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Relagées de poder na escola Mauricio Tragtenberg* P rofessores, alunos, funciona- rios, diretores, orientadores. As relagdes entre todos estes perso- nagens no espaco da escola repro- duzem, em escala menor, a rede de telacgdes de poder que existe na so- ciedade. Isso nao é novidade. O que inte- ressa é conhecer como essas rela- gdes se processam e qual é o pano de fundo de idéias e conceitos que permitem que elas se realizem de fato. A nés interessa analisar a esco- la através de seu poder disciplina- dor. Como dizia o pensador francés Michel Foucault, a escola é 0 espa- go onde o poder disciplinar produz saber. Essa situagdo surgiu no século XIX com a instituigdo disciplinar que consiste na utilizagdo de méto- dos que permitem um controle mi- nucioso sobre o corpo do cidadao através dos exercicios de utilizacao do tempo, espaco, movimento, ges- tos e atitudes, com uma tinica fina- lidade: produzir corpos submissos, exercitados e déceis. Tudo isso para impor uma relac&o de docilidade e utilidade. Na escola, ser observado, olha- do, contado detalhadamente é um meio de controle, de dominagao, um método para documentar indi- ® Mauricio Tragtenberg & professor da Escole do Administracdo de Empresas da FGV-SP. vidualidades. A criag&o desse cam- po documentério permitiu a entra- da do individuo no campo do saber e, logicamente, um novo tipo de poder emergiu sobre os corpos. Os efeitos do poder se multipli- cam na rede escolar devido a cada vez maior acumulagdéo de novos conhecimentos adquiridos a partir da entrada dos individuos no cam- po do saber. Conhecer a alma, a individualidade, a consciéncia ¢ 0 comportamento dos alunos é que tornou possivel a existéncia da psi- cologia da crianga e a psicopeda- gogia. As reas do saber se formam a partir de prdticas politicas discipli- nares, fundadas em vigilancia. Isso significa manter o aluno sob um olhar permanente, registrar, conta- bilizar todas as observagdes e ano- tagdes sobre os alunos, através de boletins individuais de avaliacao (ou uniformes-modelo, por exem- plo), perceber aptiddes, estabele- cendo classificagdes rigorosas. A pratica de ensino, em sua essén- cia, reduz-se a vigila@ncia. Nao é mais necessario 0 recurso a forca para obrigar o aluno a ser aplicado, é essencial que o aluno, como o de- tento, saiba que é vigiado. Porém ha um acréscimo: o aluno nunca deve saber que esté sendo observa- do, mas deve ter a certeza de que podera sempre sé-lo. As normas pedagdgicas tem o poder de marcar, salientar os des- PODERNAESCOLA _ 69 vios, reforgando a imagem de alu- nos tidos como ‘‘problematicos’”’, estigmatizados como ‘‘o negrao’’, 0 “fndio’’, o ‘“‘maloqueiro”’ ou o mo- rador da ‘‘favela’’. A escola, ao di- vidir os alunos e o saber em séries, graus, salienta as diferengas, re- compensando os que se sujeitam aos movimentos regulares impostos pelo sistema escolar. Os que nao aceitam a passagem hierarquica de uma série a outra so punidos com a ‘‘retencdo’’ ou a ‘‘exclusao’’. Um aparelho para o controle de todos A escola se constitui num centro de discriminagdo, reforgando ten- déncias que existam no ‘‘mundo de fora’’. O modelo pedagégico insti- tuido permite efetuar vigildncia constante. As punicdes escolares ndo objetivam acabar ou ‘‘recupe- rar’”’ os infratores, mas ‘‘marca- los’? com um estigma, diferencian- do-os dos ‘‘normais’’, confiando-os a grupos restritos que personificam a desordem, a loucura ou o crime. Dessa forma a escola se constitui num observatério politico, um apa- relho que permite o conhecimento e controle perpétuo de sua popula¢ao através da burocracia escolar, do orientador educacional, do psicé- logo educacional, do professor ou até dos proprios alunos. a estrutura escolar que legitima © poder de punir, que passa a ser visto como natural. Ela faz com que as pessoas aceitem tal situac4o. dentro dessa estrutura que se rela- cionam os professores, os funciona- tios técnicos e administrativos e 0 diretor. E necessario situar, ainda, que a presenca obrigatéria do ‘‘Diario de Classe”, nas m&os do professor, marcando auséncias e presencas nuns casos, atribuindo ‘‘meia falta” ao aluno que atrasou uns minutos ou saiu mais cedo da aula, é a técni- ca de controle pedagdgico burocra- tico por exceléncia herdada do pre- stdio. Esse professor é visto como encarregado de uma ‘‘missdo edu- cativa’’ por uns; como ‘“‘tira’’ e “‘cHo de guarda’”’ da classe domi- nante por outros, ‘‘contestador e critico”’ por muitos. Nao ha divida de que a escola, em qualquer sociedade, tende a renovar-se e ampliar seu A4mbito de acdo, reproduzir as condigdes de existéncia social formando pessoas aptas a ocuparem os lugares que a estrutura social oferece. Com a reli- gido ¢ o esporte, a educac4o pode se constituir num instrumento do po- der e, nessa medida, o professor é 0 instrumento da reproducao das de- sigualdades sociais em nivel escolar. No seu processo de trabalho, o professor € submetido a uma situa- ¢&o idéntica a do proletario, na me- dida em que a classe dominante procura associar educagdo ao tra- balho, acentuando a responsabili- dade nacional do professor e de seu papel como guardido do sistema. Nesse processo, 0 professor contra- tado ou precario (sem contrato e sem estabilidade) — mais de 85 mil s6 no Estado de Sao Paulo — subs- titui o efetivo ou estavel, conforme as determinacdes do mercado, colo- cando-o numa situacdo idéntica & do proletario. O professor € submetido a uma 70 LUANOVA hierarquia administrativa e peda- gOgica que o controla. Ele mes- mo, quando demonstra qualidades excepcionais, é absorvido pela bu- rocracia educacional para realizar a politica do Estado, portanto, da classe dominante em matéria de educacdo. Fortalecem-se os célebres ““Orgaos’’ das Secretarias de Educa- g4o em detrimento do maior enfra- quecimento da unidade escolar ba- sica. Na unidade escolar basica é o professor que julga o aluno me- diante a nota, participa dos Conse- Thos de Classe onde o destino do aluno é julgado, define o Programa de Curso nos limites prescritos e prepara o sistema de provas ou exa- mes. Para cumprir essa funcdo ele é inspecionado, é pago por esse papel de instrumento de reproducdo e exclusdo. E nas escolas particulares de clas- se alta, ao ultrapassar a entrada do colégio, o professor perde seus direi- tos em funcdo das normas impostas e do papel a desempenhar. Mestres e alunos submetem-se a esse incons- ciente coletivo transmitido por he- tanga cultural: um ‘“‘respeitavel’”’ professor n4o fala de sua vivéncia pessoal por temer ser considerado mediocre. O aluno, por sua vez, espera do professor certo tipo de comportamento, seu desprezo ou sua admirac&o. A propria disposig&o das cartei- ras na sala de aula reproduz rela- gdes de poder: o estrado que o pro- fessor utiliza acima dos ouvintes, estes sentados em cadeiras linear- mente definidas proximas a uma linha de montagem industrial, con- figura a relacdo ‘‘saber/poder’’ e “‘dominante/dominado”’. O professor subordina-se as auto- ridades superiores, essa submissdo leva-o a acentuar uma dominagao compensadora. Delegado dessa ordem hier4rquica junto aos estu- dantes, ele € o simbolo vivo dessa dominacao, o instrumento da sub- missao. Seu papel é impor a obe- diéncia. Na relagéo do professor com a classe, encontram-se dois adolescentes: o adolescente aluno, a quem ele deve educar, e 0 adoles- cente reprimido, que carrega con- sigo. O que prova @ prova? O poder professoral manifesta-se através do sistema de provas ou exames, onde ele pretende avaliar o aluno. Na realidade, esta selecio- nando, pois uma avaliagaéo de uma classe pressupde um contato diario demorado com ela, pratica impossi- vel no atual sistema de ensino. A disciplinagao do aluno tem no sistema de exame um excelente instrumento, a pretexto de avaliar o sistema de exames. Assim, a avalia- ¢do deixa de ser um instrumento e torna-se um fim em si mesma. O fim, que deveria ser a producao e transmiss4o de conhecimentos, aca- ba sendo esquecido. O aluno sub- mete-se aos exames e provas. O que prova a prova? Prova que o aluno sabe como fazé-la, nado prova seu saber. O fato é que, na relag&o profes- sor/aluno, enfrentam-se dois tipos de saber, o saber do professor ina- cabado e aignor&ncia do aluno rela- PODER NAESCOLA 71 tiva. Nao ha saber absoluto nem ignorancia absoluta. No fundo, os exames dissimulam, na escola, a eli- minag&o dos pobres que se da sem exame. Muitos deles nado chegam a fazé-lo, sAo excluidos pelo aparelho escolar muito cedo, veja-se o nivel de evasdo escolar na 1° série do 1° grau e nas ultimas séries do 1° e 2° graus. O exame permite a passagem de conhecimentos do professor ao alu- no e a retirada de um saber do alu- no destinado ao mestre. O exame esté ligado a um certo tipo de for- magao de saber ¢ a um certo tipo de exercicio de poder. O exame permi- te também a formacdo de um siste- ma comparativo que da lugar a des- crig&o de grupos, caracterizaco de fatos coletivos, estimativa de des- vios dos individuos entre si. Qualquer escola se estrutura em fungdo de uma quantidade de saber, medida em doses, administrada ho- meopaticamente. Os exames san- cionam uma apropriacdo do conhe- cimento, um mau desempenho oca- sional, um certo retardo que prova a incapacidade do aluno em apro- priar-se do saber. Em face de um saber imobilizado, como nas Ta- buas da Lei, s6 ha espago para hu- mildade e mortificagdo. Na peni- téncia religiosa s6 o trabalho salva, €redentor, portanto, o trabalho pe- dagdgico sé pode ser sadomaso- quista. \ Nao € por acaso que existe rela- ¢4o entre a estrutura simbélica da religido com a escolar. Elas refor- gam a estrutura simbdlica pela qual se realiza a estrutura de classe. A mesma relagdo de indignidade exis- tente entre o pecador e a religido € a existente entre os alunos e o saber. Oaluno é visto como se tivesse uma esséncia inferior 4 do mestre, como o homem o é ante a figura de Deus. O trabalho mortificante no plano pedagdgico — a ansiedade em saber se foi aprovado ou reprovado no exame — € a via da redencdo, a expiacdo da indignidade. E 0 unico caminho para atingir o Templo do Saber, da Graga e da Riqueza. 72. LUANOVA Para nao desencorajar os mais fracos de vontade surgem os méto- dos ativos em educacio. A dina- mica de grupo aplicada 4 educacao alienou-se quando colocou em pri- meiro plano o grupo em detrimento da formagao. A utilizagéo do pe- queno grupo como técnica de for- magao deve ser vista como uma possibilidade entre outras. Tal téc- nica ndo questiona radicalmente a esséncia da pedagogia educacional. O fato & que os grupos acham-se diante de um monitor; aqueles ca- racterizam o ndo saber e este repre- senta 0 saber. Agente de reprodugao social Ao invés de colocar como tarefa pedagdgica dar um curso e o aluno recebé-lo, por que n&o colocar em outros termos: em que medida o sa- ber acumulado e formulado pelo professor tem chance de tornar-se 0 saber do aluno? Vistos estaticamente a escola e 0 professor, ele aparece como guar- di&ao de um saber estratificado, como 0 sacerdote das salvaguardas educacionais, como o gerente de sua distribuicao, como o profeta da necessidade do trabalho e do mérito vinculado a um esforco redentor, finalmente, da vontade que tudo salva. Porém, ha o outro lado da moe- da. O professor é agente de repro- dugdo social e, pelo fato de sé-lo, também é agente da contestac4o, da critica. O predominio das fun- gdes de reproducdo e de critica pro- fessoral dependem mais do movi- mento social e sua dinamica, que se da na sociedade civil, fora dos mu- ros escolares. Em periodos de mudanga social, © professor enquanto assalariado ou funcion4rio do Estado se organi- za contra a deteriorag&io de suas condigdes de trabalho. Nesse mo- mento ele contesta o sistema. Po- rém, para contestar o sistema é ne- cessério estar inserido nele numa fungao produtiva. E o que se dé com o operario. Reproduzindo o capital, ponto ter- minal do trabalho acumulado, tem ele condigdes de contestar o capital mediante sua auto-organizacdo e agdes praticas. Desvinculado da produg&o pouco pode fazer. Greve de desempregados é coisa dificil. Por tudo isso a escola é um espa- ¢0 contraditério: nela o professor se insere como reprodutor e pressio- na como questionador do sistema, quando reivindica. Essa é a ambi- giiidade da fungdo professoral. A possibilidade de desvincular saber de poder, no plano escolar, reside na criag&éo de estruturas de organizacao horizontais onde pro- fessores, alunos e funcionarios for- mem uma comunidade real, E um resultado que s6 pode provir de muitas lutas, de vitérias setoriais e derrotas, também. Mas, sem duvi- da, a autogestdo da escola pelos tra- balhadores da educac&o — incluin- do os alunos — é a condigdo de de- mocratizagao escolar. Sem escola democr&tica néo ha regime democratico, portanto a de- mocratizacéo da escola é funda- mental e urgente, pois ela forma 0 homem, o futuro cidadao. *

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