You are on page 1of 148
JANINE M. BENYUS Inovacgao Inspirada pela Natureza ~ Cultrix + Amana-Key Neste livro, Janine M. Benyus apresenta_ um grupo de cientistas € inventores que ja fizeram inovagbes com base na natureza e que mudarao ‘© modo como plantamos, confeccionamos teci- dos, aproveitamos a energia, curamos doencas, armazenamos informag6es e fazemos negécios. No The Land Institute, no Kansas, por exemplo, os pesquisadores esto praticando promovendo um novo tipo de agricultura fun- damentado nos principios da vida selvagem e cujo propésito é recriar as caracteristicas natu- rais do ecossistema das pradarias. Em outro laboratétio de pesquisas, na Universidade do Arizona, 05 cientistas estao fazendo experimen- tos com fotossintese artificial por meio de uma andlise minuciosa da maneira como as folhas e as bactérias processam a luz solar. O que esses cientistas veem no horizonte? “Unidades de forca” solar microscépicas que poderiam pro- porcionar a energia necesséria para eliminar vazamentos de produtos txicos ou iluminar re- sidéncias Esses sao apenas dois exemplos de disciplinas cientificas que procuram inspiracao na natureza. Em Biomimética, a autora mostra como 0 nosso futuro poderia ser diferente se tirdssemos van- tagem dessa revolucao cientifica: @ Novos medicamentos seriam descobertos a partir da observacao dos habitos ali- mentares que durante milhes de anos nutriram e mantiveram os animais. @ Computadores mais répidos e adaptaveis poderiam ser criados se aproveitéssemos @ poder das proteinas simples, com base na comparagao de formas Os sistemas administrativos e econémicos se baseariam nos principios das florestas de sequoias e de nogueiras, que usam os detritos como recursos para a sobrevi- véncia. BIOMIMETICA Tr MILTON CHAVES DE ALMEIDA Editora FEBASP ASSOCIACAO CIVIL. Gait G) . CENTRO GESTOR DA iNFORMAGAO biblioteca@belasartes www.belasartes.br feous Cy. S44 |PHA: 422 |TOMBO:4 4993 DOr Copyright© 1997 Janine M. Benyus. Titulo original: Biosimiery. Copyright da edigo brasileira © 2003 Eaitora Peasumento-ultrix Ltda, ¥ edigio 2008. 10° reimpressio 2016. Publicado mediante acordo com William Morrow, uma divisio da HarperCollins Publishers, Inc. ‘Todos os direitos reservados. Nenbusma parte deste livro pode ser reproduzida ou usada de qualquer forma ou por qualquer meio, cletrénico ou meciinico, inclusive Fotocépias, gravacbes ou sistema de armazenamento em banco de dados, sem permissio por eserito, exceto nos casos de trechos cuttos citados em resenhas critcas ou artigos de revistas. Direitos de eadugo para o Brasil adquitidos com exclusividade pela EDITORA PENSAMENTO-CULTRIX LTDA. que se reservaa propriedade literitia desta tadugio, Rua Dr. Mirio Vicente, 368 04270-000- Sao Paulo, SP Fome: (11) 2066-9000 1) 2066-9008 heep://owwedioracultrix.com br Expail atendimento@edicoracultsix com be Foi feitoo depésito legal: Impressio ¢ acabamento: Orgrafie Gnéfica ¢ Eaitora AOS MENTORES DA NATUREZA AGRADECIMENTOS Eu gostaria de agradecer a todos os biomimeticistas que entrevistei, especialmen- te aos que tiveram a gentileza de revisar uma parte do original. Os revisores foram: Drs. Wes Jackson, Jon Piper ¢ Marty Bender, do The Land Institute; drs. J. De- vens Gust, Jr., Thomas Moore e Neal Woodbury ea dra. Ana Moore, da Arizona State University (ASU); dr. Clement Furlong, da University of Washingcon; dr. Paul Calvert, da University of Arizona; dr. J. Herbert Waite, da University of De- laware; dr. Christopher Viney, da Oxford University; dr. David Kaplan, do U.S. Army Research; dr. Kenneth Glander, do Duke University Primate Center; dt. Ri- chard Wrangham, da Harvard University; dra. Karen Strier, da University of Wis- consin; dr. Michael Conrad, da Wayne State University; dr. Braden Allenby ¢ Thomas Graedel, da AT&T; ¢ Thomas Armstrong, de Matfield Green, Kansas. ‘Tenho um débito especial de gratido com o dr. Christopher Viney, que analisou todo o manuscrito com rara combinagao de entusiasmo ¢ minudéncia. Tive a sorte de ter uma agente literdria, Jeanne Hanson, ¢ um editor, Toni Sciarra, que entenderam realmente este campo inominado do conhecimento ¢ que foram defensores da biomimética desde o inicio. Por transcrever minhas anotacoes tomada de benéfica curiosidade, agradego a Nina Maclean. Meus amigos ¢ minha familia foram formidaveis, como sempre. Muitas pessoas me ajudaram a substanciar 0 contetido deste livro, tanto en- quanto eu 0 escrevia, quanto depois. Agradeco, especialmente, a Wes Jackson ¢ Wendell Berry por se haverem reconhecido como biomimeticistas anos atrés ¢ por terem entendido tao clara e precisamente do que trata essa ciéncia. Emily Hunter, também do The Land Institute, aguardava-me ansiosa quando terminei o livro. Com sua ajuda, pude refletir ¢ refazer-me para a fase seguinte. Por fim eu gostaria de agradecer a Laura Merrill, que, com paciéncia e de co- ragio aberto, ajudou a trazer & luz a biomimética. Sua alegria contagiante ¢ seu apoio firme como a rocha significou muito para mim. SUMARLO CAPITULO 1 IMITANDO A NATUREZA POR QUE A BIOMIMETICA AGORA? CAPITULO 2 COMO NOS ALIMENTAREMOS? AGRICULTURA ADAPTADA A TERRA: PRODUZINDO ALIMENTOS COMO OS PRADOS CAPITULO 3 COMO APROVEITAREMOS A ENERGIA? LUZ NA VIDA: ABSORVENDO ENERGIA COMO UMA FOLHA CAPITULO 4 COMO FABRICAREMOS NOSSOS PRODUTOS? ADAPTANDO A FORMA A FUNCAO: TECENDO FIBRAS COMO AS ARANHAS CAPITULO 5 COMO NOS CURAREMOS? ESPECIALISTAS EM NOSSO MEIO: DESCOBRINDO MEIOS DE CURA COMO, OS CHIMPANZES CAPITULO 6 COMO ARMAZENAREMOS O QUE APRENDERMOS? DANGA COM AS MOLECULAS: COMPUTANDO COMO UMA CELULA CAPITULO 7 COMO ADMINISTRAREMOS OS NEGOCIOS? FECHANDO OS CIRCUITOS NO COMERCIO: ADMINISTRANDO NEGOCIOS COMO SE FOSSEM O CICLO VITAL DE UMA FLORESTA CAPITULO 8 PARA ONDE IREMOS? QUE AS PERGUNTAS JAMAIS CESSEM: EM DIRECAO A UM MUNDO BIOMIMETICO. LEITURAS BIO-INSPIRADAS 18 66 100 149 187 240 288 302 BI-O-MI-ME-TI-CA (Do grego bias, vida, ¢ mimesis, imitagao] 1. A natureza como modelo. A biomimética é uma nova ciéncia que estuda os modelos da natureza e depois imita-os ou inspira-se neles ou em seus processos para resolver 0s problemas humanos. Podemos citar, como exemplo, uma célula de energia solar inspirada numa folha. 2. A natureza como medida. A biomimética usa um padrao ecoldgico para ajuizar a “corregéo” das nossas inovagdes. Apés 3,8 bilhdes de anos de evolugao, a natureza aprendeu: O que funciona. O que ¢ apropriado. O que dura. 3. A natureza como mentora, A biomimética € uma nova forma de ver ¢ va- lorizar a natureza. Bla inaugura uma era cujas bases assentam no naquilo que po- demos extrair da natureza, mas no que podemos aprender com ela. IMITANDO A NATUREZA Precisamos buscar nossos padrées nos modelos da natureza. Devemos respeitar, com a humildade do sdbio, os limites da natureza e 0 mistério que jaz além | eles, admitindo que existe algo na ordem natural das coisas que, evidentemente, transcende toda a nossa competéncia. — VACLAV HAVEL, presidente da Republica Checa Nao € comum o fato de um homem usando um colar com dentes de onga ¢ pe- nas de aves sobre o peito ilustrar as paginas do The New Yorker, mas estes nao so tempos comuns. Enquanto eu escrevia este livro, Moi, lider indigena da tribo dos Huaorani cujo nome significa “sonho”, viajava para Washingron, D. C., com o in- tuito de defender suas terras amazénicas contra a exploracao da industria petrol{- fera. Ele rugia como uma onca-pintada nas audiéncias, ensinando & sala cheia de jornalistas entediados de onde emana o verdadeiro poder ¢ qual o verdadeiro sig- nificado de habitat, Enquanto isso, no coragao dos Estados Unidos, dois livros sobre povos indf- genas tornavam-se best-sellers comentadissimos, para grande surpresa de seus edi- tores. Ambos eram sobre ocidentais cujas vidas so transformadas para sempre pe- los sdbios ensinamentos das sociedades pré-industriais. O que esté acontecendo aqui? Na minha opinifio, esse Homo industrialis, ten- do atingido o limite da tolerincia da natureza, esté vendo seu espectro na parede, juntamente com o espectro de rinocerontes, condores, peixes-bois, cipripédios outras espécies que ele esté levando consigo para o timulo. Abalado por essa pers- pectiva, ele, nds, estamos sedentos de informagoes sobre como viver sadia e auto- sustentavelmente na Terra, 10 4 BIOMIMETICA A boa nova é que essa sabedoria esté em toda parte; nfo apenas entre os po- vos indigenas, mas também nas espécies que existem na Terra hd muito mais tem- po que os seres humanos. Se a idade da Terra fosse 0 equivalente a um ano do nos- so calendério o dia de hoje um fdlego de tempo antes da meia-noite da véspera de Ano-Novo, terfamos aparecido sobre a face do mundo hd meros 15 minutos, ¢ toda a nossa histéria ter-se-ia passado nos tiltimos 60 segundos. Felizmente, nos- sos parceiros planetérios ~ a fantéstica cadeia de plantas, animais ¢ micrdbios -, tém-se aperfeigoado pacientemente desde marco, durante incriveis 3,8 bilhdes de anos, desde a primeira bactéria. Neste interim, a vida aprendeu a voar, a circunavegar o globo, a viver nas profundezas dos oceanos e no topo das montanhas mais altas, a produzir substin- cias miraculosas, a iluminar a noite, a armazenar a energia solar ¢ a desenvolver um cérebro pensante. Coletivamente, organismos conseguiram transformar rocha € mar num lar de vida aconchegante, com temperaturas estéveis e ciclos que transcorrem suavemente. Em suma, os seres vivos tém feito tudo o que desejamos fazer, sem consumir vorazmente combustivel fossil, poluir 0 planeta ou por em risco o seu futuro. Que modelos mais primorosos poderia haver? ECOINVENCOES Nestas paginas, vocé conhecera homens ¢ mulheres que esto estudando as obras-primas da natureza ~ fotossintese, automontagem', selecio natural, ecossis- temas auto-sustentaveis, olhos, ouvidos, peles, conchas, neurdnios, terapias natu- rais € outras coisas mais ~, as quais eles copiam e usam para criar processos para solucionar nossos problemas. Eu chamo essa busca de biomimética — a imitagio consciente da genialidade da vida. Inovacao inspirada pela natureza. Numa sociedade acostumada a dominar ou “melhorat” a natureza, essa res- peitosa imitagdo ¢ uma abordagem inteiramente nova, uma verdadeira revoluio. rentemente da Revolusio Industrial, a Revolugao Biomimética inaugura uma era cujas bases assentam nao naquilo que podemos extrair da natureza, mas no que podemos aprender com ela, Conforme voce ver, “fazendo as coisas & maneira da natureza” temos a pos- sibilidade de mudar a forma pela qual produzimos alimentos, fabricamos produ- tos, aproveitamos energia, curamo-nos, armazenamos informasées ¢ administra- mos os nossos negécios. Num mundo biomimético, nossos processos de fabricagao seriam os mes- mos empregados pelos animais ¢ pelas plantas, usando a luz do sol ¢ compostos simples para produzir fibras, ceramicas, plisticos ¢ produtos quimicos totalmen- 1. Em inglés, selfassembly. (N.T) IMITANDO.A NATUREZA 4 11 te biodegraddveis. Nossas fazendas, seguindo 0 modelo dos processos vitais dos campos, seriam autofertilizantes e resistenves a pragas. Para produzir novas drogas ou novos tipos de alimentos, estudarfamos animais ¢ insetos que tém usado plan- tas como fontes vitais ha milhdes de anos para se manter saudaveis ¢ alimentados. Até mesmo a informatica seguiria o exemplo da natureza, com programas de com- putador que “desenvolvessem” solugdes ¢ computadores ¢ equipamentos de infor- mética que usassem o paradigma da chave e da fechadura para tornar vidvel a com- putagao pela combinagao est¢rica de moléculas.? Em cada caso, a natureza forneceria os modelos: células solares copiadas da estrutura das folhas, fibras de aco ao feitio dos fios tecidos por aranhas, ceramicas inquebraveis desenvolvidas com base na madrepérola, a cura do cancer gragas a0 estudo da doenga em chimpanzés, cereais perenes de bidtipo inspirado nas gram{- neas, computadores que emitissem sinais como as células e uma economia de mer- cado que se movimentasse com base nas ligdes aprendidas com os ciclos vitais das sequéias, dos recifes de coral e das florestas de carvalho-hicéria. Os biomimeticistas estao descobrindo o que funciona na natureza ¢, mais importante que isso, 0 que dura. Depois de 3,8 bilhoes de anos de pesquisas ¢ de- senvolvimento, os fracassados se tornaram fésseis, ¢ 0 que nos rodeia é fruto do segredo da sobrevivéncia. Quanto mais o nosso mundo se parecer com a natureza e funcionar como ela, mais probabilidade teremos de ser aceitos nesse lar que € nosso, mas nao exclusivamente nosso. Isso, logicamente, nao ¢ novidade para os indios Huaorani. Praticamente, to- das as culturas indigenas que sobreviveram sem destruir seus ninhos reconhece- ram que a natureza é sbia e tm tido a humildade de pedir orientacéo a ursos, lo- bos, corvos, sequéias. E cles se perguntam por que nao fazemos o mesmo. Alguns anos atrés, comecei a me fazer a mesma pergunta, Nestes trezentos anos de cién- cia ocidental, alguém foi capaz de ver 0 que os Huaorani véem? COMO DESCOBRI A BIOMIMETICA Minha formacio ¢ de ciéncia aplicada — engenhatia florestal -, reforgada por cursos de botinica, geologia, hidrologia, vida selvagem, patologia e desenvol- vimento vegetal. Principalmente por este tiltimo. Que eu me lembre, relagses de cooperacio, ciclos de feedback auto-reguliveis ¢ interligacao profunda nao eram assuntos que precisdssemos saber para prestar exames, Nos moles reducionistas, estudavamos cada parte da floresta separadamente, raras vezes refletindo que uma floresta de pinheiros ¢ espruces possa resultar em algo mais que a soma de suas 2. As “fechaduras”, ou biomacromoléculas, funcionam como receptores celulares extremamente sen- siveis, capazes de reconhecer as “chaves”, ou moléculas de espécies endégenas ¢ exégenas que apre- sentam atividade biolégica. (N.T.) 12_A BIOMIMETICA partes, ou que a sabedoria possa estar no todo, Nao havia laboratérios para aus- cultar a tetra ou emular as formas pelas quais as comunidades naturais se desen- volviam ¢ prosperavam. Seguiamos uma linha de gerenciamento de nossos em- preendimentos agricolas centrada no fator humano, supondo que a forma pela qual a natureza administra seus biomas ou seus ecossistemas nao tinha nada de va- lioso a nos ensinar. Somente quando comecei a escrever livros sobre habitats e 0 comportamen- to da vida selvagem é que passei a ver onde estao as verdadeiras ligdes: nas formas primorosas pelas quais os organismos se adaptam a0 meio e uns aos outros. Essa harmonia perfeita foi uma fonte constante de jubilosa satisfagao para mim, bem como uma li¢ao. Ao ver que os animais se adaptam perfeitamente aos seus lares, comecei'a perceber quanto nés administradores haviamos nos distanciado dos nossos. Apesar de enfrentarmos os mesmos desafios fisicos que todos os seres vi- vos enfrentam ~a luta para obter alimento, égua, espago e abrigo num habirat fi- nito -, tentévamos vencer esses desafios apenas por meio da inteligéncia humana. As ligées inerentes & natureza, estratégias criadas e aprimoradas 20 longo de bi- Ihdes de anos, continuavam a ser curiosidades cientificas, divorciadas dos interes- ses de nossas vidas. Mas ese eu voltasse para a escola agora? Encontraria pesquisadores que esti- vessem estudando organismos ¢ ecossistemas para obter inspiragéo de como viver feliz ¢ inteligentemente na Terra? Eu poderia trabalhar com inventores ou enge- nheiros que estivessem compulsando textos de biologia & procura de idéias? Ha- veria alguém, hoje, que considerasse organismos ¢ sistemas naturais nossos maio- res mestres? Felizmente, encontrei nao um, mas muitos biomimeticistas. Sao pessoas fas- cinantes, trabalhando nos limites de suas disciplinas, nas férteis raias dos variados campos da inteligéncia, Onde a ecologia encontra a agricultura, a medicina, a ci€ncia dos materiais, a energia, a informatica e 0 comércio, eles esto aprenden- do que hé mais a descobrir do que a inventar. Eles sabem que a natureza, criativa por necessidade, jd resolveu os problemas que estamos tentando resolver. Nosso desafio é aproveitar essas idéias testadas pelo tempo e reproduzi-las em nossas pré- prias vidas. Assim que conheci os biomimeticistas, fiquei impressionada, mas também surpresa com o fato de nfo haver ainda nenhum movimento nesse sentido, ne- nhum grupo de pesquisa nem curso universitério de biomimética. Isso me pare- ceu estranho, pois, toda vez que mencionava meu trabalho, as pessoas reagiam in- variavelmente com entusiasmo, mesclado de uma espécie de alivio ao ouvir falar de uma idéia que faz. tanto sentido. A biomimética tem a natureza de um meme de sucesso, ou seja, uma idéia que se espalhard por toda a nossa cultura como um gene adaptative. Uma das razSes que me levou a escrever este livro foi o desejo de difundir esse meme ¢ transforms-lo no alvo das nossas pesquisas no novo milénio. IMITANDO A NATUREZA 4 13 Vejo os sinais de inovagées fundamentadas nos modelos ¢ processos da na- tureza em todos os lugares a que vou atualmente. Do Velcro (feito com base nos arpéus das sementes) & medicina holistica, as pessoas esto confiando na sabedo- ria insondével das solugdes naturais. Todavia, pergunto: Por que agora? Por quea nossa cultura jamais se apressou a imitar aquilo que funciona? Por que nos esta- mos tornando os pupilos da natureza tardiamente? A TEMPESTADE ANTES DA BONANCA Embora parega bastante sensato imitar os nossos ancestrais, temos seguido uma diregio intciramente oposta & deles, impelidos a conquistar a nossa indepen- déricia. Nossa jornada comegou hé 10 mil anos, com a Revolugao Agricola, quan- do nos libertamos das vicissitudes da caca ¢ da coleta e aprendemos a armazenar os nossos préprios alimentos. Isso se ampliou com a Revolucéo Cientifica, quando aprendemos, nas palavras de Francis Bacon, a “torturar a natureza para arrancar seus segredos”. Por fim, quando as chaminés da Revolugao Industrial entraram em cena, as maquinas substitufram os miisculos ¢ aprendemos a revirar 0 mundo. ‘Mas essas revolugGes foram apenas uma espécie de aquecimento para a nos- sa fuga da drbita terrestre — as Revolugdes da Petroquimica ¢ da Engenharia Ge- nética. Agora que conseguimos sintetizar o que precisamos ¢ reordenar 0 alfabeto genético ao nosso gosto, conquistamos 0 que consideramos a nossa autonomia. Presos 20 nosso “rolo compressor” tecnolégico, imaginamo-nos deuses, muito dis- tantes de casa. Na verdade, no escapamos da forca gravitacional da vida. Ainda estamos sob o jugo das leis ecolégicas, assim como qualquer outra forma de vida. A mais irrevogivel dessas leis diz que uma espécie nao pode ocupar tim nicho que se apro- pric de todos os recursos naturais ~ é preciso que haja alguma divisio. Qualquer espécie que ignore essa lei para promover sua propria expansio acaba destruindo a sua comunidade. Infelizmente, esse € 0 trégico caminho que temos trilhado. Co- megamos como uma pequena populaczo num mundo imenso € nos expandimos em ntimero ¢ territério até sairmos pelo ladrao, Existem muitos de nés ¢ nossos habitos so insustentaveis. Mas acredito, assim como muitos que me antecederam, que isto ¢ apenas a tempestade antes da bonanca. As novas ciéncias do caos e da complexidade nos dizem que um sistema que esté longe de ser estavel é um sistema amadurecido pa- ra sofrer mudancas. O homem acredita que a prépria evolucao ocorreu aos tran- cos ¢ barrancos, estagnando-se durante milhdes de anos e depois saltando para um nivel inteiramente novo de criatividade depois da crise. Alcangar 0s nossos limites, portanto, se admitirmos que eles existam, pode ser uma oportunidade para passarmos a uma nova fase, em que nos adaptemos & ‘Terra, e nao cla a nés. As mudancas que fizermos agora, por maiores que sejam, 14_A_BIOMIMETICA podem ser o micleo dessa nova realidade. Minha esperanga é que, quando sairmos desta cortina de fumaga, tenhamos invertido a diresao do avango desse carro de Jagarnate* e, em vez de deixarmos a Terra, estejamos seguindo 0 caminho de ca- sa, deixando a natureza guiar nosso pouso, como a orquidea atrai para si aabelha. GENIALIDADE IN VIVO Talvez seja uma espécie de peso na consciéncia o que esté fazendo com que nos voltemos para a terra, dizem os biomimeticistas, mas a massa critica de novas informagoes das cigncias naturais est nos dando um empurtio igualmente impor- tante. Nossos conhecimentos fragmentarios de biologia duplicam-se a cada cinco anos, num crescente que se transforma, de um quadro pontilhista, num todo reco- nhecivel. Igualmente sem precedentes ¢ 0 alcance da nossa visio: novos alcances ¢ satélites facultam-nos a obseryagao dos padrées da natureza, do intersticio celular as vastidées interestelares. Podemos sondar tim rantinculo com os olhos de um éca- ro, pegar carona na viagem dos elétrons da fotossintese, sentir a vibragio de um neurdnio em atividade ou assistir, em cores, 20 nascimento de uma estrela. Pode- mos ver, mais claramente do que nunca, como a natureza realiza os seus milagres. Quando nos aprofundamos assim nas estruturas da natureza, ofegamos, as- sombrados, e, positivamente, nossas ilusdes se desfazem. Percebemos que todas as nossas invengGes ja existem na natureza sob uma forma mais clegante ea um pre- go bem menor para o planeta. Nossas vigas ¢ escoras jé esto nas folhas do neni- far e nas hastes do bambu. Nossos sistemas de aquecimento central ¢ ar-condicio- nado sao superados pelos estaveis 30° centigrados do cupinzeiro. Nosso radar mais sofisticado é surdo se comparado ao sistema de captacéo de freqtiéncias do mor- cego. E nossos “materiais inteligentes” nao chegam aos pés da pele do golfinho ou da probéscide da borboleta. Até mesmo a roda, que sempre consideramos criagao do homem, foi encontrada no miniscule rotor que impele o flagelo da bactéria mais antiga do mundo. Humilhantes também sio as multidées de organismos realizando, despreo- cupadamente, faganhas com as quais podemos apenas sonhat: Algas biolumines- centes combinam substincias para abastecer suas lanternas orginicas. Peixes e rs das regides drticas congelam-se e tornam a surgir para a vida, depois de terem pro- tegido seus érgios dos danos causados pelo gelo, Ursos-patdos hibernam durante invernos inteiros sem se envenenarem com a prépria uréia, enquanto seus primos polares permanecem ativos, protegidos por uma transparente camada de pélos que Ihes recobrem a pele como as vidracas de uma estufa. Camaledes ¢ sibas ocultam- se sem se mover, alterando a aparéncia de sua pele para misturar-se instantanea- mente ao ambiente & sua volta. Abelhas, tartarugas e pdssaros locomovem-se sem * Nome hindu que significa “protetor do mundo”, divindade comparada a Vishnu. Em sua home- ‘nagem, uma carruagem imensa leva os figis no dia da sua festa anual. IMITANDO A NATUREZA 4 15 mapas, 20 passo que baleias e pingiiins mergulham no fundo das 4guas sem equi- pamento de mergulho. Como fazem isso? Como as libélulas excedem a capacida- de de manobras de nossos melhores helicépteros? Como os beija-flores cruzam 0 golfo do México com o equivalente a 3 mililitros de combustfvel? Como.as for- migas conseguem carregar 0 equivalente a centenas de quilos em acirrada disputa através da floresta? Essas faganhas individuais empalidecem, no entanto, quando consideramos a intricada interdependéncia vital que caracteriza sistemas de vida inteiros, como os ecossistemas dos manguezais ou das florestas de saguaro. Juntos como dangari- nos num harmonioso balé, os seres vives mantém. um equilfbrio dinamico, utili- zando 0s recursos naturais sem desperdicio, Apés décadas de confivel estudo, eco- logistas comegaram a sondar semelhangas ocultas entre muitos sistemas de vida incer-relacionados. Com base em seus apontamentos, podemos comegar a relacio- nar uma série de leis, estratégias e princ{pios da natureza que ressaltam de todos 0s capitulos deste livro: ‘A natureza é movida a energia solar. A natureza usa apenas a energia de que precisa. A natureza adapta a forma 3 fungio. A natureza récicla tudo. A natureza recompensa a cooperasio. A natureza confia na diversidade. A natureza exige especializacao geograficamente localizada. A natureza inibe excessos em seu scio. A natureza explora o poder dos préprios limites. UMA PALAVRA DE CAUTELA Este ultimo principio, “exploracdo do poder dos préprios limites”, é talvex muito obscuro para nés, pois nds, humanos, vemos os limites como um desafio universal, algo a ser superado de modo que possamos continuar a nossa expansio. Outros habitantes da Terra levam seus limites mais a s¢rio, por saber que devem yi- ver dentro de uma variagao de temperatura mais rigida, produzir alimentos de acor- do com a capacidade produtiva da terra e manter um equilfbrio energético do qual nfo se pode abusar. Dentro dessas linhas, a vida exibe suas cores com pujanga, usan- do 0s préprios limites como fonte de poder, um mecanismo de centralizagao de for- gas. Como a natureza exibe seu encanto em um espaco to pequeno, suas criages sao como poemas que transmitem apenas aquilo que tencionam dizet. Estudando esses poemas dia apés dia, os biomimeticistas tomam-se de pro- fundo respeito, que beira a reveréncia. Quando passam a ver aquilo de que a na- tureza é realmente capaz, inovagées inspiradas nela parecem mios estendidas pa- ra fora do abismo, Porém, quando lhes estendermos as nossas, nao consigo deixar 16 A _BIOMIMETICA de me perguntar como usaremos esses novos modelos e processos: O que tornaré a Revolucio Biomimética diferente da Revolugio Industrial? Quem pode afirmar que simplesmente no roubaremos os raios da natureza ¢’os usaremos na atual campanha contra a vida? Besdandos uma pesoch paciinsinfandadas/AailrimasinvengSorbiamimésiex realmente famosa foi a do ayido (os irmaos Wright observavam os abutres para aprender as nuances da resisténcia ao ar ¢ da forca de sustentacao). Voamnos como um passaro pela primeira vez em 1903 ¢, por volta de 1914, estavamos langando bombas do céu. Talvez, afinal, nao seja uma transformacio tecnolégica que nos levard a um futuro de criagées biomimeéticas, mas uma mudanga de sentimentos, uma humil- dade que nos permita ficar atentos as ligdes da natureza. Conforme pontifica 0 es- critor Bill McKibben, nossos instrumentos si sempre empregados a servigo de alguma filosofia ou ideologia. Se quisermos usar nossos instrumentos a servigo da nossa adaptagao & Terra, a nossa relagao fundamental com a natureza ~ ¢ até mes- mo a histéria que contamos a nés mesmos sobre quem somos no universo ~ terd de mudar. A idcologia que permitia que nos expandissemos além de nossos limites nos ensinava que 0 mundo foi posto aqui exclusivamente para 0 nosso uso. Eramos, afinal de contas, 0 dpice da evolugio, a pidce de résistance na pitamide da vida. Mark Twain ria-se desse conceito. Em seu maravilhoso Letters to the Earth, cle afir- ma que alegar que somos superiores ao restante da criacdo é como dizer que a'Tor- re Eiffel foi construida para que a tinta no topo tivesse um lugar para assentar-se. Isso é um absurdo, mas ainda pensamos assim. Na regio montanhosa do oeste de Montana, onde moro, estd havendo uma enorme controvérsia em torno da aprovagao ou nao da idéia de repovoar de ursos- pardos as amplidées naturais que se estendem diante de nossas portas. E uma questo que leva as pessoas a recolher seus filhos ¢ pegar suas armas. As pessoas contrérias ao repovoamento dizem que nao querem ter de tomar “precauc6es” quando sairem em excursoes ou passcios a cavalo, ou seja, nao querem ter medo de virar refeigao de urso. Deixando o trono de reis da selva, elas tetiam de aceitar fazer parte da cadeia alimentar de outro animal, uma forma de vida num planeta que pode, por si mesmo, ser uma forma de vida. Q problema é que, se quisermos continuar nas boas gracas de Gaia, é exata- mente assim que nos devemos considerar, um voro num parlamento de 30 mi- IhGes (talvez 100 milhées), uma espécie entre outras espécies. Embora sejamos di- ferentes e tenhamos tido um perfodo de sorte espetacular, néo somos necessariamente os grandes sobreviventes da longa jornada, tampouco somos imunes 4 selesao natural. Conforme observa a antropéloga Loren Eisley, todas as antigas cidades-estados cafram e, embora “os cagadores de pedras preciosas ¢ ou- ro tenham partido hé muito tempo, somente o urso se mantém de pé, € 0s leopar- IMITANOO A NATUREZA A 17 dos matam a sede nos poucos lagos que restaram”. Os verdadciros sobreviventes so os habitances da Terra que viveram milhées de anos sem esgotar seu capital eco- Ugico, de cuja base toda abundancia flui. NOSTOS ERDA: DEVOLVENDO O LAR A TERRA Acredito que enfrentamos 0 presente dilema nao porque nao existam respos- tas, mas porque simplesmente nés nao as temos procurado no lugar certo. Moi, apés deixar Washington, D. C., onde conheceu 0 banho quente, o The Washing- zon Post ¢ 0 beisebol televisado, disse, simplesmente: “Nao hé muito o que apren- der na cidade. E hora de caminhar pela floresta outra vez.” Esté na hora, como civilizagao, de voltarmos a caminhar na floresta. Assim que passarmos a ver a natureza como mentora, nosso relacionamento com a vida do mundo vai mudar. A gratidio modera a gandncia e, nas palavras de Wes Jackson, bidlogo especializado em plantas, “a idéia de recursos se torna obscena”. Percebemos que a tinica forma de continuar a aprender com a natureza é preservar a naturalida- de dos setes ¢ das coisas, que sao a fonte das boas idéias, Nesta altura da historia, em que vislumbramos a possibilidade real de perdermos um quarto de todas as espécies vivas nos préximos trinta anos, a biomimeética torna-se mais que uma simples ma- neira de ver a natureza, Ela se toffia uma cotrida e um meio de salvacio. E quase meia-noite, ¢ a esfera avanga — bola rompedora langada contra a’Tor- re Eiffel de vida que se contorce, adeja ¢ revolutcia. Mas, em verdade, este é um livro de esperangas. Ao mesmo tempo que a ciéncia ecoldgica esta nos mostrando a extensao da nossa insensatez, estd revelando também o padrao da sabedoria da natureza refletido na vida como um todo. Com a lideranga dos biomimeticistas que vocé conhecerd nos capftulos que se seguem, nutro a esperanca de que tenha- mos a inteliggncia, a humildade ¢ a espiritualidade necessérias para deter essa es- fera e nos sentarmos na primeira fileira da sala de aula da natureza. Desta vez, viemos nao para aprender algo sobre a natureza, para que possamos cengané-la ou controlé-la, mas para aprender algo com cla, de modo que possamos nos adaptar, de uma vez por todas para o nosso bem, & vida na Terra, da qual sur- gimos, Temos um milhao de perguntas, Como deverfamos produzir alimentos? Como deveriamos fabricar nossos materiais? Como deverfamos abastecer-nos de energia, curar-nos, armazenar o que aprendemos? Como deverfamos realizar negs- cios de uma forma que respeite a natureza? A medida que formos descobrindo aqui- Jo que'a natuteza jd sabe, reconheceremos a sensagao de rugit como uma onga— de fazet parte; ¢ nao de estarmos 4 parte; da genialidade que nos rodeia. Que comecem as ligdes de vida COMO NOS ALIMENTAREMOS? Os povos indigenas que habitavam estas terras muito antes de nbs adoravam «4 Terra; eles foram educados por ela. Eles ndo precisavam de excolas e igrejas— todo o seu mundo era um sé. = MICHAEL ABLEMAN, fazendeiro organico, Goleta, Califenia Como reagir ao fato de que somes mais ignorantes do que instruidos? Adotando as disposigées da vida estabelecidas na longo processo evolutivo e tentando imitd-las, sempre conscientes de que a inteligéncia humana deve continuar subordinada i sabedoria da natureza, — WES JACKSON, diretor do The Land Institute ‘Certa vee, participei de uma reunio de famflia de um amigo em Pipestone, Min- nesota, uma comunidade rural situada bem na extremidade sudoeste do Estado. Fileiras uniformes de trigo avangavam até as portas do Kingdom Hall, contorna- vam o galpae metilico semicircular ¢ a fila de caminhonetes ¢ se encontrayam no- vamente, estendendo-se por quilometros adiante. LA dentro, mal havfamos tocado na salada Jell-O, quando comegou a circu- lar pelo grande salio a noticia da aproximagao de uma tempestade. Cabecas vol- taram-se para as portas do lado sul ¢ homens de pernas compridas aproximaram- se dos bancos que se alinhayam ao longo das mesas. Eles se curvavam para cochichar no ouvido de outros homens, que se desculpavam, se levantavam pas- sando as pernas por cima dos bancos ¢ safam. Através da porta, podfamos ver um céu de um tom pliimbeo, um céu que desabaria sobre nossas cabecas se pudésse- mos tocé-lo, COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 19 Saf dali e fui para o estacionamento, onde homens em suas roupas domin- guciras encostados em caminhdes cobertos de poeira da mesma cor do chao obser- vavam, silenciosos, a tempestade se aproximar, Alguns acenderam cigarros diante do avango das nuvens tempestuosas ¢ agitadas, como uma cortina de fumaga de um incéndio descontrolado. ~E granizo — disse um deles, por fim. Os outros jé estavam mascando as guimbas do cigarro ¢ subindo em seus Dodges e Chevrolets, preparando-se para juntar-sc 4 caravana. Sem dizet uma pa- lavra, as criangas recolhiam os talheres enquanto suas maes empilhavam os pratos retiravam rapidamente as toalhas das mesas. O ar festivo tinha dado lugar a um ambiente fiinebre, ¢ tive a impresso de que aquela no era a primeira vez. Essa tempestade foi uma das mais fortes chuvas de granizo a atingir 0 sudoes- te de Minnesota em uma década. Aquilo que percebi entao cu jé sabia intimamen- te. Os fazendeiros tém de proteger suas plantagées de coisas que nao podem con- ttolar. As propriedades rurais do sudoeste de Minnesota sio gigantescas ¢, como 05 campos sao cultivados com uma tinica espécie ¢ variedade ¢ sob um sistema de muda tinica, as perdas, quando ocorrem, sao catastréficas. Ao colocarem os ovos em uma tinica cesta, os fazendeiros ficam & mercé da narureza, presos num cala- mitoso cipoal de secas, enchentes, pragas ¢ erosio do solo, Se alguém sabe o que ser expulso do Jardim do Eden, sao os fazendeiros. Mas é assombroso observar uma pastagem natural - um prado — sob o mes- mo tipo de agressio, Parte das gramineas sofre, mas a maioria sobrevive, gracas a um sistema de rafzes perenes que assegura o seu renascimento no ano seguinte. Es- sas plantas parecem mais resistentes num ambiente agreste. Quando observamos um prado, nao vemos perdas completas de nada — nao vemos crosio por umida- de nem epidemias devastadoras de pragas. Nao vemos necessidade de usar fertili- zantes nem pesticidas. Vemos um sistema que funciona com 0 auxilio do sol e da chuva, ano apés ano, sem que ninguém precise cultivar nem semear o solo, Ele ndo absorve 4gua em excesso nem produz substancias prejudiciais. Ele recicla to- dos os seus nutrientes; conserva a égua; produz abundantemente. E, como esté re- pleto de informagées genéticas e conhecimento especifico das caracteristicas da re- gido de que se compée, ele se adapta. E se reformulissemos os nossos processos de cultivo usando plantas que ti- vessem esse mesmo tipo de auto-suficiéncia, essa capacidade para conviver amis- tosamente com outras espécies do campo, manter-se em harmonia com o meio, trabalhar o solo ¢ enfrentar pragas com seguranga? Como seria a agricultura? Bem, isso depende de onde vocé vive, Wes Jackson acha que seria pareci- da com um prado. Jack Ewel acha que seria como uma floresta tropical. Gary Paul Nabhan acha que se pareceria com um deserto inundado pot uma enchen- te. Se estivesse vivo, J. Russell Smith diria que seria uma floresta de madeira-de- 20 4 BIOMIMETICA lei da Nova Inglaterra. O ponto em comum é que a agricultura de determinada regio se bascaria nas caracteristicas da vegetacao que crescia no local antes da stia ocupagio pelo homem. Se os alimentos fossem cultivados nos padrées das comunidades de vegetagio natural, a agricultura imitaria 0 mais posstvel a es- crutura ¢ funcionalidade de um ecossistema natural € maduro. Se passdssemos pela nossa agulha as raizes de um sistema tao estével assim, suturarfamos uma das mais profundas feridas do planeta — a que aberta pela agricultura de lavra- gem da terra. Em muitos aspectos, esse movimento a favor de uma “agricultura & imagem e semelhanga da natureza” € 0 mais radical deste livro, e talvez 0 mais importan- te. Como qualquer economista ditia, nao se pode comer engenhocas. Alimento é fundamental, uma necessidade que sempre teremos e, apesar das pilulas alimenti- cias que a ficgio cientifica propée, nao hi nada que o substitua. Anos depois dessa tempestade de granizo, encontro-me novamente numa regizo campestre, desta vez no Kansas, a caminho do principal enclave de pesquisadores agrénomos do pafs que esto tentando imitar os padrdes da natureza. Enquanto , vejo campos de trigo muito bem demarcados em todas as diregbes, esten- dendo-se até onde a vista alcanga. Do alto, devem dar a impressio de que foram feitos com uma mquina de corte e tintura — fileiras retilineas com alternancia de verde e castanho claro, formando no topo uma angulosidade estranha aos seres vi- vos. O solo debaixo das hastes é perfeitamente visivel, revelando que a erva dani- nha foi destruida por produtos quimicos. Nada estranho tem permissao de cres- cer aqui; tudo 0 que nao seja trigo foi eliminado. Tudo 0 que sobrou da comunidade bidtica local é aproveitado ¢ adaptado para a obtencao de uma tinica estrela: a safta. Os campos parecem nimbados ¢ moldados pelo aspecto de eficiéncia das fabricas e, de quando em ver, vejo os sti- pervisores de producio, sentados nas altas cabines de tratores Big Bud, Modelo 747, checando seus seis monitores para ver 0 que esté acontecendo no solo. Seus vetculos, como vulcdes em erupsao, deixam para trés um rastro de fumaga da quei- ma de dleo diesel misturada com pocira. As colunas de fumaga me fazem lembrar de uma conversa que tive na Raval- li County Fair com um fazendeiro corcunda que tinha cultivado terras no Kansas durante a crise do Dust Bowl.’ Ele me falou de montes de terra tao altos que as yacas 08 usavam como rampas para pular as cercas ¢ fugir, 1. Regio centro-sul dos Estados Unidos, que abrange estados como Oklahoma, cujos campos sofre- ram erosio eélica com os fortes ventos que sopraram ali na década de 1930. As tempestades de ven to tornaram dificil o cultivo de praticamente tudo muitos fazendeiros da regio empobreceram. Os problemas do Dust Bowl contributtam para o agravamento da Grande Depressio. (N.T.) COMO NOS ALIMENTAREMOS? A 21 — Isso aconteceu porque aramos uma terra que nao deveria ser arada — disse ele —, € 0 que perdemos naqueles ventos jamais recuperamos. As vezes, quando saio em meus passeios pelos sertées de Montana, custo a perceber que estou perdida. Quando percebo isso, tenho de refrear 0 panico que toma conta de mim e tentar pensar em como cheguei aquele local, lembrar dos pontos de referéncia. Somente assim, consigo achar o caminho de volta, Na agri- cultura, depois de estar perdido durante muito tempo, ¢ hora de sentar e pensar. COMO FOMOS PARAR NA ENRASCADA DA AGRICULTURA INDUSTRIAL Faz 10 mil anos que abrimos, pela primeira vez, 0 nosso solo rico e perfuma- do. Guardamos uma semente, plantamos ¢ exultamos quando ela germinou e de- senvolveu-se, para derramar seus frutos diretamente em nossas maos. Comemo- ramos a nossa libertagao do jogo da caga ¢ da coleta, produzimos grandes safras de cereais ¢ pusemes filhos no mundo. Quanto mais filhos faziamos, mais terras ti- nhamos de fazer produzit para alimentar a nossa prole. Comegamos entao a tra- balhar a terra cada vez mais intensamente, escalando encostas ¢ estendendo o cul- tivo da terra a lugares nos quais isso nao deveria ser feito, Embora tenhamos aumentado as nossas chances de ter uma despensa farta, acabamos naquilo que 0 ctiador de mudas Wes Jackson chama de “castigo por excesso de cuidado”. Quan- to mais domavamos ¢ protegiamos as nossas plantagdes, mais elas dependiam de nds para sobreviver. Agora, as nossas saftas estio de tal modo distanciadas do destemor adaprati- vo de suas ancestrais agrestes que nao conseguem arranjar-se sem nés ¢ as nossas transfiusdes petroquimicas de fertilizantes e pesticidas. Na busca por saftas cada vex maiores, suprimimos as suas defesas natas. Nés as isolamos da diversidade bié- tica, limitamos sua diversidade genética e exaurimos a riqueza do solo em que ve- getavam. Desses trés, afirmam os historiadores da agricultura, 0 revitamento do solo foi o nosso maior erro. O solo arado é essencialmente irrenovvel. Uma ver viti- mado pela erosio ou envenenado, pode levar milhares de anos para recuperar-se, Em vez de nos decidirmos por uma comunidade vegetal auto-suficiente, perene, que preservasse a riqueza do solo, optamos pelo uso agressivo de plantas anuais, 0 que exige sacrifiquemos 0 solo todos os anos. ‘Toda vez que lavramos a terra, empobrecemos 0 solo, reduzindo-Ihe parcial- mente a capacidade de produzir frutos. Nés desmontamos a sua estrutura com- plexa e destruimos o time dos sonhos de uma microfauna ¢ microflora que man- tém a sua coesio na forma de coldides, ou grumos, de solo e matéria organica. Essa estrutura é fundamental; cla proporciona canais de aeragio & feigio de uma rede de veias por todo o solo, permitindo que a agua desga as suas camadas mais pro- 22 4 BIOMIMETICA fandas. Os solos que sio muito revirados ou excessivamente compactados perdem 08 seus coldides ¢, com eles, os meios de reter gua. O ar seco resseca o solo ¢, quando 0s ventos sopram, os carros na cidade ficam cobertos por uma fina cama- dade poeira. 7 Quando a chuva atinge 0 solo compactado, nao consegue alcangar os quilé- metros de raizes sedentas como deveria. Em vez disso, ela para ali ¢ corre na for ma de lengéis de 4gua, rios ¢ regatos, escurecidos ou tintos do “sangue” fértil do solo, para o mar. Esse “sangue” ¢ 0 solo, o plasma vivo da Terra, que se desprende de seu seio a uma taxa que varia entre 5 ¢ 100 toneladas por acte ao ano — um pre- juizo enorme. Alguns campos de trigo de Palouse Prairie, em Washington, situa- da no lado vergonhoso dessa equacio, sao susceriveis & perda de 1 polegada de so- lo ardvel a cada 1,6 ano. Em Iowa, chega-se a perder até 210 litros de solo, levados para o mar, para cada 35 litros de milho produzido. O que sobra ¢ um pouco menos produtivo, bem como um pouco mais fino. ‘Atrés da parada para descanso, na Highway 7, invado um campo de trigo em Kan- sas e pego um punhado do solo plano, pulverizado e quimicamente tratado. J4 nao lembra a textura ¢ a aparéncia de uma broa de chocolate que os solos dos prados que softeram as primeiras lavragens deviam ter. Apresenta uma coloracao bege ¢ nfo se sente a umidade e a fertilidade que deveriam caracteriz4-lo — nao tem 0 cheiro resultante da combinagao da vida ¢ da morte. Os fungos que antes enros- cavam seus filamentos em radiculas para ampliar o alcance de seus objetivos, as comunidades de benéficos organismos do solo, as bactérias que fixavam o nitro génio atmosférico nos alimentos — estao todos reduzidos a uma coletividade es- quelética, a apenas uma sombra do que eram. Com os elos entre eles partidos, hi, naturalmente, menos “coesio”, menos da forga que resulta do fato de varias espé- cies trabalharem em comunhio biética, em beneficio de toda a comunidade. Os prados de “selos postais” € naturalmente férteis espalhados pelas Grandes Planicies nos dio um testemunho fragmentado do que um dia tivemos. Em seu elogiiente livto The Grassland, Richard Manning diz que esses vestigios sio como “pedestais esculpidos pelo arado”. De cima desses “pedestais”, antes nivelados com a terra, agora vocé tem de descer cerca de 1 metro para alcancar o solo cultivavel. Esse é 0 tamanho da nossa perda. Em outros lugares, a camada de solo ¢ tao fina que os nossos arados jd esto misturando-a com o subsolo, que nao tem a riqueza orginica do solo. A agricul- tura comercial remove ainda mais a matéria organica desses campos. Até mesmo em lugares em que o restolho, antes da semeadura, ¢ misturado com a terra na la- vragem para enriquecer o solo, os nutrientes geralmente so desperdicados, leva- dos por chuvas intensas antes que se possa ver um tinico broto. Com o passar dos anos, essas subtragGes do solo ¢ intempestivos tratamentos com nutrientes redu- zem a sua fertilidade, num processo que se poderia chamar de lenta esterilizacao da verdadeira galinha dos ovos de ouro da nossa nagao. “Durante um tinico sécu- COMO NOS ALIMENTAREMOS? A 23 lo de cultivo dos prados da América do Norte”, diz 0 ecologista Jon Piper em seu livro Farming in Natures Image, “perdemos um tergo de scu solo cultivavel ¢ até 50% de sua fertilidade original.” Parte da nossa perda pode ser atribufda & nossa obsessio por produgio, nos- sa avidez por transformar um empreendimento organico, baseado na natureza, numa fibrica: a agriculrura como mdquina. O escritor e fazendeiro de Kentucky Wendell Berry afirma que os europeus vieram para este continente com os olhos, mas nao com a viséo ~ nao conseguimos enxergar 0 valor do que estava a um pal- mo do nosso nariz, Comegamos a remover a vestimenta natural da terrae lhe im- pusemos um padrao da nossa prépria concepgao. Plantas exdticas em vez das na- tivas, plantas anuais em lugar das perenes, monoculturas em detrimento de policulturas, Esse desordenamento das pegas de um mosaico natural é para Wes Jackson, a definigao da nossa arrogincia ¢ da nossa presungao. Em vez de procurar orientagio na terra ¢ nos povos natives para obter infor- mages (o que nasce aqui € por qué?), emitimos ordens arbitrérias, com a expec- tativa de que as nossas fazendas cumprissem muitos compromissos, alguns dos quais no tinham nada que ver com a alimentagéo do nosso povo. © cultivo do trigo, por exemplo, foi incentivado para nos ajudar a vencer a Primeira Guerra Mundial. © continente europeu estava muito ocupado com os combates ¢, em muitos lugares, nio se fazia o cultivo da terra nem se colhiam os frutos do que se produzia. Para preencher esse vazio, movimentamos batalhdes de tratores ¢ ara- mos 0 solo da nossa terra até as Montanhas Rochosas, arrancando uma quantida- de maciga de vegetagao de prados virgens no que mais tarde seria chamado de The Great Plow-up, ou A Grande Aragem. Esse foi o fim de um movimento que comegara com os primeitos fazendei- ros a usar arados com aiveca de ago, as tinicas ferramentas fortes o bastante para romper o emaranhado das raizes das pradarias, algumas robustas como os bracos de um fazendeiro. Foi um trabalho considerado muito drduo, mas herdico, pelo menos pelos colonos brancos. Consta que um indio Sioux que observava um fa- zendeito revirar pata o céu as raizes da vegetagéo de um prado mencou a cabeca negativamente e disse: “Lado errado.” Confundindo sabedoria com mentalidade retrégrada, os colonos riam quando recontavam a histéria, ignorando os tiros de adverténcia que eram disparados na forma dos estalidos de cada raiz que rompiam. Depois de termos revirado os prados, estévamos amadurecidos para sofrer 0 desastre de 1930, de seca intensa € ventos implacaveis, denominado Dust Bowl. Ele se intensificou tanto, que 0s elementos de nosso solo comegaram a aparecer no conyés de navios a 100 milhas de distancia de uma faixa do litoral do Adanti- co. Um dia, em 1935, enquanto os funcionérios do governo em Washington, D. C., mostravam-se indecisos quanto ao que fazer, uma nuvem de poeira do so- lo das Grandes Planicies entrou fortuitamente na cidade. O Congresso, amedron- tado, tossiu, lactimejou e, no final, criowo Servico de Conservagao do Solo (SCS), 24 4 BIOMIMETICA um 6rgio que persuadia ¢ até mesmo pagava aos fazendeiros para que conservas- sem 0 solo de suas terras, Os funcionarios do SCS eram evangélicos, ¢ os fazen deiros mostratam-se dispostos a arrepender-se. Juntos, foram bem-sucedidos no esforo de recobrir as nossas terras mais suscetiveis & erosdo com gramineas pere- nes ¢ fixadoras de solo. Todavia, a memoria institucional mostrou-se voldtil na mente do povo e quando outra guerra mundial veio ¢ passou, olhamos em volta e nos perguntamos por que nao estévamos “usando” cada centimetro desse nosso celeiro natural. Earl Butz, ministro da Agricultura no governo de Richard Nixon, ecoou a arrogincia ©.a presungio da nagao exortando 0s fazendeiros a lavrarem a terra de “cerca acer- ca’. Esquecidos das ligdes do Dust Bowl,-os fazendeiros aterraram bacias fluviais e derrubaram protegées naturais contra o vento, gastando milhdes de délares do governo para desfazer aquilo com que o SCS tinha gasto milhoes de délares para implantar, Agora, tinhamos acres de tela na qual pintar 0 novo rosto da agricultura in- dustrializada: a Revolugao Verde. No que foi anunciado como a solugao para fo- me do mundo, os criadores de mudas apresentaram novos hibridos de plantas que prometiam safras excepcionais, Mas, por causa de sua natureza hibrida, essas no- vas plantas nao conseguiam passar suas caracter(sticas genéticas para a geracio se- guinte. Ainda assim, fazendeiros em todo o mundo abandonaram a tradigao (eco- logicamente prudente) de separar as melhores sementes ¢ acrescentaram um novo item ao seu livro razio: a aquisigao de sementes hibridas. ‘A homogeneizagao dos campos espalhou-se tapidamente. Vatiedades de es- pécies que tinham sido usadas porque se haviam safdo bem numa encosta volta- da para o sul ou que conseguiram crescer nas regies do Cinturao da Banana ou do Little Arctic de um estado foram abandonadas. Em lugares como a India, on- de antes havia 30 mil variedades de arroz talhadas para a terra, sua substicuigéo por uma supervariedade varreu dali todo conhecimento botinico ¢ séculos de de- senyolvimento de espécies num tinico golpe, ‘Tardiamente, os fazendeiros perceberam que colheitas ficeis eram apenas promessa, nao uma garantia, Em sua parte do mundo, dizia o contrato em letras mitidas, talvez vocé tenha de trabalhar um pouico mais para obter a producio anunciada — com mais dgua, um pouco mais de aragem do solo, mais protesao contra pragas, mais fettilizante artificial. Mas, assim que o fazendeiro ao lado mor- diaa isca € comegava a cultivar essas variedades ditas de alto rendimento, vocé ti- nha de fazer. 6 mesmo para nao ficar para tris, Juntos, como agua em queda de uma grande cachoeira, mudamos para um sistema de agricultura que imitava a in- dustria, € nfo a natureza. Em busca da economia de mercado, especialistas aconselhavam os fazendei- tos tornar-se grandes ou sait do mercado. A mecanizacio lhes permitia “cultivar” campos maiores com menos trabalho, mas isso significava investimentos vultosos: COMO NOS ALIMENTAREMOS? A 25 mais terras, equipamentos maiores, E dividas gigantescas. De repente, para 0 pe- queno agricultor, nao havia mais espago para dangar 2 margem ou para cuidar de suas terras da forma que quisesse. Quando se tem uma divida de 100 mil délares da compra de uma colheitadeira, nao se pode dar-se ao luxo de passar a cultivar al- fafa durante um ano para descansar a terra. Para manter as dividas sob controle e habilitar-se a obtengao de subsidios do governo, ¢ necessério produzit muito. Passamos rapidamente, pois, da produgao de alimentos para subsisténcia pré- pria & produgao de tantos alimentos, que eles se tornaram excedentes ~ item de ex- portacao ¢ instrumento politico. A fazenda tornou-se apenas outra Fabrica produ- tora de outro produto que manteria os Estados Unidos em sua posicao de lideranga mundial, Os controladores internos, aqueles fazendeiros com os ouvides voltados para a terra, determinados a legar solo fértil ¢ bom a seus descendentes, cederam terreno a controladores remotos — os agronegécios ¢ as politicas puiblicas. Para servir a esses “principes remotos”, nas palayras do autor de Grassland, Richard Manning, os fazendeiros industriais abandonaram as formas tradicionais de administrar suas terras, tais como rodizio de culturas, calagem e fertilizagao comadubo orginico, ow o recurso da policultura, para se resguardar contra o even- tual fracasso de uma safra. Em vez disso, “concentraram” o esforgo de produgio — vendendo os animais de criagio ¢ adotando a cultura de uma tinica espécie de planta sob regime de colheita continua, 0 que, efetivamente, levou ao esgotamen- to da terra. Eles tentaram aumentar a fertilidade do solo. com fertilizante artificial Abase de nitrogénio, produzido com gés natural. A competi¢ao das ervas daninhas era combatida com herbicida, outro derivado do petréleo, ao passo que outros de- rivados foram usados como profilaxia contra surtos de praga (que, entao, etam fre- qiientes, gragas & vastid’o de campos cobertos de plantas idénticas com idénticas vulnerabilidades). De um momento para outro ¢ pela primeira vez em 10 mil anos de agricultura, os fazendeiros ficaram presos 20 circulo protetor das indtistrias qui- micas ¢ petroliferas, ¢ dizia-se que estavam cultivando seus produtos néo exata- mente no solo, mas no pettéleo. Uma ver inseridos nessa situacio, o cfrculo vicioso comegava. Ervas daninhas © pragas sao manhosas por natureza ¢, mesmo que yocé as pulverize num ano, nem todas mortem. As que adquirem imunidade grassam vigorosas no ano seguinte, exigindo doses ainda maiores de biocidas. Na guerra cada vez mais intensa entre “plantas © pragas”, quanto mais voce pulveriza, mais tem de pulverizar. Quem estd vencendo essa guerra? De 1945 para c4, 0 uso de pesticida au- mentou 3.300%, mas a perda de produgio resultarite do ataque de pragas nao di- minuiu. Alids, apesar de despejarmos sobre os Estados Unidos 1 bilhao de litros de pesticida anualmente, as perdas da producio agricola aumentaram 20%. Nes te interim, mais de quinhentas espécies de pragas desenvolveram resistencia aos nossos produtos quimicos mais poderosos. Depois dessa péssima noticia, a ultima coisa que gostarfamos de ouvir é que as nossas terras estao ficando menos produ- 26 A BIOMIMETICA tivas. Nossa reagéo tem sido recuperar agressivamente a fertilidade com 20 mi- Ihoes de toncladas de aménia anidra por ano ~ 0 cquivalente a 73 quilos por pes- soa apenas nos Estados Unidos. Recentemente, essa manha protetora saltou para um nivel de ameaga inusi- tado. Sintonize a TV num estado de economia agricola ¢ vocé vera um comercial clegante ¢ vistoso de sementes que vém pré-tratadas com um herbicida que mata ervas daninhas, mas que nao prejudica a planta em crescimento. Como a planta foi especialmente desenvolvida para crescer incélume com 0 tipo de herbicida usa- do, mas com nenhum outro, o fabricante do produto tem as vendas asseguradas. Ha algo de ertado nisso. Cria-se uma dependéncia, ¢ incute-se a idéia de fidelida- de sem nenhuma reflexao a respeito da conveniéncia do uso do produto. Logica- mente, essa ultima artimanha vinha amadurecendo nas retortas de laboratérios havia um bom tempo. De acordo com um artigo de dezembro de 1982 da revis- ta Mother Jones, de Mark Schapiro, pelo menos sessenta empresas americanas pro- dutoras de sementes foram vendidas entre 1972 ¢ 1982, todas as empresas quimi- cas ¢ petroliferas. De acordo com a tiltima contagem, 68 empresas tém planos para introduzir as suas prdprias combinagGes de semente/herbicida. Boa nova, eles di- zem: agora que os fazendeiros nao precisam preocupar-se com a possibilidade de a planta em crescimento sofrer com as sobras de herbicida de ano para ano (o.que costumava limitar 0 uso dele), eles podem usé-lo a vontade. Esse ¢ 0 tipo de noticia que deveria preocupar a todos nés. Segundo o tilti- mo levantamento, refugos de pesticida tornaram a agricultura a principal causa de poluigao dos Estados Unidos. Em jogo esto os lengéis fredticos, responsiveis pe- lo suprimento de 4gua da metade da populagao americana ¢ cuja limpeza € prati- camente impossivel uma vez. contaminados. |As familias de fazendeiros j4 esto cientes dos riscos de contaminagao. Estudos recentes demonstraram que as pes- soas que vivem nas regiées rurais de lowa, Nebraska ¢ Illinois podem estar com seus pogos contaminados por residuos de pesticidas e, por isso, expostas a riscos, maiores do que o normal, de desenvolver leucemia, linfornase outros tipos de cin- cer. Os niveis de nitrato (de fertilizantes) presentes na 4gua consumida por mui- tas comunidades rurais também excedem os niveis definidos pelas autoridades fe- detais, e deve ser por isso que as taxas de aborto entre as familias de fazendeiros esto surpreendentemente altas. Nao sao apenas nitratos que escorrem das terras de cultivo. Dinheiro tam- bém. Em 1900, se 0 fazendeiro investisse 1 délar em material ¢ energia cm sua fa- zenda, extrairia da terra o equivalente a 4 délares, uma relagao custo-beneficio de 1 para 4. Hoje, apesar de produzirmos mais alimentos, o custo da nossa produgio agricola geneticamente empobrecida ¢ consumidora de produtos quimicos ¢ maior. Nossa atividade exige um investimento de 2,70 délares em petroquimicos para obter um faturamento de 4 délares com o fruto da terra, uma proporsao cus- to-beneficio de apenas 1 para 1,5. COMO NOS ALIMENTAREMOS? A_27 Além disso, por causa do efeito resultante das novas sementes ¢ das pragas, continuaremos'a precisar de mais ¢ mais investimentos. O ecologista David Pi- mentel, da Cornell University, estima que a sociedade gasta 10 quilocalorias de hi- drocarbonetos para produzir 1 quilocaloria de alimento. Isso significa que cada um de nés consome o equivalente a 13 barris de petréleo por ano. O escritor Ri- chard Manning, de posse desses dados estatisticos, faz esta importante pergunta: quando se tem um sistema em que uma parte ¢ 0 agricultor € nove partes sao pe- troquimicos, quem vocé acha que deter4 poder final? Nao serao os pequenos agricultores, e certamente a terra também nao. De acordo com os dados colhidos pela lowa State University em 1993, a maioria das familias de agricultores atualmente depende de outras fontes fora da atividade agricola para compor metade da sua renda. Aquelas que nao conseguem fazer isso acabam vendendo suas terras a quem tem dinheiro 4 mao — corporagoes, sindicatos, investidores. Essa espiral esta resultando na diminuigao do ntimero de familias de agriculrores e numa drenagem de cérebros das éreas rurais, tragédia que Wes Jackson chama de “menos olhos por acte”. Ja nestes dias, 85% dos nossos ali- mentos ¢ das nossas fibras vém de 15% das nossas fazendas. Essas megafazendas dificilmente s40 0 que Thomas Jefferson vislumbrou quando viu uma nagio de pequenos proprietérios rurais cultivando seus 160 acres de tetra, livres de penhor ‘ou de todo tipo de obrigacao. O mais perigoso nessa dependéncia ~a produgao depende de nés, ¢ nés dos petroquimicos ~ é 0 fato de nos manter ocupados demais para pensar quais seriam 0s verdadeiros problemas resultantes disso. Os fertilizantes, por exemplo, masca- ram o problema real da erosio do solo causada pelo cultivo de plantas anuais. Os pesticidas mascaram um segundo problema: a fragilidade inerente a monocultu- ras geneticamente idénticas. Os empréstimos para o pagamento de investimentos em combustiveis fésseis mascaram um terceiro problema: o fato de que a agricul- tura industrial nao apenas destréi o solo e a 4gua, mas também sufoca as comuni- dades rurais. Embora nao queiramos admitir isto, nossas fazendas transformaram- se em fabricas cujos donos sao interesses absenteistas. Com a nossa ajuda, eles esto dissipando o capital ecolégico que os prados precisaram de 5 mil anos para acumnular. Todos os dias, 0 nosso solo, as nossas plantag6es € © nosso povo se tor- nam um pouco mais vulneraveis. © que eu gostaria de saber é por quanto tempo poderemos negar esse fato? ‘Antes de entrar em profundo desespero, procuro lémbrar-me de que estou a ca- minho de um encontro com um grupo de pesquisadores que abandonaram o fan- rasma da nega¢ao c entregaram-se a tarefa de expor o esfacelamento das bases des- se sistema. O pessoal do The Land Institute ~ 15 funciondrios, 9 estagirios 3 voluntérios ~ esté empenhado na criagao de um novo tipo de agricultura, que se- ja, nas palavras do diretor Wes Jackson, “mais resistente a insensatez humana”. Nu- 28 A BIOMIMETICA ma de minhas paradas para descanso, teli 0s documentos do The Land Institute, e sew teor, de expresses suaves ¢ impregnadas de determinagao, tanto tranqiiili- za-me quanto me assombra. Esses pesquisadores so agricultores,¢ eles acham que nndo existe nada mais sagrado do que o pacto que deve haver entre os seres huma- nos ¢ a tetra que Ihes dé 0 alimento. Mas eles sao realistas também. E ¢ isso que os tornou revoluciondrios. Eles nao tm medo de reconhecer que nao sao apenas alguns problemas na agricultura que precisam ser revistos. Mas também o proble- ma da agricultura em si. © problema da agricultura é antigo e conhecido de todos, explica Wes Jack- son numa sétie de livros, entre os quais New Roots for Agriculture, Altars of Un- hewn Stone e Meeting the Expectations of the Land, Ele resulta da insisténcia do ho- mem em separar-se da natureza, em substituir sistemas naturais por sistemas totalmente estranhos ¢ em declarar guerra aos processos naturais, em vez de aliar~ sea cles. O resultado disso tem sido a perda constante de capital ecolégico —a ero- sio € a salinizagao do solo, a domesticagao e o enfraquecimento constante das nos- sas plantas. Para achar o caminho de volta, afirma Jackson, precisamos nos lembrar de como etam os ancestrais das “nossas” plantas no prdprio meio em que viviam. ‘Antes espécies silvestres, nossos protegidos agricolas eram moldados por um contexto ecoldgico que pouco se parece com 0 meio em que ora os cultivamos. Seus ecossistemas sustentavam-se com a luz solar, providenciavam a prépria fertilidade, travavam por si mesmos baralhas contra pragas e retinham, ¢ até plasmavam, 0 so- Jo. Mas, hé muito tempo, as plantas, retiradas do scio das relagbes originais que ti- nham com seus ecossistemas, foram forcadas a nos servit no meio artificial criado por nds. Agora, escreve Jackson, “Nossa interdependéncia se tornou tao completa que, se a questo ¢ de direito de propriedade, devemos reconhecer que, em certo sentido, nds pertencemos a clas”. Para romper esse ciclo de co-dependéncia, temos de parar de enfrentar as batalhas de nossas plantagées e, em vez disso, cultivar plan- tas resistenres num sistema agricola que floresca ¢ exterme suas forgas naturais. A PARABOLA DO PRADO “Basicamente, temos de cultivar a terra da mesma forma pela qual a nature- za administra seus recursos.” Wes Jackson, 60 anos de idade, fazendeiro do Kan- sas da quarta geragao ¢ um ctiadot de casos, chegou a essa conclusio simples anos atris, antes mesmo que tivesse desenvolvido bem a linguagem para expressar suas idéias com estas palavras. Ele tinha 16 anos e estava longe da fazenda da familia, em Kansas, lagando animais ¢ divertindo-se com as montarias da fazenda de cria- fo de gado do primo em South Dakota. Wes ficou impressionado ao ver que, apesar de ninguém planté-la nem cuidar dela, a relva nascia ano apés ano, com se- ca ou sem seca, com neve ou sol abrasador, Cascavéis aninhavam-se na telva ¢ co- rujas observadotas postavam-se de sentinela ao lado de suas tocas. COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 29 — Parecia haver um sentido de harmonia em tudo — diz ele agora. Outra boa chuvarada caiu enquanto Jackson estava preparando sua tese de doutorado em genética na Carolina do Norte. Certa noite, seu orientador, Ben Smith, apontou a cabeca na porta entreaberta ¢ anunciou: “Precisamos ter a vida selvagem como critério de avalidcao das nossas préticas agricolas.” Com isso, 0 te- gumento da semente se rompeu e uma lenta raiz comegou a se firmar. Quando tinha 37 anos de idade, caminhando rapidamente para a cdtedra de- pois de escrever o sucesso de vendas intitulado Man and the Environment, Jackson passou a sentir-se inquieto. Embora usufruisse da invejavel condicao de criador ¢ chefe do Departamento de Estudos Ambientais da California State University, em Sacramento, ele achou que nao estava no lugar certo. Para espanto dos colegas, ele ea esposa, Dana, fizeram as malas, pegaram os trés filhos e voltaram para Kansas, sua terra natal, Eles se mudaram para uma casa que haviam construido as margens do Smoky Hill River e, em 1976, fundaram uma escola voltada para o ensino e desenvolvimento de técnicas de gerenciamento de ecossistemas agricolas. Essa es- cola se tornaria o The Land Institute, instituiggo de pesquisas sem fins lucrativos dedicada ao desenvolvimento de “uma agricultura que evite a perda do solo ou que 0 preserve de envenenamento ¢ que; a0 mesmo tempo, promova a criacao de ecossistemas agricolas présperos ¢ persistentes”. Essa nova agricultura tomaria os sistemas de vida silvestre como modelo ¢ a natureza como medida. Em Kansas, esses sistemas de vida silvestre compunham-se de prados cobertos de altas gramineas, das expresses naturais das camadas mais profundas do solo, das vicissitudes do tempo, dos incéndios naturais e do pastejo de alces e bis6es. Prados so 0 que as terras de Kansas querem ser, mas, em sua maior parte, no sio mais. Fico assombrada, pottanto;'com 0 que vejo quando entro'na Water Well Road para chegat ao The Land Institute. Inopinadamente, vejo as cerdas de imen- sos tapetes de trigo darem lugar a um harmonioso conjunto de plantas silvestres, caulles curvados, saturadas de cor ¢ pejadas de flores ¢ ramas apendoadas. Enquan- to observo, 0 vento penetra no campo como um dangarino que entra por um sa- lio cheio; dividindo a multidio, causando agitagao e afastamento de plantas & me- dida que avanga. A vegetacao inteira se agita vigorosamente por um instante ¢ depois se aquieta, em perfeito siléncio, como uma banda de jazz que encerra sua apresenta¢ao por mera intuigao. Uma placa & beira da estrada revela que ali é The Wauhob, um prado mila- grosamente preservado da atividade agricola, provavelmente porque era inclinado e de dificil acesso para o arado. Meu carro literalmente parou aos poucos, sem 0 uso do freio, enquanto olho espantada para esse cendtio tio bem-vindo depois de percorrer acre apés acre dos cenarios de rigida eficiéncia. De onde estou, posso ver campos de trigo ¢ prados. O conjunto parece uma parabola visual — Jacob e Esati, carne da mesma carne, mas com personalidades muito diferentes. Um deles é a expresso da vontade imposta; 0 outro, a expressao da vontade da terra. Um sim- 30 A BIOMIMETICA patico funciondrio me vé ¢ interrompe sua jardinagem orginica para me indicar como chegar ao escritério. A sede do The Land Institute é uma moderna casa de tijolos ingleses que per- tencera a um casal de idosos. Os quartos foram transformados em escritérios, ¢ ha uma cozinha ¢ uma lareira na sala de reuniées, onde uma dtizia de mulheres das re- dondezas esto preenchendo envelopes ¢ tomando café quando chego. Em seus vinte anos de existéncia, o instituto cresceu, de seus 28 acres iniciais, para 270. Algo es- pantoso, considerando-se o faro de que essa organizagao sem fins luctativos € man- tida exclusivamente com recursos da iniciativa privada e jamais contraiu dividas. ccologista Jon Piper me recebe no vestibulo e pergunta como foi a viagem, sem parar de andar em direcéo & porta, ansioso como eu para alcangar 0 campo. Piper tem quase 40 anos, usa culos ¢ barba ¢ é muito paciente com visitantes co- mo cu. Ele sabe que minha experiéncia ali, em meu mergulho no mar dos prados, serd téo importante quanto 0 que dissermos um ao outro. — Seguiremos um ciclo conceitual — ele me diz. ~ Comegando pela base de todos 0s nossos raciocinios. Enquanto abrimos caminho pelo gramado do Wauhob, que nos chega aos joelhos, Piper se anima, inconscientemente dobrando ¢ virando a extremidade su- perior das plantas enquanto fala, como um professor que toca a cabeca dos alunos enquanto eles fazem a ligao, Embora jamais cultivado pelas maos humanas, 0 pra- do esté repleto de floragées, com as gram{neas derramando gentilmente sobre a terra os seus frutos, as sementes germinando, novos brotos surgindo, estolhos co- brindo a terra com uma rede de decomposigéo, crescimento ¢ renovacao da vida. Nio se véem sinais de prejuizos causados por chuva de granizo ou de definhamen- to pela seca, tampouco ervas daninhas, Cada espécie— sio 231. somente neste lo- te—cumpre um papel e coopera de bragos (ou de ramos) dados com as plantas vi- zinhas, Vejo diversidade de formas — gramineas de diferentes alturas ¢ larguras, a enormidade vigosa do girassol, as folhinhas escuras das leguminosas, repetitivas como a samambaia. Piper fala das plantas como se fossem seus vizinhos de comunidade — das fi- xadoras de nitrogénio, das que deitam rafzes profundas no solo a procura de égua, das que tém raizes superficiais € tiram 0 maximo proveito de uma chuva ligeira, das que se desenvolvem rapidamente na primavera ¢ sufocam as ervas daninhas, das que resistem a pragas ou que abrigam herdis, como insetos benéficos. Ele real- ga também o papel das borboletas ¢ das abelhas, os polinizadores que; com suas Iinguas agitadas, espalham rumores de vida de uma planta para outra. Debaixo dessa multidéo indomavel, jaz 70% da forsa de vida dos prados — uma densa trama de raizes, radiculas ¢ estolhos captam agua ¢ bombeiam nutrien- tes das profundezas do solo. Um tinico espécime de Andropogon gerardii Vitman pode emitir 40 quilémerros dessa ramificagio fibrosa, 13 quilometros dos quais morrem em detetminada época do ano ¢ renascem no outro. Esses restos de rai- COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 31 2es, juntamente com a folhagem da planta, servem de bem-vindo repasto para se- res diminutos — formigas, poduras, centopéias, tatuzinhos, minhocas, bactérias € fungos. No equivalente & superficie de uma simples colher de ché, palpitam mi- Ihares de espécies de seres vivos, todos cavando, comendo e produzindo excremen- to, condicionando o solo centimetro por centimetto, Por meio dessa operago mé- gica, os nutrientes dissolvidos sao liberados para aproveitamento pelas raizes sedentas ou armazenados em hiimus ~ a aragem que transforma os prados numa esponja viva, As caracteristicas dessa parte do solo sio 0 resultado da conjungio de rochas, matéria orginica, chuvas, clima, condigées de luminosidade natural e, sobretudo, da comunidade animal e vegetal da superficie, Arranque ou plante algo novo ¢ vo- c@ transformaré ligeiramente a microecologia. Lavre-o, borrife-o com pesticidas ¢ faca colheitas todo ano, e voct o transformard profundamente. Alguns dos orga- niismos que se perdem podem ser os que promovem a fertilidade do solo, ou que ajudam a preservé-lo do ataque de insetos ¢ doengas, ou que produzem hormé- nios que induzem as flores a se abrirem ou uma raiz.a penetrar mais fundamente no solo. So necessérios varios anos para afinar essa orquestra de auxiliares dimi- nutos, mas apenas alguns instantes para silencid-los, O segredo dos campos esté na sua capacidade de manter comunidades de vi- da da superficie e do interior do solo num estado dinamico ¢ estavel. Nao que na- da mude nos prados (a terra esté sempre pulsando com transformagao vital), mas € que essas transformagoes jamais sdo catastréficas. O prado controla o crescimen- to das populagdes de pragas, recupera-se admiravelmente de desequilfbrios e resis- tea tornar-se aquilo que nao é — uma floresta ou um “jardim” de ervas daninhas. — Nosso objetivo no The Land Institute € criar uma comunidade de plantas domésticas que se comporte como as das comunidades dos prados, mas o resultado disso é perfeitamente previsivel no que diz respeito A produgio de sementes para tor- nar vidvel a agricultura — Piper afiema. Para ilustrar a idéia, ele desce o declive e pa- ra num ponto entre o prado ¢ 0 campo de trigo que eu tinha visto antes. — La em- baixo estd 0 nosso ideal de agricultura; sabemos que ele nao € auto-sustentével, principalmente porque perde solo ¢ exige o acréscimo de recursos irrenovaveis. Ai em cima, onde voce estd, temos um modelo auto-sustentavel, mas que nao nos da- rd alimento de que precisamos. Teoricamente, gostarfamos de estarem algum pon- to aqui, entre a controlada rigidez. do campo de trigo ¢ a naturalidade do prado. ‘Trata-se de um conceito a respeito do qual eu tinha lido em literatura sobre caos ¢ complexidade, Existe um ponto delicado emre 0 caos c a ordem, entre o gis © 0 cristal, entre o selvagem 0 domesticado. Nesse ponto, esté a forea poderosa- mente criativa da auto-organizasao dos seres, que o pesquisador de biodiversida- de chama de “livre ordenaga0”. O agroecologista Jack Ewel também fala nessa li- vre ordenagio quando afirma: “Imire a escrutura vegeral de um ecossistema ¢ voce obterd a funcionalidade que procura.” 324 BIOMIMETICA Como primeiro passo na direcéo de uma agricultura que se organize em sis- temas de forga ¢ resisténcia, o trabalho de Piper era estudar a estrutura da vida do prado para revelar 0 que a torna tao resistente, Ha’ uma regra geral com relagéo aos tipos de plantas que aparecem regularmente nas listas de levantarnento das es- pécies vegetais existentes no prado? Qual a proporgao de cada uma delas? E im- portante o local em que umas se desenvolvem em relagao As outras? Em busca de respostas, Piper leu tudo 0 que lhe foi possivel sobre a ecologia dos prados ¢ de- pois passou sete gloriosos verdes mergulhado em um intenso e absorvente traba- Iho em campos naturais: Ele e seus auxiliares pegaram tesouras e cortaram amos- tras de todos os vegetais de alguns terrenos, identificaram todas as plantas, separaram-nas em pilhas e depois secaram-nas e pesaram-nas para saber 0 que cres- cia neles. Ao longo de anos de chuva e anos de seca, em solos ricos € solos pobres, Piper descobriu que os prados tém mesmo um padrao que se repete, um tipo de ordem no caos aparente. ~ Uma coisa que nos surpreende — afirma Piper —¢ que 99,9% das plantas fo perenes. Elas recobrem 0 solo durante o ano inteiro, protegendo-o do vento € da forga crosiva das chuvas. Chuvas fortes caem sobre esse dossel de plantas, que escorrem suavemente pelos cauiles ou se transformam em névoa. Em contraparti- da, quando a chuva cai sobre as plantagées agricolas, ela atinge o solo desprotegi- do, compacta-o e depois escorre, levando consigo preciosas camadas de solo. Alids, alguns pesquisadores mediram a diferenga; eles descobriram que, dos dois tipos de solo, submetidos a acio de chuvaradas idénticas, o dos trigais sofre ‘um deslocamento de parte de sua camada oito vezes maior que © solo dos prados. — Os prados simplesmente absorvem ¢ retém a 4gua das chuvas — explica Pi- per. ~ Posso voltar aqui horas depois e o Wauhob ainda apresenta as caracteristi- cas de umidade geradas pela chuva quando caminho sobre ele. ‘Além de serem excelentes esponjas, as plantas perenes também so capazes de se fertilizar ¢ climinar as ervas daninhas. Trinta por cento de suas ralzes mor- rem ¢ se decompéem todo ano, acrescentando matéria orginica ao solo. Os dois tergos restantes das raizes resistem ao inverno, o que permite que as plantas pere- nes abram o seu guarda-chuva vegetal no inicio da primavera, bem antes de as er- vas daninhas poderem desenvolver-se. Enquanto caminhamos por uma parte de um prado especialmente densa, Piper diz, exulrante: V6? Vocé nfo teria chance aqui se fosse uma erva daninha. — Ele continua: ~ Outra coisa que'nos surpreende no que diz respeito aos prados ¢ a sua diversi- dade. Somente neste lote, temos 230 espécies de plantas, e nao apenas uma espé- cie de gram{nea de clima quente, mas quarenta, Nao apenas uma leguminosa que ajuda a fixar nitrogénio, mas vinte ou trinta. Isso significa que sempre haverd al- gumas espécies ou uma variedade de espécies que conseguirao sair-se bem no cli- ma altamente variavel das Grandes Planicies. Estive aqui em anos de estiagem, nos quais as gram{neas mal chegavam 20s nossos joelhos, mas vemos itica por toda par COMO NOS ALIMENTAREMOS? & 33 te, Em outros anos, depois de muita chuya, vocé ¢ eu poderfamos ficar aqui de pé a. metro de distancia uum do outro e setmos incapazes de nos vet por entre as Ar- dropogon gerardii Vitman. O conjunto de espécies continua © mesmo, mas espé- cies diversas sobressaem em diferentes anos. A diversidade é também 0 melhor ¢ mais barato meio de controlar pragas. — Muitas espécies de pragas costumam especializar-se em um tipo de planta hospedeira ou que lhes sirva de alimento. Assim, quando existe diversidade, as pra- gas tém mais dificuldade para achar a planta visada. Mesmo que consigam alcan- gat algum ponto do solo, essas tropas de ataque nao vo muito longe. Esporos morbigeros podem pousar na planta errada, ou os filhotes de insetos podem alo- jar-se no broto errado. Com uma rica diversidade de plantas, os ataques se enfra- quecem e desaparecem, antes de se tornarem epidémicos, Outra caracteristica dos prados séo seus quatro tipos cléssicos de plantas: as gramineas de clima quente, as de clima temperado, as leguminosas ¢ as compos- tas. As gram{neas de clima temperado aparecem primeiro, deitam sementes ¢ de- pois saem de cena, permitindo que as gramineas de clima quente, tais como a An- dropogon gerardii Vieman, dominem no restante da estagao. As leguminosas, como a unha-de-gato (Uncaria tomentosa), a Schrankia microphylla e a Amorpha canes- cens, fazem a fixagio do préprio nitrogénio, fertilizando o prado com seus corpos. As compostas, como a vara-de-ouro, a dster ¢ a Silphium lacianatum, conseguem florescer em qualquer ponto da estagao. Embora esses quatro “naipes” possam va- riar proporcionalmente de um lugar para outro, Piper os encontrou em cada um dos prados pelos quais caminhou. — Aprender os segredos dos prados tornou-se um objetivo para nds a medi- da que passivamos pelo crivo classificatério as incontéveis combinagGes de plan- tas que poderiam ser escolhidas para desempenhar o papel de émulos da vegeta- fo das pradarias em nossa agricultura. Sabfamos que precisévamos de cereais perenes cultivados em regime de policultura, com os quatto “naipes” dos prados represcntados. A tinica questao era: guantas espécies diferentes de cada grupo te- rfamos de plantar? Uma vez que é impraticavel ter uma agricultura com duzen- tas espécies, de quanta diversidade precisaremos para obter estabilidade fancio- nal? Nossa intuigao nos dizia que, provavelmente, terfamos de plantar um ntimeto de espécies bem maior que o de nossas necessidades ¢ deixar que os ele- mentos do sistema se reduzissem ao longo de alguns anos a0 que pudesse servir como alimento para a humanidade, Mais ou menos nessa época, estuidos sobre “ecossistemas agricolas” comegaram a aparccer em literatura especializada, ¢ eles sugeriam que podfamos ter sistemas persistentes com apenas oito espécies. Isso foi estimulante para nds. Cultivar oito espécies de plantas perenes desde o inicio parece mais vidvel do que cultivar duzentas espécies, mas isso ainda é um grande desafio. Hoje, a maior parte dos alimentos consumidos no mundo vem de apenas cerca de vinte espécies 34 4 BIOMIMETICA de plantas, ¢ nenhuma delas é perene! Algumas comegaram como plantas perenes mas, no transcurso dos 10 mil anos da odisséia da agricultura, removes siste- maticamente as caracteristicas de resisténcia perene das plantas, avangando sem- pre pela linha entre a naturalidade ¢ a domesticagao, ¢ acabamos mesmo domes- ticando-as, até que se tornassem essencialmente plantas anuais. Entre os especialistas, costuma circular uma histéria sobre a ocasido em que Wes Jackson percebeu todas as conseqiiéncias dessa tendéncia extremista ¢ infeliz, da agricultura. Logo depois de inaugurar sua escola, Jackson sai com seus alunos em excursio pedagégica aos 8 mil acres do Konsa Prairie, perto de Manhattan, Kansas. Um deles perguntou, ingenuamente: “Existem gramineas cereais perenes aqui?” Isso fez, Jackson refletir. Quando volrou, ele fez. uma lista de todas as plan- tas de que pode lembrar-se, separando-as em espécies anuais ¢ perenes, herbéceas ou lenhosas, produtoras de frutos ou gros. Para a sua surpresa, viu que existiam plantas que podiam ser classificadas em quase todas as categorias, mas havia uma evidente lacuna no espago da HERBACEA PERENE E PRODUTORA DE SE- MENTES. Foi uma revelagao em preto ¢ branco. OS ENTUSIASTAS DAS ESPECIES PERENES Jackson e sua equipe comegaram a compulsar avidamente a literatura pertinen- te ~certamente, alguém devia ter cultivado algum tipo de cerealifera, pensaram. E ficaram intrigados com o fato de que ninguém, exceto pessoas interessadas em for- ragciras, tinha estudado gram{neas, leguminosas ou compostas perenes. Por qué? ~ Porque ndo era fator de prest{gio na opinigo de cientistas preocupados com a carreira — argumenta Jackson, — A opinido geral era a de que as espécies perenes, que gastam a maior parte da sua cnergia abaixo da superficie, jamais podcriam ser levadas a produzir quantidades generosas de gros [a parte que os seres humanos comem). Se conseguissem fazé-las produzit mais grios, pensava-se, haveria uma descompensagao da raiz da planta, ¢ ela perderia a sua capacidade para resistir 20 inverno. , Jackson, que fizera carreira refutando o pensamento convencional, disse que nao tao rapidamente. A primeira pergunta que The Land Institute tratou de res- ponder foi a que todos se haviam negado a dar importéncia: As espécies perenes podem produzir tantos grdos quantos as anuais? Depois de mais dois anos de incursées por bibliotecas ¢ experiéncias prati- cas com plantios, a equipe do The Land Institute convenceu-se de que as espécies perenes podiam ser levadas a produzir bastante graos sem perder suas caracter{sti- cas de plantas perenes. A Desmanthus illinoensis ¢ a Cassia marilandica, pot exem- plo, nativas de Illinois, eram duas espécies perenes silvestres que, sem nenhum cul- tivo, jé haviam se aproximado do nivel de produgao do trigo em Kansas: 3,6 toncladas por acre, Considerando que a capacidade de producio de gros das pa- COMO NOS ALIMENTAREMOS? A 35 rentas silvestres de algumas dé nossas plantas de cultivo aumentou quatro, cinco ow até mesmo vinte vezes nas més de criadores talentosos, as chances de aumen- tar a capacidade de produicéo dessas plantas eram boas. O truque dessa ver seria aumentar a producéo de graos da planta sem redu- zir a sua resistencia narural, Curiosa para ver 0 que 0 aumento artificial da capa- cidade de produgao faria & robustez da planta, a filha de Jackson, Laura Jackson, pesquisadora da University of Northern Iowa, fez uma experiéncia que mostrou que uma planta no precisa sacrificar seu fotossintato —a capacidade de se alimen- tar ~ quando produz grande quantidade de grios. Em suma, a tal descompensa- fo nfo era 0 que todos imaginavam, ¢ parecia que a “quimera” que o The Land Institute queria criar estava perfeitamente dentro do Ambito do possivel. Em 1978, a equipe do instituto iniciou 0 trabalhoso proceso de desenvol- ver plantas de cultivo para o prado doméstico. Suas espécimes teriam que ter no apenas resisténcia, mas também “caracteristicas de consumo” - qualidades como bom paladar ¢ facilidade de debulha. Umia vez que 0 desenvolvimento da maioria das plantas cujos pros consumimos hoje estava concluido mais ou menos no tem= po de Abraao, a domesticacao de plantas desse tipo era um empreendimento no- vo € ousado. O esforco que precedeu esse trabalho desaparece completamente quando se leva em consideragao que Jackson e sua equipe tinham como objetive plantas que fossem confiaveis, mas nio dependentes de nds. Havia duas maneiras de obterem tuma cerealifera perene — numa delis, eles poderiam iniciar seu trabalho com uma espécie perene silvestre ¢ desenvolver sua capacidade de produgao e suas caracteristicas agricolas; na outta, poderiam come- car com uma espécie anual que jé tivesse boas caracteristicas agricolas e cruz-la com uma espécie perene silvestre aparentada com ela pata refrescar sua “memé- ria’, de modo que ela reaprendesse a sobreviver ao inverno. Agora, tudo de que precisavam eram candidatas. Examinando descrigdes catalogadas de espécies perenes nativas de cada um dos grupos, cles encomendaram quase 5 mil tipos diferentes de sementes das co- legdes do governo e as plantaram nos campos ondulantes préximo 3s margens do Smoky Hill River. As que resistiram bem ao clima de Kansas ¢ mostraram-se pro- missoras para a alta produgio de gros tornaram-se candidatas em seu programa agricola. Eles plantaram as sementes e aguardaram ansiosamente, como se fossem fazendeiros, para ver como as plantas se desenvolviam. Além da capacidade de pro- dco de gros, eles estavam em busca de caracteristicas agrondmicas imporean- tes para o fazendeiro: baixa taxa de rompimento do tegumento (o que faz com que a semente se abra clibere o germe antes da colheita), cempo de marurago unifor- me, facilidade de debulha e graos de bom tamanko. ‘As quatro candidatas mais promissoras para a domesticacéo como planta de cultivo perene foram a Tripcacum dactyloides, graminea rastejante de clima quen- te, aparentada com 0 trigo; a Desmanshus illinoensis, leguminosa que atinge gran- 36 A BIOMIMETICA de altura produz vagens pequenas que, quando agitadas, produzem ruido seme- Ihante ao de um chocalho; a Leymus racemosus, parenta do trigo, robusta e de cli- ma temperado — os mongéis fartavam-se com ela quando a seca artasava sua plan- tagio de espécies anuais; a Helianthus maximilianii, composta que produz sementes com alto teor de éleo, que poderia ser usado para a producio de com- bustivel para tratores. A segunda abordagem — em que iniciaram 0 trabalho com uma espécie anual, para depois cruzd-la com uma espécie perene — levou-os a um hibrido resultante do cruzamento do sorgo, que jé ¢ usado como planta agricola, ca Sorghum halepense, espécie perene. ‘Agora que The Land tem a “escalacao do time”, 0 jogo decisivo da reprodu- ‘¢4o vai comecar, Os melhores exemplares de cada uma das espécies sao cultivados no mesmo lote de modo que possam cruzar-se por meio de polinizacao. Quando duas variedades promissoras se cruzam, o que se espera disso é 0 surgimento de uma espécie ainda mais notavel. As sementes obtidas em cada experimento sio plantadas em outro lugar (em varios tipos de solos, para se ter certeza de que as diferengas sao realmente genéticas ou hereditdrias, nao apenas resultantes de fa- tores ambientais) ¢ € feita a selego dos melhores espécimes para outra poliniza- do cruzada, O processo € repetido até que as melhoras obtidas por cruzamento apresentem sinais de rendimentos decrescentes. Somente entéo, os responsiveis pela experiéncia as classificam como boas ¢ iniciam o processo de selegao rigoro- sa para trazer 2 luz. melhor das caracteristicas da variedade. Até agora o otimismo no instituto é grande, revelado por um aceno de cabe- ga ligeiramente mais pronunciado do modesto Jon Piper quando pergunto se ele estd satisfeito com o progresso alcancado. Ele me conduz pelos lores de monocul- turas e policulturas nos quais o que ha de melhor est presente. Alguns grupos de Tripsacum dactyloides estao resistindo brayamente a varias doencas que atacam as folhas, e outros grupos de Desmanthus illinoensis e Tripsacum dactyloides esto pro- duzindo bem apesar de alguma estiagem. Os hibridos mais vigorosos resultantes do cruzamento de espécimes de Sorghum halepense ¢ sorgo esto apresentando al- ta producao de gros e bom desenvolvimento de rizomas (rizomas sao estolhos subterrineos que permitem que as plantas armazenem fécula para o inverno ¢, des- sa forma, consigam sobreviver). No que diz respeito & produsao de graos, ja existem algumas superestrelas. Embora seu valor nutritivo ainda tenha que ser estudado, revela Piper, a Desman- thus illinoensis esta produzindo uma quantidade de graos que se aproxima da pro- dugao tipica das plantagdes de soja nao-irrigadas do Kansas, Quanto a Tripsacum dactyloides, cujos gras podem ser transformados em farinha para a fabricacio de saborosos pies, 0 potencial de melhora da produgio de gros ¢ grande, gracas a uma yariedade que foi descoberta a beira de uma estrada do Kansas. O coletor dos espécimes percebeu que, em vez do pediinculo comum, que é composto de cerca de 1 polegada de flores fémeas encimada por 4 polegadas de flores masculinas, essa COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 37 variedade tinha todas as partes femininas (que se transformam em sementes), exce- to na extremidade. Se todas produzissem, essa variedade poderia gerar até quatro vezes a quantidade normal de sementes. Quando Piper me mostra um dos pediin- culos, percebo que os érgaos femininos sao verdes. — Isso mesmo — ele confirma. ~ Isso significa que elas podem realizar fotos- sintese ¢ pagar suas préprias contas, ou seja, a planta nfo terd que, necessariamen- te, ter menos raizes para produzir mais sementes. E isso 0 que tentaremos mostrar. Ao assumir o desafio de cultivar plantas produtoras de gros perenes, 0 pes- soal do The Land Institute j4 pisava no terreno cuja indicagao no mapa dizia “ni- nho de cobras”. Enquanto trabalhavam, decidiram que tentariam obter outra es- pécie primeiramente escolhendo a maioria de suas candidatas dos estoques de sementes nativas do pais. (A tinica planta selecionada que nao ¢ nativa éa Elymus giganteus.) Embora a opgio pelos estoques de plantas nativas parega ser a melhor, nao foi essa a op¢ao de outros criadores. A maioria das nossas espécies agricolas sio exéticas, trazidas do México ¢ da Europa em nossas trouxas de viagem. As tini- cas plantas nativas que domesticamos neste pais sao 0 girassol, 0 viburno (Cnin- Lerry vibuerntm), 0 -vacinio (blueberry), a nogueita-peca, a Vitis labrusca e 0 topi- nambo (Helianthus tuberosus). O The Land Institute est4 tentando aumentar essa pequena lista, por saber que as plantas nativas so afinadas pela evolugao para can- tar em harmonia com a melodia das condigées locais. Embora desenvolver caracteristicas agronémicas nessas plantas seja tarefa hercillea, cultiva-las em regime de monocultura pelo menos da aos criadores uma chance para trocar idéias ¢ impresses. Infelizmente, nao podemos ater-nos a monocultura, lamenta Jackson. O grande segredo é cultiva-las em regime de policultura — em canteiros com uma miscelanea de espécies -, j4 que, conforme @ natureza nos tem mostrado, somente as policulturas sio capazes de pagar as proprias contas. O CHOQUE DA POLICULTURA A policultura nao é mtisica aos ouvidos do criador. Trabalhar em policultu- ras € 0 mesmo que ter, multiplicadas, todas as dificuldades encontradas em mo- noculturas. Vocé nao tem apenas que fazer a selegao das espécies de alta producio, de sementes grandes, de tempo de maturagao uniforme, de facil debulha, de bai- xa taxa de rompimento do tegumento ¢ resistentes a doengas, pragas e variagdes climéticas, mas também de boa compatibilidade ~ a capacidade que a planta tem para sair-se bem ou até mesmo apresentar um desempenho superior quando cul- tivada em meio a outras plantas. Na prética, era como se a equipe do The Land Institute se incumbisse de pla- nejar 0 banquete de uma comunidade rural, decidindo quem deveria sentar-se 20 lado de quem para clevar ao maximo a possibilidade de inter-relagdes benéficas € 38 A BIOMIMETICA tornar minimas as prejudiciais. A natureza providencia esse tipo de combinagoes positivas o tempo todo por meio do lento processo da selecdo natural. Poderia o instituto, de algum modo, imitar e acelerar esse proceso? ~ O método cientifico tradicional oferecia um meio de enfrentar o proble- ma —revela Piper ~ ¢ seguimos esse caminho durante algum tempo: a plantagio de mudas em canteiros mistos ¢ a colocagao de algumas ao lado de outras de mo- do que pudéssemos estudar suas relagbes muituas. O problema cra que 0 ntimero de combinagSes possiveis € astrondmico, € nem mesmo um monge mendeliano viveria o bastante para expetimentar todas clas. Ao mesmo tempo que Piper ¢ seus colegas comegaram a objetar esse trata- mento reducionista do problema, aplicaram-se também ao exame de literatura so- bre avangos recentes no campo da cultura coletiva de espécies. James Drake ¢ Stuart Pimm, da University of Tennessee, realizam pesquisas pa- ra saber 0 que é necessdrio para chegar a um grupo de espécies que permanecem em equilibrio, condigao que, obviamente, os agricultores gostariam de ter em seus pra- dos domésticos, Diferentemente do pessoal do The Land, eles fazem suas experién- cias com ecossistemas num computador (vida artificial) e com organismos aquéticos em tanques de vidro (vida real). Eles iniciam a experiéncia incluindo espécies em vé- rias combinagoes ¢ depois deixam que elas se relacionem naturalmente para ver quais sobrevivem ¢ em que proporcao. Eventualmente, sem a intervencio deles, 0 grupo acaba reduzindo-se a uma comunidade complexa ¢ persistente — selecao natural. — Mas nao conseguimos essa selecao imediatamente ~ revela Pimm. — Nos a obtemos depois de um longo periodo de inclusao de espécies em comunidades ¢ apés observar-lhes a adaptagao, vé-las causar a extingao de outras espécies ¢ serem_ extintas por sua vez. Ou seja, 0 fato de jd ter um histérico de adaptasao ¢ 0 que faz. uma comuni- dade durar. {Em sua famosa teoria do “ovo quebrado”, Pimm argumenta que, uma vez des- trufdo um bioma qualquer, tal como o de um prado, nao se pode simplesmente plan- tar as mesmas espécies que vegetavam li e tentar recompé-lo\Para cle, essa coisa de prado instantaneo nao existe. O “reconstituidor” de prados precisa conceder ao pra- do uma histéria de sucessio de fatos, ou seja, cultivar o prado ao longo de varios anos. Algumas plantas sao acrescentadas ¢ outras s4o excluidas mas, 8 medida que as espé- cies mais cooperativas transformam o solo, a fauna ea flora ao redor, sornam posst- vel a formagao da coletividade final, Elas preparam a platéia para o tiltimo ato. — A questao para nés, cientistas mortais — observa Piper, com a serenidade que 0 caracteriza —, ¢ para os fazendeiros que algum dia cultivario gramineas pe- renes de varios tipos, ¢ como conseguir essa ordenagio rapidamente. Nao nos po- demos dar ao luxo de criar prados ao longo de mil anos. O que buscamos é mon- tar sistemas complexos ¢ persistentes cuja complexidade possamos reduzir ou tornar enxuta a0 méximo em poucos anos. COMO NOS ALIMENTAREMOS? A 39 Alids, eles nao tém mil anos pata fazer as pesquisas. Aquilo que Piper ¢ sua equipe decidiram tentar, lém de prosseguir com as suas experiéncias com sistemas mais simples, ¢ 0 mesmo “enxugamento” progressivo das experiéncias de Pimm e Drake, Primeiro, prepararam dezesseis lotes (com 16 metros por 16 metros) e, de- pois, fizeram o plantio aleatério de sementes das espécies dos quatro “naipes”: gra- mineas de clima quente, gramfneas de clima temperado, leguminosas ¢ compostas. Em alguns lotes, plantaram sementes de apenas quatro espécies; em outros, plan- taram oito, doze e dezesseis. Hi quatro réplicas de cada tipo de plantio! Metade dos lotes esta entregue a si mesmo, para que se desenyolva livremente, ¢ a outra meta- de esta sendo tratada como lotes “substitutos”.{Apés dois anos, qualquer espécie ros lotes substicutos que no tenha vingado ou germinado é substitu — Queremos dar as espécies visadas toda oportunidad possivel para junta- rem-se 4 comunidade — explica Piper. — Pode ser que a Elymus giganteus nao con- siga estabelecer-se no primeiro ou segundo ano, mas logre fazé-lo no terceiro. Eles registrarao quais espécies se combinam, quanto tempo isso leva para acontecer € também quais foram os primeiros lotes a lhes dar a comunidade que desejam. Durante todo 0 processo, eles acompanharao as mudangas nos sistemas ¢ procurarao identificar regras e padroes relacionados com 0 modo pelo qual os sistemas estaveis vingam. Depois de algumas estaces de crescimento, esperam que stias ptodutoras de graos perenes visadas estejam bem representadas € que produ- zam graos abundantemente ano apés ano sem necessidade de monda ou semea- dura. Se algumas espécies impréprias para a agricultura aparecerem na comunida- de, que continuem lé. —Caso a presenga de dada espécie se revele persistente, isso significa, prova- velmente, que ela desempenha um papel na manutencéo da estabilidade ~ argu- menta Piper. No final, a “receita” ou 0 caminho descoberto pelos pesquisadores poder ser oferecido aos fazendeiros. Embora ele ¢ sua equipe ainda nao conhecam todos os detalhes disto, Piper acha que uma receita tipica seria mais ou menos assim: vocé inclui na plantago as espécies da coletividade recomendada (com um numero de espécies maior do que o de que precisa), sem deixar de providenciar para que as espécies dos quatro grupos principais estejam representadas. Depois, relaxa ¢ aguarda o andamento do processo. Este pode levar, digamos, uns cinco anos, mas vocé pode ser recompen- sado com um sistema complexo e persistente. — Neste exato momento, por exemplo, vemos a medranga de ervas daninhas anuais, ainda predominantes neste segundo ano de plantio. Os campos ficam hor- riveis no comeco, aparentando fracasso total, mas as sementes das espécies pere- nes esto li ¢, no segundo ou terceiro ano, elas simplesmente despertam para a vi- da e prevalecem. Nao se sabe exatamente como, mas 0 ambiente faz 0 crivo do que funciona e do que nao funciona, de tal modo que aquilo que sobra é a com- binagao mais estavel. Estamos estudando a forma pela qual isso ocorre e tentando identificar que providéncias poderfamos tomar para ajudar esse proceso. 40 4 BIOMIMETICA Enquanto os canteiros amadurecem, The Land Institute experimentara vé- rias técnicas de gerenciamento para favorecer o prevalecimento das produtoras de graos perenes ¢ fazer com que a comunidade se defina como modelo. A receita re- sultante pode incluir a recomendagao de realizar queimadas no segundo ano, cei- far no terceiro ano ou liberar © tetreno para pastagem no quarto ano. Além disso, cles pensario também no tipo de equipamento que sera necessitio para colher di- ferentes tipos de plantagao em diferentes épocas do ano. ~A exploracéo agricola com plantas perenes serd diferente — adianta Piper. — Seré mais como uma silvicultura, uma administracao de floresta, na qual voce precisard aguardar um pouco para obter um estégio propicio & colheita. Alids, as- sim como na silvicultura, nao se pode comecar tudo de novo a cada ano. Nao se pode decidir cultivar outra espécie por causa da gravidade do ataque de pragas ou porque o tempo nao esté cooperando. Em vez disso, é necessdrio fazer planos pa- ra tentar precaver-se contra situages que podem variar de ano para ano — como clima, mercado ete, A melhor protegao contra fiascos ¢, conforme as ligées dos prados, 0 cultivo coletivo de varias espécies: muitas cores em sua paleta para que, independentemente das condig6es, algumas espécies consigam florescer. ‘Além de tentar fazer com que o prado doméstico vingue, os “visiondrios” do ‘The Land Insitute querem que ele cumpra a promessa de cornar-se agricolamen- te vidvel. Ele tem de competir, ainda que relativamente, com aquilo que os fazen- deiros esto plantando atualmente. As trés tiltimas perguntas que preocupam Pi- per e sua equipe esto relacionadas com o desempenho das policulturas de um ponto de vista pritico. -y Podem as policulruras? igualar ow mesmo superar a produtividade por acre das monoculturas? Superproducio é 0 fendmeno pelo qual uma planta produz mais por acre ou hectare quando cultivada em policuleuras do que quando cultivada em monocul- turas. Pois o fato € que as plantas cultivadas ao lado de outras, diferentes, mas “complementares”, nfo precisam competir como o fazem quando sao cultivadas 20 lado de plantas da mesma espécie. Elas nao precisam, por exemplo, “acotove- lar-se” pelas rafzes no esforco para obter 4gua em determinado nivel do solo, Tam- pouco competir pela luz do sol num mesmo plano. Conseqiientemente, os mem- bros de uma comunidade diversificada podem captar mais recursos (e produzir mais) do que captariam se fossem submetidos & compericgao monoculturas. A literatura especializada esta cheia de exemplos de superprodugio quando plantas anuais complementares, como o milho, o feijao ea abdbora, so cultiva- das juntas. A tarefa de Piper era demonstrar que a superprodugao podia ser obti- da com plantas perenes também. 2. Aqui € em outras partes do livro, a autora confére a palavra “policuleura” o significado de cultivo de plantas em “ecossistemas agricolas”. (N.'T.) COMO NOS ALIMENTAREMOS? & 41 = Certamente, estamos vendo isso ocorrer ~ afirma, deixando escapar um sortiso. — O ano de 1995 foi o quinto ano de estudo de policulturas da Tripsacum dactyloides, da (Elymus giganteuse da Desmanibus illioensis. Quando seu desempe- nho foi comparado com 0 que apresentaram como monoculturas, vimos que 0 cultivo coletivo dessas plantas apresentava superprodugdo constante. Podem as policulturas defender-se contra insetos, pragas e ervas daninhas? Estudos feitos no The Land Institute estio demonstrando que, quando as plantas sao cultivadas em biculturas e triculturas, elas se rornam mais resistentes ao ataque de insetos e a doengas do que quando cultivadas em monoculturas, Faz sentido se refletirmos sobre isso, As plantas se defendem contra insctos com “blo- queios’ quimicos ¢, no maximo, o inseto tem apenas um ou dois “desbloqueios” para usar na planta que lhe serve de alimento, O inseto que se acha num campo em que existe somente a planta visada por ele é como um arrombador com a cha- ve de todas as casas da vizinhanga. Numa policultura, na qual todos os bloqueios sao diferentes, achar alimento é muito dificil. Uma vizinhanga diversificada é igualmente frustrante para doencas cujo organismo que a provoca ¢ especializado em apenas uma planta. Um tipo de fungo pode atacar uma planta mas, quando libera seus esporos, as folhas de plantas invulnerdveis agem como papel pega-mos- cas, 0 que detém 0 ataque dos fungos. E por isso que, embora existam pragas nas policulturas dos prados, nao se vé a dizimagao incontrolavel que se observa em monoculturas, Naquelas, as invas6es sio frustradas. Como no caso da superproducio, a maior parte das evidencias experimen- tais de resistencia a pragas vem de estudos sobre plantas anuais cultivadas em po- liculturas. Em 1983, os biélogos Steve Risch, Dave Andow e Miguel Altieri exa- minaram 150 estudos desse tipo e descobriram que 53% das espécies de pragas eram menos abundantes em policulturas de plantas anuais do que em monocul- turas de plantas desse mesmo tipo. Semelhantemente, o ecologista Jeremy Bur- don compulsou cem estudos sobre policulturas com duas espécies de plantas € verificou que, nesse tipo de cultura, sempre havia menos plantas doentes, Até agora, esse fato parece confirmar-se nas policulturas de plantas perenes do The Land Institute, = No terceiro ano de experiéncia ~ conta Piper — tivemos um aumento re- pentino de ataques de besouros na Desmanthus illioensis. Mas apenas nas mono- culturas, A Desmanthus illioensis cultivada com a Thipsacum dactyloides nao teve problemas. As policulturas também parecem reduzir oui retardar a prolifetacao do virus do mosaico-anio do milho, que pode ser problemitico para a Tripsacum dactyloides. Os faxendeitos esto muito intrigados com esses resultados, jé que pa- recem indicar que 0 uso de pesticidas em policulturas poderia ser reduzido ow até mesmo eliminado. Com a perspectiva de se dispensat 0 uso de pesticidas, Piper seus colegas comegaram a imaginar a possibilidade de abolir outro tipo de fertili- zante industrial: os adubos nitrogenados. ) 42 4 BIOMIMETICA Podem as policulturas produzir sua propria adubacdo nisrogenada? A questo de quanta adubagao nitrogenada um prado doméstico precisaria ainda nao foi definitivamente respondida, pelo menos nao até a elaboragao deste livro. Até agora, porém, alguns indicios nos fazem vislumbrar a idéia de que ele precisaria de pouca ou nenhuma, Em experiéncias feitas com plantas anuais, a fer- tilidade do solo sempre parece maior nas policulruras, principalmente quando ha Jeguminosas no lote. Mintisculos nédulos esferoidais nas raizes de uma legumino- sa (tal como a Desmanthus illioensis)) s20 0 abrigo de bactérias que tem a capaci- dade para transformar o nitrogénio atmosférico em nutriente vegetal. Conseqiicn- temente, as leguminosas se adaptam muito bem a solos pobres em nitrogénio, grassando pujantemente onde outras plantas morrem. As plantas que crescem per- to da auto-suficiéncia das leguminosas podem beneficiar-se também do armaze- namento de nitratos que voltam ao solo quando as leguminosas deitam suas fo- Ihas, reviram parte de suas raizes ou morrem. Em seu estudo inicial das policulturas das quais fazia parte a Desmanthus illioensis, Piper descobri que, conforme previa, a Desmanshus illioensis consegue desenvolver-s¢ ¢ produzir bem mesmo em solos pobres, promovendo, alidés, a me- Ihoria das caracteristicas deles. Conforme Piper reporta em trabalhos cientificos, “A concentracao de nitratos nos solos mais pobres em que, durante quatro anos, a Desmanthus illioensis foi cultivada mostrou-se quase idéntica & dos solos melho- res, apesar de as condigdes relacionadas com o nitrogenio serem bem diferentes no inicio.” Cultivar leguminosas é colher frutos ¢, a0 mesmo tempo, fertilizar 0 solo. E é por isso, logicamente, que nenhum prado podetia ficar sem elas. Apesar do trabalho promissor do The Land Institute, estamos muito longe do dia tem que teremos pio de Tripsacum dactyloides em nossos supermercados — talvez da- quia uns 25 ow 50 anos se esses pesquisadores forem os tinicos a trabalhar nisso. — Estamos no estigio de Kitty Hawk’ — afirma Jackson, - Demonstramos os principios da resisténcia do ar e da forca ascensional, mas nao estamos ainda pron- tos para transportar pessoas pelo Atlintico num Boeing 747. No entanto, cles esto prontos para fazer algumas afirmag6es arrebatadoras. Em Eugene, Oregon, vi Wes Jackson fazer uma platéia sobressaltar de surpresa com esta declaragao: “Depais de dezessete anos de pesquisas cientificas em busca de respostas para quatro questées biolégicas basicas, 0 The Land Institute est4 pronto para afirmar formalmente que 0 nosso pais pode montar um sistema agri- cola baseado num padrio essencialmente diferente do da agricultura que o ho- mem tem praticado nestes tiltimos 8 mil ou 10 mil anos.” Sem jamais perder seu 3. Alusdo aos testes que os irmios Wright fizeram com um protstipo de aeroplano nessa cidade, na Carolina do Norte. (N.T) COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 43 humor matreiso de homem do campo, Jackson esperou que os aplausos irrompes- sem ¢ actescentou: “E nao apenas isso, mas achamos que ela pode ajudar a solu- cionar todo tipo de problema conjugal ¢ acabar com o pecado ¢ a motte tais co- mo 0s conhecemas.” Em que pese a exploséo de riso da platéia, nao havia dtivida quanto a seriedade daquilo que Jackson ¢ seus colegas tinham conseguido. Se 0 celeiro natural sob processo de erosio for transformado pelo trabalho do The Land Institute, isso repercutiré em toda parte, Mas 0 nosso celeito natu- ral é apenas uma pequena parte das terras cultivaveis do mundo. O que Piper, Jackson ¢ os outros jamais sonhariam em fazer € importar 0 modelo de agricultu- ra de sistemas naturais para todos os lugares. Esse tipo de agriculrura, feito a ima- gem da natureza, nao poderia set o mesmo em todos os cantos do mundo, pois os ecossistemas em torno do globo diferem radicalmente uns dos outros, ~ Tome como exemplo a diferenga entre as florestas tropicais ¢ as pradarias — Jackson explica. ~ Na umidade intensa das florestas tropicais, onde a égua pode existir em abundancia, é necessério que haja fatores de dispersao de égua: plantas que possam liberar 4gua em forma de vapor rapidamente. No ambiente de seca relativa das pradarias, é necessétio que haja vegetacao que retenha égua. O que pode ser importado do The Land Institute, afirma Jackson, éa sua me- todologia— seus processos de aprendizagem do funcionamento dos sistemas de ve- getagao nativa, pela intuigao de suas “regras”, c depois pela tentativa de criar e cul- tivar, 205 poucos, uma comunidade de plantas que imite a estrutura e desempenhe as fungdes desse sistema. Conforme mostrario as histérias seguintes, essa “impor- tagao” jd esté acontecendo. PROVAS DE AMADURECIMENTO AO REDOR DO MUNDO Agricultura “Ociosa” no Japao Cingiienta anos atrds, quando Wes Jackson, ainda menino, carpia a fazenda da familia, um jovem japonés chamado Masanobu Fukuoka fez uma caminhada que transformaria sua vida. Enquanto caminhava por uma estrada rural, avistou um pé de arroz numa vala, uma planta que crescia nao num lore bem-cuidado, mas num emaranhado de hastes de artoz cortadas. Fukuoka ficou impressionado com 0 vigo da planta e com o fato de que tivesse crescido antes de todas as outras dos campos cultivados ao redor dela, Ele guardou para si o fato como um segre- do que lhe houvessem revelado. Com o passar dos anos, Fukuoka transformou esse segredo num sistema que ele chama de “ocioso”, uma vez que nao requer quase nenhum trabalho da parte dele, embora sua produgao esteja entre as maiores do Japao. Sua receita, aprimora- da por tentativas ¢ erros, imica 0 truque da sucessio natural ¢ de cobertura do so- 44 A BIOMIMETICA lo, No inicio de outubro, Fukuoka faz. a semeadura manual de sementes de trevo em meio as suas plantas de artoz crescidas. Pouco tempo depois, faz a semeadura de centeio e cevada no arrozal. (Ele recobre as sementes com argila para evitar que 0s pdssaros as comam.) Quando o arroz. est pronto para ser colhido, ele faz a cei- fa, a debulha e espalha a palha pelo campo. A essa altura, 0 trevo jé esté bem de- senvolvido, ajudando a sufocar ervas daninhas e a fixar nitrogénio no solo. Através do emaranhado de trevo e palha, 0 centeio e a cevada surgem e comegam a esten- der-se em direcao ao sol. Pouco antes de fazer a ceifa da cevada ¢ do centeio, ele re- pete © processo, fazendo a semeadura do arroz para dar inicio ao seu crescimento protegido, Eo ciclo se repete sempre, um mecanismo de autofertilizagao e de au- tocultivo. Desse modo, 0 arroz ¢ as gramineas de clima frio podem ser cultivadas no mesmo campo por muitos anos sem reduzir a fertilidade do solo. Os fazendeiros das redondezas esto curiosos. Enquanto passam 0 dia culti- vando, carpindo e fertilizando o solo, Fukuoka deixa que a palha ¢ 0 trevo fagam seu trabalho, Em vez de alagar seus campos durante toda a estagéo, Fukuoka usa apenas uma quantidade de gua suficiente para induzir a germinagio das semen- tes. Depois disso, drena os campos ¢ passa a nao preocupar-se com mais nada, exce- to com a carpidura ocasional das passagens entre os campos. Num quarto de acre, ele colhe 770 litros de arroz ¢ a mesma quantidade de grios produzidos pelas gra- mineas invernais. Isso é o bastante para alimentar entre cinco ¢ dez pessoas, em- bora uma ou duas pessoas precisem de apenas uns poucos dias de trabalho para” fazer a semeadura manual ¢ a ceifa. Agricultura natural espalhou-se rapidamente pelo Japao ¢ estd sendo pra- ticada em cerca de 1 milhao de acres na China. Atualmente, pessoas de todas as partes do mundo visitam a fazenda de Fukuoka para aprender nao apenas técni- cas de cultivo, mas também filosofias. O interessante nesse sistema ¢ que 0 mes- mo campo de cultivo pode ser usado sem que sofra esgotamento, ¢ os niveis de produgao podem ser sistematicamente bons. Em yez de ter de despejar energia ¢ dinheiro na fazenda na forma de insumos agricolas, 0 agricultor pode empregar a maior parte de seu investimento no planejamento da propriedade. — Precisei de trinta anos para chegar a essa simplicidade — revela Fukuoka, Em vez de trabalhar mais arduamente, ele foi eliminando uma por uma as praticas agricolas que considerava desnecessérias, perguntando-se o que podia dei- xar de fazer, e no 0 que podia fazer. Abandonada a confianga que tinha na inte- ligéncia humana, ele aliou-se & sabedoria da natureza. Ele diz em seu livro, One Straw Revolurion: “Esse método é completamente diferente das técnicas agricolas modernas. Ele atita pela janela todo conhecimento cientifico tradicional da agri- cultura. Com esse tipo de agricultura, que nao usa méquinas, nenhum preparado de fertilizante ¢ nenhum produto quimico, é possivel obter niveis de producao igual aos das outras fazendas de porte médio japonesas ou até mesmo maiores.” A prova esté amadurecendo diante dos seus olhos. COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 45 Permacultura Australiana Quando os ecossistemas sio eficazes e estdveis, no requerem tanto trabalho quanto os que se encontram na vulnerabilidade do primeiro estagio de sucessio. O ccologista australiano Bill Mollison defende, assim como Wes Jackson, a idéia de se manter algumas plantages na terra durante muitos anos, para aproximar 0 mais posstvel a cultura da eficiéncia dos sistemas agricolas naturais Durante anos, Mollison trabalhou no aperfeigoamento de um sistema de baixo custo por meio do qual pequenos farendeiros formariam um pomar de fi- cil manutengio, um bosque, e criariam peixes e outros animais para se tornarem auto-suficientes — alimentados, vestidos ¢ abastecidos com recursos locais que fi cassem literalmente & mio. Planejar com a sabedoria da natureza é o fundamento dessa filosofia agricola, chamada permacultura, ou agricultura permanente. Na petmaculrura, a questo nao é 0 que se deseja extrair da terra, mas o que a terra tem para oferecer. Voce age de acordo com os pontos fortes e fracos das suas ter- ras, ¢, nesse espirito de cooperagio, explica Mollison, a terra produz generosamen- te sem esgotar-se ¢ sem necessidade de grandes esforcos fisicos por parte do fazen- deiro. A parte mais trabalhosa da permacultura é a criagio de um sistema auto-sustentével. A ideéia é distribuir os lotes de modo que aqueles que voce visita mais freqiien- temente fiquem préximos da sua casa (Mollison chama isso de “paisagem comes- tiyel”) © os que requerem menos vigilincia sejam dispostos como cfrculos concén- tricos, afastados da casa. Em toda parte, plantas sob sistema de sombreamento duplo ou triplo, ou seja, arbustivas protegidas pela sombra de pequenas 4rvores, que, por sua vez, recebem a sombra de aryores mais altas. Os animais pastam sob © amparo desse sombreamento triplo. Declives ¢ canais para armazenar a 4gua da chuva e pata irrigagao automdtica. Sempre que possivel, os permacultores usariam forgas externas, tais como a dos ventos ou das cheias para ajudé-los em seu traba- ho. Eles construiriam moinhos, por exemplo, ou cultivariam plantas em planicies aluviais, onde poderiam beneficiar-se dos depésitos anuais de sedimentagio aluvial. A escolha de combinagdes agricolas sinérgicas — 0 uso de “plantas amigas” para a complementagio reciproca entre clas ¢ a extetiorizagao do melhor que elas tenham a oferecer ~ é a chave de uma paisagem agricola bem-sucedida. Para o aproveitamento maximo dessas combinagGes, 0 permacultor estabeleceria uma boa margem de distancia entre os campos ~ zonas de transigdo entre dois habitats que fossem especialmente cheias de vida c relagées muituas. Mollison éa favor tam- bém da participagio de animais em lugar do alto consumo de energia ou equipa- mentos. Um exemplo seria uma estufa/galinheiro no qual plantas seriam empilha- das cm bancadas em. degraus. As aves se aninhariam nos degraus & noite, desfrutando do calor deixado pela incidéncia de radiagao solar, Elas aumentariam com seus préprios corpos o calor existente ali, ajudando as plantas a sobreviver as 46 4 BIOMIMETICA madrugadas gélidas. De manha, quando a estufa ficasse muito quente, as aves se- guiriam para a mata com o intuito de alimentar-se. Enquanto procurassem nozes e glandes caidas das drvores plantadas e buscassem o alimento na forma de pragas existentes ali, varreriam 0 solo como ancinhos, arejando ¢ adubando-o, Os seres humanos comeriam os ovos e, eventualmente, a carne dos frangos, mas enquan- 10 isso nao thes fosse conyeniente, desfrutariam de seus servigos como cultivado- res, controladores de pragas, aquecedores de estufas ¢ fertilizadores vivos. Mollison aprendeu esse sistema eficiente em primeira mao quando traba- Ihava nas florestas da Australia no fim da década de 1960, Como pesquisador, foi treinado pata desctever 0 mundo bioldgico e mais nada. Mas Mollison deu pas- so seguinte em sua evolucao pessoal, algo fundamental na biomimética: ele viu ligGes para a modernizacio da sobrevivéncia humana nos sistemas de vida das flo- restas ¢ jurou empregar um dia seus mecanismos num novo tipo de agricultura. Hoje, muitas fazendas australianas trabalham com os principios permacultores que ele popularizou, ¢ um instituto internacional de permacultura, com filiais em todo o mundo, esta treinando pessoas para a disseminagao dessa técnica. Mol- lison acredita que, espelhando-se nas comunidades mais produtivas e estaveis da natureza ¢ vivendo em seu sei, as comunidades humanas podem comecar a des- frutar da sua beleza, da sua harmonia e de uma producao agricola que preserva os bens da Terra. A Fazenda da New Alchemy em Cape Cod Outro exemplo de substituicao da agricultura pela ecocultura pode ser visto em Cape Cod, nos escritérios de dois dos mais inovadores bioengenkeiros do pais, John ¢ Nancy Todd. Em 1969, eles criaram o New Alchemy Institute para fazer projetos de sistemas habitacionais ¢ de producdo de alimentos que usariam a na- tureza como modelo. A floresta em sucesso era o guia conceitual para a sua fa- zenda totalmente auto-sustentavel. “Conceitualmente, nossa fazenda comega no fundo de numerosos viveiros de peixes e se estende pela cobertura do solo formada pelas plantag6es de legumes e de forrageiras, onde os animais pastam. E eleva-se 4 camada de plantas arbusti- vas ¢ ao sombral formados pelas drvores produtoras de frutas, nozes, madeira e for- ragem. Além desse plano, esperamos manter a fazenda num estado dinamico de produgao ininterrupta, enquanto ela continua a evoluir ecologicamente na dire- gfo de uma floresta”, escreveu Todd em seu livro de 1994, From Ecocities to Living Machines. Assim como a permacultura de Mollison, a fazenda da New Alchemy é concebida de tal modo que todo'componente vivo tenha uma funcio muiltipla — sombreamento e fertilizacéo, por exemplo, bem como producio de alimentos. (Onde isso é posstvel, o trabalho de méquinas (¢, por extensao, de seres humanos) é substituido pelo trabalho de sistemas ou organismos biolégicos) COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 47 Uma das inspirag6es dos Todd foram as fazendas javanesas, na Indonésia, on- dea agriculrura alternativa (para nés, em todo caso) prospera hd séculos. A fazen- da javanesa € a natureza em miniatura, ¢ revela os processos restauradores da su- cessio plancjada. “A agricultura em sucesso ou ecolégica difere da agricultura comum pelo fato de que se adapta a transformagGes com 0 tempo. Nas primeiras fases, plancas anuais e viveiros de peixes podem dominar o panorama, mas, A me- dida que a vegetacao cresce ¢ amadurece, 0 conjunto ganha uma nova dimensio, jd que as plantas ¢ os animais se tornam resistentes a0 meio. A chave de tudo é imitar a tendéncia natural da sucesso, que, com 0 tempo, cia ecossistemas que utilizam com eficiéncia e equilibrio os elementos espaciais, energéticos ¢ biolégi- cos do ambiente.” Agricultura com Sombreamento Triplice na Costa Rica A sucessio existe também no centro de uma versio costarriquenha da pro- posta da Agricultura de Sistemas Naturais. As florestas tropicais ali sto verdadei- tos paraisos — cornucdpias de vegetagao irretocivel ¢ plantas comestiveis amadu- recendo sob a fonte de calor natural. E, portanto, bastante irénico, ¢ talvez revelador, o fato de florestas tropicais como essa serem tio ruins para a plantacao de culturas convencionais. Nos primeiros anos de derrubada e/ou de queimadas da vegetacao virgem dessas florestas, a producao agricola é boa, mas depois seu nf- vel cai vertiginosamente. Isso faz sentido se vocé entender que a mesma forca que cia esse tipo de floresta — verdadeiros dihivios — pode também remover nutrien- tes do solo que fica desprotegido com 0 desmatamento, pois nao hé plantas para absorver dgua. As plantacées também extraem ainda mais nutrientes do solo. De- pois de alguns anos dessa subtrago de nutrientes, o solo se esgota rapidamente. As clarciras naturais das florestas tropicais tm um destino bem diferente. Elas sio recobertas rapidamente por vegetagio, por uma série de espécies que se impéem e predominam umas apés as outras, fixando rafzes, disseminando som- breamento, deitando folhas ¢ restaurando a fertilidade da drea. As reservas de nutrientes do sistema perpetuam-se na biomassa vegetal crescente — nutrientes da “fonte”. John J. Ewel, professor de botanica da University of Florida, em Gainesvil- le, enunciou a tese de que, se nos fosse possivel simular 0 desenvolvimento natu- ral de uma floresta tropical usando plantas agricolas como substitutas das espé- cies silvestres, poderfamos produzir 0 mesmo fenémeno de fertilizacao do solo e aprimorar o sistema local, em vez de esgoté-lo. O segredo est em iniciar 0 pro- cesso com plantas agricolas que imitem o est4gio de sucessio (gramineas e legu- minosas) ¢ depois actescentar ao sistema plantas agricolas que imitem o estégio seguinte (arbustivas perenes), sempre seguindo em direcao as Arvores maiores — nogueiras, por exemplo. 48 A BIOMIMETICA Para testar sua hipétese, Jack Ewel e seu colega Corey Berish limparam dois lotes na Costa Rica, deixando-os recompor-se depois naturalmente, até alcangar a condigao de floresta. fim um dos lotes, toda vez que uma planta nativa germina- va, eles a arrancavam ¢ a substituiam por uma espécie agricola que tivesse a mes- ma forma fisica} Planta anual por planta anual, herbécea perene por hérbdcea pe- rene, drvore por drvore, parteira por parreira — era como se a natureza estivesse guiando as maos dos agrénomos, A série de candidatas ao sistema natural (helicé- nias, cucurbitéceas, ipoméias, leguminosas, arbustos, gramineas e arvores de pe- queno porte) foram substituidas por banana-da-terra, variedades de abdboras, inhame ¢ (no segundo ou terceiro ano) por espécies de crescimento r4pido, como nogueiras, frutiferas e algumas titeis como fonte de madeira, tais como castanhei- ras-do-pard, pessegueiros, palmdceas e jacarandés, Essa floresta tropical doméstica se parecia com a verdadeira floresta tropical que existia ao lado e comportava-se como ela, Ambos os lotes tinham uma super- ficie entrecortada por uma rede de raizes semelhante e de boa qualidade e um grau de fertilidade do solo idéntico. Os pesquisadores incluiram também ali dois lotes de controle: um com o solo escalvado € o outro usado para rodizio de monocul- turas — milho e feijao seguido por mandioca ¢ depois por uma espécie que forne- cia madeira, Enquanto 0 solo escalvado ¢ 0 da monocultura perderam seus nu- trientes bem rapidamente, o da “floresta tropical doméstica” continuou fértil. Varios anos antes da publicagao do estudo de Ewel, o permacultor britanico Robert Hart publicou também algumas recomendag®es concretas para a criagio de sistemas agricolas que imitassem 0 ecossistema tropical. Neles, estava incluido 0 cultivo da mandioca, da banana, do coco, do cacau, da seringueira e de fornecedo- ras de madeira, tais como boragindceas eo mogno. No fim de sua sucessio, o sis- tema agricola de Hart seria um sombreamento em trés niveis, imitacao da estrutu- ra da floresta tropical, bem como de seu ciclo nutritivo, seu controle de pragas natural e sua funcdo dispersiva da 4gua. O segredo da manutengio da fertilidade do solo, revela Hart, ¢ fazer a opgao por plantas agricolas perenes com muitas fo- has ¢ rafzes, para que possam proteger o solo contra chuva intensa, armazenar nu- trientes em sua biomassa e devolyer matéria orginica ao solo quando deitam flores ¢ frutos. Hart achou importante também usar plantas que formassem associagies simbidticas, bem como plantas com rafzes profundas e que extrafssem nutrientes de diferentes n{veis de profundidade do solo. Dessa forma, o solo era mantido sob cobertura constante, faziam-se varias colheitas ao ano ¢ cada novo conjunto de plantas agricolas preparava o solo fisica ¢ até mesmo quimicamente para 0 estégio seguinte. Assim que a sucesso alcangava 0 estégio de vegetagao arbérea, os fazen- diros podiam fazer 0 corte seletivo das fornecedoras de madeira e queimar as plan- tas perenes a cada trés anos ou mais para reiniciar 0 ciclo. Além de servir como sus- tento dos fazendeiros locais, esse sistema auto-sustentavel pode ajudar também a tornar mais lento o implacével processo de derrubada de mata virgem. COMO NOS ALIMENTAREMOS? A 49 A Floresta de Madeira-de-lei da Nova Inglaterra Por mais revoluciondrio que pareca agora, a imitagio de ecossistemas nfo é um conceito novo. Jé em 1943, Sir Alfred Howard, ao qual muitos atribuem a in- vengéo da agricultura orginica, em seu liveo An Agricultural Testament, falava de um tipo de agricultura que se adaptasse a terra, tal como fizera J. Russel Smith, em seu livro de 1953, Tree Crops: A Permanent Agriculture. Smith queria ver as en- costas das colinas do leste recobertas com drvores agricolas, que pareciam conyir mais a esse tipo de terreno do que as plantas agricolas, causadoras de erosio, de- pois que a grande muralha verde do Novo Mundo foi arrasada Smith via a floresta decidua do leste como modelo de diversidade e estabili- dade, Ele fez a descricio do grande mimero de nichos formados pelos varios ni- cis de sombreamento vegetal, bem como por plantas arbustivas ¢ herbéceas. Gra- Gas a essa diversidade, escreveu, as pragas so mantidas sob controle ¢ os péssaros € animais herbjvoros desfrutam de muitos lugares para sobreviver. As raizes finas ¢ fibrosas da vegetasao rasteira agem como o relvado das pradarias, sustentando 0 solo ¢ retendo nutrientes. As folhas soltas ¢ 08 restos orginicos sao transformados lenta ¢ ciclicamente em nova vegetagio, impedindo a perda de nutrientes funda- mentais por escoamento ou deslizamento de encostas. A camada de huimus esti- mula também o desenvolvimento de micorriza — fungos que formam associagdes com raizes ¢ thes aumentam a capacidade para achar 4gua. De quando em vez, ventos, doengas ou raios destroem drvores, criando uma lacuna na qual sucessio ¢ renovacio podem ocorrer novamente, A agricultura primitiva nessas terras, praticada por indigenas americanos, era também do tipo sucessio. As tribos praticavam agricultura de lotes medindo en- tre 20 e 200 acres, onde cultivavam feijao, abdbora, milho ¢ tabaco, Depois de oi- to ou dez anos, os fazendeiros indigenas mudavam-se para outras bandas ¢ deixa- vam a terra repousar. No intervalo dos vinte anos anteriores & volta dos indigenas agricultores, a sucessio se reiniciava e a fertilidade do solo era restaurada, Esse mé- todo de uso da terra fazia com que as tribos fossem némades, mas era uma imita- ao do dinamismo natural da floresta pois, com a criagao de pequenos canteiros, petmitia depois que estes se transformassem novamente em florestas. Em seu livro, Smith deplora a perda de solos e da produtividade que ocor- reu quando colonos brancos comegaram a praticar a agricultura mais constante- mente nesses locais, desmatando encostas para cultivar suas plantas. A agriculeu- ra nfo se adaptava terra, pondera. Contratiamente a isso, ele propés 0 cultivo de estruturas andlogas — dryores produroras de nozes ¢ frutas como as tinicas espécies adequadas a terras cobertas de florestas. Um esquema que lhe alimentava 0 sonho cra o cultivo de espinheiros-da-virginia (que produzem sementes envoltas em pol- pas comestiveis) juntamente com espécimes da Alien Lespedeza cuneata Fabaceae = leguminosa perene que pode ser utilizada como pastagem ¢ feno). Esse sistema 50 A BIOMIMETICA produzia alimentos e sustentava os animais, tudo com 0 m{nimo de trabalho, bai- xo custo de produgao bom controle de ervas daninhas. Ele registrou um retor- no de 2,04 toneladas anuais de feno por acre, uma média de 1,32 tonelada anual de sementes de espinheiro-da-virginia por acre, com uma produgao maxima por acre de 3,97 toneladas dessas mesmas sementes de drvores com 8 anos de idade. As caracteristicas que tornaram a floresta de madeira-de-lei sustentével na selva foram repetidas aqui: uma espécie arbrea como sombreamento superior, uma cobertura de sombreamento inferior com espécies resistentes para proteger 0 solo e reter nutrientes, uma fonte de nitrogénio biolégico ¢ um tipo de animal de pastagem. Infelizmente, as recomendagées de Smith deram amplamente em ou- vidos moucos quando seu relatério foi publicado pela primeira vez. O fato de seu trabalho ter sido republicado pela Island Press recentemente, com preficio de Wendell Berry, é um indicio promissor de que a idéia da agricultura baseada nos modelos da natureza est4 voltando a prosperar. O Deserto do Sudoeste No deserto do sudoeste americano, abrigo de plantas raquiticas e espinho- sas, onde a vegetagao dos prados ¢ das florestas hesita em deitar rafzes, a criagho de um modelo de agricultura é algo quase impensavel, Em todo o Sonoran, Chi- huahua e Mojave, a precipitagao pluviomeétrica é irregular e rigorosamente sa70- nal, ¢ os solos podem variar de natureza a cada trés ou quatro pasos. Essas con- digSes irregulares criam um ambiente de vegetaco esparsa — agrupamentos de plantas em férteis leques aluviais, ao passo que, em extens6es de solo mais Aridas, elas se fixam mais esparsamente para obter toda 4gua possfvel. Além de ter de di- vidir o espago, elas tém de dividir a estagdo. Muitas espécies florescem e germinam somente quando hé agua, mas entram em repouso “hibernal” enquanto 0 verio castiga o ambiente. Essas estratégias, que permitem que as plantas tirem vantagem de recursos eftmeros e resistam a longos periodos de seca, foram teproduzidas nas técnicas agricolas dos povos aborigines que prosperaram ali durante milhares de anos. Os Papago ¢ os Cocopa continuam a yiver ali, obtendo alimentos das plantas silves- ares ¢ do cultivo de plantas do deserto ¢ de leguminosas, todas nativas da regio, adaptadas, portanto, para tirar 0 maximo de recursos limitados. O etnoboranico Gary Paul Nabhan descreveu as praticas agricolas desses povos em seu livro Gu- thering the Desert. Até onde possivel, escreve Nabhan, os Papago ajustam a época de suas pré- ticas agticolas pelo relégio sazonal local. A ¢poca do plantio, por exemplo, coin- cide mais ou menos com o aparecimento das plantas anuais do deserto — pouco antes ou depois das chuvas benfeitoras. Com o plantio feito exclusivamente em leques aluviais fartamente regados por Agua, cles cvitam 0 trabalho de ter de fazer FEBAS? CENTRO GESTOR DA IFORKAGAO BIBLIOTECA COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 51 irrigagdo freqiiente, com 0 que, nesse clima de evaporagao excessiva, sais veneno- 0s seriam depositados nas camadas superiores do solo. Além de plantas anuais, os Papago cultivam também espécies suculentas, ervas e plantas lenhosas pata a ob- tengo de alimento e fibras. De permeio as plantas de cultivo, crescem algarobei- ras, deixadas nos campos porque fazem a fixacao de nitrogénio ¢ extraem nutrien- tes armazenados nas profundezas do solo. Bem antes de os agrénomos saberem por que esse cultivo coletivo funcionava, os Papago o praticavam, orientados pe- lo “génios do lugar”. A Agricultura Regeneradora da Rodale Nenhuma conversa sobre agricultura orginica seria satisfatéria sem mengio da familia Rodale, de cujo legado fazem parte a editora Rodale Press € revistas co- moa Organic Gardening Magazine, a New Farm ea Prevention, esta tiltima dedi- cada a questdes de satide. Assim como a permacultura de Mollison, a “agricultu- ra regeneradora” baseia-se em estruturagées biolégicas para aumentar a eficacia do fluxo de nutrientes ¢ energia ¢ fazet com que baixos investimentos em energia se- jam geridos de modo que resultem em alta produtividade:.A sucessio é usada tam- bém estrategicamente. As plantas sio escolhidas cuidadosamente para alterar a flo- ra ea fauna de tal forma que se possam prever as necessidades da plantacao seguinte, Por exemplo, o agricultor pode cultivar uma espécie alimenticia que fa- s2.com que a comunidade de ervas daninhas desenvolva caracteristicas que nao re~ presentem problema para a plantacao seguinte. Ou poderia dar énfase 20 acimu- lo de nitrogénio e carbono numa parte do ciclo da rotagio de cultura para aumentar a produtividade de plantag6es subseqiientes. Por fim, os pesquisadores da Rodale dedicaram algum tempo, como fizera Jackson, & procura de espécies pe- renes que substituissem plantas anuais, como trigo, arroz, aveia, cevada. Deixando 0 Gado Solto no Meio-Oeste Os agricultores nao sao 0s tinicos que se enconiram presos no gargalo da agri- cultura comercial. H4 muitos anos, os produtores de laticinios do Meio-Oeste americano vém ceifando 0 pasto com maéquinas, em vez de deixar que o gado 0 coma, transportando de trator 0 feno em fardos de 23 quilos para galpoes de or- denha mecanica iluminados ¢ aquecidos artificialmente. Agora, tudo isso esté mudando. Os produtores de laticinios estao abrindo as portas da mente e de seus celeiros levados por um movimento inspirado na natu- reza chamado “pastoreio Voisin”, ou rodizio de pastagens. Os produtores que mu- daram para esse tipo de agricultura deixam suas vacas comer pelo menos trés das cinco ceifas de gramfneas do campo. Eles dizem que acham mais satisfatério levar as vacas para pastar do que trazer 0 pasto até elas, Além disso, esses pecuaristas 52 4 BIOMIMETICA acham que suas vacas esto mais saudaveis ¢ que suas contas est4o mais magras. A presenga de esterco nos campos significa que podem reduzir suas despesas com fertilizantes ¢, pelo fato de fazerem a ceifa do pasto com maquinas somente duas veres, economizam dinheiro com combustfvel e pegas mecinicas. Depois de alguns anos, muitos desses fazendeiros esto migrando para um ci- clo ainda mais natural, Em yez de ordenhar as vacas 0 ano inteiro, cles as “secam” durante 0 inverno, de modo que possam procriar todas 40 mesmo tempo em abril ¢€ estarem prontas para voltar para o pasto na primavera, Essa providéncia permite que os fazendeiros facam aquilo que era impensdvel no velho sistema ~ tirar férias. A expressio rodizio de pastagens nos fornece um indicio de como esses fazen- deiros véem a si mesmos. —Eles se consideram ceifeiros do sol agora, por transformarem a luz solar em pasto-e depois em carne e leite — diz Stephanie Rittmann, que baseou sua tese de doutorado de 1994 (University of Wisconsin-Madison) no crescente movimento ena tentativa de explicar por que e como ele estd crescendo. — O que me parece interessante € o que 0 rodizio de pastagens fez. vida comunitéria nas 4reas rurais do meio-oeste — observa Rittmann. — Pelo fato de esses fazendeiros estarem tes- tando algo inteiramente novo, esto todos no estdgio inicial em matéria de tecno- logia. Nenhum deles € um especialista consumado na administragao de pastagens para o gado. Alids, um de seus tinicos guias é um livro intitulado Grass Producti- vity, escrito pelo agrdnomo francés André Voisin em 1959. Além disso, eles se aconselham entre si ¢ formaram uma comunidade assistencial de longo alcance. — Uns visitam as fazendas dos outros periodicamente para compartir o que esto aprendendo ¢ publicam um jornal mensal chamado The Stockman Grass Grower, repleto de conversas simples entre produtores Para cultivar boas pastagens, os pecuaristas que utilizam o sistema Voisin de rodizio de pastagens enfrentam muitos dos mesmos desafios que os restauradores das pradarias enfrentam. Eles comecam com um campo de alfafa ¢ depois se- meiam cerca de seis espécies de gramineas. A medida que os anos passam, a vege- tacao silvestre se infiltra no pasto, algumas espécies das quais os fazendeiros jamais viram. Conforme relata Rittman, eles ficam observando o fenémeno da suces- so em suas terras, comparam observagGes e aprendem a ver como a terra devia ter sido antes do arado. Eles esto também usando novos meios de avaliacéo da satide de suas pasta- gens, ¢ € nesse aspecto que o fazendeiro se torna naturalista. Passada a perplexida- de inicial, um homem ficou impressionado com os estranhos estalidos que vinham de seus campos —o som de centenas de milhares de tuineis de minhocas sendo ca- vados depois da chuya. “Finalmente, entendis esse ¢ 0 som de um pasto saudavel”, ele disse a Rittmann. Outro fazendeiro disse que precisou de trés anos de pasto- reio Voisin para poder ouvir novamente o canto de pdssaros em suas pastagens. ‘Atualmente, ele relaciona ¢ cataloga'a diversidade de péssaros existente em suas COMO NOS ALIMENTAREMOS? A 53 pastagens'como forma de avaliar a satide destas, Outros fazendeiros adeptos do pastoreio Voisin ficam atentos a grumes de esterco — um monte de esterco numa microfauna € microflora sadia decompée-se, normalmente, em trés semanas no vero. Se ficar inteiro por mais tempo, os fazendeiros disseram a Rittmann, eles comecam a ficar preocupados. — O que eles esto fazendo € aprendendo a ler a natureza, em ver de simples- mente confiar na palavra de um vendedor de pesticida — ela explica. — Eu lhes digo que eles esto comegando a agir como ecologistas, ¢ eles apenas menciam a ca- bega e sorriem. “Nao. Isso € apenas pecudria’, eles me dizem. Pecudria inteligente. SEPARACAO RADICAL: COMO NOS LIBERTARMOS DA ESCRAVIDAO? A disseminagao da idéia do pastoreio Voisin deveria ser bem estudada, Como équeuma idéia ganha espaco na imaginagao de um grupo cultural ¢ economicamen- te preso a certa maneira de fazer as coisas? Como 0 The Land Institute venderd a sua idéia a fazendeiros que jd esto agitando as préprias pernas o mais rapidamente pos- sivel para continuar boiando nao afundar? Como livré-los de seus medos? ‘Wes Jackson tem plena conscigncia de todas as coisas que a nossa mente tem de superar. Aos iniciantes, ele fala da mente como algo influenciado pelo reducio- nismo, pela experiéncia, evolugao ¢ afluéncia dos americanos, “Estamos conven- cidos de que 0 universo & composto de pequenas partes independentes, de que hd sempre uma nova fronteira, de que qualquer tecnologia & adaptavel e de que ha, como afirma o escritor Wallace Stegner, ‘coisas que, uma vez possuidas, no se po- de ficar sem.’” Esse condicionamento da mente torna dificil para nds pensatmos 1no todo, respeitarmos os limites da natureza ou recusarmos aquilo que a tecnolo- gia promete, seja riqueza, seja poder, seja previsibilidade, seja alimento barato. Co- mo, portanto, o Celeiro se tornard um prado doméstico? —Nio serd de uma hora para outra — afirma Piper. Comegaremos fazendo a proposta dos Sistemas de Agricultura Natural como alternativa para os fizendei- ros envolvidos com © Conservation Reserve Program. ~ © Conservation Reserve Program (CRP) foi langado em 1985 para fechar as cicatrizes sangrentas cauisadas pelo periodo do incentivo do cultivo da terra “de cerca a cerca”, Os fazendeiros re- cebem uma média de 48 délares por acre para aposentar tetras passiveis de erosio e recobri-las de gramineas perenes. Até agora, 36,5 milhGes de acres receberam 0 plantio dessas espécies por meio do CRP (se actescentarmos as terras submetidas a0 amparo de programas anteriores, esse total passa de 100 milhdes de acres de campos ondilantes e cobertos de gramineas). Infelizmente, muitos desses acres fo- ram cobertos com gramineas exéticas que so de aproveitamento limitado pela vi- da selvagem € nao oferecem aos fagendeiros “visados” (os que abandonaram a cria- fo de gado) nenhum meio de renda. 54 4 BIOMIMETICA Policulturas de espécies perenes nessas mesmas terras dariam renda aos fa- zendeiros, além da fixagao do solo, Nesse caso, eles poderiam obré-la de trés for- mas diferentes. Poderiam ceifar os prados domésticos, colher os graos para con- sumo prdprio ou, se tivessem,criagio de gado, simplesmente usé-los para alimentar os animais. Desse modo, a renda voltaria para 0 fazendeito, em ver de ser levada pelos fabricantes de pesticidas ¢ fertilizantes. Piper acha que a hora é apropriada para esse tipo de transigao, pois 0 prazo de vigéncia do CRP esté prestes a expirar, ¢ talvez nao seja renovado. Numa pesquisa feita pela Ohio Soil and Water Conservation Association, 63% dos fazendeiros disseram que esta- vam pensando, por motivos econémicos, em cultivar suas terras amparadas pe- lo CRP se os subsidios fossem cortados. Talve7, se ouvirem falar do trabalho do ‘The Land Institute, eles abracem uma idéia inteiramente nova —a de curaro so- lo enquanto produzem alimentos. Numa cultura acostumada a causar danos & ter- ra, isso soa doce aos ouvidos. ‘Mas as policulturas de plantas perenes nao cobrirzo toda a extensio da fa- zenda, prevé Piper. Existem algumas regides de terras baixas que sio perfeitamen- te adequadas a plantagao de espécies da agricultura comum ~ sob o regime de um sistema orginico, logicamente. = Mas elas representam apenas a oitava parte das nossas terras cultivaveis — ele explica. — Os outros sete oitavos consistem de solo sujeito & erosio ¢ de terre- no em aclive, os quais softem muito quando usados para agricultura comum. Nes- sas terras, a Agricultura de Sistemas Nacurais faz mais sentido ecolgico. ~ Mas fa- 14 sentido para os fazendeiros? Em tiltima instdncia, 0 fator de persuasio mais poderoso serd a transforma- Gio das condig6es econdmicas. Quando a maneira pela qual os fazendeiros (alids, qualquer outra pessoa) vém fazendo as coisas se tornar economicamente insupor- tavel, eles se mostrario ansiosos por tentar algo novo. Isso pode ocorrer quando os combustiveis fosseis comesarem a escasscar, tornando insumos como gasolina, fertilizantes ¢ pesticidas proibitivamente caros. Quando essa época chegar, fare- mos aquilo que qualquer espécie faz quando forgada a transformar-se, Comegare- mos a parar de sair 4s compras na busca de alternativas ¢ adotaremos a mais cria- tiva, passando para o nivel seguinte da evolucio. No The Land Institute, eles chamam esse nivel seguinte de “futuro ensola- rado”. Quando Ihes perguntam que futuro ¢ esse, 0 pessoal do institute adora fa- lar sobre seu sonho do que seria a fazenda do futuro ensolarado: os fazendeiros do novo Celeito cuidariam bem de seus prados domésticos ~ cobertos de coletivida- des de espécies perenes produtoras de grios —, 0 que fortaleceria 0 solo, em vez de esgoté-lo, Por causa de sua diversidade quimica, essa fazenda se protegeria natu- ralmente contra a maioria das pragas, sufocando essas populacdes antes que alcan- assem niveis epidémicos, As ervas daninhas seriam combatidas com a interagio quimica das plantas e por meio de sombreamento, Os nutrientes seriam mantidos COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 55 no solo, em vez de escorrerem junto com a chuva. O uso de pesticidas e fertilizan- tes seria minimo; a manutencao das plantagées, moderada, ¢ os plantios, pouco freqiientes. O fazendeiro poderia comegar tudo de novo com uma nova espécie perene a cada trés ou cinco anos, mas faria isso por opgao, nao por necessidade. Os bezerros precisariam de menos cuidados. Atualmente, 0 gado de corte es- té sendo criado com biifalos, por exemplo, para gerar animais que fornegam cou- ro mais resistente, como se tivessem um celeiro no dorso. Esses “béifalos”, ou bee- falos, como séo chamados, poderiam ser deixados ao ar livre no inverno, climinando a necessidade de madeira para a construgio de abrigos. Durante todo © ano, poderiam ser transferides de uma policultura para outra num ritmo que nao pusesse em risco a germinacao ¢ o desenvolvimento das plantas. Seus dejetos poderiam contribuir para a estrutura do solo, o que, juntamente com a agao das raizes, permite que a relva retenha a umidade e realize a lenta infiltragao da égua. Maior capacidade de reten¢ao da 4gua significaria menos necessidade de irrigacio. Isso poderia estimular até mesmo o renascimento de fontes, a medida que as re- servas dos lengdis fredticos fossem aumentando. Até que possamos praticar agricultura nesse ensolarado futuro, escreveu Jackson, instituig6es como o ‘The Land Institute esto, na linha do pensamento budista, “abrindo caminhos ¢ avangando”, Pesquisa, economia e comunidade de- sempenharao cada qual o seu papel, o que dererminard a medida do sucesso des- sa jornada. O que vem a seguir é uma tentativa de estabelecer um itinerdtio. Consultando o Genio Local: Pesquisa ‘Wes Jackson compara 0 pesquisador agrénomo a figura notéria do bébado que procura as chaves perdidas sob a luz do poste da iluminacao puiblica. Ao Ihe perguntarem por que ele est procurando as chaves ali, quando, na verdade, as per- deu na outra extremidade da rua, ele responde que a luz € melhor ali. Analoga- mente, nossos institutos de pesquisa tém procurado achar avangos na agricultura no meio em que o dinheiro se encontra—o da gléria da agricultura comercial. Os contribuintes pagam a conta na forma de alocacao de verbas para as pesquisas do Departamento de Agricultura ¢ na forma de 20% de crédito para financiamento da ctiagao de novas instalacées de pesquisa privada. E 0 que estamos financiando? Arualmente, 0 grosso das pesquisas ajuda a sustentar o sistema agricola existente. A maior parte dos délares aplicados em questdes relacionadas com doencas, por exemplo; é gasta em pesquisas de comba- tea docngas que atacam somente plantas cultivadas em culturas continuas, siste- ma que sabemos tratar-se de verdadeira condenagao da fertilidade do solo. Em vez de pesquisar mercados para a descoberta de plantas alternativas (as que possam ser cultivadas em um sistema de rotagao de culturas), nossos economistas continuam a inyentar novos mercados para as quatro espécies famintas de investimento: tri- 56 A BIOMIMETICA go, milho, centcio ¢ soja. E, logicamente, muito dinheiro ¢ destinado ao cultive de espécies que sejam resistentes a produtos quimicos. “Onde estao 0s nossos valores?”, pergunta Gary Comstock, fildsofo da Towa State University. “Agora que 0 atrazina apareceu nos pogos de algumas fazendas, 0.2,4-D tem sido associado aos casos de linfoma nao-Hodgkin diagnosticados em fazendeitos; e agora que se suspeita que o Alaclor, o herbicida mais usado nas plan- tages de milho, é cancerfgeno, por que universidades que receberam doagao de terras do governo estéo fazendo pesquisas para descobrir plantas que podem ser cultivadas na presenga de doses mais fortes desses produtos?” Sea pesquisa ¢ uma forma de planejamento social, como afirma Chuck Has- sebrook, do Centro para Assuntos Rurais, 0 que isso nos diz sobre a idéia de aon- de queremos chegar como sociedade? Em vez de nos mantermos figis a um tipo de agriculeura que sabemos que destréi a terra ¢ mata pessoas, néo deveriamos es- tar atacando os problemas cuja solugao faria com que as nossas plantagGes se de- senvolvessem da forma que quveremos que elas se desenvolvam — em policulturas € sistemas de rotagao, por exemplo? Nao deveriamos estar seguindo o conselho da natureza e estar dando aos fazendeiros os meios de que precisam para praticar uma agricultura auto-susteatével, em vez de darmos a industria quimica mais agulhas com que nos envenenar? Fazia vinte anos que o The Land Institute vinha esfor- cando-se para manter as terras cultivaveis como tal, com pouca ajuda do governo. Chegara a hora, concluiram, de bater & porta do governo ¢ fazer com que 0s gas- tos com pesquisas se harmonizassem com as esperangas da sociedade no futuro. Wes Jackson estivera esperando pela ocasio certa para fazer isso. Quando os membros do The Land Institute tiveram cinco artigos publicados em jornais de prestigio, ele vestiu o terho e foi procurar 0 congressista Pat Roberts, que era o pre- sidente do Comité de Agricultura na época. Jackson apresentou-lhe um plano pa- ra virias partes do pais que poderiam ser escolhidas como centros da Agricultura de Sistemas Naturais. Essa rede seria submetida aos testes desse “protétipo” agrico- la num perfodo que variava entre 15 ¢ 25 anos, em diferentes condigées climéticas. Veja bem, disse Jackson a Roberts, 0 casamento entre a ecologia e a agriculeura ndo €0 tipo de pesquisa que 0 governo deveria apoiar? O congressista respondeu-lhe com uma pergunta, “O que a universidade pensa a respeito de tudo isso?” Assim, Jackson voltou para Kansas e recebeu um entusiasmado endosso da Kansas State University, Depois de muitas outras visitas ¢ persistentes telefonemas deum homem que preferiria estar debulhando Tripsacum dactyloides, o comite dis- sea Jackson: “Vamos ver isso de perto.” Essas palavras simples jamais tinham saf- do dos labios de pesquisadores agricolas tradicionais. Tampouco declaragées co- mo a da comissio da Kansas Stare University, na qual se admitia que “Precisamos de um novo padrao de pesquisas agricolas”. As pessoas sentadas perto de mim na conferéncia sobre Politicas de Agricultura Auto-Sustentével em Eugene, Oregon, ficaram compreensivelmente espantadas quando Jackson anunciou: “Em 28 dese- COMO NOS ALIMENTAREMO: A 57 tembro de 1995, 0 comité de conferéncia de ambas as cimaras concordou em in- cluir uma emenda no Farm Bill‘ de 1995 que, basicamente, determinava que a Se- cretaria de Agricultura estudasse ¢ apoiasse a Agricultura de Sistemas Naturais.” Uma aclamagio espontnea irrompeu no salao, ¢ aplaudimos Wes Jackson de pé. Controlando as Contas: Energia Depois que todos se sentaram, Jackson comegou a falar da sua paixio mais recente. Ele tem dito a todos que Ihe queiram ouvir que a contabilidade seré a pro- fissdo mais empolgante do novo século, Contabilidade. Rimos, mas depois ele ex- plicou que os ecologistas so uma espécie de contador. Um dos principais instru- mentos do ecologista para medir e descrever a sustentabilidade dos ecossistemas é fazet um circulo em como do sistema, contabilizar investimentos € produgio ¢, depois, analisar os ciclos de energia dentro do circuilo. Muitas vezes 0s sistemas na- turais, cm matéria de energia, cquilibram milagrosamente as contas — eles conti- nuam vidveis sem esgotar os préprios recursos. Se quisermos mudar para um sis- tema de agricultura mais natural, afirma Jackson, nossos sistemas também devem ser capazes de equilibrar as contas, pelo menos de duas formas: 1) economicamen- te, devem ser capazes de sustentar os fazendciros ¢ suas comunidades, ¢ 2) ecolo- gicamente, devem conseguir pagar as préprias contas de energia ¢ nao esgotar os recursos do préprio meio ou do planeta. O caminho mais seguro para a agricultura auto-sustentavel, argumenta Jack- son, é providenciar para que a maior fatia do bolo v4 para o fazendciro ¢ para 0 ambiente, Marcy Strange, co-direror do Centro de Assuntos Rurais, explica isso da seguinte forma: “Para ser auto-sustentivel, a agricultura deve ser organizada econdmica ¢ financeiramente de modo que aqueles que usar a terra se beneficiem do seu bom uso ¢ que a sociedade possa responsabilizé-los pelo fracasso de nao te- rem conseguido fazer isso.” Para a sociedade, isso pode significar a mudanga das politicas econdmicas de tal modo que 0 nosso bem-estar, inclusive o bem-estar do meio ambiente, reflita-se no produto interno bruto. Pode significar o estabeleci- mento de precas de produtos alimenticios que reflitam seus verdadeiros custos. Pode significar a extingao de brechas no sistema de impostos que estimulam a substituigao do trabalho pelo capital ¢ subsidiam a expansio irracional de fazen- das ¢ 0 excesso de produgao, Para substitui-las, argumenta Strange, deveriamos criar polfticas que ajudassem os fazendeiros que tratam melhor a terra — aqueles das fazendas administradas pelo proprio dono, mantidas pela prépria familia e fi- nanciadas internamente, Para continuarem vidveis, essas fazendas precisam rom- per os lacos nocivos que tém agora com as indiistrias petroliferas ¢ quimicas, 4. Projero de lei agricola. (N.T.) i 58 4 BIOMIMETICA Toda vez que quebra o ciclo de dependéncia, vocé ouve; incvitavelmente, os ge- midos de angtistia da parte acomodada em retirada. Sem as grandes fazendas ¢ o re- curso dos combustiveis fésseis, ainda seremos capazes de nos alimentar? Conseguire- mos alimentat 0 mundo? A resposta de Piper para a primeira pergunta ¢ afirmativa, ~—Embora a produgao talvez nao seja tao alta, seremos capazes de nos alimen- tar € aos outros até certo ponto. Considere o fato de que vinhamos tendo excesso de produgio de gros todo ano desde a década de 1930 neste pais, ¢ que 80% dos nossos graos ndo sao consumides por pessoas, mas pelo gado, — (Alimentamos 0 gado com grios para “aperfeigod-los”, ou seja, encher-lhes a carne com a gordura que entope as artérias dos americanos.) Piper acha que hé um exagero dbvio a consi- derar aqui. Quanto a questao de alimentar 0 mundo, argumenta: ~ Talvez. 0 me- Ihor objetivo seria capacitar 0 mundo a alimentar-se por si mesmo. ~ Mas isso € outro assunto. A questo é que o dogma da busca de niveis de produgio cada vez mais al- tos — 0 equivalente agronémico da cortida pelo ouro — torna uma yerdadeira he- resia a idéia de baixar esses niveis para outros mais realistas, que a terra suporte com o passar do tempo. The Land Institute percebeu que, para defender a idei da producdo com policulturas de espécies perenes contra a pritica das monocul- turas tradicionais, ele teria que, de algum modo, nivelar o campo de jogo. Piper explica isso com as seguintes palavras: ~ Se disséssemos a um campo de trigo: “Cuide da prépria fertilidade, desen- volva suas plantas sem pesticidas ou dleo diesel para 0 transporte da produgio”, qual seria a producio? Uma vez removidas as muletas da agricultura industrial, se- ria mais econdmico adotar a pritica de policulturas de espécies perenes ou o cul- tivo tradicional de plantas? Piper responde a prépria pergunta com cautela: —O sistema ecolégico de policulturas de plantas perenes ~ 0 cultivo de prados que se bastem e sejam persistentes ~ € feito de modo que exija pouco investimento. A redugao da necessidade de manurengiio e do uso de fertilizantes e pesticidas resul- ta, certamente, em economia de capital, talvez 0 suficiente para tomar esse tipo de agricultura to competitive quanto seu primo, que depende de combustivel. Jackson é menos comedido: ~ As policuluras de plantas perenes poriam no chinelo as culturas tradicio- nais, Ponto. Mas agora precisamos de dados para provar isso. ‘Mais uma vez, 0 pessoal do instituto aplicou-se ao exame de literatura espe- cializada e, novamente, ficou desapontado. Havia estudos sobre fazendas de cul- turas organicas (livres de pesticidas), mas nenhum sobre esse tipo que também cui- dasse de suas plantagdes sem fertilizantes ¢ dleo diesel. Depois de vinte anos, a falta de dados publicados passou a parecer mais uma capa vermelha do que um sinal de parar para esse grupo. Assim, em 1991, eles iniciaram o projero Sunshine Farm: uma fazenda com 150 acres, plantagoes tradicionais, tratores movidos a dleo ve- COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 59 getal, paingis forovoltaicos para a geragio de energia, cavalos de tragao para alguns trabalhos nos campos, gado de chifres compridos para a obtengao de esterco e car- ne, galinhas, que ajudam a produzir adubos compostos (depois produzem lucros com a postura de ovos) ¢ aves comestiveis que se alimentam de alfafa. Juntando tudo, uma fazenda-modelo na qual se espera que a energia bioldgica ¢ solar pa- guem as contas. —A Sunshine Farm ¢ realmente um grande projeto de contabilidade — afir- ma Marty Bender, 0 contador, de cabelos muito louros, que gerencia o sistema cnergético da fazenda, Durante o café, cle liga o computador e me mostra um ban- co de dados gigantesco, — Fazemos mentalmente um grande circulo em tomo da fazenda ¢ depois contabilizamos tudo que entra e tudo que sai, usando técnicas muito semelhantes as que os ccologistas costumam usar para descrever o sistema energético de um ecossistema. Medimos literalmente o tamanho, o peso €a quan- tidade de tudo: cada mourio, cada portéo de ferro galvanizado, cada metro de ara- me, cada balde de plastico. Procuramos calcular de quanta energia a sociedade pre- cisa para produzir esse produto ¢ depois arquivamos esses dados em forma de quilocaloria. Para acompanhar o trabalho, Bender criou um sistema de classificagio das tarefas realizadas na fazenda ~ monda, conserto de cercas, alimentacao das aves ¢ assim por diante, de forma tal que o simples movimento de um dedo possa ser computado quanto ao gasto de quilocaloria. Uma ida ao armazém para comprar pregos de 10 centavos consome combustivel, trabalho ¢ a energia de que a socie- dade precisou para fabricar os pregos — tudo ¢ registrado como débito da fazenda, Por outro lado, tudo o que a farenda produz — os alimentos, os animais, os bio- combustiveis assim por diante — é registrado como crédito. © objetivo é equili- brar receita e despesa para que a fazenda nao seja um fator de esgotamento dos re- cursos do planeta. As estimativas de Bender envolyendo a questio da energia resultam de uma pesquisa literdria enorme. Quando se esté na presenga dele, cle vai freqiientemen- te fileira de arquivos para pegar uma das centenas de artigos que recolheu, com tfeulos como “Quantidade de Energia Incorporada num Tubo de Polietileno”. Ca- da artigo est cheio de anotagées suas (as veres cortegéces), stia marca registrada, produto de seu brilhantismo. Nao existe nada, mesmo que remotamente falando, tao completo quanto o banco de dados da Sunshine Farm — afirma Bender. — Até agora, registramos a ocorréncia de 2.700 transag6es ¢ ndo chegamos nem & metade ainda. Fazer a es- crituragao dos livros ecolégicos desta forma nos ajudard a saber se uma fazenda pode funcionar & base de luz solar e manter o equilibrio de suas finangas; ou seja; pagar todas as contas sem entrar em débito maior com o ambiente, ~ Em outras palavras, pode a prépria fazenda produzir alimentos suficientes, com 0 passar do tempo, para sustentar o trabalho humano ¢ animal, fornecet combustivel para 60 A BIOMIMETICA as suas miquinas ¢ adubo aos seus campos? Pode ela fazer tudo isso ¢ produzir ali- mentos que reembolsaréo sociedade a energia embutida nos produtos adquiri- dos pela fazenda? Respostas como essas nos dirdo quanto 'a agricultura realmente custa ¢; talvez, indicario a possibilidade de lidarmos com custos mais estéveis ¢ precisos daquilo que comemos. ~ Isso € muito importante. Enquanto conversamos, Jack Worman, 0 administrador da fazenda, entra no escritério, usando um chapelao que me faz lembrar quao oeste adentro no Kan- sas estamos. As Tugas no rosto, se as contéssemos, poderiam dizer-nos algo a res- peito dos ciclos de seca nesta parte do mundo. Com impecaveis modos de vaquei- ro, ele toca no chapéu, desculpa-se pela interrupgio € depois consulta-se com Bender, nao a respeito das galinhas ou das plantacdes, mas sobre 0 medidor de consumo de enérgia que monitora o complexo do painel solar. Esta nao é a sua rotina na fazenda, conchuo, pelo menos ainda néo. A maneira certa de viver deveria ser algo espontaneo, mas The Land Instiru- te prevé que um dia isso ser um imperativo. Quando os combustiveis fosseis se esgotarem ou se tornarem muito caros, as pessoas terao de fazer agricultura pelo aproveitamento da energia solar, Enquanto isso, Jackson nutre a esperanca de que a Sunshine Farm nfo seja uma experiéncia isolada, Ele escreveu: “Até que tenha- mos a manifestacao fisica de meios corretos e auto-sustentdveis de viver em um rntimero suficiente de lugares, prosseguiremos com a nossa insensatez. Portanto, 0s bons exemplos, sejam eles os bons exemplos entre os adeptos de agricultura or- ginica, sejam os bons exemplos entre os esforgos de pesquisas sejam apenas os bons exemplos da maneira correta ¢ comum de viver, cles nos servem como pa- drao.” A natureza como medida. Tornando-nos Nativos Deste Lugar: Comunidade Nada disso ocorrerd isoladamente. Se quisermos mesclar nosso padrao eco- logico com nossas pesquisas ¢ nossa economia, precisaremos trazer as pessoas de volta para o campo. A natureza nos ensina que os ecossistemas sao compostos de especialistas ambientais — peritos locais que sabem como lidar com o sistema. Cen- to e cingiienta anos de agricultura nas planicies americanas redundaram também no actimulo de conhecimento especializado. As pessoas aprenderam a plantar na época certa, a let nas linhas das condig6es climéticas ¢ 0 que esperar dos tipos de solo, dos insetos, das doengas ¢ da sua inter-relacéo. © problema é que, com © répido despovoamento do campo, esse conheci- mento vem desaparecendo. A esta altura, apenas 1% da populacao americana es- td produzindo os nossos alimentos, e esse ntimero esta diminuindo. Metade das terras cultivéveis ndo pertence a fazendeiros; apenas sete empresas administram 50% das fazendas do pafs. Conforme observou Wendell Berry, ninguém se indi COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 61 na com 0 fato de uma loja da Grange’ estar fechando as portas por falta de mem- bros; alids, ficamos mais escandalizados com a perda de culturas indigenas das flo- restas tropicais do que com a perda das culturas rurais americanas. Jackson observa que essa falta de fazendeiros nao é a primeira, mas a segun- da onda de perdas. Os indios americanos foram os depositérios de uma historia cultural muico mais longa, mas esses nés jé expulsamos da terra. Agora, estamos avangando em nossa segunda onda de pessoas “supérfluas”. Se quisermos que a Agricultura de Sistemas Naturais seja bem-sucedida, insiste Jackson, precisaremos de um retorno ao lar de pessoas dispostas a “tornarem-se nativas de sua terra”, que yoltem sua sensibilidade para as condigdes locais e que fagam uso da terra de mo- do que dure. Nao se pode esperar, porém, que as pessoas comprem, pequenas fa- zendas ¢ recolonizem o campo, a menos que possam ganhar a vida e realizar-se plenamente longe da cidade. Isso exigird a restauragio da idéia de comunidade, afirma Jackson, no porque seja nostilgico, mas porque “mais olhos por acre” é uma necessidade pritica. Movido por essa crenga, Jackson decidiu aprender 0 maximo possivel sobre as comunidades das reas rurais, “Perguntamos: por que as comunidades huma- nas nao vivem com o aproveitamento da energia solar e a reciclagem de materiais, como 0 fazem as coletividades naturais? Por que os lugares em que vivemos nao podem ser auto-suficientes, em vez de servirem de simples pedreiras'a serem ex- ploradas pela economia extrativista e depois abandonadas? Afinal de contas, 0s po- vos indigenas viveram aqui durante centenas de anos, em concentragdes popula- cionais muito maiores do que a5 que temos hoje em algumas regiGes agricolas. Como a terra conseguiu manté-los auto-sustentavelmente?” Para responder isso, Jackson resolveu passar algum tempo em contato com 5 habitantes remanescentes de uma das pedreiras — quase cingiienta pessoas de Matfield Green no condado de Chase, Kansas (local da ambientasio do livro PrairyErth, de William Least Heat-Moon). No fim da década de 1980 e inicio da de 1990, ele comprou a escola primaria (um belo edificio de tijolos ingleses de cer- ca de 3.200 metros quadrados, construido em 1938) por 5 mil délares, a loja de ferragens por mil délares e, com alguns amigos, sete casas abandonadas (inclusive a casa em que pretende morar quando se aposentar) por menos de 4 mil délares. Seu sobrinho comprou o banco por 500 délates ¢ o The Land Institute comprou © gindsio da escola de segundo grau por 4 mil délares. Amigos e empregados do Instituto comegaram a mudar-se desde entio para a cidade, reformando as casas com madeira usada ¢ outros materiais reaproveitiveis, ¢ transformaram a escola 5. Sociedade secreta de agriculrores denominada Patrons of Husbandry, que visava 0 fomento agel- cola e problemas afins, (N, T.) 62 4 BIOMIMETICA num centro educacional e espago para conferéncias de artistas, intelectuais e pro- fessores interessados em tornar-se nativos do local. Emily Hunter €a coordenadora inteligente e apaixonada do projeto Matfield Green. ’ — Esquega Paris — diz Hunter. — A capacidade cultural para viver auto-sufi- cientemente reside bem aqui, nos moradores de Matfield Green, as pessoas que decidiram ficar depois do surto de progresso e decadéncia ¢ foram bem-sucedidas. Percebemos que, se quisermos nos juntar a elas nestes campos de belas e pujantes gram{neas, no poderemos repetir os erros dos extrativistas. Temos de viver de for- ma que nao esgotemos o capital ecolégico da regiao de Flint Hills. Portanto, te- mos a seguinte pergunta: que ligio, hoje, esta cidade valorosa ¢ indemovivel nos est dando? Ela tem sido podada queimada pela indtistria petrolifera, talver até as suas rafzes. O que, seguramente, poderfamos enxertar nela? Como podemos criar, juntos, padroes de auto-sustentabilidade? Os habitantes de Matfield, como Evie Mae Reidel, que conhece a melhor fase da lua para a plantagio de batatas, pode ajudar-nos a descobrir esses padroes. Com a sua ajuda, podemos instruir ou- tros que regressarem ao lar. Por enquanto, a aprendizagem ocorre durante o café na madciteira reforma- da ¢ em reuniées na escola restaurada. Todo més, a Tallgrass Prairie Producers, uma cooperativa dedicada & criagdo de gado nos prados, retine seus membros para esta- belecer estratégias numa das salas de aula antigas ¢ de pé-direto alto. Durante 0 ve- 10, ministrarao cursos intensivos aqui para professores que estejam formands cur- ticulo de especializacao regional para lecionar em escolas rurais para criangas. Enquanto isso, o pessoal do The Land Institute esté fazendo um levantamen- to histérico das atividades praticadas na regiao para ver como a terra foi usada dé- cada apés década. Essa é a primeira fase de um projeto de avaliacio econdmica e ecoldgica da regiao para decerminar a capacidade demografica de um lugar. —Sabemos que estamos em débito — diz Hunter. — Nosso trabalho é desco- brir como ser sustentados por um lugar sem levé-lo a faléncia. Nossos professores sao os prados ¢ 0 povo que tem sido moldado por estes durante varias geragdes. Jackson diz que os habitantes daqui ¢ de comunidades semelhantes sao “os novos pioneiros, os que regressam para casa dispostos a realizar 0 trabalho mais importante para o préximo século — uma operagao de resgate gigantesca para sal- yar as vulnerdveis, mas necessdrias, partes da natureza ¢ da cultura ¢ para manter bons e belos exemplos diante de nossos olhos”. VENCENDO A CORRENTEZA © Matfield Green, a Sunshine Farm ¢ outros projetos do bom viver espalha- dos pelo mundo sao tentativas de criar espécies de contrapesos & industria extra- tivista, de “manter bons ¢ belos exemplos diante de nossos olhos”. Eu os vejo co- ‘mo contracorrentes num rio de éguas turbulentas © espumosas. COMO NOS ALIMENTAREMOS? 4 63 Remanso é um trecho de rio de éguas tranqiiilas que se forma quando estas contornam uma rocha, separam-se da correnteza que segue pelo rio abaixo e se voltam rio acima para formar um estiréo de 4guas encantadoras sob 0 amparo da face da rocha a jusante. E um lugar em que canofsta pode mergulhar quando precisa descansar, fazer avaliagées ou resgatar de desastres canofstas menos aptos. E dificil fazer o barco entrar no remanso. E necessatio cruzara linha de maior tensio, a corredcira entre a torrente que segue rio abaixo e o refluxo espiralante que se agita rio acima. E necesséria alguma velocidade ¢ remadas vigorosas ¢ bem feitas para manobrar em meio ao fluxo da contracorrente ¢ entrar no alivio de Aguas mais calmas. Analogamente, nossa transi¢o para o remanso da sustentabi- lidade deve constituir-se numa escolha consciente para sair da correnteza retilinea da induistria extrativista ¢ entrar no remanso da renovagéo constante de recursos. ‘Wes Jackson acha apropriado que o primeiro remanso em que devemos en- urar € 0 da agricultura. Ele sempre chamou a agricultura de cascata, 0 inicio da nossa separa¢ao da natureza. = Convém que a cura da cultura comece pela agricultura ~ observa. A Agricultura de Sistemas Naturais ¢ tao diferente da agricultura tradicional quanto o aviao difere do trem. Ela é um grande salto evolutivo no campo da ino- vagao das atividades humanas. A diferenga no que estamos fazendo, adverte Piper em relacao ao trabalho do instituro, é que ninguém tem como obter lucros imediatos. Afinal de contas, quando as empresas produtoras de sementes ou as indiistrias quimicas vem um sistema agricola que nao precisa de sementes ou produtos quimicos, é mais pro- vavel que 0 combatam do que © apdiem. Os tinicos e ébvios defensores desta re- volugio so os consumidores que se importam com a maneira pela qual seus ali- mentos sio produzidos, com os pequenos fazendeiros ¢ com 0 governo que os representa. A transicio comegard lentamente, prevé Jackson — se tivermos sorte, exemplos esparsos de uma economia renovivel aparecerao bem ao lado da econo- mia extrativista ¢ exploratéria e, de repente, as pessoas verdo que tém alternativa. As pessoas j4 estio apoiando a agricultura que tenta libercar-se da dependén- cia dos combustiveis fsseis, pelo menos no que diz respcito a pesticidas e ao culti- vo excessivo da terra. A boa aceitagao de alimentos organicos confidveis, restauran- tes “ecoldgicas”, que respeitam a época da reprodugio bioldgica e evitam a compra extemporanea de viveres, e cooperativas de hortifruticulturas mantidas pelo consu- midor (CHMC), sao alguns exemplos de remansos que esto formando-se no rio das atividades humanas. Por intermédio das CHMC, os habitantes das cidades contratam junto ao fazendeiro local o fornecimento de produtos no inicio da esta- sao ¢ depois, em cada semana do verao, recebem uma sacola cheia de frutas e ver- duras frescas. O fazendeiro recebe 0 pagamento sem intermediarios ¢ 0 consumi- dor compartilha de seus riscos, concordando previamente em consumir 0 produto das plantagdes que vingarem ¢ a ficarem sem os das plantagGes que forem alvo de 64 A BIOMIMETICA prejuizos ou perdas. Desse modo, os consumidores aprendem a alimentar-se de acordo com os ciclos produtivos da regio em que vivem e tém a satisfagao de sa- ber que seus alimentos sao cultivados nas proximidades ¢ conscienciosamente. De acordo com Russell Ubby, diretor da Associagao de Jardineiros e Fazen- deiros Orginicos do Maine, 523 fazendas dos Estados Unidos estao fazendo ne- gécios atualmente pelo método de pré-pagamento e compartilhamento de riscos. Desse total de fazendas, a maior parte est4 em Wisconsin, diz. o diretor, seguida de Nova York ¢ California. A maior delas fornece alimentos a mais de 2 mil fami- lias anualmente. fato de mais pessoas estarem se preocupando com esse aspecto da vida nao me surpreende. A idéia de que os alimentos sio mais do que simples produtos jaz em nosso intimo, o que faz.a perspectiva de tomates quadrados parecer repulsiva ou, pelo menos, coisa insossa para a maioria de nds. Sabemos que a escala de pro- dugio das fazendas deveria ser menor ¢ mais pessoal, mais préxima da dignidade do ser humano — que a tetra seria mais bem-servida pela sensibilidade e pela cons- ciéncia do que por tratores enormes ostentando seis monitores. © romancista Jo- seph Conrad disse que existem apenas umas pouicas coisas que so realmente im- portantes para o conhecimento humano e que todos nés as conhecemos, Queremos ver nossos fazendeiros arrancar uma espiga de milho para expetimen- tar um gro pouco antes da colheita. Instintivamente, esperamos deles que pe- guem um punhado de solo, cheirem-no e saibam o que hié de errado ou de bom ele. E acho que isso vem do nosso instinto de sobrevivéncia. E aquela sensatez intuitiva que faz. com que parte de nds exulte quando vemos 0 agafrao voltando a florescer ¢ que se revolta quando ouvimos falar que toneladas de solo americano estéo sendo levadas para 0 Golfo do México pela erosio. Nossa afeigéo natural ¢ nosso gosto instintivo pela salubridade dos alimen- tos &algo que temos gravado em nossos genes, mas hé muito que temos sido cer- ceados na satisfacao dessa tendéncia espontanea. Se conseguissemos voltar 2 con- siderar a agriculrura uma atividade sagrada e, essencialmente, uma questo bioldgica, que nos liga a todos os seres vivos, talvez pudéssemos reivindicar 0 es- tabelecimento de um sistema agricola que edifique e sustente comunidades, man- tenha 0 controle populacional das pragas, evite 0 assoreamento dos rios ¢ nao ne- gocie com substdncias quimicas estranhas ao nosso organismo. Talvez. devéssemos procurar exemplos de objetiva reveréncia da natureza, como os de Wes Jackson, Bill Mollison e Masanobu Fukuoka. Aparentemente, esses homens parecem estar lutando contra moinhos de vento, enfrentando as fortes correntezas de um mar de idéias consagradas, imutaveis, classificadas entre as que se tm como “as coisas sempre foram assim”, ¢ condenando habiros adquiridos ha 10 mil anos, Em ver- dade, eles sio os conservadores, convictos de que seu ecomodelo é mais antigo do que a agricultura e de que ele continuard a existir durante muito tempo depois da época em que a nossa agriculcura dependente de derivados de petréleo seja ape- COMO NOS ALIMENTAREMO: A 6 nas uma lembranga. Isto aqui nao ¢ apenas mais um modismo, que estamos ten- tando inventar, insiste Jackson, O que existe aqui € a consciéncia da necessidade de descobrirmos o que jé existe na natureza ¢ procurar imité-lo. ‘Tudo considerado, acho que uma agricultura baseada nos padroes da natu- reza serd alimenticia no melhor sentido da palayra — uma forma honesta ¢ digna de assumirmos nosso lugar na cadeia alimentar que une toda a vida. ‘Temos vivi- do ha muito tempo pelo orgulho, impondo padroes destrutivos 3 terra, tentando © impossivel. Se nés, como pais, ou como uma rede mundial de comunidades, es- tivermos realmente compromissados com a sustentabilidade de todas as coisas, a agricultura deve ter prioridade na nossa agenda, como o primeiro e mais impor- tante passo do novo dia, Uma transformagao tio grandiosa assim precisard da coo- peracao de todos ¢ deverd basear-se na caracteristica comum a todos nés— a indis- pensdvel necessidade de nos alimentarmos. Quando comecarmos a insistir na pritica de uma agricultura baseada em sistemas naturais (ou, como diz Jackson, quando pessoas inteligentes ¢ vanguardistas comecarem a dizet nos restaurantes: “Vocé acredita que fulano de tal ainda se alimenta com ‘plantas anuais?””), af te- remos dado uma remada gigantesca contra a correnteza do desastre ambiental. Te- remos alcangado o remanso, mostrando a0 mundo, ¢ a nés mesmos, que isso po- de ser feito, COMO APROVEITAREMOS A ENERGIA? Talvez alguns achem a massa de algas encontrada em dguas represadas sinénimo de “coisa primitiva’, mas esses organismos diminutos podem superar facilmente o que hd de mais sofisticado na tecnologia humana quando se trata de captar energia solar. Emm resposta a essa descrigizo nada lisonjei( Spdemos dizer que alguns tipos de bactérias ‘piirpuras usam energia luminosa com quase 95% de eficiencik Yn gran quatro vezes superior ao das mais avangadas células captadoras de energia solar feitas pelo homem. —Boletim informativo da University of Southern California, 22 de agosto de 1994 O setor energético das sociedades industrializadas é, talves, o fator isolado que mais consribui para a degradaciao do meio ambiente em todo 0 mundo. ~ Seminzrio sobre Energia e Meio Ambiente da Agéncia de Protesio Ambiental dos Estados Unidos, 21 de julho de 1992 Quando comecei a sonhar com a possibilidade de escrever este livro, eu costuma- va sentar-me & beira do lago da minha casa ¢ contemplar as nuvens de Montana deslizarem sobre o espelho-d’égua. A noite, eu observava a lua erguer-se do hori- zonte ¢ assim ficava, até que seguisse além. Isso foi antes de a lentilha-d’égua apa- recet e roubar-nos 0 grande espeticulo celeste. lentitha-d’4gua é uma planta aquatica flutuante, de folha tinica ¢ redonda, que Mede de 2a 5 mm de diametro. Ela passa o inverno viva no fundo do lago congelado, alimentando-se do préprio estoque de amido. Num belo dia de maio, cla surge, como se estivesse comparecendo a um compromisso, e, entio, sem ne- num exagero, ela se multipli€J]m questio de semanas, ea cobre toda «super- COMO APROVEITAREMOS A ENERGIA? A 67 ficie com folhas de cor verde-4gua. Em agosto, quando as folhas das tébuas-largas dos choupos-americanos ganham uma coloracao verde-musgo, a lentilha-d’égua ainda se mostra exuberantemente verde, de um verde tio primaveril que as pes- soas param 0 carto para observé-la, Achamos que era tinta fresca, dizem. massa, a lentilha-d’4gua forma um tapete impressionante — uma tinica whem meros 5 mm de diametro, pode multiplicar-se apenas com a energia solar ¢ cobrir uma rea equivalente a um campo de futebol em poucos meses. Mas nao é 56 uma, sao milhédes de uu as afasto, ¢ elas crescem atrds de mim, como cerdas de uma vassoura de br Esse espasmo de fotossintese — luz solar trans- formada em actes de tapete verde diante dos meus olhos ~ é mais do que uma né- mesis para mim. FE um milagre. Era assim que as pessoas pensavam antes do fim do século XVIII, quando os cien- tistas comegaram a fazer experiéncias com folhas para saber “de onde vinha seu misterioso alimento”. Leve em conta que essa era uma época em que se acredita- va que os ratos surgiam espontaneamente de pilhas 5) Josh Priestley, qui- mico amador inglés, mistificou 0s curiosos quando, ¢ 1, publicou os resul- tados de sua experiéncia com um jarro. Ele pds um camundongo junto com uma vela numa redoma de cristal hermeticamente fechada, ¢ 0 camundongo morreu asfixiado pelo “ar danificadof=fas Priestley descobriu que, como pot milagre, i so nao acontecia quando cleUcttscentava uma muda de horteld ao experimento. A vegetacio, revelou ele ao mundo, nao se sabe como consegue restaurar 0 ar. Mas, como seria de esperar no que diz respeito as manhosas pesquisas de fo- tossintese, Priestley foi atormentado durante anos pela frustrago ao tentar repro- duzir essa experiéncia. Os historiadores acham que cle deve ter movido a redoma para um canto escuro de seu laboratério, por ignorar que a luz cumpria um papel na liberagao de oxigénio das folhas de hortela. Os camundongos morriam um apés ° ee necessdrios oito anos para que o fisico ¢ quimico holandés Jan In- genhot se a mesma experiéncia perto de uma jancla ensolarada ¢ lhe acen- desse na mente uma luz reveladora do grande misté O testo € ed © tated agora que a fotos: que significa “sintese pela luz”, € 0 processo pefo qual plantas verdes e certas algas ¢ bactérias transfor- mam diéxido de carbono, agua ¢ luz solar em oxigénio e agticares ricos em ener- gia. Por stia vez, animais como nés tornam a transformar esse mesmo oxigénio aciicares em diéxido de carbono, 4gua e energia. Mas é gracas ao sol que a horte- 1g, os camundongos e os homens vivem| Nos, nesta redoma de “cristal” chamada Terra, temos sorte de estar tio pré- ximos dessa explosio maravilhosa e didria, bem acima das nossas cabegas. A fusio do hidrogénio solar nos fornece enetgia luminosa bastante para suprir facilmente as nossas necessidades energéticas sem que precisemos queimar uma tinica gota de petréleo, Se pelo menos tivéssemos um meio de ligar a tomada... 68 A BIOMIMETICA Até agora, temos vivido gragas as plantas verdes, a quem devemos nao apenas a vi- da, mas também o nosso estilo de vida. Considere que tudo © que consumimos, de uma cenoura a um grao de pimenta, é produto do processo de transformagao da luz solar em energia quimica pelas plantas. Nossos carros, nossos computado- res, nossas drvores de Natal também se alimentam da fotossintese, pois os com- bustiveis fésseis que usam sio meras sobras refinadas do capital ecoldgico de 600 milhées de anos de plantas ¢ animais que se desenvolveram com a luz solar. Todos os nossos derivados de petréleo, como plisticos, farmacos ¢ substancias quimicas também sfo origindrios de forossinteses primitiv{(Jids, excetuando as rochas e os metais, é dificil apontar algum tipo de matéris-ptima usada por nds que ndo tenha feito parte de um ser vivo, cuja existéncia nao tenha sido devida basicamen- te as plantas. ‘As plantas captam a energia solar para nds ¢ a armazenam como combusti- vel. Para liberar essa energia, queimamos as plantas ou os produtos fornecidos por elas, tanto internamente, no interior das células, quanto externamente, em fornos ou fogueiras No qué“ respeito ao meu dinheiro, a tao alardeada descoberta do fogo foi suiperestimada. O fogo foi bom durante algum tempo — nds nos mantinhamos aquecidos ¢ cozinhévamos carne para matar a nossa fom) problema é que, em cetto aspecto da evolucao tecnolégica, nunca passamos ‘Ar para algo melhor =a combustéo em fornos ou motores ainda é 0 principal produto na nossa cesta de produgao de energia, e isso no nos aproximou um centimetro sequer de uma economia sustentével. Ao contrério, a queima de velhos combustiveis tem acarre- tado um aumento crescente dos niveis de diéxido de carbono (CO,) na atmosfe- ra, o derretimento das geleiras na Antartica ¢ a elevacao do nivel dos occanos ¢ da temperatura eabal po mundo agora diante de uma das décadas mais quentes de que se tem registro. Quando queimamos éleo, gasolina ¢ carvao, liberamos grandes quantidades de carbono formado e acumulado durante 0 Periodo Cretceo. As samambaias gi- gantes ¢ os dinossauros daquela época decompunham-se sob condicoes de carén- cia de oxigénio ¢ nunca conseguiam completar o ciclo de decomposicéo. Agora, estamos terminando esse trabalho com uma grande fogueira, consumindo num ano aquilo que levou centenas de milhares de anos de vida orginica para formar- s{(Spmo um fole colossal, nossa fogueira inspira oxigénio ¢ exala uma quantida- le descomunal de CO,, g4s que contribui para o efeito estufa. Um fluxo extremado como esse num sistema fechado como a nossa biosfe- ra apresenta o mesmo perigo que vocé enfrentaria se queimasse os méveis da casa com as janelas fechadas. Nestes tiltimos cem anos, temos feito exatamente isso ~ queimado a heranga feita com luz solar primitiva, ignorando o fato de que a luz do sol ainda entra por todas as janel vez de termos alimentado nossos for- COMO APROVEITAREMOS A ENERGIA? 4 69 nos com “plantas” mortas durante todos estes anos, talvez devéssemos ter estuda- do as plantas vivas, copiando cuidadosamente a sua magia. UM CORDAO UMBILICAL COM O SOL Embora nao seja nem popular nem lucrativa em comparagao com as plata- formas de prospecgao de petréleo, hd muitos anos a idéia da energia solar vem fin- cando rafzes em mentes privilegiada()| em 1912, um professor de quimica ita- liano, chamado Giacomo Ciamician, teve publicado na revista Science um artigo sobre um mundo em que as chaminés seriam derrubadas para dar lugar a flores- tas de cubos de vidro Iimpidos e transparentes, que imitariam os “segredos das plantas” ¢ produziriam, por fotossintese, 0 combustivel de que precisam Quanto nos aproximamos do sonho de Ciamician? Oitenta anos dee, te- mos vastiddes de brilhantes células solares feitas de silicio, substincia que jamais encontramos na estrutura das plantas verdes. Depois de testé-las primeiramente em painéis de captacdo de energia de espagonaves, agora usamos células fotovoltaicas (CF) para bombear égua, iluminar lares, usar computadores portateis, carregar ba- terias e complementar o sistema elétric{( 9p sistemas forovoltaicos podem cobrir telhados ou fazer niimeros digitais dangarem na menor das calculadoras, mas nao farem “reacao quimica” (produzindo energia armazendvel a partir da luz) como as plantas. E, embora sejam menores ¢ mais baratas do que quando foram langadas no mercado, as células forovolraicas ainda nao chegam nem perto dos médulos or- ginicos compactos, eficientes ¢ incrivelmente baratos feitos pelas plana=) que constitui outro fator de inveja{}a manha, enquanto nossos técnicos seus jalecos brancos e calgam boras antiestiticas de aspecto espacial para montar, em fi- bricas repletas de toxinas, células solares de alta tecnologia, as folhas e as copas das Arvores do lado de fora de suas janelas plasmam-se silenciosamente es. Depois de todos estes anos, ¢ apesar da grande quantidade de Pfttdos sobre fotoquimica publicados toda semana em varias partes do mundo, o segredo da fo- tossfntese continua guardado. Fragmentos do processo deixam-se entrever, mas a base funcional do modelo ainda jaz envolta no mistério de verdadeiras caixas-pre- tas (partes inexplicadas do processo) ¢ de moléculas misteriosas que teceberam 0 codinome de Qe Z. Parte do problema é que a captura em si de particulas de luz energizadas (f6- tons) no € mecanica, macroscopicamente falando, de tal modo que possamos ob- servar 0 fendmeno a olho nu. Nosso microscépio de eléfrons mais poderoso sé po- de ir até af, mostrando-nos onde a fotoss{ntese ocorte, mas nido como, Os “mecanismos” da fotossintese so moleculares, compostos de grupos de étomos que escapam ao exame até mesmo desses microscépios fantisticos. Leve em conta que nna pequena lentilha-d’4gua que flutua no meu lago existem 50 mil cloroplastos (as organclas & feigao de células em que ocorre a forossintese) em cada milimetro qua- 70 A BIOMIMETICA drado de folha, Cada cloroplasto contém uma rede complexa de membranas cheias de pigmentos moleculares e proteinas dispostos com precisio fantéstica. Pelo me- nos isso 0 maximo que podemos inferir, Para plantas superiores como a lentilha- d'4gua, ainda estamos aguardando fotografias moleculares. Enquanto isso, inferi- mos 0 processo, concebemos teorias ¢ vamos & procura de provas. Apesar do nosso conhecimento incompleto, o espitito de Ciamician ainda paira entre um grupo de pesquisadores de processos fotossintéticos artificiais, Bs- ses pesquisadores acreditam que sabemos o suficiente sobre o tal segredo para c megarmos a construir um similar razodvel, uma célula solar de proporgées mole- culares que transformard energia luminosa em cletricidade, em combustivel armazendvel ou na centelha de que precisamos para reproduzir processos quimi- cos em temperatura ambiente e na dgua. Cada laboratério parece ver 0 protegido segredo ¢ a maneita pela qual imi- ilo de uma forma ligeiramente diferente. Alguns se aliam sob o clamor: “Sepa- ragio das cargas!” Outros dizem: “Precisamos criar uma antena!” Hé também os que receiam basear-se nas unidades bésicas organicas existentes e, em vez disso, procuram refazer 0 modelo natural sob forma inorganica. Cada laboratério segue seu proprio programa para atravessar esse vasto oceano promissor, como barcos de concepsoes diferentes participando de uma Copa América de ciéncias, 1990, fiquei exultante ao saber que uma equipe do Arizona havia assu- mid dianteira, Ela tinha conseguido criar uma molécula orginica baseada no modelo de um centro de reagio fotossintético, ¢ sua emissao de ftons se aproxi- mou muito da emissio da fotossintesS}ravam contomando as béias com brados de entusiasmo ¢ toques de eg ote publicados nos prestigiosos periédicos Science e Nature. Em marco de 1994, encostei meu barco no deles ¢ subi a bordo, Se voct tivesse de idealizar um bom lugar para captar a energia solar, 0 campus da Arizona State University seria perfeito. Recém-safda do invetno de Montana e ain- da tirando a minha parca’, fiquei embevecida com a sonoridade desse campus do sudoeste: 0 som oco de bolas de ténis, 0s risos vindos de grutas artificiais repletas de flores, 0 gorjeio incessante dos péssaros nas palmeiras. Apresentei-me no Cen- tro dos Primeiros Avangos (estudos avangados?) na Fotossintese sortindo como uma passageira de cruzeiro que tivesse subido ao convés pela primeira vez, Mas, para J. Devens Gust, Jr, € tripulagio, nao se pode dizer que o ambien- te era de férias, Eles tinham acabado de ser informados de que 0 prazo de liberacio das verbas para a sua importante Fundagéo Nacional de Ciéncias tinha sido am- pliado e documentos iam ¢ vinham entre os escritérios num ritmo frenético. Ape- sar da pressio, Gust ~ quimico, professor ¢ chefe do centro — montou uma agenda 1. Pega de vestuatio da Sibéria edo Alasca, originalmente de peles; atualmente, agasalho longo de 1. com capuz. (N. T.) COMO APROVEITAREMOS A ENERGIA? A_71 para mim que me permitiria encontrar-me com especialistas de cada 4rea envolvi- daem seu trabalho, desde 0 pessoal que desmonta as verdadeiras usinas de forca da forossintese 20 que monta o similar criado pela técnica humana, Conforme Gust explicou, a equipe agrega aquilo que seria oneroso demais para um tinico cientista saber, da compreensao da “incerteza quantica dos movimentos dos elétrons na fai- xa prdximo ao vermelho do espectro luminoso” a “raz4o pela qual o milho se adap- ta bem as terras de Indiana’, Nos laboratérios de um dos andares, havia jarros bri- Ihantes com algumas das bactérias mais antigas da Terra, enquanto no subsolo prova de abalos sismicos trabalhava-se intensamente com lasers modernissimos. Nos andares intermediarios, laboratérios de quimica orginica aparentemente co- muns elaboravam moléculas mais préximas de imitar os coletores de energia solar da natureza do que qualquer outra coisa feita pelo homem antes. Meu giro pelo centro foi uma espécie de decatlo mental, em que todas as conversas que travei ampliaram a minha compreensio de tudo © que est envol- vido em uma biomimética desse tipo. Todos os membros da equipe conheciam a fotossintese segundo seu proprio ambito de aco, especialidade ou meio de medi- do, mas, como um todo, trabalhavam como um organismo tinico. E esse orga- nismo, tive a nitida impressdo, estava realizando a competi¢ao da sua vida. O bioquimico Thomas A. Moore, um cingtientéo matreiro que faz 0 possfvel para parecer rabuigento, esté franzindo 0 cenho diante da tela do computador quando chego. Ep{tetos com ligeiro sotaque texano, Como que em resposta, seu Macintosh deixa escapar com um acorde de guitarra: “Esse ser4 0 dia/Em que vocé dir adeus/Seré o dia...” Quando ele resmunga, o computador interrompe a miisica. — Ele esté dizendo que ¢ hora de comegar'a trabalhar — cle explica, sussur- rando , mas ignoraremos a mensagem. Isso parece contenté-lo. Tom Moore € 0 tipo de pessoa que esfrega as maos uma na outra quando esté prestes a mergulhar de cabeca em alguna coisa— um de- bate, uma boa refeicéo, tima questo cientifica intrigante. Ele parece ter certo pra- zer em classificar os perfodos de sia vida ¢ falar demoradamente sobre eles. Quan- do peco que fale sobre forossintese, cle se alegra visivelmente e (depois de tantos anos de magistratura) sobe no estrado e comeca a desenhar no quadro branco. ~F espantoso —adverte, — Ser capaz de imitat até mesmo uma pequena par- te deste processo me faz sentir otimista. Digo a mim mesmo: “Esta vendo? Isso no é magica.” Magica ou nao, seu trabalho biomiméti¢o nao diminui sua admiragio apa- rente. De quando em vez, em meio’ criagdo entusiasmada de esquemas € dese- nhos ~ férmulas, células, bactérias, folhas, ele anuncia: = Preciso ir. Mas o ponteiro do relégio avanga, € eu aprendo como o sol transforma luz em vida. 72_A_BIOMIMETICA FLIPERAMA DE ELETRONS loore me explica que a luz solar é como uma chuva de particulas de enet- gia € que o trabalho de cada planta verde, alga azul-esverdeada e bactéria forossin- tética € captar essas partfculas ¢ fazé-tas trabalhar. Para ajudar a aumentar as suas chances de sucesso, esses captadores de fétons produzem um arranjo de pigmen- tos sensfveis 4 luz — clorofila-a, clorofila-b e carotendides — que agem como ante- nas para absorver a energia da luz solar. Os dtomos de cada pigmento sao dispos- tos na forma de “pirulito” — um anel na extremidade de uma haste. Centenas desses pirulitos encontram-se embutidos na pele (membrana) de uma vesicula cheia de fluido chamada tilacdide. E centenas de tilacdides sio empilhados como baloes de Agua dentro de cada cloroplasto. Os cloroplastos, que dio a cor verde as plantas, 40 comprimidas 4s centenas de milhares, senao aos milhoes, mesmo na mais diminuta folha. Quando a luz solar alcanga os doroplastos, as antenas em forma de pirulito na membrana dos tilacéides captam certa porcao de energia ¢ a transportara para um dos “centros de reagio fotossintética”, também embutido na membrana do ti- lacéide, Cada centro de reagao é um conjunto irregularmente espraiado de 10 mil 4tomos com seu préprio conjunto de 200 antenas em forma de pirulito. Em sua parte central, existe um par de duas moléculas de pigmento altamente sensiveis ¢ que fazem a absorgao em si, Chame isso de Central de Fotossintese, onde a luz se transforma cm alimento para a vide) Agora, observe mais de perto. Girando cm torno dessa clorofila — alids, em volta de todas as moléculas ~ esto os elétrons em sua érbita, iguais aqueles que se viam nos logotipos do detergente Atomic, yendido nos Estados Unidos na déca- da de 50. Esses elétrons sao particulas de carga negativa, as mesmas que, quando participam de uma corrente elétrica, tostam os bolinhos ingleses para voce. Para visualizar o fendmeno da focossintese, voce tem de concentrar o pensamento nes- sa nuyem dindmica de elétrons. Quando uma folha absorve a energia solar, alguns desses elétrons que giram em torno do par de clorofila ficam tao excitados que co- megam a migrar para outras moléculas, iniciando uma reagao em cadeia na qual adgua é decomposta, o oxigénio ¢ liberado ¢ 0 didxido de carbono é transforma- do em agticar. Numa folha como a da lentilha-d’égua, sio necessérios dois tipos diferentes de fotossistema (FS I e FS Il) para realizar essa alquimia solar. Cada fotossistema define sua prépria faixa do espectro luminoso. Por exem- plo, o forossistema II absorve ondas com 680 nandmetros de comprimento (luz avermelhada), ¢ essa absorcio faz. com que um dos elétrons que giram em torno das clorofilas centrais saltem para uma érbita mais alta, como uma bola de fliperama sendo posta em jogo. Antes que possa voltar para a sua antiga érbita, descarregando sua energia em forma de calor, uma molécula “receptora” proxima arrebata para si o elétron. Mas, bem ao lado da receptora, hé outra molécula, que é uma receptora ain COMO APROVEITAREMOS A ENERGIA? A 73 da melhor, e zap!, rouba o elétron. O elétron continua a viajar como uma batata quente, deslocando-sede molécula em molécula, para longe da clorofila. Bastam al- guns centésimos de trilionésimos de segundo para que um clécron de carga negati- vavvd parar numa extremidade de uma cadeia de moléculas receptoras ¢ doadoras, ¢ para que um elétron de carga positiva acabe na outra. O de carga positiva é, em ver- dade, um “buraco” na clorofila central, criada quando o elétron foi deslocado. Uma vez que a natureza abomina esse tipo de “buraco”, uma molécula vizi- nha codinominada Z doa um elétron ¢ refaz-a clorofila, como se uma maquina de fliperama repusesse uma nova bola em jogo. Logo a cortida recomega, com a cap- tura de outro féton e um novo elétron saltando de sua Grbita e entrando no jogo. Enquanto isso, o primeiro elétron, a “batata quente” que vinha se deslocan- do de receptor para receptor, agora salta pela mesa de fliperama inteira e vai para 0 outro fotossistema, o FS I. Lé, acha uma clorofila central que tenha acabado de absorver um féton de luz (com um comprimento de onda de 700 nandmetros) € posto seu préprio elétron em agio. Isso a deixa com um buraco, que é convenien- temente reocupado pelo elétron que salta do FS Il. Novamente, ocorre um arre- messo de “batata quente” no ES I, quando 0 elétron se desloca de uma molécula receptora para outta. No final, o elécron sai da membrana tilacoidal, enquanto 0 elemento de carga positiva (particula Z, do FS Il) permanece préximo a superfi- cie interna da membrana. Nesse ponto da explicacao, Moore gira sobre os calcanhares e aponta o indi- cador para mim, ~ Eo que temos quando hé uma particula de carga positiva num dos lados da membrana ¢ um de carga negativa no outro lado? — Ele parece um apresenta- dor tresloucado de gincana televisiva. Nao fago a menor idéia. - POTENCIAL DE MEMBRANA! ~exclama, como se tivéssemos chegado a fase do risco em do- bro da sua gincana. Devvez.em quando, descobrimos o ponto fraco dos cientistas, 0 conceito que os deixa inteiramente desconcertados, Quando eles tém a chance de explicar a um lei- g0, ficam paralisados por um instante. Hé tanta coisa a explicar — por onde comegar? ~ Adiferenga— ele comeca lenta ¢ pacientemente ~ entre uma bactéria mor- tae uma bactéria viva esté no potencial de membrana, Nas células vivas, a con- centragao de substancias quimicas ou de cargas no interior da membrana € dife- rente da concentragao do lado externo. A lei da entropia diz. que todos os sistemas rendem a uma posicao de menor energia: cles procuram igualar diferentes gradien- tes de temperatura ou de concentracio. E por isso, por exemplo, que uma man- cha de tinta se dilui na égua; € que ocorte o fendmeno da difusio entre as molé- culas da tinta eda dgua, ou seja, elas se misturam. E, uma vez que as concentracoes se igualam, o sistema pode relaxar ow entrar em situagao de equilibrio. “Um processo como a fotossintese cria gradientes desiguais. Ela faz com que cargas negativas sejam movidas para fora da membrana tilacoidal, deixando den- 74 A BIOMIMETICA tro dela um actimulo de fons de carga positiva. Isso polariza a membrana tilacoi- dal, tornando o interior da vesicula diferente do exterior, As cargas de ambos os lados da membrana tendem a recombinar-se, a liberar a sua energia ¢ a entrar em estado de equilfbrio ou repoyso relativo; essa seria uma reagio exergdnica, a coisa mais natural do mundo. Mas, pelo fato de a membrana tilacoidal servir de barrei- ra entre © meio interno ¢ 0 externo, a tensio continua alta. A bareria do seu car- ro faz a mesma coisa — ela sepata cargas como forma de armazenar energia. As cé- lulas vivas, assim como os carros, conseguem usar esse potencial de energia. Elas © usam para importar nutrientes, para fazer com que 0s neurdnios emitam sinais, para estabelecer comunicagao entre si ou para fazer com que os muisculos se mo- vam. No ambito celular, a vida vive sob a tenséo existente entre concentracoes ¢ particulas de cargas diferentes. Potencial de membrana equivale a substancias qui- micas ¢ potencial elétrico equivale & vida.” Acessa altura, como eu nio abria um livro sobre biologia celular havia mui- tos anos, senti que 0 conceito fugia um pouco a minha capacidade de compreen- so. Moore, 0 professor perfeito, voltou a folha. © potencial de membrana tem uma grande fungéo nas plantas, ou seja, ali- ‘mentar e fornecer combustfvel a um planeta inteiro. Primeiro, temos a decompo- siggo da dgua. A cada um dos elétrons que o FS II péc em ago, a molécula Z ce- de um de seus elétrons para a “tecomposicao” de clorofila. No final, a molécula Z doa quatro elétrons ao FS II, Para recompor a doagao da carga positiva, ela se as- socia a um complexo que ef5}quatro elétrons (HO). Isso libera oxigé- nio, que se evola através da fff, ¢ fons de hens que ficam presos no disco tilacoidal. Os fons de hidrogénio, por estarem positivamente carregados, tendem a igualar freneticamente 0 “placar” ¢ a transferir-se para o exterior, onde estao as cargas negativas. Enquanto isso, no exterior da membrana, um elétron apds outro € cedido a uma molécula chamada NADP” (fostato dinucleotideo de adenina ¢ nicotinami- da). Essa doagao transforma o NADP* em NADPH, carregador de elétrons com poderosas forcas “redutoras” (a capacidade de doar elétrons a outros compostos). Isso significa que, no estdgio seguinte da fotossintese, a chamada etapa “escura”, 0 NADPH cede elétrons 20 CO, ¢, portanto, 0 “reduz” a agticar, CH,O. Mas isso nao lhe é posstvel sem uma amiga ficl — uma molécula que fornega energia. — E € aqui— prossegue Moore ~ que entra 0 potencial de membrana. O tinico meio de os fons de hidrogénio sairem do disco tilacoidal é passan- do através de um “canal” enzimético chamado fator de acoplamento, que nas ilus- tragbes dos livros diddticos parece um cogumelo, com a haste atravessando a mem- branae o topo, bulbiforme, saindo dela. Quando as cargas positivas passam pelo fator de acoplamento, “pagam pedégio” ~ transformam um composto chamado difosfaro de adenosina (ADP) em trifosfato de adenosina (ATP), pelo acréscimo de um terceiro tipo de fosfato. Esse terceiro fosfato ¢ fixado aos outros dois por

You might also like