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Anthony Seeger Museu Nacional/UFRJ OS INDIOS E NOS Estudos sobre sociedades tribais brasileiras CONTRIBUICOES EM CIENCIAS SOCIAIS 6 Coor io Ricardo Benzaquen de Aratjo CPDOC/FGV e PUC/RJ EDITORA CAMPUS LTDA. Rio de Janeiro 1980 © 1980, Editora Campus Ltda, Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderd ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados, eletronicos, mecSnicos, fotogrificos, gravac4o ou quaisquer outros, sem a permissfo por escrito da editora. Capa AG ComunicagSo Visual Assessoria ¢ Projetos Ltda, Foto do autor Pet{, cantador, compositor e lfder cerimonial dos fndios Suyé Diagramagfo, composig&o, paginacfo e revisfo Editora Campus Ltda. Rua Japeri 35 Rio Comprido Tels. 284 8443/284 2638 20261 Rio de Janeiro RJ Brasil ISBN 85-7001-039-7 Ficha Catalogrdfica CIP-Brasil. Catalogag4o-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Seeger, Anthony, 1945- SAS4i Os {ndios nés : estudos sobre sociedades tribais bra- sileiras / Anthony Seeger. — Rio de Janeiro : Campus, 1980. (Contribuig6es em ciéncias sociais ; 6) Bibligrafia 1, Indios da América do Sul — Brasil I, Titulo II. Titu- lo: Estudos sobre sociedades tribais brasileiras IIL Série DD — 301.2981 98041 pools CDU — 308(81 =97) SUMARIO AGRADECIMENTOS, 11 PRESENTA‘ CAPITULO 1 CAPITULO 2. CAPITULO 3. CAP{TULO 4. CAPITULO 5. CAPITULO 6. CAPITULO 7. (AO: IMAGENS NO ESPELHO, 13 . PESQUISA DE CAMPO: UMA CRIANGA NO MUNDO, 25 | Q SIGNIFICADO DOS ORNAMENTOS CORPORAIS, 43 OS VELHOS NAS SOCIEDADES TRIBAIS, 61 O QUE PODEMOS. APRENDER QUANDO ELES CANTAM? GENEROS VOCAIS DO BRASIL CENTRAL, 83 SUBSTANCIA FISICA E SABER: DUALISMO NA LIDERANGA SUYA, 107 CORPORAGAO E CORPORALIDADE: IDEOLOG!A DE CONCEPGAO E DESCENDENCIA, 127 PONTOS DE VISTA SOBRE OS INDIOS BRASILEIROS: Ut ENSAIO BIBLIOGRAFICO (EM COLABORAG*.0 COM EDUARDO B. VIVEIROS DE CASTRO), 135 BIBLIOGRAFIA, 153 APRESENTACAO O trabalho de campo é uma caracteristica bisica da Antropologia moderna. Até o final do século XIX, a maior parte dos cientistas voltados para o estudo de socledades néo-ocidentais ficava em seu gabinete e escrevia sobre povos distantes @ partir de relatos de viajantes e de narrativas de missiondrios. Existe uma historia, provavelmente apécrifa, sobre Si James Frazer, autor do The Golden Bough, @ quem se perguntou se havia visitado algum dos povos cujos costumes exéticos ha- viam sido objeto de extensos escritos seus e ele respondeu: “Deus me livre!”. O trabalho de campo de Franz Boas, Spencer e Gillen, W. H. Rivers e outros, na pas- sagem do século, mostrou que, se 0 analista fosse ao campo, poderia reunir dados muito mais ricos do que se utilizasse correspondéncia. Bronislaw Malinowski ficou muitos anos na Melanésia durante a Primeira Grande Guerra, Sua “Introdugéo” aos Argonautas do Pacifico Ocidental (Malinowski 1975) continua sendo a melhor discussio sobre a importdncia do trabalho de campo a longo prazo para a Antro- pologia, Apesar desse evidente comego, por uma série de raz6es o trabalho de cam- po continua envolto em mistério, E assunto de conversas sociais e de fuxicos, mas até hd muito pouco tempo raramente era assunto de reflexdes publicadas, Existem muitos problemas em todo trabalho de campo que merecem consideragdo prévia de um estudante que esté partindo para sua pesquisa: 0 projeto de pesquisa, como en- trar no campo, que papéis pode desempenhar no grupo, como coletar dados, Em meu trabalho de campo houve problemas e solugdes especificos a mim e a minha propria situagdo, mas houve também muitas coisas que qualquer um que realize trabalho de campo, especialmente com sociedades indigenas das terras baixas da ‘América do Sul, encontraré, Algumas foram levantadas no artigo abaixo, que é uma revisdo da "introdugdo” de minha tese de doutoramento (Seeger 1974). CAPITULO 1 PESQUISA DE CAMPO: UMA CRIANCA NO MUNDO* “De todas as ciéncias, a’Antropologia é sem dtivida nica, no transformar a mais intima subjetividade em instrumento de demonstragdo objetiva”. Lévi-Strauss, O Escopo da Antropologia O material etnogréfico sobre o qual a Antropologia trabalha é quase sempre © resultado da atividade singular do pesquisador no campo, num momento especifi- co de sua trajetéria pessoal e teérica, de suas condigdes de saiide e do contexto dado, e essa atividade é exercida sobre um grupo social que se encontra num certo momento de seu préprio processo de transformagao. O contato & comumente di- ficil para ambas as partes, e se a Antropologia pode reivindicar qualquer validade dentro da contingéicia da pesquisa de campo na qual se baseia, isso se deve apenas 4 dificuldade do trabalho & a dedicag#o a uma teoria e a um método por parte do pesquisador, e a muita paciéncia por parte do grupo com o qual esté trabalhando. Todo pesquisador tem, sem davida, em virtude de sua individualidade, uma diferente abordagem de seu objeto, e um estilo proprio de trabalho, que sfo aspec- tos ditados muitas vezes por circunstancias particulares. Ao deixar por fim o cam- po, ele teve uma experiéncia pessoal intensa ¢ (oxald!) coletou dados teoricamente relevantes. A experiéncia pessoal por que passa ¢ os dados que coleta nfo estfo completamente dissociados. ( Seiad § Devemos indagar insistentemente para saber mais em detalhe a maneira como uma pessoa trabalhou para coletar os dados que apresenta. Trabalhou por perfodos longos ou curtos? Fez o uso da lingua nativa, de intérpretes, ou de uma lingua de contato? Havia um ou vérios informantes? Fez levantamentos estatisticos ou usou de informantes voluntdrios? © modo pelo qual se trabalhou e o que se fez exerce- 10 um efeito profundo sobre o que quer que seja que se venha a escrever. Hé ainda outra questo: toda pesquisa de campo é, até certo ponto, uma vio- lago da sociedade que é estudada, pois os antropélogos, as vezes, tém de fazer per- * —— Tradugio de Ivo Frigério. 25 guntas diffceis ¢ desagradéveis. Mesmo em termos de alocago de seu préprio tem. po, um informante deve escolher entre responder a perguntas ¢ fazer qualquer ou. fre coisa. Um pesquisador pode causar outras privages a comunidade, a0 comer o alimento de suas rogas, a0 exigir cuidados por ignorar as convengGes sociais e peri- gos naturais, ou ao insistir em obter respostas claras sobre assuntos em que a ambi- gilidade & preferivel. O segundo grupo de quest6es sobre o trabalho de campo de tum pesquisador deve gravitar em tomo de respostas a perguntas como: “Por que Ihes foi importante responder a suas perguntas?”, “Por que foram eles tfo pacien- tes?”, “O que os fez aceité-lo?” e “O que é que representava para eles?”, Neste capitulo tenciono responder a essas indagagSes com respeito a meu proprio trabalho de campo entre os indios Suyé do Mato Grosso do Norte do Brasil No meu préprio caso, contudo, devo principiar pela primeira e vaga formulagdo do projeto, a fim de explicar por que foi que estudei os Suyd em particular. A propria experiéncia “pré-campo” no Brasil, antes que eu pudesse chegar até os Suy4, foi importante, pois quando consegui atingir o campo, apés considerdvel atraso, a demora mesma se revestiu de amplas conseqiéncias. Minha propria vida e trabalho no campo foi um processo, nfo uma situagdo estdtica; esse processo cul- minou com minha tltima partida e foi marcado por algumas persisténcias na abor- dagem_e no método. Era, de certo modo, idiossincrético, porque refletia minha propria) personalidade e escolhas, assim como certas contingéncias da situagfo de campo, mas autocontrolado em razo de mea treinamento em teoria e método an- tropolégico, tal como o tinha entre 1970 ¢ 1978. 1, RAZOES PARA ESTUDAR OS SUYA Havia duas raz6es primordiais para que eu desejasse ir para o Brasil central, sendo uma pessoal ¢ a outra te6rica. Eu achava o Brasil central um lugar fascinan- te, desde minhas aulas de Geografia no quinto ano primério. Os animais estranhos, © ntimero abundante de insetos e as pequenas sociedades me fascinavam. Pessoal- mente, prefiro pequenos grupos de pessoas e nao me sinto a vontade em grandes aglomerages, sendo capaz de passar muitos meses numa area remota, mais conten- te do que se tivesse de pesquisar a assisténcia dos jogos de futebol, por exemplo. Ha um elemento de escolha pessoal em todos os trabalhos de campo. Pelo lado tedrico, interessei-me pelo estudo comparativo das sociedades Jé, na faculdade, e meu primeiro contato com a complexidade da organizagdo social Jé foi através do Professor Maybury-Lewis, em 1966. Os Jé pareciam, suscitar muitas das indagag6es mais interessantes em Antropologia, e oferecer uma drea ideal para estu- dos comparativos. Continuei a estudar as tribos das terras baixas da América do Sul, especialmente as de lingua Jé, no curso de Pos-Graduagdo da Universidade de Cornell e mais tarde na Universidade de Chicago. A possibilidade de um estudo comparativo dos Jé cresceu na medida em que membros do Harvard-Central Brazil Project completaram suas pesquisas. Os traba- lhos de Terence Turner (1966) ¢ Joan Bamberger Turner (1967) sobre os Kayap6 setentrionais, Jean Lave (1967) sobre os Krikati, Julio Melati (1970) sobre 0s Krah6, Roberto Da Matta (1971) sobre os Apinayé, David Maybury-Lewis (1965, 26 poppe 1967) sobre os Xavante e Xerente, e Christopher Crocker (1967) sobre os Bororo foram contribuicdes importantes para a etnografia dos Jé e dos indios sul-america- nos em geral. Outros estudos, notadamente os de Lanna (1967) ¢ Vidal (1973), bees Para o crescente corpus etnografico sobre as sociedades de lingua Je, Alguns tragos importantes da cultura e da organizagfo social parecem comuns a todos os grupos Jé, como por exemplo a subsisténcia e a habitago. As andlises comparativas de instituigSes ¢ crengas numa drea como a do Brasil central podem validar hipSteses levantadas no contexto de qualquer um dos grupos, porque estas podem ser testadas em sociedades intimamente relacionadas, e acredito que isso re- presenta uma grande evoluco em relaco a pritica tradicional de construgfo de uma hip6tese baseada num caso isolado, para ent4o extrapol4la diretamente para andlises de tipo “‘cross-culturat” de maior amplitude, caracteristicas dos utilizadores do Human Relations Area Files. Dado meu interesse em participar de estudos comparativos das sociedades de lingua Jé, decidi estudar os Suy4. Mas, enquanto esbogava meu projeto em 1969, havia pr6s e contras a qualquer proposta de estudo dos Suyd. Eles haviam sido visi- tados durante dois meses, em 1960, por um etndgrafo que entdo publicou um arti- g0 sobre eles no National Geographic Magazine: “Brazil's Big-Lipped Indians” (Schultz 1962). Schultz encontrara os Suyd num acampamento tempordrio e apa- rentemente nfo conseguira fazer-se entender; tampouco entendeu os Suy4. Embora, no artigo do National Geographic, Schultz ressalte a similaridade entre as linguas Krahé e Suy4, sugerindo com isso.ter podido conversar com eles, num artigo mais cientifico (Schultz 1960/61) descreve sua impossibilidade de se comunicar com qualquer deles, exceto um residente Trumai, que também nfo falava Suyé. O relato de Schultz indicava que os Suy4 eram um amélgama das culturas do Alto-Xingu e Jé, e que sofriam as conseqiiéncias de extrema depopulacdo. © outro tinico trabalho publicado .sobre os Suy4 caracterizava-os como “,.uma sociedade em ruinas, na qual o proprio tamanho limitava o alcance e o in- teresse da andlise’’ (Lanna 1976:68). Terence Turner, que durante seu trabalho de campo encontrara um menino Suyé visitando os Kayapé setentrionais, assegurou- me que os Suy4 nfo estavam provavelmente to desorganizados como acreditava Lanna. Nao estava absolutamente claro, contudo, qual seria o estado da sociedade Suyd, 0 que representava n{tido empecilho a qualquer formulagfo precisa de uma pesquisa de campo entre eles. Ocorrera, contudo, um interessante progresso, pois diziase que os belicosos Beigos-de-Pau, os Tapayuna, que estavam sendo “pacificados” no rio Arinos, fala- vam uma lingua virtualmente idéntica a dos Suyd, e sua populagfo foi descrita co- mo sendo grande e dispersa em pelo menos 12 aldeias. O descobrimento de um novo grupo de Suy4 tornou o projeto mais interessante ¢ eu tencionava principiar minha pesquisa de campo estudando os Suyd orientais no Xingu, onde aprenderia sua I{ngua, para posteriormente visitar os Arinos e estudar as outras aldeias, o que me permitiria estudar partes da “mesma tribo” que tinham estado separadas por um perfodo de tempo relativamente curto. Seria um estudo ideal de micromudanga. 27 Com isso em mente, redigi minha proposta de estudo do mito, do ritual e da organi- zaco social dos Suy4, “para investigar comparativamente a natureza da relago do mito ¢ do ritual com aspectos da organizago social, e a coeréncia geral dos siste- mas simbélicos” (do meu Plano de Pesquisa de Doutoramento, 1970), e em novem- bro de 1970 minha esposa e eu desembarcamos no Rio de Janeiro, com a intenggo de estar no campo em janeiro de 1971. 2. A INFLUENCIA DA BUROCRACIA BRASILEIRA E DA POLITICA INDIGENISTA SOBRE 0 TRABALHO DE CAMPO Esperévamos que nossa ida ao campo nfo nos fosse criar nenhum problema especial. Muitos antropélogos haviam trabalhado no Brasil central, ¢ todos eles nos contaram estérias sobre a burocracia e como tinham levado dois ou trés meses para obter permissio das varias agéncias que supervisionavam os indios ¢ todas as pesqui- sas desenvolvidas por estrangeiros em territ6rio brasileiro. No nosso caso, contudo, passaram-se nfo apenas dois ou trés meses, mas oito, antes que-tivéssemos acesso a reserva do Xingu para iniciar a pesquisa. Torna-se desnecessdrio documentar aqui as frustragde$ e agonias dos meses devotados a obter as necessirias permiss6es. Nos-* so primeiro requerimento foi indeferido sem nenhum fundamento pritico, ea des- peito de nossas manobras ndo conseguimos obter reconsideragao de nossa proposta, Somente em abril de 1971 € que descobrimos que uma nova estrada, a BR-O80, es- tava sendo construfda e, pelo seu tragado, cortaria a reserva do Xingu, nfo longe da aldeia Suyd, Parte da rede de estradas em construgéo na Bacia Amaz6nica, a BR-080 aparecia nos mapas rodovidrios como estando localizada ao norte da reser- va do Xingu, ficando patente que o verdadeiro motivo de nos ter sido negada a per- missfo para estudar os Suyd era o desejo de manter o fato em segredo, até que, conclufda, pudesse ser revelada como um fait accompli. Com a conclusio da estra- da, todas as terras a0 norte de onde cruzava o rio Xingu foram confiscadas pelo Governo Federal, ¢ todos os indios que ld moravam tiveram de mudar para o sul, para dentro das fronteiras da reserva. A reserva tornou-se aéessivel a qualquer um * através dessa estrada, e os conflitos doengas resultantes do contato dos fazendei- Tos com os indios que se recusaram a se transferir para 0 sul so outro trdgico epi- sdio de uma estéria que continua desde o descobrimento da América pelos euro- peus'ocidentais. ° Felizmente a aldeia Suyd nfo foi afetada pela nova estrada, que‘passou cerca de 60 km ‘ao norte, no sendo portanto atingida pela desapropriagdo. Com o consi: derdvel apoio de fontes variadas, conseguimos finalmente obter nossa permissfo para entrar na reserva do Xingu das maos de uma sisuda secretéria do Presidente da Fundagdo Nacional do Indio, a agéncia para assuntos indigenas, doravante referida pela sua sigha FUNAI. : Punha-me, com freqiéncia, a imaginar qual seria o fim de nossa batalha para obter permissio, e se‘ndo seria absurdo perder tanto tempo esperando, pois todos com quem falévamos ndo acreditavam que demorasse tanto temipo e sempre nos in- citavam a tentar uma outra fonte de influéncia. Cada espera era somente por “mais algumas semanas”, enquanto tent4vamos algo diferente, ¢ esses longos meses foram 28 | | | | um enorme escoadouro de nossas energias ¢ recursos. Nesse perfodo, conhecemos muitas pessoas gentis, algumas das quais citei nos agradecimentos, nosso dominio do portugués aumentou e fizemos algumas viagens, mas sobretudo fizemos bons amigos. Algum beneficio nfo-intencional pode assim ter resultado de nossa longa esta- da no Brasil, antes de ir'ao campo, mas, quanto ao trabalho propriamente dito, 0 efeito foi realmente importante. Ap6é oito meses de espera, caso trabalhar com os Suyé se tivesse tornado invidvel ou insatisfatorio, nfo haveria qualquer alternativa, a nfo ser it até o fim e eu jé perdera tanto tempo que até mesmo cogitar em mudar de tribo era bastante desagraddvel. Minha sorte com os Suyé estava langada e toma- mos 0 aviéo em So Paulo para o Xingu em fins de junho de.1971. Y 3. CHEGADA NO CAMPO: UMA ENTRADA MUSICAL Quando embarcamos no DC-3 da Forga Aérea Brasileira que nos levaria a0 Posto Leonardo Villas Boas (doravante, simplesmente, Posto Leonardo), foi grande nossa sorte em ter como companheiro de viagem o Sr. Claudio Villas Boas, que era entfo 0 encarregado da parte setentrional do Parque Nacional do Xingu, onde vivem os Suy4. Juntamente com seu irmfo Orlando, ele foi candidato ao Prémio Nobel da Paz. Quase nfo nos falamos durante o vibratério ¢ barulhento vo. Sentévamos de ado, ao longo das paredes do avio despressurizado, com sua carga de bolas de bor- tacha e tecido (para atrair certas tribos hostis e para manter outras déceis), arroz, feijfo, verduras (para abastecer as bases da Forca Aérea no Brasil central), ¢ a odor{- fera carcaga de um boi, recentemente abatido, para abastecer a Base Jacaré, da For- a Aérea, no Xingu. O Posto Leonardo é um amontoado de casas relativamente grande, que inclui um pequeno hospital, uma casa de héspedes, residéncias dos Villas Boas ¢ um gran- de refeitério, e também certo ntimero de casas menores para os trabalhadores. O Posto Leonardo sempre nos pareceu uma cidade, j4 que possui eletricidade a noite em algumas casas ¢ os tetos sfo de folha de zinco ou telha, ao invés de palha. Em nossa primeira noite, Claudio Villas Boas comentou que ouvira dizer que cantéva- mos e perguntou-nos se gostarfamos de cantar. Fomos buscar nossos instrumentos e, apés afinar 0 banjo ¢ o violfo, iniciamos uma noitada musical que se prolongou por algumas horas. Fizemos sucesso imediato, ndo somente junto ao Sr. Villas Boas € aos trabalhadores brasileiros do Posto! , mas também com os indios que ali estavam de visita, e que tinham vindo de suas aldeias a alguma distncia. Na manhi seguinte Claudio desceu o Xingu em dirego a Diauarum, num pequeno barco, prometendo falar com os Suyd ¢ contar-lhes sobre nossa vinda. Falou com eles, mas nfo soubemos os detalhes do que disse, até meses mais tarde. 1 Usarei o termo “brasileiros” para me referir a quaisquer ndo-{ndios, de ascendéncia euro- péia, negra ou mestiga que sejam cidadaos do Brasil. = . les nem sempre sf0 “brancos”, nem podem ser chamados de “civilizados", tendo em vista seu comportamento em relagio 20s indios, sendo portanto exato o termo “brasileiro” para distinguir pessoas que sfo culturalmente nfo-indios daquelas que 0 sfo - embora os indios também sejam, de certo modo, brasileiros. 28 Ele dissera aos Suy4 que éramos misicos, que meu pai era um homem importante ¢ que viéramos para aprender a lingua e a sndsica Suy4. Os Suyé poderiam pedir-nos que cantéssemos a qualquer hora, que cantarfamos, e caso nfo gostassem de nés deveriam avisilo e ele nos mandaria embora. Perto de concluir minha pesquisa, des- cobri que ele havia contado aos Suy4 que nés, finalmente, escrevfamios um livro, que seria lido por ele, € que caso os Suyé no nos tivessem contado a verdade, nfo nos tivessem ensinado bem, ficaria zangado com eles. Os Suyé respeitavam muito Claudio Villas Boas, por razdes que descrevo no Capitulo 2, € 0 resultado de sua entusidstica recomendagdo aos Suyé foi uma recepgao favorével por parte deles, Gastamos mais de duas semanas no Posto Leonardo, aguardando uma oportu- nidade para tr até Diauarum, e passdvamos 0 tempo visitando diversas tribos, cujas aldeias nfo ficavam muito distantes do Posto, e solidificando nossa reputagfo de cantores, pois solicitavam-nos que cantdssemos quase todas as noites, ouviam nossas est6rias e indios visitantes aprendiam nossas cangSes. Um dia fomos presenciar uma ceriménia entre os Yawalapiti, uma tribo proxima do Posto Leonardo e talvez a mais “rica” em termos de bens de origem ocidental. Fomos convidados a voltar no dia seguinte para cantar para eles em pagamento, e, enquanto cantévamos, um ‘Yawalapiti trouxe um pequeno gravador cassete de sua casa e gravou nossas can- Ges, do mesmo modo como acabdramos de gravar as suas. Soubemos depois que ele levou o gravador as outras aldeias e tocou nossa miisica para eles também, € em todas as visitas subseqientes ao Posto Leonardo sempre nos pediram para cantar, diante de uma grande e entusidstica platéia, o que era bastante lisonjeiro. Finalmente, conseguimos um lugar no barco para Diauarum, e chegamos jun- tamente com um grupo de médicos que tinham viajado até Ié para vacinar os indios daquela parte da reserva contra a varfola, Todos os Suy4, Juruna e muitos dos Caiabi estavarp congregados em Diauarum, dormindo em suas casas temporérias, que ficavam vazias a maior parte do ano. Apinhavam a margem do rio quando che- gamos, ¢ os homens Suyé se sobfessafam na multidao, parados silenciosamente, com 08 bragos cruzados, distinguiveis pelos seus discos labiais vermelhos, ¢ examina- vam-nos. Enfrentar uma situago nova com frieza nunca é facil, e 0 primeiro mo- mento foi certamente o pior, pois nem os Suyd nem nés sabiamos o que esperar um do outro. : 4. A FORMACAO DE UM ANTROPOLOGO Cerca de uma semana apds chegarmos a Diauarum fomos finalmente levados numa canoa até a aldeia Suy4, localizada cerca de duas horas e meia de Diauarum, no rio Suyd-Missu. Claudio Villas Boas pedira aos Suy4 para nos construir uma casa, © que nfo fizeram. Quando Niokombedi, um dos chefes, me perguntou onde gosta- ria de morar, respondi que preferfamos morar numa casa Suyé, porque nfo gostd- vamos de ficar sozinhos, e Niokombedi nos convidou para ficar em sua ampla casa, na qual viviam cerca de 35 pessoas num tinico cémodo sem divisOes internas. No inicio dormfamos num canto da casa, que semelhava um grande depOsito de taba- co; mais tarde, fomos convidados a dormir mais préximo do centro. Nossas redes foram armadas, construfram um jirau para nossas bagagens e nos estabelecemos. 30 es Havia trés problemas diffceis a solucionar. © primeiro era o que comer; 0 se- gundo, como distribuir nossos presentes; e 0 terceiro era como coletar os dados que eu desejava. Qo Primeiro deles era o mais importante para n6s, a curto prazo;0 segundo, 0 mais importante para os Suyd; ¢ 0 terceiro o mais importante para mim afinal. A experiéncia Suyé, com visitantes antes de nds, havia sido de curtas visitas, de pessoas que haviam trazido seu proprio alimento, tendo-o comido sozinhas ou partilhando-o com alguns deles. Em virtude do drdstico limite de peso no avifio da Forga Aérea, tinhamos trazido apenas leite, suprimento de proteinas, agtcar € algumas sopas desidratadas pata o caso de enfermidade. Depois de uma semana, chegou um dia em que nos deram somente uma castanha Para comer, embora a épo- oa fosse de fartura. Decidi que teria de fazer alguma coisa, e lei com Niokombedi, que era o chefe da casa, o qual me disse que Judy poderia evar nossa cabaga e nosso Prato para 0 fogio, onde lhe seria dada comida por uma das mulheres encarregadas da distribuiggo. Comegava entZo o sutil adestramento do antropblogo como pescador e caga- dor, pois nos dariam cada vez menos alimento da panela comum até que eu come- sasse a pescar, quando ento nos dariam mais, mas a porefo seria novamente dimi- nufda quando me ocupasse com outras coisas que nfo a subsisténcia. Depois de certo tempo, ficou claro que, para permanecer e sobreviver, teria de participar na coleta de alimento, muito mais do que pudera imaginar. Tomava parte em quase todas as cagadas coletivas e expedioSes de pesca durante os primeiros meses, e tam- bém pescava por minha conta, geralmente como companhia para um menino de 10 anos que pescava muito melhor que eu, mas que softia de convulsSes e necessitava de um companheiro para impedir que cafsse da canoa. Eramos ambos monolingties No in{cio, e j4 que cagar e pescar so coisas sérias, e nfo atividades loquazes, eu vol- tava para casa exausto, maldizendo o dia em que decidira trabalhar com um grupo que nfo possui economia monetéria, e sentia como se nffo estivesse realizando coisa alguma. Os longos dias no rio ¢ na floresta contribufram fundamentalmente para a minha compreensfo dos Suy4, mas isso nfo parecia nada evidente nos primeiros me-__ ses de nossa estada._ al Em razfo de pedido meu ao chefe, os homens limparam um lote de roga para nés, ¢ em setembro plantamos mandioca, milho, batata-doce, inhame, amendoim, banana e cana-de-agticar. Apés uma distribuic&o inicial dentro da casa, a maior par- te dos produtos da roca é trazida em pequenas quantidades e comida por seus pré- prios donos. Como nfo tinhamos uma roga nossa, era por pura sorte que recebfa- mos qualquer desses alimentos. Os Suyd nfo estavam nos matando a mingua por maldade; acontecia que nfo nos ajust4vamos as suas idéias Preconcebidas de estran- Beiros nfo-Suy4, ao mesmo tempo em que nfo nos encaix4vamos em seus padres de partilha de alimento. Além do mais, éramos um casal. As familias nucleares sfo unidades econdmicas importantes. Como solteiro, eu poderia ter sido adotado e ali- mentado por uma famflia, mas, enquanto casal, esperavam que fdssemos indepen- dentes, Assim, nos primeiros quatro meses perdi 15 quilos. 31 Outra dificuldade, cuja extensfo s6 mais tarde pudemos compreender, era a sse de mercadorias. Eu trouxera certa quantidade de bens para os Suy4, e dera talver metade deles para o capitfo, ou chefe, que agia como intermedidrio entre os brasileiros e os Suy4, na distribuigfo para a aldeia no dia em que chegamos. Esse era © procedimento usual estabelecido pelos Villas Boas no Xingu. O resto dos artigos guardei para troca posterior. Os Suyé os desejavam, mas nfo sabiam como obté-os, ¢ eu ignorava qual 0 respectivo valor, para eles, dos varios produtos que desejavam. : Outrossim, nfo se regateia ao comerciar, pois tem-se “vergonha” (whiasim) ¢ nfo _se pede mais do que é oferecido, mesmo que se venha a ficar desapontado. Parecia importante distribuir os bens, mas parecia igualmente’ importante ter sempre mais fm mos para manter o interesse em nossa presenga. O problema da distribuiggo foi resolvido, na primeira viagem que fizemos, ao trocar certas coisas por uma colesdo y de artefatos. Nunca comerciei nada diretamente por alimento ou informagdo, mas. me tornei mais generoso e passei a permitir que aqueles com quem trabalhava regu- Jarmente tivessem tudo 0 que pediam. Os Suyd eram particularmente suscet veis em relago ao nosso suprimento de bens, porque somente os bruxos é que acumulavam, coisas para si mesmos, ¢ éum tributo ao relativismo cultural e & paciéncia dos Suy4 o nunca terem nos acusado . de bruxos. Apés a primeira grande distribuiggo de presentes, em seguida 20 nosso retorno de cada viagem, a troca era a norma. Os Suyd4 nfo pediam ou imploravam . coisas de maneira direta, dizendo que, se ficassem o tempo todo pedindo ou toman- do coisas para si, eu nfo voltaria com mais presentes. Eram astutos, ¢ eu fazia 0 mi- ximo para encorajar essa crenga todas as vezes que voltava a aldeia. ‘Além de trazer presentes, trouxemos ¢ administravamos ‘medicamentos, Claudio Villas Boas forneceu-nos alguns outros medicamentos que nfo havfamos ” pensado em trazer, ¢ tratévamos qualquer problema de satide que os Suyé nos apre- sentassem, 0 que poupava a familia de um doente uma ‘viagem até Diauarum. Fre- qientemente pudemos detectar infecgdes ou severos ataques de maléria, antes que se tornassem sérios. Quando o paciente néo melhorava, tinhamos de confiar no julgamento Suyd de quando deveria ser transportado para Diauarum para tratamen- ‘to mais especializado que aquele que podiamos oferecer. O uso de ervas medicinais ngo 6 prestigiado entre os Suyé, e eles nunca pensaram em nos pagar pelo tratamen- to, embora apreciassem nossos esforgos. Do mesmo modo que a caga ¢ @ pesca, 0 tretamento médico era uma dura tarefa que, afinal, tornou os Suyd mais receptivos nossa presenga e mais interessados em meu trabalho. ; © terceiro problema, o da coleta de dados, também foi solucionado com. passar do tempo. Havia somente trés homens Suy4 que falavam portugués relativa- mente bem; alguns outros falavam um pouco, ¢ o resto (inclusive todas as mulheres) quase nada. Os primeiros meses foram uma agonia de frustragdes, j4 que eu nfo lava Suyé, nem podia acompanhar os que falavam portugués durante 0 dia. N&O’ via nenhum modo, aparentemente, de conseguir tempo livre para estudar a lingu’ ou de usar intérpretes, pois a caca, a pesca e o sustento da familia eram de suprem® importncia. Os poucos individuos com quem eu podia me comunicar estavam Oc pados e nfo podiam perder o dia todo comigo. Numa economia monetéria, pode-s? 32 dar dinheiro em troca de trabalhos tediosos como a instrugio lingiifstica, e o dinhei- to pode ser-usado para comprar alimento. Entre os Suy4, porém, nada podia com- prar alimento; em conseqléncia, meu trabalho lingiiistico durante os primeiros quatro meses foi esporddico. Para complicar ainda mais, na minha primeira visita, muitas familias estavam fazendo demoradas viagens durante a estado seca para ca- Gar € pescar a certa distincia da aldeia. Fiquei desapontado por outras raz6es ainda, durante 0 primeiro perfodo no campo, de julho a novembro de 1971. Ao contrdtio dos outros Jé, os Suyé pareciam ser ritualmente estéreis; nfo havia grandes ceriménias de qualquer espécie sendo efe- tuadas, com excegaio de um curto cerimonial de queima das rogas, e uma esporddica entoagdo de cantos de outras tribos. Tampouco pude descobrir quaisquer metades. ° proprio tema que eu tencionava estudar ndo estava, aparentemente, mais operan- lo. Deixamos os Suy4 em novembro de 1971 para visitar nossas familias por vol- ta do Natal; estévamos magros, fracos e desencorajados. Coletara muitas observa- 0es diretas: tamanho das rocas, disposigdo da aldeia, distribuigo de alimento, algu- mas transcrig6es lingiiisticas e respostas a um grandé nimero de perguntas, muitas das quais feitas em portugués. As respostas eram geralmente incoerentes e ininteligi- veis. Li o Guia Pritico de Antropologia, um esbogo de t6picos que viajantes e antro- POlogos deveriam investigar no campo, ¢ concluf que perguntara tudo, mas que os Suy4 € que nada sabiam, Amadeu Lanna, aparentemente, estava certo. Mesmo assim, com tempo perdido e o compromisso jé firmado, nfo tinha escolha outra que retornar aos Suy4, em janeiro, o que fez a grande diferenca, pois embora os pri- meiros quatro meses tenham sido importantes e sejam parte do proceso de trabalho de campo em qualquer lugar, meu trabalho realmente teve inicio em janeiro de 1972. Depois disso, houve momentos de atividade méxima e as vezes frustragdes, mas material era cada vez mais interessante. Comecei a sentir durante minha iltima visi- ta que, longe de serem superficiais, a complexidade das idéias Suyd freqiientemente iludia meu entendimento e, quanto mais pesquisava qualquer assunto, mais se reve- lava a sua complexidade e riqueza. As primeiras respostas dos Suyé as minhas per- ‘guntas eram as mesmas que se d4o a uma crianga: simples. Quanto mais eu aprendia, mais eles me ensinavam. proprio fato de retomar a aldeia em janeiro era sinal de compromisso para com os Suyd, pois poucos visitantes penetram na regido do Xingu durante a estago chuvosa, repleta de mosquitos e maléria, de novembro a marco. Retornamos com presentes, inclusive aqueles especialmente encomendados por muitas pessoas, ¢ coi- sas que eu nfo imaginava pudessem os Suyd desejar em nossa primeira visita. Chega- mos em janeiro e encontramos nossa roga cheia de milho no ponto de ser colhido, e desde entdo pudemos partilhar nossas oolheitas com outras familias e estabelecer redes de troca de alimentos. Recebfamos sempre mais do que dévamos, mas pelo © qual também reforgou meu relacionamento com meus menos havia intercémbio, melhores informantes. ‘ Os Suyd iniciaram o cerimonial de nominagéo, a festa do rato, alguns dias apés nosso retorno, e pela primeira vez. comecei a obter dados coerentes sobre as 33 inagdo € os grupos cerimoniais. Descobri que nossa primeira visita coincidira = tt perfado de relativa inatividade ritual. Continue a pescar ¢ a ca- gar, e a achar isso oneroso, mas, como adquiria rapidamente fluéneia em Suyé, or mais ffcil encontrar com quem conversar quando queria trabalhar, pois jé nfo me limitava aos poucos homens que falavam portugués. Chegamos em meados de janeiro de 1972 ¢ tomamos a partir em fins de abril, . Passamos algum tempo em S4o Paulo, trabalhando e fazendo compras, ¢ entdo re- tornamos ao Xingu em meados de junho, permanecendo na aldeia até principios de setembro, quando, por varias razdes — a mais premente sendo a falta de cloroquina para tratamento da maliria —, fomos até o Posto Leonardo. LA passei duas semanas trabalhando os meus dados e escrevendo relatérios de campo. Podia comer arroze feijo, e devotar dias inteiros a leitura de anotag6es, organizando-as e preparando novas areas de investigagao. Nesse interim, minha esposa, viajou até Sfo Paulo, fez apressadamente algumas compras ¢ voltou & reserva em duas semanas. Retornamos a0 convivio dos Suyd em prirfcipios de outubro, permanecendo até o inicio de feve- reiro, quando nossa satide foi abalada por repetidas crises de maléria. Nesses meses finais, cacei e pesquei menos e fiz mais trabalho antropolégico, mas as vezes me can- sava de meu papel de manipulador de conversas e de espifio, parasitério e dependen- te. Deixamos 0 campo em principios de fevereiro de 1973. De margo a junho minis- trei um curso, com o Professor Roberto Da Matta, no Museu Nacional do Rio de Janeiro, Judy retornou aos Suyé em abril-maio para verificar certo nimero de ques- toes bdsicas, Retrospectivamente, douse conta de que, de certa forma, fui criado pelos Suy4. Quando 14 chegamos pela primeira vez, trataram-me como uma crianga — 0 que eu era, jé que nfo sabia falar ou ver como eles viam. Levei meses, por exemplo, para ver a sombra ou as ondulag6es de um peixe répido na 4gua e para atirar com presteza para atingi-lo com a flecha. Nao sabia distinguir os sons que os Suy ou- viam, pois nfo os entendia e sequer os conhecia. No inicio, nfo me deixavam fora de vista. Nunca saf sozinho numa canoa ¢ nunca vaguei desacompanhado pela flo- resta, embora caminhasse pelas rogas, Aprendi a pisar exatamente onde eles pisavam para evitar p6r os pés em espinhos, arraias e formigueiros, e aprendi lentamente on- de era bom pescar e como fazé-lo. Ndo compensava para os adultos despender seu tempo me ensinando, ¢ por isso me mandavam sair com os meninos que sabiam mais do que eu. Os Suyé ensinaram-me a falar com a mesma paciéncia com que ensinam a seus filhos, e, espantados com minha habilidade em anotar as coisas e ainda assim esque- cé-las, viviam a me testar. Também usavam a técnica de dizer uma frase obscena muito rapidamente para que eu a repetisse, e entdo cafam na risada, quando o fazia. Contavam-me coisas a noite, do mesmo modo que os pais fazem com seus filhos, € interessavam-se em saber se eu entendera as coisas corretamente, Sempre me indi- aoe Pessoa que sabia mais sobre qualquer assunto, quer fosse mito, mtisica, me s com Setenlogla ou histéria, e fui instrufdo a nfo trabalhar com as mulhe- pars" compecen dae eae nada sabiam. Se houve de minha parte alguma falha que me foram explicadas, isso nfo reflete as honestas priticas de no 34 tentativas de todos os Suyd. Tratavam-me como um menino de 12 anos quando par- timos, pois eu sabia remar, pescar e cacar pelos arredores, como o faz um menino de 12 anos. Sabia conversar adequadamente, mas sem o discernimento e controle de imagens e metdforas que os adultos sabiam empregar. Acima de tudo os jovens de- vem ouvir ¢ aprender, ¢ de certo modo eu era um menino ideal de 12 anos. As mulheres supervisionavam o treinamento de minha esposa e ela aprendeu a Preparar nossa comida, a tecer, a falar Suyé e a fofocar horas a fio. Fora promovida de raspadora de rafzes de mandioca a “dona-controladora” de quantidades de fari- nha de mandioca e de mingau. As mulheres ensinavamihe a lingua de modo que podiam fazer-lhe perguntas e vice-versa, e ela nfo raro me fornecia dados importan- tes e as vezes testemunhava sozinha um fato, pois somente as mulheres era permiti- do presenciar 0 nascimento de uma crianga, por exemplo. De certo modo, Judy po- dia gozar a permanéncia entre os Suyé mais do que eu, pois nfo era obrigada a ser ‘uma antropdloga, ¢ podia relacionar-se com os Suyé como um ser humano, por sim- patia, enquanto eu sempre tinha de permanecer um cientista social também. Por que 0s Suy4 nos aceitaram? J4 sugeri que a resposta nfo € simples. No inicio no h4 dévida de que foi gracas 4 apresentagGo de Claudio Villas Boas, mas em janeiro de 1972 ele deixou o Xingu e nunca retornou a Diauarum durante nossa permanéncia. Nossa mdsica fora parte da razdo e nossos presentes também, pois, as vezes, os carregamentos de provisdes para a reserva da FUNAI eram interrompidos, € representdvamos a nica fonte de balas, linh de pesca, pequenos anzbis e outros artigos. Todos os Suy4 apreciavam nossa ajuda inédica, as mulheres Suyd gostavam de minha esposa e desfrutavam sua presenga. Hé4 muito que rir de um par de adultos desajeitados que agem como criangas, ¢ os Suyd gostam muito de rir. Também respeitavam muito meu interesse nos aspec- tos de sua propria sociedade que eles mesmos achavam interessantes: ritual, mésica, estérias, parentesco e ideologias, e eu era pretexto para a realizagdo de rituais, para que pudessem me ensinar, de modo que aprendesse e gravasse. Quando deixamos a aldeia, em fevereiro de 1973, os Suyd disseram, mais por dramaticidade que por raz6es reais: primeiro, que todos iriam morrer caso nfo esti- véssemos If para medicé-los; segundo, que ndo teriam mais acesso aos bens, porque nfo estariamos Id para fornecé-los; e, terceiro, que os homens nfo passariam mais tanto tempo na casa dos homens porque eu nfo estaria 1d. Convidaram-nos a voltar, € disseram que, caso eu tivesse algum amigo que quisesse aprender sua lingua e sua misica, ficariam felizes em lhe ensinar, da mesma forma que a mim. De fato, retornamos em dezembro de 1975, para encontré-los em excelente estado de espirito e sadde, Fomos recebidos com entusiasmo e imediatamente in- corporados as suas atividades como se jamais houvéssemos estado ausentes, e uma de minhas grandes dificuldades era que, enquanto eles permaneciam fortes como nun- ca, eu me encontrava fora de forma, aps dois anos passados diante de uma méqui- na de escrever elétrica e de um quadro-negro, Jé nfo podia remar como antes, correr to rapidamente atrés de macacos que desapareciam por entre as drvores, e cantar tanto, comendo to pouco como anteriormente, Demoramos, os Suyd ¢ eu, algum tempo para nos dar conta disso, e esse periodo teve um final abrupto apés mais ou 35 ando parti com pneumonia. Consegui, contudo, expandir menos dois meses, qv! a 1a lingua ¢ solucionei algumas das quest6es Ie. consideravelmente o meu dominio d yantadas enquanto escrevia minha dissertagSo. Morar no Brasil e trabalhar no Museu Nacional entre 1975 e€ 1979 tormou os contatos que temos com os Suyé mais variados. Retomei para uma breve visita em julho de 1976, ¢ estava a ‘caminho em 1977 quando uma crise de maléria tornou a viagem impossivel. Ao invés disso, foi um Suy4 que se encontrava em ‘Sfo Paulo pa- ra tratamento médico que nos visitou no Rio, e entdo tive a sensagfo de me sentir como um nativo, e, quando o homem que nos visitava repetidamente perdia seu sen- tido de diregdo nas ruas, eu Ihe dizia: “Lembra-se de como eu era assim que cheguej a sua aldeia? Nfo conhecia nada, e se voos vivesse aqui por um longo perfodo de tempo, voc! aprenderia”. Ele concordou que sempre leva algum tempo para se aprenderem as coisas, Posso imaginar as coisas que contou 20 retornar A aldeia, pois cava obviamente escandalizado com o fato de dormirmos num quarto diferente do de nossa filha. Estou planejando outra viagem 4 aldeia Suy4, para conversar mais profunda- mente com eles sobre sua misica — um tépico que consegui desenvolver, conside- ravelmente, em 1975-76 (Seeger 1977 ¢ Capitulo 4 deste volume)?, ‘Uma das dificuldades de um antropOlogo € saber quando deixar de trabalhar com um grupo. Quando deixei 0 campo em 1973, estabeleci arbitrariamente 0 prazo de cinco anos para terminar o trabalho principal sobre os Suyé, de modo que me pudesse voltar para outros t6picos € outras sociedades, e este livro é um passo importante nesse processo. 5. MEUS METODOS DE CAMPO Minha rotina diéria era dirigida no sentido de maximizar as oportunidades de ouvir os Suyd que conversavam, de perguntar e de observar. Em média, um dia de um perfodo nfo-cerimonial comegava entre 4h30 min ¢ Sh, quando todos tomavim, banho no rio, que estava mais aquecido que o ar da madrugada. Entifo, caso nfo fos: se cagar ou pescar, minha esposa € eu {amos a todas as casas com uma caixa de re- rmédios, para ver se alguém necessitava de tratamento. Era mais fécil ir até as outras casas, porque algumas das pessoas nib se sentiam a vontade em nossa casa, € Por que, quando os SuyS apanham maléria, nfo saem de suas redes. Quando assim fazia- mos pela manh, nfo éramos chamados 0 resto do dia, a menos que houvesse Wat emergéncia. Ao visitar as casas, eu podia ver as pessoas eo que faziam. Costumdva- mos conversar um pouco em cada casa, € caso as pessoas estivessem bem, nossas rondas médicas duravam apenas alguns minutos, mas quando havia estriado, infec Ges pulmonares e maldria, despendfamos mais de uma hora. Podia entfo trabalhar, caso nada acontecesse, escrevendo meu didrio, ov inter rogando as pessoas que permaneciam na aldeia. Aqueles que se encontravam casa” do ou pescando costumavam voltar cerca do meio-dia, caso fossem bem sucedidos, © entfo faziamos nossa primeira refeigfo do dia, No havia hordrio fixo para a8 refer 2 : Esa viagem foi feita em agosto-outubro de 1978, 36 gOes na aldeia e comfamos sempre que qualquer alimento fosse introduzido em nos- sa casa, Uma das contribuigdes importantes de minha esposa era que ela podia ficar em casa ¢ guardar alimento para mim, caso eu estivesse em algum outro lugar quando ele fosse distribuido. A parte mais quente do dia eu passava dormindo ou escrevendo. O infcio da tarde era uma boa hora para encontrar as pessoas e fazer perguntas, e entdo eu volta- va a escrever meu didrio. Ao cair da tarde, costumava fazer outra ronda pelas casas, tratando os doentes quando necessdrio, e freqiientemente obtendo um pouco do que comer no caminho. A magnffica luz do sol poente, as familias agrapavam-se defronte As casas, conversando e brincando com as criangas, e nos juntévamos a elas. Ao crepiisculo, os homens congregavam-se no centro do patio da aldeia e conversa- vam, cantavam ou nos pediam para fazélo. As mulheres agrupavam-se defronte as casas para conversar. Como nfo trouxera qualquer fonte de luz além de velas, que usivamos 4 noite para medicar e em emergéncias, nfo trabalhava apés 0 anoitecer. Ao invés disso, costumava juntar-me aos homens no centro e ouviaslhes as conversas com crescente entendimento. As vezes aprendia coisas; freqientemente, nada. Os homens davam informag6es voluntérias quando havia luar suficiente para escrever, € eu ocasionalmente verificava aspectos sobre os quais queria certificar-me de que havia um consenso. Raramerite eu era o centro da atengo nessas reuniGes, que ser- viam, em geral, para longas narragSes de cagadas, assuntos politicos e exercicios de oratéria. Quando os mais idosos iam dormir, entre 20h30min e 22h, eu também me retirava, deixando 0 patio pard os jovens que buscavam suas aventuras amorosas 4 noite, e dormiam durante o dia mais do que os adultos ou o préprio antropélogo. Nossa casa, nfo raro, era muito ativa 4 noite, mas eu dormia profundamente e per- dia todo o ir e vir sub-repticio. Os Suyd costumavam nos acordar quando ocorria algum evento piblico tal como um nascimento, um eclipse ou uma chuva de meteo- Tos, © que tornava vantajoso viver com eles numa mesma casa. E claro que a pesquisa de campo sistemética era dificil em tais circunstancias. Meu trabalho era sempre algo esporddico, o que tinha um efeito danoso sobre os dados ¢ prolongava minha permanéncia no campo. Sempre carregava comigo um pequeno caderno, onde escrevia tudo que me interessasse e, nos longos dias de pes- ca, costumava pensar sobre o que aprendera e anotava as perguntas que deveria fa- zet, Levantava questdes sobre determinado t6pico e, assim equipado, costumava procurar pelas pessoas que considerava indicadas para respondé-las. Nos primeiros meses, observei muito e aprendi a lingua que procurava sempre melhorar. As coi- sas que nfo conseguia perguntar ou compreender em um més, deixava de lado, para retomd-las no més seguinte. A procura de pessoa para responder as minhas perguntas era muito diffcil e eu nfo gostava de me impor, pois, quando se sentem pressionados, os Suyé sfo mestres em circunléquios, e, quando famintos, nfo se interessam em dar longas respostas as perguntas. Quando satisfeitos, geralmente iam dormir. Havia vezes em.que isso nfo acontecia, ¢ eu aproveitava essas ocasi6es com a maior habilidade possivel. As vezes, ninguém com quem podia conversar se en- contrava na aldeia, e no dia seguinte eu mesmo tinha de sair para pescar. As vezes, por outro lado, ficavam na aldeia e eu escrevia péginas e paginas de material. 37 Nio utilizei entrevistas estruturadas, ¢ a lista de perguntas que carregava ser- via apenas de base. E extremamente dificil conseguir uma resposta para uma per- gunta abstrata e analitica, tal como: “Por que vocé faz isto e aquilo?” Eu costuma- va fazer breves anotagées durante as entrevistas, ¢ entdo as reescrevia do modo mais completo e possivel. Usava um gravador somente para as narrativas, msica ¢ descrig6es de ceriménias que nfo podia presenciar. Néo me utilizei apenas de alguns poucos informantes, mas sim de todos os membros da aldeia. Havia indiv{duos, contudo, que eram especialistas em certas 4reas e cujas informagées sempre fomneciam os maiores ¢ melhores detalhes. Cada um desses bons informantes tinha uma especialidade, alguma coisa em que ele, par- ticularmente, era bom ou que conhecia bem, ¢ 0s Suyé eram de extrema coeréncia nas informagOes que me transmitiam, pois embora dissessem mais sobre um deter- minado assunto, nunca se contradiziam. Em relagfo a todos os pontos importantes, ‘eu sempre interrogava varios informantes, especialmente no inicio, o que se tornou dificil de fazer porque todos concordavam que a pessoa que falava primeiro conhe- cia o assunto melhor do que todos. Costumavam dizer que conheciam mal alguns assuntos e me indicavam outra pessoa. Descobri que os Suyé pensam muito contextualmente. Minhas perguntas ge- rais, durante os primeiros quatro meses, despertavam respostas superficiais e confu- sas. Contudo, durante o cerimonial de nominagdo, todos os ‘Suy4 pensavam muito sobre 0 fato, as relagbes implicadas, e sobre 0s grupos cerimoniais que desempe- nham os rituais, Quando alguém morria, todos me forneciam ricos dados sobre a morte € 0 que existe além dela. Quando acusagSes de bruxaria ocupavam o espirito de todos, todos se interessavam em conversar sobre bruxos. Achei muito produtivo, assim, investigar em profundidade o que acontecia na aldeia no momento da investi- ga¢fo, usando vérios informantes, e obtendo informag6es de minha esposa sobre o que as mulheres diziam. Outra tética que aprendi a aproveitar foi a da casualidade do processo de des- coberta, pelo qual eu aprendia coisas novas ¢ insuspeitadas ¢ tentava fazer todas as perguntas que podia imaginar. Fiz.o melhor que pude para tirar o maximo das opor- tunidades, especialmente depois que comecei a entender o que conversavam, Sem- pre que ouvia algo, anotava em meu cademo e pedia mais tarde que a pessoa me dissesse rnais sobre 0 assunto, e, desse modo, muito aprendi. Um homem comen- tou um dia com outro que teria boa sorte cacando porque tivera um sonho (0 que me dava acesso a simbolos oniricos) e, em outra ocasifo, ouvi um indio pergun- tando a outro: “Vocé se transformou num pdssaro e vou para o céu com sua av6?” (0 que me introduzia nas visbes febris). Residir numa casa grande, com 35 pessoas, como fizemos, era uma ajuda inestimavel. Também passei muitas horas ouvindo conversas na casa dos homens e durante as reuniGes noturnas. Os Suyé, ocasionalmente, mencionavam informagdes que achavam que eu de- veria saber. As vezes, diziam: “Vooé sabia disso e disso?”... Freqiientemente faziam perguntas & noite e eu tinha de me esforgar para lembrar os pontos principais, e ano- tar ou continuar no dia seguinte. Uma noite, um t6pico importante foi levantado desse modo por uma india, sentada préximo 4 rede de minha mulher, que disse: 38 “Voct sabe...” € nos deu uma lista para termos indiretos de referéncia para afins, que eu nfo suspeitava existirem. Ouvir a conversa Suy4, quando conversavam entre si, era muito importante, porque, quando falavam diretamente comigo, quase sem- pre simplificavam as coisas, como o faziam com as criangas, e s6 usavam vocabulério que sabiam que eu conhecia, A descoberta acidental de dreas novas continuou nas tltimas semanas de minha permanéncia. Terminei meu trabalho nfo porque acreditasse saber tudo, mas Porque sabia o suficiente a respeito das éreas que me interessavam. Fiz realmente al- gum trabalho sistemAtico, usava fotografias de todas as pessoas da aldeia para des cobrir como as pessoas se dirigiam ¢ se referiam umas as outras, e pesquisei a maior parte dos pontos com diversos informantes. Caso algo mais interessante ou relevante do que aquilo com que trabalhava acontecia, deixava tudo para observar 0 novo evento, No final, foi o questionamento sistemético, aliado ao que cuidadosamente ouvia, que forneceu os dados para este trabalho. Minha experiéncia pessoal com os Suyé foi importante, mas como acontece com toda boa Antropologia, minha expe- riéncia foi um auxflio na coleta de dados mais ricos, ao invés de um obstéculo. 6. DADOS OBTIDOS E DADOS INACESSIVEIS HA certos tipos de dados que eu consegui obter ¢ outros que nfo pude inves- tigar durante minha estada entre os Suy4. Por varias razSes hist6ricas (ver Seeger, no prelo-a), os Suyé nfo viviam como acreditavam que deviam viver, pois a moradia, a iniciagdo masculina e a vida cerimonial estavam profundamente afetadas pela de- populac&o. A ideologia Suyd nfo concordava plenamente com a pritica que desen- volviam desde as severas perdas populacionais. A vida cerimonial fora também afe- tada pela auséncia de certo ntimero de homens que participavam de uma expediggo, a pedido de Claudio Villas Boas, durante a maior parte de minha estada. Os Suyd sentiam agudamente a falta desses homens durante os perfodos cerimoniais. Foi im- possivel testemunhar certos rituais; alguns deles nfo aconteciam hd décadas. Fiz to- das as tentativas para observar as mudangas que haviam ocorrido na sociedade Suy4, mas estes trabalhos de modo algum so reconstituig6es hist6ricas. O material que nfo conseguia obter sobre a organizacfo social ¢ as cerimonias extintas era precisamente 0 que esperava aprender dos grupos Suy4 remanescentes ‘no rio Arinos em 1970. Foi somente apés 10 meses entre os Suy4, no Xingu, e apro- ximadamente dois anos no Brasil, que soube ao certo que nfo havia mais nenhum grupo Suyé a ser estudado. Fiz o possivel para sanar as falhas de meus dados, atra- vés de longas entrevistas com os sobreviventes dos Arinos que tinham sido removi- dos para a aldeia Suy4, mas esse trabalho foi realmente prejudicado por minha im- possibilidade de visitar um segundo grupo Suyd. Embora tenha coletado um bom material sobre as acusages de bruxaria, durante minha permanéncia foi impossivel obter dados hist6ricos completos. Em geral, os Suy4 respondiam a todas as quest6es, mas mostravam-se muito relutantes em repetir quaisquer ‘mis palavras” dos bruxos no passado. Ndo pude coletar ricos dramas sociais, pois a maior parte dos mesmos gira em torno de acusagdes de bruxa- ria, Somente os bruxos falavam “mds palavras”, ¢ até mesmo repeti-las representa- 39 va algo de mau. Os Suy4 também nfo quiseram cantar duas de suas cangSes, porque © proprio ato de tocé-las num gravador representava uma ameaga a aldeia, pois pro- vocaria o ataque de indios inimigos. Permitiram-me gravar cantos que podiam preju- dicar somente os indiv{duos, e mesmo assim longe da aldeia, mata adentro, com a condig&o de nfo as tocar enquanto permanecesse no Xingu. Os Suy4 ensinaramnos tudo 0 que puderam, foram bons companheiros, ¢ juntos passamos bons e maus momentos. Foi um povo paciente € generoso 0 que ‘me treinou para ser um antropélogo e um pouco Suyd. Orgulhavam-se de nosso pro- gresso e preocupavam-se quando adoecfamos. O aprendizado freqilentemente se fa- zia em duss diregbes; as vezes eu respondia a tantas perguntas quantas perguntava, € descobri, por embaracosa experiéncia, 0 quanto é facil dizer: “Fazemos isso desse modo porque esse € sempre 0 modo pelo qual o fazemos”, quando uma explica- fo dificil derrotava minhas habilidades lingiifsticas. Aprendi a me identificar com meus informantes; aprendemos as canges um do outro e as cantdvamos. Este livro brotou das anotagSes que fiz, dos relatérios de campo que enviei a meu orientador, e da excitago das cantorias que chegavam a durar 15 horas a fio. Ele representa uma tentativa de tradugdo do que acredito ser a dimenso fundamental da socieda- de e da cosmologia Suy4, em termos que possam ser compreendidos por qualquer nfio-Suyd, sem cometer injustica irrepardvel contra o que os Suyé tentaram me ensi- nar com tanto cuidado.

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