homem de letras ¢ prestigiado membro da Academie francaise. “o censor & escusivel por nao ter visto a0 menos na versio latina que 0 advérbio ingta nfo se constr6i com talus, mas com feodata sunt?”™. Sobre ele recai no s6 2 suspeita de desprezar a lingua grega, mas inclusive o latim, algo vergonhoso para um literato do XVIL © desconhecimento do grego de Homero colocaria aquele moderno novamente em embarago. Segundo Perrault, © divino poeta, considerado o pai da geografia pelos antigos, cometetia na Odisseia 0 despautério de situar a pequena ilha de Siros eo mar mediterrineo nos trépicos®. Mas novamente essas nfo seriam as palavras de Homero, quando muito as de seu parco intérprete. Boileau restabclece o sentido original da referéncia a Siros: “Pequena ilha situada além da ilha de Ortigia, do lado que o sol se deita”™ e ressalva que nenhum outro interprete da Odisseia — seja Estacio ou Ezequiel — jamais viu dificuldade nessa passagem, Até 8 PERRAULT. Le Site de Loni de Grand, p 9. S! PERRAULT. Parallel der ancien «de moderne n equi regard a poesia, p. 93. 8 PERRAULLT. Parallel des ancien ede moderne en equi regard la poe, p. 72. 8 BOILEAU, Réflsion critique or quelque pasags drier Longin, p. 184, S BOILEAU, Réflsion critique sr quelque pasages du rhtear Longin, p. 184. 8 PERRAUILT. Parallel des ancens «des maderne en gai rgarde la poesep. 95. © BOILEAU. Reflxion rtgues sr quelques passages du rier Longin, p- 189. Coteros se ticaeFssfaPelia | Nimo 2 | Papa 05 ali ndo havia sido preciso defendé-lo dessa acusacio, jé que ninguém the havia imputado tal engano. Boileau entende que nfo é o poeta antigo o merecedor de reprimenda e sim Perrault, que no s6 “nio sabe nada do grego”, mas, ainda pior, “sabe muito pouco de geografia”’” € comete, ele sim, deslizes em matéria de geogeafia, por exemplo, ao localizar em seu Poema 0 tio Meandro, que corre na Frigia (atual Turquia), equivocamente na Grécia®. Outra critica “estipida” de Perrault rebatida por Boileau foi a de que Homero teria confundido as artes do seu tempo, como quando, no terceiro livro da Odistia, conta que 0 fundidor chamado para dourar o chifre do touro sactificado por Nestor chegata trazendo consigo martelo, bigorna e tenazes. Qual a utilidade do martelo ¢ da bigorna para dourar chifres? Perrault se pergunta, Faltaria ao poeta antigo 0 exato conhecimento das artes da época €, por isso, comete 0 equivoco de munir o fundidor de ferramentas desnecessérias 20 oficio”. Boileau dir que 0 caso nao é o de Homero desconhecer as artes praticadas em seu tempo, mas o desconhecimento de Perrault da arte praticada na época de Homero. Nao se trata de uma caténcia do poeta grego e sim da cultura geral e dos conhecimentos histéticos daquele pattidétio dos modemos, Pata comego de conversa, o artista de que fala Homero do € 0 fundidor, mas 0 forjador. Naquela época os objetos eram dourados com folhas finas de ouro, obtidas a partir do processo de sucessivas marteladas na peca bruta apoiada na superficie de uma bigorna, ¢ daf a imprescindivel utifidade do martelo € da bigorna para dourar os chif s para Nestor. O partiditio dos antigos nio via como nio colocat em questio a reputacio dese literato: ‘como justificaremos M, Perrault, este homem de tio grande gosto € tio habil em todas as sortes de attes [..] como, digo, o escusaremos pot estar ainda aprendendo que as folhas de ouro de que se serve para dourar no sio senio ‘ouro extremamente batido? Perrault cometeria o agravo de, ignorando © grego, let Homero somente a partir de tradugies, colocando-se entre aqueles criticos modemos que desejam julgar © grego sem conhecer o grego, € que, Iendo Homero somente em tradugdes latinas muito baixas, ou em tradugies 57 BOILEAU. Refeon etgues sr gues pasags di ter Lani p. 190. S PERRAULT. Le Sie de Lone Gro, 6 S PERRAUILT. Pale ance ds medres om cui gel presi p. 76 © BOILEAU, Rfson etiqus sur uel pasa du bteur Longin p. 86 Coferon settee FhssfaPelica | Nimo 2 | Papa 06 francesas ainda mais rasteiras, imputam a Homer as baixezas de seus tradutores® © limite imposto & tradicio — a recusa de mestres em prol do uso livre do discernimento — nio se aplica aparentemente a Perrault que abandona seus julgamentos sobre a antiguidade ao arbftrio dos tradutores modernos. $6 que, enquanto a tradigio deixava-se guiar pelos notérios Homero, Virgilio, Platio e etc., Perrault coloca o destino dos seus pensamentos nas mios de um tradutor, um /radifore (traidot) como advertem os italianos. Por causa disso, a antiguidade chegaria a cle frequentemente adulterada, falsificada ¢ corrompida, como ilustram vastamente os supracitados equivocos interpretativos, Perrault sentitia na pele a inculpacio dirigida a Homero: “o Senhor Perrault nada de grego, entende mediocremente o latim € no conhece de forma alguma as artes’ Boileau demonstra com agudeza impar que o tal déficit de sabedoria adjudicado a Homero melhor se encaixatia ao critico modemno, com o agravante do autor grego ter vivido num século tealmente menos favorecido que o de Perrault — por isso a sua € uma ignorincia esclarecida, produto menos da desinformago que da arrogincia e soberba de espirito, Perrault renuncia por capricho a tudo o que ha de antigo, passa por cima levianamente dos méritos granjeados no correr dos séculos e deixa de lado saberes ¢ doutrinas fundamentais da tradigio. io sabe Perrault se comporta como un “pedante”, como alguém ‘‘com saber mediocre”, mas que, cheio de si, encara os clissicos de cima para baixo ¢ deles é incapaz de tirar o justo proveito para o tempo presente. ‘THE TRIGGER OF A QUARREL PERRAULT AND HIS HOMAGE TO THE CENTURY OF LUIS Abstract: The objective of this paper is to analyze the poem by Charles Perrault Le Sitle de Louis e Grand, investigating in him the emergence and the maturation of a conception of modernity fundamentally opposed to the traditional ideal of the imitation of ancient authors. In the second stage of the text will be exposed, around the Homeric question, the critical position of Boileau and their reserves about the modemity praised by Perrault. Keywords: Modern — Ancient — Perrault ~ Boileau — Homero. © BOILEAU, Réflsion critique sr quelque pasages drier Longin, p. 263 © BOILEAU, Refosion critique or quelques passages du rsteur Longin, p. 192 © BOILEAU, Refesion critique ur quelques paca du rhsteur Longin, p. 213. Coferos settee FsstaPelica | Nimo 2 | Papa 0? REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BACON, Francis. Nouvel Organon, In: _. Otwrres. Tradugao francesa de M. P. Riaux, Paris: Charpentier, 1843, p. 1-235 BOILEAU, Nicolas. Réflexions critiques sur quelques passages du rhéteur Longin. In: _. Cures. Tomo IMI, Paris: ] J Blaise, 1821, p. 155-344. Fpigrammes. In: _. Oewores Complites. Tomo II Paris: Bibliotheque Choisie, 1829, p. 235.254. BOUILLIER, Francisque. Histoire ortique dela rivoltion cartécenne, Lyon: Boitel, 1842. DESCARTES, René. Discours de la méthode. 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