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Des/orientagdes em Guimaraes Rosa, Milton Hatoum e os propositos de um certo Ernesto: olhares para as bandas de la Benjamin Abdala Junior” Resumo © rio Amazonas, neste estudo, serve inicialmente de veiculo simbé- lico, confluente com a imagem de uma espécie de “banda larga”, em. termos informacionais, de forma a configurar um campo discursive sobre problemas politico-sociais latino-americanos. Sao questées le- vantadas a partir do filme Didrios de motocicleta, dirigido por Wal- ter Salles, relacionadas com estratégias discursivas do conto “Orien- tagio”, de Joo Guimaraes Rosa, do romance A jangada, de Jilio Verne, e do romance Dois irmaos, do amazonense Milton Hatoum, As aproximacdes, que se valerio das contribuigdes criticas do socié- logo peruano Maristegui, entre outros, discutirio imagens do rio, fundamentais para a compreensio das travessias rosianas. Palavras-chave: Guimaraes Rosa; Milton Hacoum; Jilio Verne; Rio Amazonas; Des/orientagées. m um ensaio de abertura a coletinea Margens da cultura: mestigagem, hi- E bridismo e outras misturas (ABDALA JUNIOR, 2004, p. 9-20), observa- mos que entendfamos a énfase dada a discussio da mesticagem e hibridis- mo cultural na atualidade como resposta da critica para a necessidade de dar conta dos grandes processos de deslocamentos e de justaposigées do individuo, das populagdes ¢ do conhecimento que tém levado ao rompimento com as con- cepgoes fixas, sedentarias. Tais processos da mundializagao da economia capita- lista vineulam-se contemporaneamente com as necessidades do capitalismo in Universidade de Sao Paulo. 75 Talo Horzone 9,17, p. 7584, 2 sem 2005 Benjamin Abdala Junior formacional, pautado pela hegemonia das finangas e a énfase numa economia de mercado. Pata essa modulagio do capitalismo sio imprescindiveis os meios digi- tais, que descartam estratégias unidirecionais. E a partir dessa situacao ¢ dos flu- xos que desencadeia que pretendemos analisar 0 conto “Orientacio”, da coleti- nea Tutaméia (Terceiras estérias), publicada por Joo Guimaraes Rosa em 1967 (p. 108-110), ¢ 0 romance Dois irmaos, de Milton Hatoum, publicado na virada do milénio (2000). Do ponto de vista te6rico, nos avizinhamos, a nossa maneira € com maior peso politico-social, dos modelos explicativos da “sociedade em rede”, desenvolvidos sobretudo por Manuel Castells (2003). E, criticamente, em relagio a Guimaraes Rosa, do ensaio Guimaraes Rosa: fronteiras, margens, pas sagens, de Marli Fantini, que mostra como os “flutuantes portos de palavras rosianas criam zonas de confluéncia para a coexisténcia contraditoria e desier- quizada entre linguas ¢ culturas de distintas temporalidades ¢ procedéncias, vati-~ cinando uma nova forma de ler ¢ habitar 0 mundo (p. 279-280). A aproximagio eri seri feita de forma a deixar subjacentes formas de articulagoes afins da desregula- ica ca entre 0 ficcionista do sertio € © da regido am mentagao das redes digitais que segue a l6gica do capital e seus olhares mercado- logicos, mas também as novas fronteiras de cooperacio comunitéria. Nesse mun- do, a imagem do tio, com suas malhas hidricas, solicita do navegador 0 conheci- mento de rumos, mesmo que provis6rios, encontra equivaléncia na possibilidade de o navegador virtual abrir continuamente novos lirks, para novas e recursivas interagoes. Se nesse universo é hegeménico o capital financeiro que de forma da vez, mais intensiva substitui distancias por velocidades ¢ se alimenta da infor- magio nova para fins de mercado, por outro lado, jf que a realidade é hibrida e contraditéria, ele nao deixa de propiciar tais articulag6es pautadas pela solidarie- dade. Importa ao sujeito, entdo, aprender a olhar para 0 outro, tendo em conta que esse olhar nao pode descartar a perspectiva critica. Olhares in/certos que apontam para certos rumos, agora colocados no plural. Tais consideragdes sobre formas migrantes que tém como né, em termos de teoria da informagio, conjungdes em portos flutuantes, parte da idéia de que 0 hipertexto — ao contririo do que diz. quem se deixa hipnotizar pelos processos computacionais ~ “nao é produzido pelo sistema de multimfdia usando a Inter net como meio de atingir a todos. £, em vez disso, produzido por nés, usando a Internet para absorver a expressio cultural do mundo da multimidia e além dele” (CASTELLS, 2003, p. 166). Os nds se articulam também fisicamente € nao ape- nas virtualmente e sio estabelecidos por sujeitos concretos, que tém experiéncia, histéria, consciéncia e se organizam em rede com a vida social 76 "TK Belo Homranie 9. sem 2005 Desforientagdes em Guimaraes Ros de um certo Emesto. UM ROCINANTE MOTORIZADO Esta em exibicao nos cinemas brasileiros o filme Diarios de motocicleta, di- rigido por Walter Sall ma, 6 a travessia do rio Amazonas pelo jovem Ernesto Guevara de la Serna, em Seu niicleo simbélico, que aparece quase ao final da tra- 1952. Eo ponto (x6 informativo) culminante da viagem de reconhecimento da “nuestra América mestiza”, feita pelo entio estudante de medicina, especializa- do em hanseniase, ao lado de seu colega Alberto Granado. A motocicleta, deno- minada “Rocinante” pelos estudantes, di sentido a essa viagem, que se respalda numa produgio da qual participaram profissionais brasileiros, argentinos, chile- nos e peruanos. Essa articulagao comunitaria, em termos de realizagio, é ainda mais ampla, entrando numa rede mundial do cinema dito alternativo, que tam- bém tem suas bases de mercado. Na trajet6ria, realizada com precariedade de meios, o jovem Ernesto, que vie via confinado ao porto de Buenos Aires, veio a tomar conhecimento da outra margem social da América Latina. Conheceu também o pensamento politico-so- cial do peruano José Carlos Mariategui (1894-1930), filho de pai basco e mie in- digena. Maridtegui considerava-se um némade por ter vivido em muitos paises, apesar de sua curta existéncia (35 anos). Travou relagdes com o grupo da Clari- dade, na Franga, ¢ com circulos gramscianos, na Itilia. Notabilizou-se por imbri car, em seus textos criticos e pritica politica, esse marxismo que se desenhou na Europa ocidental com a maneira de ser mestiga de seu pais, E, entio, o futuro “Che” Guevara, apés cruzar a América andina, foi ter 3 Amaz6nia peruana, vindo a estagiar no leprosario de San Pablo, localidade nao distante de Iquitos, de onde anteriormente partiu a viagem ficcional do romance A jangada, de Jlio Verne (2003), a que nos referiremos mais adiante. A imagem {que nos interessa neste momento (e que constitui nticleo simbélico do filme de Walter Salles) € a travessia a nado do rio Amazonas pelo jovem estagirio. Pouco antes dessa empreitada, o futuro “Che” havia feito um discurso de despedida nu- ma festa organizada comunitariamente pelos que tinham poder no leprosério. Falou da necessidade de integragio da América Latina, Essa regio continental deveria constituir um s6 pais, para se contrapor — dirfamos, hoje, por referéncia ,evidente- sociedade em rede ~3 assimetria dos fluxos, de natureza imperial. H. mente, no relevo da mesticagem, uma aspiracio de universalidade sem frontei: ras. Se em nossa mestigagem radicam marcas dos povos que deram base a nossas culturas, como os europeus, africanos ¢ amerindios, aqui vieram fluxos migrat6- rios também de povos de outras regies. A travessia do rio Amazonas por Ernesto Guevara, asmitico desde crianga, ob- viamente tem simbolizagio social, pois a personagem se direciona para a outra mar= 77 SGRIPTA, Ba Honvorte, 9, m7 ps 75BA, D> sem 2005 Benjamin Aba Junior gem, onde estavam os internados mais carentes do leprosério. Estes, na outra margem, se ajuntavam, construindo suas préprias palafitas. O futuro “Che” con- seguia ultrapassar, assim, limitagées fisicas e de origem social, embalado pelo so- nho de romper fronteiras de toda ordem. Entrecruzam-se sua geogralia interior com a exterior da ambiéncia latino-americana, Nas malhas da bacia da integragio subcontinental, convergindo para uma espécie de banda larga de ordem suprana- cional, confluem pedagos de muitas culturas. No grande ri versidade e das misturas que nos envolvem, é possivel descortinar fluxos capazes de integrar dinamicamente o diverso. Uma rede que se desloca da ficgéo para 0 referente, como um mitoa “fecundar a realidade” (Fernando Pessoa), como ocorre nas formulagées do pensamento social de Mariétegui. A rede possui bandas que , simbolo da biodi- se alimentam recursivamente, abrindo a possibilidade de muitas margens no pro- cesso de combinagio, mas estatuindo uma diregio para 0 conjunto contradit6tio dos fluxos. Como nos disrios de Ernesto Guevara e de Alberto Granado, as mu tas margens registradas na travessia sio janelas abertas para as margens do conhe- cimento ~ uma travessia por fronteiras comunitirias de cooperacio, de forma equivalente a realizagio supranacional do filme. Isto é, formas de cooperacio ca- pazes de emocionar a todos que ainda cultivam algum cantinho de dignidade. ‘UM CERTO (E CINICO) MAU-HALITO Respira-se no filme de Walter Salles, como se percebe, uma atmosfera rosiana: a travessia para uma outra margem ¢ as interfaces desse grande rio, que apontam para as bandas de I4, A impulsio que motiva os gestos de Guevara se faz.na pers- pectiva aberta por Mariategui, que encontrou em seu percurso peruano. Esta nessas éguas a idéia de mestigagem enquanto coexisténcia problematica de opos- to diversidade e a contradigao como forgas motrizes de um encontro social projetado num ideal de futuro, Imbutdo em parte de um certo pensamento mes- sidnico, Maristegui considerava-se um pessimista em relacio a essa realidade ¢ um otimista em relagio ao futuro (MARIATEGUI, 2002). Estava nesse futuro seu “mito socialista”, capaz. de canalizar os fluxos da diversidade. Nao era um dog- mitico: a “orientagio” para a travessia era aberta e dependia fundamentalmente do “ideal” do sujeito, tomado em suas dimensGes individuais e coletivas. Ja a “orientagio” do conto de Guimaraes Rosa € recursiva: os fluxos comutam direci- ‘onamentos vetoriais. Nao ha af possibilidade de sinteses, quando explora as mil- tiplas potencialidades das misturas, intrinsecamente hibridas, das inumeriveis margens da cultu constituem experiéncias compat As misturas, sempre em processo ao curso das aguas do rio, ilhadas. 78 SCRPTA, Belo Hoiaonte, 9. 7p. 7S, 29m 2005 de um certo Emesta: 10” é uma est6ria de um cule, transformado em cozinheiro de origem chinesa. Ele é 0 “Chim”, que virou “Joaquim” e depois “Quim”. Fo- ram as diferengas de seus habitus culturais que acabaram por transformé-lo num pequeno proprietario rural. Comegava na simbolizagio do cozinheiro um pro- cesso de misturas que 0 levam a se apaixonar por uma lavadeira sertaneja, cultu- ralmente uma antipoda, O casal se consorcia entre os salamaleques da escrita ro- siana e 0s gestos do “Quim”/“Chin”. A lavadeira “Rita Rola” virou, em seu olhar, a ta Lola”, ou “Lolalita’. E 0 “felizquim” se apaixonou tanto que se viu falan- do com ela como um sertanejo, de cécoras. Entretanto, nesse universo rosiano, a diversidade nao leva a unidade. Interpuscram-se entre eles, segundo o narrador do conto, “a sovinice da vida, as inexatid6es do concreto imediato, o mau-hilito da realidade”. E importante que sublinhemos a expressio “inexatidées do concreto imedia- t0” € 0 fato de as personagens estarem de cécoras, muito proximas, face a face, de forma a sentir 0 “mau-halito da realidade”. “Rita-a-Rola”, como o narrador explicita, “nao cuidava de sinteses”, Nao cuidava de estabelecer uma ponte comu- ecusava-se travessia. E, como este “Chin”/ “Quim” era sinico (grafa-se com “s”) e nio efnico (com “c”), afastou-se de uma nicativa entre as duas margen Lolita que se limitava a ser uma “R6la” que nao aleava vo. Afastando-se do “concreto imediato” para uma outra banda, “Chin”/“Quim” se fez referéncia. E assim, a distancia, sem o “mau-halito da realidade”, “Rita-a~ Rola” pode incorporar os gestos do cozinhi banda ch 08 salamaleques dos gestos leves, opostos aos da tusticidade sertane} . provenientes de uma imaginétia sa. Vern daf sua “orientagio” — entre o conereto da cultura do arroz.¢ ‘Como gorgulho no grio, grio de fermento, fino de biissola, um mecanismo de consci- éncia ou cécega. Andava agora a Lola Lita com passo enfeitadinho, emendado, (ROSA, 1967, p. 110). ‘A “orientacio” se faz em funcao de um problemético “emo algébrico”, isto &, reto, proprinhos pé e p de um horizonte aberto e desdobrivel de possibilidades, que nao se conforma coma sintese. Ea inclinagao, para Oriente, s6 é possivel quando a personagem se vé no desempenho do papel ativo de uma cozinheira de culturas. Isto é, assume sua potencialidade subjetiva. Foi essa mesma potencialidade, que se afirma num fluxo recursivo, com diregio vetorial posta, que havia feito com que 0 “Chin”/ “Quim”, que trancava as pernas j frim de péssaros ou entender o povo pasar” se apaixonasse por Rita Rola, a sua maneira chinesa, para melhor “decorar o ch Lolalita (entre as Lolas ¢ as Lolitas), ¢ visse nela uma imagem de beleza, embora, como registra cinicamente 0 narrador (grafa-se com “c”), ela fosse “Feia, de se ter pena de seu espelho”. Este é 0 “mundo do rio”, que nao é ~ segundo o narrador ~ 0 “mundo da SERA Boonie PIE amd Benj nin Abdala Junior ponte”. Para se evitar o “mau-hilito desse mundo” e as “inexatidées do concreto imediato”, o narrador descortina a mediagéo das culturas, vistas em suas mistu- ras. “Chin"/“Quim” se faz perspectiva in absentia e Lolalita havia conhecido de perto sua experiéncia em lidar com misturas que, afinal, veio a incorporar. Essa figuragao chinesa nao se fez mito, diferentemente do mito social de Mariftegui que sensibilizou 0 futuro “Che”. UM INCERTO PORTO FLUTUANTE. ‘As migragdes culturais sio igualmente tematizadas nos dois romances de auto- ria de Milton Hatoum: Relato de um certo Oriente (1997) e Dois irmaos (2000) Has migracées internas, veiculadas pelo rio Amazonas. O poder de atragao das margens desse vefculo, situado nesta comunicagao como uma banda larga, cana- liza inclusive culturas de outras bandas, como a dos libaneses. O hibridismo des- sas narrativas nao se faz apenas pelo contato de culturas, misturando as aguas cul- turais do rio Amazonas, com as do Mediterraneo. Faz-se igualmente através das personagens narradoras, situadas nas margens sociais: uma narradora feminina em Relato de um certo Oriente ¢ um narrador mestigo que escreve a partir de sua fronteira social, em Dois irméos. Vamos nos fixar nesse segundo romance. Biologicamente, esse narrador é um mestigo, filho de uma agregada india e de um dos dois irmaos, gémeos e idénticos. A diversidade interior ¢ nao a semelhanga exterior € que marca essa ambivalente unidade paterna: os gémeos eram total- mente diferentes, Se um se inclinava para a marginalidade da terra, o outro se en- quadrava numa outra margem, igualmente problemética, mas que tem reconhe- cimento social. Ele era engenheiro ¢ sua atuacéo o leva a uma outra forma de marginalidade: aquela de quem habita as esferas de poder, seja de poder econd- mico-social ou de poder simbélico. Afina-se melhor com as flutuagdes dos no- vos tempos. Nem esse narrador periférico & familia e nem sua mie sabiam ao certo qual dos gémeos seria seu pai. Esse problema de identidade que perseguiu 0 narrador que morava nos fundos da casa, desde sua infancia, acaba por se mostrar, ao final do romance, como itrelevante: tudo estava, afinal, em ruinas. Era uma questao agOnica, de forma anéloga, ao mundo que se estruturara nas margens do rio Ama- zonas. Outras margens do capitalismo se afirmavam sobre aquelas originérias do comércio da bortacha. E.0s fluxos hegemOnicos ja nao seguem os direcionamen- tos do rio, mas sio compelidos a uma direcao vetorial norte/sul. Resta entio ao narrador 0 registro agdnico desse modo de vida e interagoes familiares e sociais advindas da experiéncia histérica amaz6nica. Sua trajetéria cultural de curumim 80 SERIPTA elo Horizonte 9,7, p7SBA, sem 2008 Des/orientagoes em Guimaraes Rosa, Millon Hatoum ¢ os propésites de um certo Emesto: a professor apenas potencializa seu exilio pessoal: torna-se um exilio mais amplo. € mais geral: 0 fundo de quintal simbolico alastea-se para toda a Amazénia, No decorrer da narrativa, o antigo curumim procura estabelecer pontes com © mundo dos provaveis pais, mas na . E compelido a voltar sempre ao 10 consegu ponto de partida. Seu horizonte era diplice, no apenas em relagio aos gémeos antipodas. Nao ha identidade dada, como aponta sua experiéncia c sim processos de identificagao recursivos com aqueles que marcaram mais fundo a sua maneira de ser: a mae, radicada a terra e 0 avé libanés. Os dois, que vieram de terras dis tantes (do interior amaz6nico e do exterior) terminam enterrados lado a lado. Como no conto de Guimaries Rosa, também aqui sintese nao é possivel. A sin- tese impossivel foi sonho de sua av6 e de sua tia de reunirem os gémeos antipo- das. O resultado foi mais dramatico do que aquele apontado no conto “Orienta- gto”, de Guima es Rosa: colocados face a face, mesmo num projeto pretensa- mente unificador, o resultado foi explosivo ¢ definitivo. O consércio produtivo do hibrido que trouxe o desenvolvimento da socieda- de manauara ja morreu. Manaus articulava-se em torno de um “porto flutuante” — 0 “Manaus Harbour”, na grande imagem do romance de Hatoum, Af atraca- vam no passado os grandes cargueiros, que ocultavam a floresta. A civilizagao se impunha a natureza. Um “porto flutuante” articulado, nao obstante, com as ri- quezas dessa banda florestal, mas também com os horizontes de mercado que terminam por ocasionar sua decadéncia. Essa “cidade flutuante” 0 porto — sera posteriormente demolida e, com ela, uma forma de vida. UMA IMENSA JANGADA DE MADEIRA O narrador de Dois irmaos, desde sua perspectiva perifética, nao consegue se fixar em mitos de origem. E faré da literatura uma forma ambigua de comtato com as renovaveis e instaveis outras margens da vida an /onica ~ uma busca de identificagao mais ampla, sempre em proceso. Nao se trata de uma identidade miticamente situada. Nao se configuram identidades fechadas, sequer nos géme- ‘os, Nem de origem: 0 av, no Amazonas, jé é outro, distante de sua primeira na- cionalidade libanesa. A volta ao ponto de partida nio é possivel diante das 4guas hibridas do rio-existéncia, Como contraponto a esse proceso que eseapa as determinacées de narrado- lio Verne. res € personagens, faremos referéneia ao, romance A jangada, de J Nessa narrativa nao hé dividas quanto a orientagio do narrador: ele se pauta por um idealizado sentido ético, que direciona programaticamente suas ages. Inju tamente acusada de crime, a personagem central foge para as bandas amaz6nicas 81 sem 2 SERPTA Beo Honra Sora ‘Benjamin Abdala junior do Peru, vindo a se enriquecer. Grande proprietério numa regido proxima de Iquitos — referencia nao distante, em termos amazénicos, do leprosario onde es- tagiou Ernesto “Che” Guevara ~, conforme ja indicamos, essa personagem de Julio Verne desloca sua residéncia e as dos trabalhadores agregados, com todas as dependéncias, para uma imensa jangada de madeira. O objetivo era chegar fo. do rio Amazonas, em Belém, pasando por Manaus. Nessa trajet6ria extensiva, a0 longo do rio, ocorre um resgate ético dessa personagem ~ uma ética senhorial, jt que toda a familia ¢ ageegados se deslocavam com ele ¢ em fungao de sua vontade, Este ut6pico mundo mével e flutuante atracou em muitas margens, sempre a0 impulso da determinacio do grande proprietario, Um equivalente sentido éti- co patriarcal figutava no horizonte das mestigas familias amazonenses, como a dos imigrantes mesclavam com 0s amazonenses mais antigos, como ocorre no romance de Jilio yaneses. As migragées de brasilciros de outras regides, que se ‘Verne, desenhavam uma perspectiva idealmente similar a sonhada pela familia de otigem libanesa. O tempo em Dois irmios, entretanto, era outro. O sistema produtivo, inclusive o comércio, vinculado a essa sociedade mestiga patriarcal jé estava em ruinas. E as lojas de comércio do porto flutuante de Manaus ~ 0 “Ma- naus Harbour” acabaram por serem substituidas pelos bazares indianos. Novas correntes migratorias, bastante agressivas e competitivas, aventureiras, mais af nadas com 0s novos fluxos da globalizagio. O porto flutuante de Manaus acaba por se submeter a uma flutuagio mais ampla desse mercado, restringindo-se & importagio, segundo 0 narrador, de quinquilharias procedentes de Miami. UM MUNDO DE ESPELHOS QUEBRADOS A biodiversidade das margens do Amazonas ou do sertio mineiro configura- se no conto de Guimaries Rosa ¢ no de Milton Hatoum como imagens quebra- das, Nao deixam, entretanto, de se mostrarem como potencialidades abertas a0 olharem recursivamente para outras margens. Afinal, trazem personagens que desenvolvem suas préxis a partir de uma experiéncia social compartilhada, Nio sio mundos que se esgotam num presente, que o individualismo contemporineo compele a uma atuagio solitéria. A grande mediadora, que nio permite a solidio, vem da arte, Sem essa mediacio, persiste 0 “mau-halito da realidade”, como s plicita no conto de Guimaries Rosa. Podemos citar, nesse sentido, Manuel Cas- tells (2003), quando discute as redes sociais do individualismo contemporaneo: Num mundo de espelhos quebrados, feito de textos nio-comuniesveis, a arte pode~ ria ser (..) um protocolo de comunicacio ¢ uma ferramenta de construgio social Por sugerir, através de uma ironia que desarma ou de pura beleza, que ainda somos 82 SRP Hz Dm 7S-BA, Ds, BOS Desforientagdes em Guimaraes Rosa, Milton Hatoum e os propésitas de um certo Emesto: capazes de estar juntos, ¢ ter prazer nisso. A arte, cada vez mais, uma expressio hi- byrida de materiais virtuais¢ fisicos, pode ser uma ponte cultural fundamental entre a Net ¢ 0 eu. (CASTELLS, 2003, p. 168) ica, € uma mitica vido), de c6digos culturais. Como indicamos, o soci6logo peruano via o presente de forma O horizonte da arte, como em Maridtegui em relagio a pol € ut6pica linguagem comum, capaz de levar ao compartilhamento ( pessimista, mas procurava metamorfosear essas tensdes, de forma a impulsionar essa situagio de caréncia para 0 chamado reino da liberdade. A travessia pode se fazer, como na imagem da atuagio simbdlica do jovem “Che”, através do mergu- Iho nas éguas do rio, quando se direciona para a superagio (romanticamente, riamos) de limitagdes de toda ordem. Seu impulso é motivado pelas potenciali- dades politicas das formas hibridas, que apontam para projetos (coloquemos no plural) de integragdes latino-americanas. Nessa travessia a nado, Guevara deixa uma festa de despedida para ser recepcionado na outra margem pela populacio ainda mais marginalizada, Nesse mundo do rio, entretanto, nem tudo € festa, como se verificou poste- riormente, no plano da vida conereta dessa personagem: “as inexatidées do con- creto imediato”, diria Guimaraes Rosa. Ha outras formas de travessia, como vi- mos ¢ que se descortinam no sertio-mundo desse escritor. Travessias mais tran- giilas ou mais problemsticas. Sao modos de ser e de estar no mundo bastante di- ferenciados, comutaveis, intercambidveis, recursives. Fiquemos aqui, para ter- minat, com o registro dessa diferenga, por n6s reiteradamente referida: a obser- vaio do narrador do conto “Orientacao”, de Guimaraes Rosa, que aponta a evi- déncia de que, afinal, “o mundo do rio nao é o mundo da ponte”. Abstract In this paper, the Amazon river is initially a symbolic vehicle in con- fluence with the image of a sort of ‘broad band’, to use information language, so as to delimit a discoursive field concerning Latin-Amer- ican political and social problems. Those issues are brought up in di- rector Walter Salles’ film Didrios de motocicleta, and ae related to discourse strategies in Jodo Guimaraes Rosa’s short story “Orienta- io”, in Jules Verne’s novel A jangada, and in Milton Hatoum's nov- el Dois irmaos. The approach to that relation, based on Peruvian sociologist Marigtegui’s critical opinions, among others, discusses im- ages of the river, which are fundamental co understand Rosa's many crossings Key words: Guimaraes Rosa; Milton Hatoum; Jilio Verne: Amazon River; Dis/orientation, 83 SERIPTA Belo Woroate e217, p TSH, Do sem, 20S Benjamin Abdala Junior Referéncias ABDALA JUNIOR, Benjamin, Um ensaio de abertura: mestigagem e hibridismo, glo- balizacio e comunitarismo. In: ABDALA JUNIOR, Benjamin (Org.). Margens da cultura: mestigagem, hibridismo & outras misturas S40 Paulo: Boitempo, 2004. p. 9-20. CASTELLS, Manuel. A galaxia da Internet. Reflexdes sobre Internet, os negocios ea sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. FANTINI, Marli. Guimaraes Rosa: fronteiras, margens, passagens. Sio Paulo: Senac Sao Paulo/Atelié Editorial, 2004. HATOUM, Milton. Relato de um certo oriente. 3. reimp, Sa0 Paulo: Companhia das Letras, 1997. HATOUM, Milton. Dois irmios. Sao Paulo: Companhia das Letras, 2000. MARIATEGUI, José Carlos, Siete ensayos de interpretacién de la realidad peruana. México: Ediciones Era, 2002. ROSA, Guimaries. Orientagio. In: Tutaméia (Terceiras estérias). 2. ed. Rio de Janei- 10: José Olympio Editora, 1968. p. 108-110. VERNE, Julio. A jangada, Sao Paulo: Planeta, 2003. 84 TTT OS Se Bie Ha 9, IT. BPSD 2005

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