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MONICA RUGAI BASTOS TRISTEZAS NAO PAGAM DIVIDAS: UM ESTUDO SOBRE A ATLANTIDA CINEMATOGRAFICA S.A. Dissertagio de Mestrado apresentada ao Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciéncias Hamanas da Universidade Estadual de Campinas, sob a orientagao do Prof. Dr. Renato Ortiz. \? Este exemplar corresponde & redagaio final da dissertagio defendida e aprovada pela Comissao Julgadora em 30 104 abril/1997 ‘UNIDAD E Ns Hania Ue ¥ ise hap FICHA CATALOGRAFICA ELABORADA PELA. BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP Bastos, Ménica Rugai IB 297 ‘Tristezas nao pagam dividas: um estudo sobre a Atkintida cinematogrifica SA / Ménica Rugai Bastos . - - CampinasSP: {sn}, 1997. Orientador: Renato Ortiz. Dissertaciio (mestrado) - Universidade Estadual de Cam- pinas, Instituto de Filosofia e Ciéncias Humanas. 1. Politica e Cultura - Brasil.” 2. Cinema - Brasil.” 3, Filmes musicias - Brasil." I. Ortiz, Renato, 1947-. TL. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de Filosofia Ciéncias Humanas. IIL Titulo. Os agradecimentos sdo a parte mais dificil de um trabalho como este. Deveriam se estender a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuiram para que fosse realizado. Se & assim, devo agradecer aos professores, funciondrios ¢ colegas da Universidade de Sao Paulo, Pontificia Universidade Catélica de Sao Paulo ¢ Universidade Estadual de Campinas, locais onde realizei minhas graduagdes e os créditos para a obtengao do grau de mestre. Em especial ¢ em primeiro lugar, antes mesmo de meu orientador, devo agradecer ao professor José Mario Ortiz Ramos, que foi quem me ensinou como analisar filmes, como transformar o cinema, que até ent&o era meu lazer, em objeto de estudo. Gragas a ele, tomei-me apaixonada pelo tema. Depois dele, ao meu orientador, professor Renato Ortiz, cujo exemplo de disciplina no trabalho de escritura me foi fundamental. Agradego sua paciéncia. Precisaria agradecer ao professor Octavio Ianni, grande mestre de varias geragdes de cientistas, dentre as quais a minha. Sua curiosidade inquieta ¢ uma das minhas melhores lembrangas dos cursos. Outra professora importante foi Norma Telles, cujos cursos me ensinaram novas perspectivas da andlise literaria. Serviram de base ¢ orientago no meu trabalho. professor Alcir Lenharo me concedeu o privilégio de poder dialogar sobre 0 tema, em parte comum ao seu trabalho. Foi experiéncia estimulante e proficua. Participou de meu exame de qualificagdo, juntamente com o professor José Mario. Ambos contribuiram muito para a redac&o final. Tornaram-se meus amigos a0 longo deste trabalho. Dos amigos, falha imperdoavel seria deixar de citar Ana Cecilia Nogueira, cuja amizade dedicada é raridade. Nao s6 estimulou a realizagdo da dissertagdo, como participou de discussdes, de idas aos cinemas e arquivos, me ajudou a clarear idéias, se dispds a ajudar na revisdo, enfim, dessas coisas que s6 os amigos do peito, daqueles que nem existem mais, fazem. Todos agradecem a familia, No meu caso, minha familia contribuiu, realmente, para a realizagao de meu trabalho. Grande parte de minha formagao intelectual, recebi, literalmente, em casa. Meus pais, José Maria ¢ Elide, me deram dois marcantes exemplos de profissionalismo ¢ dedicagéo ao trabalho. A disciptina necessaria ao trabalho intelectual aprendi com eles, ao mesmo tempo em que estimulavam minha criatividade ¢ raciocinio. Quando optei pela area de Ciéncias Sociais, tive em minha mie todo o apoio para construir uma base de conhecimento sOlida. Em relagao a este trabalho, pude contar com sua disposigao para desvendar alguns pontos obscuros que achei pelo caminho. As minhas irmas, Helena e Alessandra, agradeco o apoio, as conversas, a companhia no cinema, nos museus e arquivos durante a pesquisa. Acredito que, se -nfo fosse por este trabalho, nfo teriam a chance de assistir a varios filmes. Por outro lado, gragas 4s suas observagdes investiguei aspectos que talvez me passasem desapercebidos. ‘A base deste trabalho é um pouco do que cada uma destas pessoas me concedeu, mas, o trabalho, propriamente dito, é uma atividade solitdria da qual apenas 0 autor participa. Requer muita disciplina e alguma criatividade. E um esforgo tao grande, que ao final dele, gostariamos que tivesse contribuido, a0 menos um pouco, no esclarecimento de algum ponto obscuro, ou tivesse ajudado a tornar algo um pouco mais conhecido. Espero, sinceramente, que este tenha conseguido fazer. as minhas avos, Vendramina ¢ Izatina, e aos meus sobrinhos, Joana e Tomas, representantes de quatro geragdes que viveram emogoes através do cinema. "A técnica fotografica do cinema, que antes de mais nada copia, confere mais validade prépria para o objeto estranho a subjetividade do que os processos esieticamente auténomos; no ‘percurso histérico da arte, esse é 0 ponto de retardamento do cinema. Mesmo onde ele decompose e modifica os objetos (tanto 0 quanto isso the é possivel), a desmontagem ndo é completa. Por isso é que ela também nao permite uma cosnirugdo absoluta; os elementos em que esses objetos vém a ser desmontados conservam algo material, de coisa, ndo sao ‘valeurs’ puros. Por forca dessa diferenga, a sociedade se insere no filme de modo bem diverso, muito mais imediato (da perspectiva do objeto) do que na pintura ou na literatura avangadas.” Theodor Adomo indice Introducaio Capitulo 1- Algumas informagées sobre o cinema nacional Os filmes de Hollywood Cinema e empresa........ Politica cultural e érgios disciptinadores Ponderacées sobre os efeitos das lei Capitulo 2- As caras do Brasi A"fabrica" de filmes .... Fabricando 0 povo e a na¢ao Alegria: 0 retrato do Brasil .. Tipologia ..... Capitulo 3- Vis&o social ¢ politica Sobre as chanchadas .. £nfase nas oposigses .. Tipologia e caricatura Diferentes caracteristicas de direcdo Nossas estrelas: elas existem? ...... Consideragées finais ....... Anexos asecscennnsonccannavcscansseveessonseesscssssessonsnnerosseesee BO Bibliografia ...... 201 Introducdo "Um dia, eu consigo a oportunidade de conhecer a Atlantida, que era o nosso Hollywood, a nossa MGM. (...) Estava muito emocionado porque ta conhecer 0 Watson Macedo. Entdo, eu jd estava esperando entrar na guele estidio maravilhoso, uma sala com tapete vermelho, oito secretdrias, encontrara 0 Watson Macedo detrés de uma mesa linda de morrer, cheia de garotas de shortszinhos... Quando o carro parou, eu jd fomei um susto porque era uma garagem. Ai, eu entrei na garagem, tinha um galpo no fundo; fui entrando, aquele labirinto. De repente entrei em uma serraria, estavam fazendo cendrios. O Cyll (Cyli Farney, grande gal da empresa na época) ! foi na minha frente, eu fui atrds. Tinha um camarada plainando uma porta. O Cyll parou e disse: - Manga, este é 0 Watson Macedo! Este foi o meu primeiro contato com a realidade do cinema nacional. Mas dentro daquele galpdo, dentro daquela garagem, foi onde tudo se iniciou; e aquele diretor que plainava foi quem sacou a comunicagdo. Foi ele quem fez a formula do filme verdadeiramente Plumas e pactés. Pandeiros e requebros. Camaval, samba e marchinhas. Parédia e sitira. Carnavalizagio dos temas, sitira aos costumes, parédia aos Nota do autor. sucessos de Hollywood, folclorizagao de personagens. Isso era diversiio, era 0 cinema nacional a partir do final dos anos 30, até meados de 50. Esta era a Atlantida. Vedetes e malandros emoldurados pela Baia da Guanabara, por Copacabana, pela Urea. Vilées e mocinhos duelavam sobre os ofhares apreensivos das mocinhas ¢ das imensas platéias dos filmes nacionais da época. Talvez.seja interessante lembrar que neste cendrio desfilavam estrelas como Eliana Macedo, Cyll Famey, Anselmo Duarte, Oscarito ¢ Grande Otelo, citando apenas aquelas que estiveram relacionadas com a Atlantida. O camaval era o grande tema da cultura nacional. Seguindo, de certa maneira, os esquemas hollywoodianos de produgo, o cinema nacional conseguin, entre as décadas de 30 ¢ 50, criar um panorama de fantasia na capital federal e oferecer estrelas para a fantasia da populagdo. Distribuiam-se varias publicagdes semanais e quinzenais sobre cinema2, e ao mesmo tempo, a estratégia que relacionava os langamentos de marchas camavalescas ¢ filmes foi extremamente bem sucedida. Ir ao cinema era "modemno", Viver nas cidades também, ¢ dentre todas as cidades brasileiras, morar no Rio de Janeiro, ou melhor, na Guarabara, era "o maximo". A capital federal era o "coragdo do Brasil", linda. O local conde tudo acontecia. Tudo, politica ou cultura. Nao existia nada mais préximo da ordem do dia, que se estirar pela manha - nao muito cedo - nas areias de Copacabana, a "princesinha do mar", ou, no caso de alguém "bem nascido", na piscina do Copa - refiro-me ao famoso hotel da familia Guinle, © Copacabana Palace -, mais que um cartio de visita da cidade, um enderego obrigatério para o “jet set" internacional. Vir ao Rio ¢ nao se hospedar no Copa, no caso dos ricos ¢ famosos, era mais ou menos como 2 Cinerama, Cinearte, Cinelandia, Cine-tevista, Cine-repérter, Fiimeldndia entre outras. ir a Franga ¢ nao provar um gole de champanhe. Mesmo nio sendo frequentador das colunas sociais, 0 Golden Room - boate do Copacabana Palace - era o locat mais procurado por aqueles que queriam conhecer 0 luxo da Capital. A boate do Hotel Vogue, destruida por um ineéndio em 1955, era também uma referéncia da noite da mais fina sociedade carioca. Outras boates, ignalmente conhecidas ¢ frequentadas por personagens dapolitica e da “alta sociedade" eram a Casablanca ¢ a Sacha's. O Rio simbolizava, a partir da década de 40, todo o glamour, toda a impaciéneia frenética das grandes cidades do mundo: representava a pressa do Brasil para se "modemizar". Essa concep¢4o de modernidade foi forjada nos primeiros anos do governo Vargas, tendo como metas a centralizagao politica e a industrializagsio do pais, esta se iniciando com o desenvolvimento da industria de base. A partir de 1930, enfrentou-se o desafio de transformar uma economia totalmente ancorada na atividade agricola em uma economia capaz de produzir insumos basicos, ou ao menos parte da matéria-prima necessaria para ativar a industrializagao. Durante 0 periodo compreendido entre 1930 e 1954, 0 Brasil construin sidenirgicas, iniciou a exploracao do petréleo, mudou parte de sua legislagao - mudangas constitucionais, na estrutura das leis trabalhistas e criminais -, dando passos decisivos no sentido do desenvolvimento da industria de base, ¢ da possibilidade de implementagao posterior da industria de bens de consumo duraveis. ‘Ao mesmo tempo que mudava significativamente a estrutura sécio- econémica do pais, Vargas teve que enfrentar forgas oposicionistas. Seu governo alterou de maneira consideravel 0 sistema de forgas politicas ¢ sociais, até entio vigente. Retirou o poder politico que durante os primeiros anos da Repiiblica estava concentrado em méos paulistas e mineiras, mas nao o redistribuiu. Tentou eliminar os regionalismos, que impediam a centralizagdo do poder do Estado. Criou a burocracia federal do Estado, concentrada no Distrito Federal; tomou-a autonoma, com carreira e planos de cargos e fungées, para que pudesse trabalhar sem as pressdes que cnvolvem as alternincias no poder dos diversos partidos politicos; por outro lado, permitiu que se tomasse tio independente que acabou por ndo precisar mais atender aos objetivos para os quais foi criada. Outra caracteristica do governo de Vargas foi a tentativa de educagao do povo para a cidadania. Nessa diregéo, conseguiu agrupar ao seu redor uma série de renomados intelectuais preocupados com a questo nacional. Com. a ajuda deles, criou um sentido de nacionalidade, que ja nao estaria expresso apenas no pensamento, mas seria efetivado através de agdes durante seu govemo. A partir de sucessivas reformas no sistema educacional, da criagio de drgios piblicos especializados no desenvolvimento da educagao ¢ da cultura, via aparelho de Estado tentou- se focalizar a importancia de certos principios basicos que possibilitavam a “construgao" de uma nagdo forte ¢ poderosa. Principios como 0 civismo, a importancia da familia, da escola, propunham a integragao da populagao brasileira em um novo tipo de sociedade que valorizava o desenvolvimento, porque reconhecia o bem-estar proporcionado por ele. ‘Um Estado modemo poderia oferecer este bem-estar almejado. Para tanto, deveria ser fortalecido, através da adesdo da maioria da populagdo. Nesse processo procurou-se, também, educar 0 povo para o trabalho na indistria, fazendo-o acreditar que a riqueza de uma nag&io dependia do trabalho de seu povo. Esta idéia fundamental iria mudar o “ethos” do trabalho. Busca- se alterar a perspectiva, até entiio vigente, de que trabalho era para pessoas pobres, sem recursos, que nao "deram certo", que portanto, deveria estar associado & vergonha, a uma certa marginalizagdo social. Vargas tentou, portanto, criar novo tipo de ética do trabalho, algo semelhante ao que fora instituido pela ética protestante, durante os primérdios da era industrial. Segundo essa nova verso instaura-se uma particular importincia para o trabalho: trata-se de elemento vital, base de toda a ascensao social. Vargas s¢ utiliza do cinema nacional para a divulgacao das novas idéias. E claro que nao apenas do cinema. Mas ao fazé-lo engendra uma formula diplice. De um lado, apoia-se na tese de que o fato de ser nacional toma 0 cinema brasileiro melhor do que o estrangeiro. De outro, ao veicular idéias, valores nacionais provoca uma identidade imediata do piblico com os Pprincipios a serem assimilados. Com tal estratégia consegue-se simultaneamente que o piblico comparega em massa ¢ que ao fazé-lo esteja mais aberto a absorgdio daqueles principios. Para conseguir transmitir essas novas idéias, 0 governo deveria ter acesso aos principais meios de comunicagdo da época: o radio e o cinema. O poder de penetragao destes ja era bastante conhecido e utilizado por varios govemos, inclusive durante a guerra. A base da publicidade foi a criago de “slogans"ou frases de efeito, facilmente memorizadas pelas pessoas € portanto facilmente relembradas. As frases, os anunciantes acoplavam misicas, e além disso, criavam situagées cotidianas, que ficavam desta forma permanentemente associadas aos produtos que queriam vender. Da mesma forma, quando se tratava de id¢ias e nfo produtos a serem divulgadas, o estimulo era associd-las a algo j4 conhecido, ou facilmente lembrado, em diversas ocasides, durante a maior parte do dia. Assim, essas idéias apareciam como ja familiares, correntes no cotidiano. Isso toma 0 cinema mais importante que o radio, pois esse veiculo permitia a associagiio imediata imagens/idéias. Nos anos 30 0 radio tinha muito maior penetragdo que o cinema, de divulgagao bastante restrita pelas diferentes regides do pais. Através de suas ondas muitos nomes ficaram conhecidos em praticamente todo o territdrio nacional, transformanda-se em mitos vivos. A primeira eleigao da Rainha do Radio ocorreu em 1937, sendo eleita Linda Batista. A festa foi promovida no Tate dos Laranjas, barco camavalesco ancorado na Esplanada do Castelo no Rio de Janeiro. Manteve o titulo por 111 anos, pois © concurso s6 foi reorganizado em 1948, pela Associagao Brasileira de Radio. Em 1948 foi eleita a irma de Linda, Dircinha Batista. Ambas apareciam correntemente ao lado de Getilio Vargas. A capacidade do radio para criar mitos pode ser verificada na ocasiao da morte de Francisco Alves, 0 Rei da Voz, em 1952, que morreu cm consequéncia de um acidente automobilistico na Via Dutra. Seu veldrio reuniu mais de 50 mil pessoas na Cinelandia. O pais ficou em luto. Chico Alves foi um desses fendmenos criados pelo radio. Ficou conhecido em todo © pais, ¢ era considerado o melhor cantor de todos os tempos. Sua ‘morte prematura e tragica ajudou a consolidar o mito. Esses mitos, criados pelos meios de comunicagéio de massas, tornaram-se pegas fundamentais da indiistria cultural no mundo todo. Através de suas imagens ¢ vozes que as empresas movimentavam vastas quantias de dinheiro. As vidas dessas estrelas e galas exploradas em varios aspectos, eram responsdveis pelas vendas de revistas ¢ jornais, e suas imagens permitiam a venda de incontaveis produtos industriais nem sempre vinculados ao entretenimento. Os estidios de cinema detinham, através de contratos de exclusividade, controle sobre os movimentos de suas principais estrelas e galas, e, a ndo ser em casos especificos, toda a vida dos mesmos tomava-se alvo de campanhas publicitdrias envolvendo milhdes de délares, promovendo filmes, cangdes ¢, principalmente, o estidio onde trabalhavam. Esse trago marca um momento de transiga0 do cinema, que passa a articular-se a varias esferas da sociedade, muito distantes daquelas da cultura. A produgéo de filmes modifica-se, nfo apenas a partir da evolugio tecnolégica dos equipamentos, mas, principalmente, a partir da sua inserg%io no mercado capitalista. Quando se toma uma atividade industrial, as modificag6es siio muito mais vinculadas ao processo de produgdo do que propriamente linguagem do veiculo, quando consideramos os paises em geral. ‘No caso do Brasil, as coisas aconteceram de maneira um pouco diversa. E, bem verdade que o rédio tinha poder de penetrago no territ6rio nacional, ¢ suas estrelas eram bastante conhecidas. Entretanto, 0 cinema nao alcangou essa forga, pois o processo de distribuigdo para o extenso territério nacional demorou muito para ser regularizado. Os filmes chegavam com muito tempo de atraso. As estrelas nacionais dificilmente conseguiriam rivalizar-se com as de Hollywood. Os gastos com publicidade e de divulgagdo de suas vidas glamurosas cram astronémicos, e assumidos por grandes estiidios, No Brasil, 0 fenémeno de produgao cinematografica através de empresas comegou a se consolidar no inicio da década de 30. O processo de produgdo cinematogrifica somente chegou a se tomar industrial na década de 50, com a companhia Vera Cruz. ‘A Allantida produziu mais de 70 filmes durante 0 periodo que funcionou como estudio, de 1941 a 1962. Durante a década de 50 produziu em ritmo industrial, embora 0 processo produtivo nao fosse além da manufatura. Seus equipamentos eram ultrapassados, restos de filmes eram aproveitados em outras produgdes. Mesmo assim, seus filmes alcangaram vasto piblico. A empresa consagrou um género de produgdes que ficou associado ao seu nome: a chanchada, A pesquisa A Atlantida Empresa Cinematogréfica S.A. foi importante produtora de filmes no pais de 1942 até 1964, nao tendo mecerecido ainda estudo sistematico sobre sua atuagio. Foi muito citada em trabalhos sobre cinema no periodo, ou sobre o género chanchada, sobre a atuagéio de atores negros no cinema brasileiro, ou ainda sobre a relagdo entre o rédio ¢ o cinema durante os anos em que atuou. Quando iniciei a pesquisa, tinha certa intuigdo de que encontraria alguns indicios sobre a relagao entre governo, principalmente do periodo de Vargas, e as produtoras de cinema, Interessava-me saber porque havia sido somente neste periodo da histéria do cinema nacional que tinham existido grandes produtoras. ‘Ao terminar de realizar a pesquisa, tanto de documentos da época, principalmente sobre a legislagao ¢ a criagdo de drgdos que atuavam no setor das comunicagdes no pais, quanto sobre os filmes realizados pela empresa, percebi que os empresarios do setor adotaram a idéia de que a modernidade seria conseguida a partir de um projeto politico-econémico encampado pelo governo. Isso respondia, de certa maneira, & primeira indagagdo: existia intensa relagéo entre o Estado e os produtores cinematograficos. Embora constatada a heterogeneidade da produgao da época levantou-se a hipdtese da existéncia de uma marca comum nos trabalhos dos intelectuais e da produgao cultural da década de 30 - 0 nacionalismo - tema sugerido por varios estudiosos do periodo. Trabalhando também com a afirmagfo de ter sido o Estado Novo organizado a partir de um processo conciliatério, procurei verificar como esta caracteristica se explicita na documentagao oficial da época. De fato, nesses documentos, o Estado aparece como "defensor dos interesses gerais da sociedade", mascarando a existéncia de interesses conflitantes no seio da sociedade. A partir de certa condugdo politica, 0 conflito nfo se explicitava no Ambito de classes divergentes, mas entre os diversos tipos de elites brasileiras, enriquecidas em diferentes setores econémicos. A conciliagdo foi vista como o tmico modo de governar na intengdo de centralizar o poder politico, fragmentado entre os diversos grupos. Este 10 momento de tentativa de reuniao, foi marcado também pelo Exodo rural. Grandes massas de trabalhadores urbanos passam a fazer parte do cenario politico, ¢ foram cooptadas pelo governo, tomando-se sua base de sustentagdo. Sao trabalhadores de todos os setores, inclusive o de servigos, pertencentes as classes mais baixas. Entretanto, existe também um apelo do govemno Vargas as classes médias. Os filmes da Addntida vio mostrar, de certa forma, a mudanga de cendrio politico ¢ a reorganizagao de forgas sociais. Ao assistir os poucos filmes que restaram intactos da empresa, verifiqnei a incorporagao de diversos elementos presentes na época. Enfrentei diversos problemas ao entrar em contato com o material de pesquisa. A primeira foi a péssima condigéo de acondicionamento dos filmes e dos equipamentos para assisti-los. Nem as fichas técnicas das peliculas realizados pela empresa esto reunidas em um sé local. Boa parte das informagées retirei de revistas da época, de algumas publicagdes da EMBRAFILME, e nos arquivos do Museu de Arte Modema (MAM) do Rio de Janeiro. A Cinemateca do referido museu. recebeu boa parte do acervo do Museu de Imagem ¢ do Som daquela cidade, pois o mesmo passou por diversas reformas para ter seu prédio adequado para arquivar 0 material, classificdto ¢ abri-lo para a consulta piblica. O MAM também conta com biblioteca especializada em cinema, na época aberta ao publico. A maior parte das publicagdes consultadas estavam nas bibliotecas Mario de Andrade, em S. Paulo; na Nacional, no Rio de Janeiro; em diversos acervos de faculdades da Universidade de S. Paulo; e nos acervos de ‘varios institatos da Universidade de Campinas, embora também tenha utilizado algumas publicagdes catalogadas na Pontificia Universidade Catélica de S. Paulo. Os documentos oficiais a que tive acesso estavam i organizados pela equipe de pesquisadores do Centro de Pesquisa e Documentagio (CPDOC -FGV), do Rio de Janeiro, e no Arquivo ‘Nacional, também no Rio de Janeiro. Consultei a biblioteca da FIESP, na época aberta ao pitblico, para complementar a pesquisa sobre legislago do periodo, Esta biblioteca tem organizado acervo de toda a legislagdo federal e do estado de S. Paulo, desde a Repiblica. A parte final da pesquisa sobre os filmes da empresa realizei no Museu da Imagem e do Som de S. Paulo, e na Cinemateca, também em S. Paulo. A Cinemateca vem realizando o trabalho de restauragaio dos filmes do periodo, sem o qual, muitos mais ja teriam sofrido as consequéncias do tempo da umidade provocada pelo mau-acondicionamento, resultantes do descaso com a meméria bastante ‘comum em nosso pais. 2 Capitulo 1- Algumas informagées sobre o cinema nacional Os filmes e mitos de Hollywood Em 1930, quando iniciou-se a criag&o das empresas cinematogréficas que possibilitariam a produgo de filmes em esquema industrial no Brasil, a identificagao do piblico com o cinema era imediata: as imagens em movimento ja tinham sido absorvidas como nova forma de perceber 0 mundo; o "star system" de Hollywood estava se consagrando. Este sistema de produgiio, com énfase na existéncia de estrelas de cinema apresenta, entretanto, um paradoxo importante: ao mesmo tempo em que cria a ilusio de identificagdo, permitindo contato quase direto com as estrelas, na tela, e com suas vidas pessoais, em revistas ¢ jomais - 0 que muitas vezes tem cardter publicitario ou mercadolégico -, deve conseguir um distanciamento capaz de garantir espectadores em tomo do mundo, universalizando os temas abordados em seus filmes. Como todo o objeto de consumo, a estrela apresenta duas facetas: precisa ser suficientemente concreta para poder ser ‘vendida’ através dos filmes; mas necessita ser didfana para poder se diferenciar do restante dos ‘mortais'. Os estudios de cinema atingem esse objetivo através da mitificagio dos atores ¢ atrizes. Trata-se de forma invertida em relago aquela apresentada pelo teatro grego, onde o ator pode representar um mito. No cinema, 0 ator torna-se 0 mito no momento em que representa os anseios da humanidade. Ha uma projecdo das aspiragdes do publico sobre o intérprete, projegdes essas que 0 recobrem e que fazem que, nesse processo perca sua individualidade. B disto que vive o cinema. 4 Segundo Edgar Morin', as estrelas de cinema preenchem 0 "vazio" deixado pela falta de herdis no mundo moderno. Aponta para a capacidade que este meio teve de “destruira figura do ator, porque podia prescindir dele. Neste sentido, pode-se dizer que o cinema € seu proprio personagem. A. necessidade de atores profissionais passa a ser secundaria. A linguagem cinematografica permite a criag¢4o de uma obra que enfatize ora um, ora outro aspecto de modo independente. Por exemplo, os filmes podem ser documentais, prescindindo de atores, a iluminagio pode ser um personagem, como em alguns filmes do realismo alemao, a montagem, como em filmes soviéticos, pode ganhar autonomia. Enfim, diferentemente do teatro, onde a presenga do ator ¢ fundamental, a importancia deste pode ser relativizada na forma assumida pelo filme. Entretanto, ainda segundo este autor’, apesar da estrela nao fazer parte diretamente da esséncia do cinema, foi possivel a criagdo do "star system. Isto porque sua linguagem “atrofiou” a representagao, criando uma disciplina sem a qual o ator inexiste. Foi esta aparente contradigao que permitin a criagdo das estrelas. Atrizes e atores tornam-se estrelas quando suas personalidades sao transformadas a partir dos personagens que representam, ¢ vice-versa, Esta simbiose se perpetuou até o momento em que os espectadores nado conseguiam distinguir entre a vida real e a ficgdo. Em muitos casos, as préprias estrelas nado conseguiam se diferenciar das criaturas de Hollywood. Alguns deles nao conseguiram conviver com sua transformagao em mitos, porque o processo muitas vezes acabava esfacelando suas verdadeiras personalidades, assim se aposentavam ou | Ver Edgar MORIN, " As Estrelas: Mito e Sedugio no Cinema", R. Janeiro, José Olympio, 1989. 2 Idem, ibdem, 15 morriam prematuramente. E ai, tanto melhor para Hollywood: desapareciam das telas como mitos, sem terem envelhecido, sem o desgaste de sua imagem. Esta aparente contradigaio pode ser explicada. As préprias estrelas e suas vidas particulares eram objeto das campanhas publicitarias do cinema € veiculavam um tipo de vida e de consumo que movimentava milhdes de délares. Através delas, Hollywood conseguiu transformar-se na indistria cultural, por exceléncia, vendendo nao apenas filmes, porque na verdade, eles se tomaram apenas a ponta da pirdmide de produtos vinculados a industria cinematogréfica, mas 'modo de vida’, transformando-se em mina de ouro para outras campanhas publicitérias, atraindo capital para grandes produgées. E importante , portanto, considerar a criagdo dos grandes estidios em Hollywood como parte de determinada fase de desenvolvimento da indistria cultural, e, nesse proceso, as estrelas de cinema foram fundamentais. No inicio, 0 cinema movimentava apenas um grupo restrito de pessoas vinculadas diretamente 4 produgao e a exibigao de filmes. Este periodo vai desde sua criagao, em 1896, até o final da década de 20, aproximadamente. Depois disso, as empresas investiram capital para controlar a distribuigdio de seu produto em termos mundiais. E dificil detectar 0 momento preciso em que a produg&o dos filmes passa a ter carater verdadeiramente industrial, mas sabe-se que no momento em que os estidios passaram a gerenciar a comercializagao e distribuigéo de seus produtos, houve mudangas na hierarquia de comando dos estidios. Foram introduzidos profissionais de ‘marketing’ © produtores executivos que cuidavam 16 diretamente dos interesses financeiros dos produtores, Pode-se afirmar que a partir deste momento, 0 proceso criativo dos filmes estava inteiramente subordinado a ‘logica de mercado’. A industria do cinema passou ent&o, a movimentar milhdes de délares de outros segmentos da economia, nem sempre vinculados ao entretenimento. A imagem das estrelas ¢ astros de Hollywood era utilizada na venda de produtos; os roteiros dos filmes yendiam “modos de vida". A vinculagdo entre os mais diversos ramos do entretenimento e a publicidade de produtos industriais, emprestou uma aura de sofisticagao € glamour ao consumo, bem como possibilitou a difusdo intercontinental do modo de viver norte-americano, que se tornou modelo para as sociedades em vias de industrializagao, principalmente as latino- americanas. Cinema e empresa A proposta de criacdo, no Brasil, de uma empresa cinematografica, aos moldes hollywoodianos, no inicio da década de 40, relacionava-se, sem duvida, com todo clima ufanista proposto ¢ divulgado pelos ideatizadores do Estado Novo. A idéia de transformar o pais em poténcia, com indistrias de transformagao, implantagao de metas de desenvolvimento coordenado, e, principalmente, integrado dependia, e muito, da integragdio nacional, para a qual os meios de comunicagiio de massa véo desempenhar papel fundamental. A fundagdo da Adlantida ocorreu em 1941, com participagao de Moacyr Fenelon - que tinha ajudado na criagdo da Sonofilmes, empresa que surgiu da modificagao social da Waldow Filmes, de Wallace Dowley -, de Paulo 17 ¢ José Carlos Burle ¢ do conde Pereira Cameiro - proprietario do Jornal do Brasil. Existem algumas davidas a respeito de sua fundagdo, principalmente com relagao a seus fundadores, e a composigao do capital inicial3 A inteng&o manifesta dos empresarios era produzir cinema de maneira industrializada e contribuir para 0 "engrandecimento da nagéo” Suas primeiras produgdes foram cinejomais e reportagens especiais exibidas antes dos seriados que passavam nos cinemas anteriormente ao filme principal do programa, A empresa foi criada quando jA surgiam questionamentos referentes 4 politica cultural do governo de Getilio Vargas. A relagdo intensa e conflituosa entre governo e produtores culturais foi uma das marcas da gestiio Vargas que se estendeu de 1930 a 1945. Se por um lado, o governo percebia a importancia do desenvolvimento do setor, incentivava as produgdes nacionais, por outro censurava e restringia a possibilidade de criacao, tendo sido, muitas vezes, concorrente direto dos cineastas ao realizar suas proprias produgdes. Entretanto, esta fase foi bastante produtiva para o cinema nacional, apesar das eternas reclamagdes dos produtores. O nimero de filmes e complementos fala por si mesmot. A intervengio do governo no setor possibilitou alguns _progressos tecnolégicos imprescindiveis para que se pudesse competir, de alguma forma, com as produgdes estrangeiras, ¢, criou condigdes de avaliar o mercado ¢ a industria nacionais. Os relatorios feitos levantavam nimero de 3 Ver Aftinio CATANI e José I. de Melo SOUZA," A Chanchada no Cinema Brasileiro", 8, Paulo, Ed Brasiliense, 1983, 4 Vide anexo "Informagdes sobre o Cinema Brasileiro", com relatrio sobre a produgio de 1938, FForam produzidos 504 complementos ¢ 4 filmes de longa-metragem. Segundo dados recolhides pela filmografia de Ferndo RAMOS (org), "Histéria do Cinema Brasileiro”, §. Paulo, Art Editora, 1987, foram produrides cerca de 50 longa-metragens entre 1930 ¢ 1945 no Brasil. 18 salas, de produtores, capacidade produtiva ideal, nimero de filmes efetivamente produzidos, capacidade exibidora. Antes da centralizagdo politica proposta e conseguida por Getilio Vargas, as informagdes, quando existiam, nao eram federais, mas estaduais ou municipais. Portanto, tais informagdes sé poderiam ser atcis para avaliar pequenas localidades, sem nenhuma idéia global. O conflito de interesses existente entre governo e produtores de cinema era, de certa forma, esperado, uma vez que todos os documentos produzidos na época revelavam a intengio de promover o desenvolvimento do setor, mas, a0 mesmo tempo, utilizar a capacidade de difusdo e penetragao do meio de comunicagao. Vejamos pois, os impasses € as resolugdes do periodo que se seguiu a 1930 e que se estendeu, de certa maneira até 1954. L.Primeira Era = 194: Durante © periodo que se seguiu a tomada de poder em 1930 houve, no apenas a reorganizagiio do Estado brasileiro ¢ de suas instituigdes mais importantes, mas, esta se deu a partir de uma concepgao centralizadora de Estado, que fosse capaz de transformar um pais, dividido por uma politica regionalista, em um pais unificado. Este projeto foi idealizado por varios "pensadores” da questo nacional, reunidos em toro do govemo e, pelo menos em parte realizado por Getilio Vargas. Foi um processo que exigiu a criagdo de novos ministérios, de érgios capazes de transformar as novas leis em realidade administrativa. Vejamos, entdo, como se deu 0 processo. 19 A partir do exame da documentagao da época, nota-se preocupagao constante com a criagdo de mecanismos que possibilitassem 0 controle dos meios de comunicagdo de massa, desde o inicio do govemo Vargas. Aparentemente, a equipe composta para assessorar 0 governo nestas questdes percebeu a importancia dos meios de comunicagao na formagao da consciéncia nacional. Estava atenta ao fenémeno nacional-socialista que vinha ocorrendo na Alemanha, principalmente naquilo que se referia a propaganda e educagao popular. Em carta a Getlio Vargas, Luiz Simées Lopes, enviado especial 4 Alemanha, relata parte de suas impresses sobre © Ministério da Propaganda: " © que mais me impressionou em Berlim, foi a propaganda sistematica, methodizada do governo e do sistema de governo nacional socialista. Nao ha em toda a Alemanha uma so pessoa que nao sinta diariamente 0 contato do ‘nazismo’ ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo radio, pelo cinema, atravez de toda a imprensa alema, pelos leaders nazis, pelas organizagdes do partido ou, seja, no minimo, pelo encontro, por toda a parte, dos uniformes dos S.A. (tropas de assalto) ou S.S. (tropas de protegdio pessoal de Hitler).” 5 A carta enviada a Getilio Vargas contém exposigdo sobre a utilizagao dos meios de comunicagiio, apontando para a vantagem de serem controlados pelo governo. O autor sugere, inclusive, a criagdio de Ministério similar no pais.6 Os idealizadores do Estado Novo perceberam rapidamente a necessidade de se reestruturar as instituigdes, criando alternativas que 5 Carta enviada por Luiz. Simdes Lopes a Getilio Vargas, de Londres, em 22 de setembro de 1934. Documenta encontrado no CPDOC, da Fundagdo Getilio Vargas, no R. Janeiro. 6" organizagdo do M, da Propaganda fascina tanto, que eu me permite sugerix a criagdo de waa ‘miniatura dele no Brasil. Evidentemente, no temos recursos para manter un orgao igual ao alemo, nflo tomos necessidade de muitos dos seus servigos e nem a nossa organizago politica e administrativa © comportaria, mas podemos adaptar 2 organizagdo ale, dotando 0 pais de um instrumento de ‘progresso moral ¢ material formidavel.” -Em carta de Luiz Simbes Lopes, op.cit. 20 possibilitassem 0 acesso directo A produgao cultural. O binémio "educagao/cultura” foi forjado na ocasifio. Se o Estado fosse capaz de unificar o territério nacional em torno das idéias de modemizagiio do Estado e da sociedade, e de "educag&o para todos”, mais facil seria manter a unidade territorial e politica em torno dos ideais defendidos por Getilio Vargas ¢ aqueles que o mantinham no poder. Para tanto, seria necessdrio construir aparato governamental capaz de sistematizar ¢ controlar a produgdo dos meios de comunicagao de massa, criando também estrutura burocratica correspondente” A importincia de se criar novas instituigdes, mais modemas, mais adequadas ao desenvolvimento de novas forgas econdmicas foi logo percebida pelos idealizadores do Estado Getulista. As novas forgas socio- econémicas se encarregariam de buscar 0 equilibrio ou duetar com as velhas, cabendo ao Estado o papel de Arbitro do conflito’, Desta forma, Vargas construiria um governo no qual as forgas politicas anteriores teriam poucas influéncias, ja que as velhas instituigdes passariam por modificagdes ¢ novas seriam constituidas. Os idcalizadores do Estado também estavam atentos 4 importancia que assumiria a burocracia nesta nova organizagdo. Seriam criadas leis formatizando as fungdes dos funcionarios de cada uma das instituicées ja existentes, bem como leis criando novas instituicées. O funcionario piblico passou a ser visto como representante do Estado®, ¢ sua carreira a ser valorizada. 7 Ver Max WEBER, "Ensaios de Sociologia", R. Janeiro, Zahar, 1979 - Parte I, Burooracia, 8Ver Max WEBER, op. cit. ~ Parte I, A politica como vaceco. ° Ver Adriano CAMPANHOLE ¢ Hilton Lobo CAMPANHOLE, * As ConstitnigGes do Brasil - 1824- 1969", 6. edigdo, S. Paulo, Fd. Atlas, 1983, ‘A primeira mengdo ao foncionalismo piblico fot feta na primeira Consttuigdo brasileira, promulgada cin 25 de margo de 1824. No entanto, tratava apenas das responsabilidades do Yempregado péblco’, sem nada mencionar sobre cargos ou planos de careira, O mesmo acontace em 1891. A. 21 A criagdo de burocracia estatal vinculada a interesses diretamente ligados a estrutura do Estado, e de novas instituig6es, organizadas de maneira mais centralizada, destruiu alguns fatores de poder regional, ¢ enfatizou a nova vocagao do Estado: estar acima de conflitos e disputas de pequenos grupos politicos. 1 - Importancia dos meios de comunicagao de massas Quando se inicia o governo Vargas, o radio ja se transformaraa em bem de consumo mais popularizado no Brasil do que fora anteriormente. Este veiculo fora implantado desde 1923; entretanto, somente por volta de 1930, com o barateamento do custo dos aparelhos, é que teve alcance mais amplo, Isso_ndo passou desapercebido aos idealizadores do Estado Novo. Em 1932, foi proposta uma legislagdo que permitia a publicidade através do mesmo, ¢ ao abrir 10% da programagao didria para esta finalidade!, ampliou-se 0 ntimero de emissoras e 0 capital investido. Entretanto, 0 radio no foi apenas utilizado de maneira a unificar o territério nacional através da noticia, foi percebido seu potencial como divulgador de idéias do govemo e como veiculo para a educagiio, Pode-se afirmar a partir da documentagao encontrada, que os veiculos de comunicagao de massas primeira Constituigio a trazer um titulo inteiramente dedicado ao funcionalismo piblico foi a ‘prommulgada ema 16 de julho de 1934 - Titulo VII, arts 168 a 175 - . comvacando-os para formular 0 seu ‘Estannto, ¢ mencionando plano do carreira. Além disso, extabelece que 0 ingrosso a cargo piblico nilo sino dvr fo api de oan, shana oncro iie aberto a todo o brasileiro preenchesse os requisitos pré-stabelecides. OVer Ronalo ORTIZ. "A Modena Tradido Braueira: Cultura rasta e Tndsra Cultura, S Paulo, Brasliense, 1988. 22 foram vistos no perfodo a partir de uma nova concepgao, isto é, entendeu- se 0 fato de se constituirem em formadores de opiniao publica. Portanto, seu controle, a partir de legislag4o ¢ concepgao de novas instituigdes capazes de ordené-los ¢ censuré-los, era fundamental para a manutengiio do regime. Nesta diregfio se operaram as intervengdes do aparelho de Estado na legislagdo cultural. Discutindo este momento especifico de transformagdes na sociedade brasileira, Renato Ortiz'! analisa de modo acurado as especificidades do desenvolvimento de cada um dos meios de comunicagao, bem como os variados papéis desempenhados pelos mesmos no processo de transformagdo da sociedade. Deste modo, vernos que nao apenas o radio como os jomais, as revistas, as editoras de livros e periédicos, o cinema, ganham centralidade nas _preocupagdes governamentais e assim tormam-se objeto de incentivos e legislagiio propria. Nesta diregdo percebemos que toda a documentagdo governamental produzida entre 1932 até 1951 para a area de educagdo e cultura aponta para a importincia do cinema, sendo os seguintes aspectos relacionados como principais: a) importincia do cinema educativo como forma de divulgar aspectos culturais do pats para 0 povo analfabeto; b) importancia do cinema como meio de comunicagao capaz de unificar as informagdes divulgadas em todo o pais; ©) importincia da influéncia do que era yeiculado pelo cinema no comportamento da populagdo em geral, MW idem, ibdem, 23 4) importncia da producao cinematografica nacional para divulgagao de aspectos culturais nacionais, contrapondo-se com aspectos regionais e com aspectos estrangeiros. O desenvolvimento da atividade produtiva de maneira industrial também foi motivo de preocupago governamental. Nos documentos oficiais da época, verifica-se que a incapacidade de produzir em ritmo adequado para as exigéncias de mercado foi apontada como uma das principais causas de crise do setor. Outra preocupagdo constante do governo relacionava-se 4 qualidade das produgées nacionais. Segundo avaliagdo feita pela comissio, as produgées brasileiras careciam de qualidade, principalmente quando comparadas as produgées estrangeiras. importante salientar que as produgées estrangeiras que chegavam ao pais na época eram principalmente as norte-americanas. A importincia do cinema como meio de comunicagio de massas ja havia sido percebida por governantes brasileiros nas décadas anteriores, Desde 0 inicio do século foram realizados documentarios sobre povos indigenas, excursGes ao interior do pais exibidos para platéias restritas. Além disso, alguns produtores da época fizeram filmes de propaganda para indistrias casas de comércio ¢ utilizavam os pagamentos para financiar projetos pessoais. Estes cineastas filmavam qualquer acontecimento: festas familiares, ceriménias de casamentos, propagandas institucionais para empresas de grande porte, por isso eram chamados de "cavadores", em uma referéncia bem humorada aos “cavadores de ouro" porque 24 literalmente cavavam dinheiro para suas produgdes', Na década de 20, 0 entdo candidato a presidéncia da Repiiblica, Arthur Bernardes, contratou dois cineastas, os irmaos Botelho, para filmar sua campanha politica. Posteriormente, estes cineastas foram contratados pelo governo para filmar uma série de acontecimentos oficiais. Pode-se dizer que a primeira manifestagao oficial a respeito do cinema no Brasil ocorren em 1910, com a criagdo da filmoteca do Musew Nacional. Durante a década seguinte foram realizados muitos filmes de carater educativo, grande parte deles realizados sob a coordenagdo da Comissiio Rondon e do cineasta Roquette Pinto. Muitas destas peliculas foram utilizados de maneira irregular por estabelecimentos de ensino de primério ¢ gindsio, A primeira lei no sentido de regulamentar 0 uso deste material foi de 1928, que obrigon sua utilizagao nas escolas do Distrito Federal. Foi 0 Decreto n, 3281 de 23 de janeiro daquele ano - regulamentado pelo Decreto n. 2940, em 22 de novembro -, que reformulou o ensino no Distrito Federal criando legislago sobre radio ¢ cinema educativos. Exige- se a criagdo de salas "destinadas & instalagdo de aparelhos de projegdo fixa e animada’!3, J em 1929, houve a I Exposiggo de Cinematografia Educativa. Nesta época, a censura cinematogréfica era exercida pela policia, segundo as disposigdes de cada estado do pais. Em 1929, Adhemar Gonzaga fundava o Cinearte Studio, que s6 entraria em atividade no ano seguinte, com o nome Cinédia. A produgio cinematografica brasileira, até ent@o era descentralizada, com niicleos 1? Sobre a *cavago", ver Jean-Claude BERNARDET , *Cinema Brasileiro: Proposta para uma Historia", R. Janeiro, Paz ¢ Terra, 1979. 13 Decroto-tei n, 3281, de 23/1/1928, sobre reformulagdo do ensino prinvirio no Distrito Federal. 25 regionais de produgdo, principalmente em Minas Gerais, S. Paulo, R. Janeiro, R. Grande do Sul e Pernambuco. Entretanto existia uma publicagdo, a revista Cinearte, que defendia a necessidade de se organizar a produgdo nacional aos moldes da produgtio hollywoodiana. O significado disso era muito amplo, pois abrangia desde a forma de produgdo - que deveria ser centralizada em grandes estidios, com profissionais dedicados exclusivamente a realizar obras cinematograficas - até o produto em si - um filme “belo”, no qual aparecessem cenarios luxuosos, com figurinos elaborados. Mais do que isso, clamava pela criagdo do "star system" nacional. O objetivo perseguido pela revista, e que, segundo ela, deveria ser perseguido por todos os produtores nacionais era alcangar um padrao intemacional de produgao. Adhemar Gonzaga, que tinha sido diretor da mencionada revista, fundou sua propria empresa, buscando produzir os filmes idealizados. Na época, 0 filme sonoro era uma realidade em Hollywood - "O Cantor de Jazz” estreou em 1927 - e acreditava-se que o cinema nacional ganharia mercado entre os exibidores brasileiros, porque devido 4 crise de 1929, os filmes norte-americanos ainda chegavam sem legendas. Na verdade, isto nao ocorreu, houve a redugdo do piblico brasileiro nos cinemas, ¢ pequenas salas de cinema que ndo puderam fazer as adaptagdes necessdrias para exibirem os filmes sonorizados acabaram fechando. Os mais otimistas, no entanto, apostaram que os norte-americanos nao conseguiriam superar os problemas causados pelo som; entre estes estava Adhemar Gonzaga. 4Sobre 0 assunto ver José Luiz VIEIRA - A Chanchada ¢ 9 Cinema Carioca - in Fernfio RAMOS, "Historia do Cinema Brasileiro", op. cit, 26 Sua empresa comega produzindo os chamados "complementos", curtas- metragens cuja exibigdo era obrigatoria por lei antes de cada sesso de cinema. A tematica carnavalesca ja tinha sido explorada durante os primeiros anos de desenvolvimento do cinema nacional, e volta a ser um fildo explorado com bastante sucesso por Adhemar Gonzaga. E na Cinédia que Carmem Miranda se apresenta pela primeira vez. Isso ocorreu em 1932, no filme "O carnaval cantado no Rio”, um média-metragem, semi- documentario produzido pela empresa. Em 1931, jé sob 0 governo de Getiilio Vargas, levanta-se o problema sobre a necessidade de um servigo de censura, questo ja anteriormente ventilada. A Associagao Brasileira de Educagtio pediu ao governo federal providéncias que transformassem a censura policial em censura cultural, pedia também que o servigo de censura fosse uniformizado, passando a ser exercido nacionalmente, Também neste ano, foi fundada a Associagao Brasileira Cinematogréfica, reunindo importadores de filmes que tentariam algumas aliangas com exibidores, buscando sua preferéncia em negécios. A partir deste momento, os importadores comegaram a realizar maciga campanha para trazer filmes estrangeiros para o Brasil. Uma das alegagées feitas € que nao existiam filmes suficientes para exibigGo, 0 que poderia ocasionar, mais cedo ou mais tarde, o fechamento de muitas salas de espetaculos. Em contrapartida, a Revista Cinearte langou campanha para reunir os produtores de cinema em torno de uma associagao - que em 1934 passou a chamar-se Associagdio Cinematogréfica de Produtores Brasileiros (ACPB)- , que realizou reunidio em fevereiro de 1932 na tentativa de organizar a 27 produgao nacional. Langava uma série de artigos sobre a inexisténcia da “crise” a que se referiam os exibidores. Segundo a mesma, nao estavam se fechando salas de cinema, mas, ao contrario, novas salas estayam sendo instaladas. Os produtores reunidos em associago tentaram, a partir de 1932, resolver um problema jé existente na época, e que ainda demoraria muito para ser resolvido pelos cineastas brasileiros: 0 da distribuigao dos filmes. No sentido de intervengdo nesse duplo impasse e atendendo ao pedido da Associagao Brasileira de Educagdo, 0 govemo, através do decreto 0.21240, de 4 de abril de 1932, criou a Superintendéncia da Censura Cinematografica, subordinada ao Ministério da Educagao. Este decreto obrigava também, a exibigdo de, pelo menos, 100 metros de peliculas brasileiras em cada programa cinematografico. Segundo o artigo 13 deste decreto, o Ministério fixaria a quantidade de metros de filmes nacionais que deveria ser incluida na programagao mensal dos cinemas, em fungo da capacidade do mercado cinematogrifico ¢ da qualidade das peliculas produzidas. A quantidade de filmes nacionais exibidos no pais passa a ser controlada a partir dos certificados de censura. Antes disto era dificil ter uma idéia do ndmero de filmes exibidos por ano no pais. Neste mesmo decreto, o governo criou a Taxa Cinematografica para a Fducagao Popular, que seria investida na compra de filmes educativos para a Filmoteca do Museu Nacional e na publicago da Revista Nacional de Educagao. Esta taxa foi cobrada de filmes que obtinham o certificado de censura. Este decreto nao s6 regulamentou o cinema nacional, como também organizou a programagio do radio. Esta primeira legislagfo referente aos meios de comunicagaio vai dar a ténica de toda a discussdo existente entre os 28 intelectuais ligados ao aparelho de Estado ¢ © restante do governo, inclusive 0 proprio Vargas. fi claro que se trata de problema complexo que remete as consequéncias da aparente autonomia da esfera da cultura no projeto do governo. A forma é ambigua, pois a crenga na independéncia do setor acaba por operar como fator de importancia no envolvimento de intelectuais localizados em varios pontos do espectro ideolégico, e que nio concordavam com a condugdo politica conferida as outras esferas: politica ¢ econémica. Existia uma ambiguidade essencial no plano de organizagio do Estado que era adequar a agdo cultural ¢ educativa a centralizagio politica. A oposig&o entre estes dois objetivos antagénicos aparece constantemente durante os anos do governo Vargas, o que afeta nao apenas © cinema, mas todo o setor cultural do periodo. Em 1933, o governo criou a Biblioteca Central de Educagéio com a Divisio de Cinema Educativo, que seria responsavel pelo fornecimento de filmes para as escolas piblicas do Rio de Janeiro. Neste ano também outros estados da Unido implementaram novas leis que dispunham sobre o desenvolvimento do cinema educativo e o uso deste material em escolas plblicas. Isto foi possivel gragas a instalagio do Convénio Cinematografico Educativo, que contava com delegados ¢ representantes de todos os estados, jornalistas ¢ interessados na industria cinematografica. Foi somente em 22 de maio de 1934, que o ministro da Educagdio ¢ Satide, Washington Pires, conseguin implementar o artigo 13 do decreto n.21240 A partir de entdo, todo programa que contivesse um filme de enredo de metragem superior a mil metros, s6 poderia ser exibido quando fizesse parte do mesmo "um filme nacional de boa qualidade, sincronizado, sonoro ou falado, sistema movietone filmado no Brasil e confeccionado em 29 laboratérios nacionais, com edigdo minima de 100 metros".!> Esta foi a efetivagdo da primeira lei de protego ao curta-metragem nacional. A classe cinematografica se reuniu, a partir de enttio, em torno do presidente da Republica, em agradecimento atengdo ao cinema nacional. Levaram um relatério das atividades daquele ano, e também pleitearam novas medidas. Em 1933, foi fundada a Brasil Vox Filme - que depois passou a ser chamada de Brasil Vita Filme, empresa fundada por Carmen Santos - e a Sonofilmes. Seus criadores acreditavam na possibilidade de se construir uma industria cinematografica no Brasil, explorando o mercado ja existente. Suas empresas se organizaram de forma a alcangar este objetivo, contratando pessoal técnico permanente, comprando os equipamentos mais modemos, ¢ construindo ou alugando galpées onde seriam os estidios. £5 importante notar que ao mesmo tempo em que as diversas categorias relacionadas com a produgao ¢ veiculagao cultural se mobilizam para pedir a intervengdo do Estado para garantir seus interesses, existe a organizagio de novas empresas ¢ a destinagdo de investimentos privados para o setor. Portanto, existe uma simultaneidade entre a organizacdo legal- administrativa do Estado brasileiro nesta area, e a construgao de estrutura industrial para desenvolvimento do setor. 1.1 - A questdo da censura propriamente dita No dia 10 de julho de 1934, foram anunciados dois decretos importantes para 0 setor cinematografico brasileiro: o primeiro, era o Decreto 0.5034 - que isentava os estidios ¢ laboratorios brasileiros de impostos e taxas 'SDccreto n, 21240, de 4 de abril de 1932. 30 municipais do Distrito Federal, ou seja, da Guanabara, por trés anos-; 0 outro, Decreto n.24651- no qual o governo retirou a censura cultural dos filmes do Ministério da Educagao, bem como a administragao da Taxa Cinematografica e a publicagdo da Revista de Educagéio, passando-os ao Ministério da Justiga-, 0 que demonstra a atengdo permanente do governo com o setor. A legislagao criada na época do Governo Provisério de Getulio Vargas trafega entre dois polos, aparentemente opostos: de um lado o incentive a produtividade, do outro o controle dos produtores. Também a relagdo dos produtores com o governo parece ambigua: ora aparecem agradecendo os incentivos fiscais ¢ as criagdes de drgios competentes para legislar em favor do setor, ora reclamam mais espago e liberdade de expressio. A idéia de censura cinematografica exercida pelo Ministério da Justiga desagrada inclusive alguns membros da Comissao de Censura, e Roquette Pinto, por exemplo, abandona a mesma. © mesmo Decreto n.24651 criou o Departamento de Propaganda e Difusao Cultural que cuidaria da censura. Ja existia um departamento com fungdes semelhantes, 0 Departamento Oficial de Propaganda, subordinado a Imprensa Nacional, érgio do Ministério da Justiga e Negécios Interiores, destinado a centralizar ¢ tornat eficiente o servigo de divulgagéo de noticias sobre os atos do governo. O novo departamento deveria estudar a utilizagiio dos diversos meios de comunicagao no sentido de empregi-los como instrumentos de difusdo.!6 Certamente esta decisdo do governo se no tenta "colocar os meios de comunicag%o de massas a servigo direto do 16 Ver Simon SCHWARTZMAN (org.), " Estado Novo, um auto-retrato (Arquivo Gustavo Capanemay", Brasilia, Editora Universidade de Brasilia, 1983, 31 poder executivo"!7, tenta ao menos manté-los sob. vigilancia constante. E dificil afirmar, no entanto, que a criagdo deste departamento teve influéncia da criagio do Ministério da Propaganda do governo nacional-socialista alemao!8, ocorrida em 1933. Isto porque a primeira referéncia a tal Ministério em documentos oficiais do periodo fui na carta de Luiz Simdes Lopes a Getilio Vargas, datada de 2209/1934. Nela o autor refere-se ao assunto da seguinte forma: " (...) segui para Berlim (...) tencionando passar somente 2 ou 3 dias; mas tomando informagdes sobre 0 Ministério da Propaganda, tio interessante me pareceu a sua organizagao, que fiquei 8 dias, coligindo notas e, principalmente, copia da moderna legistagao alema sobre trabalho, propaganda, etc. apds o advento do governo nacional- socialista, senhor absoluto da Alemanha em todos os ramos de actividade do pais".19 Além disso, o érgdo criado em 1934 nao tinha a estrutura nem as atribuigSes que eram caracteristicas do citado ministério alemao. Este departamento de propaganda seria responsfvel, a partir de entao, pela criagéo de campanhas publicitarias do Governo Provisério. A Imprensa Nacional continuaria responsdvel pela redagdo ¢ divulgagao de noticias sobre os atos de governo. A utilizagao de imagens para divulgar idéias politicas ja tinha sido testada com éxito durante a Revolugdo Russa, quando foram criados cartazes com elementos simbélicos representando a luta, praticamente dispensando o uso de palavras, Ent&o, qual seria a originalidade no uso de tais mecanismos pelo governo nacional-socialista alemao? A carta, acima mencionada, 17Ver Simon SCHWARTZMAN et alli, "Tenspos de Capanema", S. Paulo, Paz ¢ Terr/EDUSP, 1984. 18 Idem, Zodem. 19 Carta datada de 22/09/1934, op. cit. 32 refere-se a criagdo do Ministério da Propaganda nazista, que supervisionava todos os outfos ministérios, inclusive os meios de comunicagdo internos e extemos, exercendo censura sobre a divulgagao de “noticias tendenciosas etc. publicadas sobre os governantes, 0 sistema ou qualquer produto alemio."29 Segundo a avaliagao de Luiz SimBes Lopes, 0 fenémeno criado na Alemanha de 1933 corresponde a “um sistema de governo, que tem pontos de vista préprios sobre todos os problemas"2!, Observou controle em todos os niveis da vida politica e administrativa do pais, o gue permitiria a "absore%o" das iiltimas resistencias ao govern. O autor da carta chama a atengdo para o controle direto dos meios de comunicagdo, que divulgam a propaganda do governo, definido como "governo praticamente ditatorial"?2, que, ainda segundo ele, seria uma vantagem coin relagao ao nosso pais. Esta reviravolta politica foi recriminada por uma série de opositores do governo, e no ano seguinte, foi entregue ao entiio ministro da Educagio, Gustavo Capanema, uma proposta de projeto de lei para regulamentar a censura cinematografica3 que procura estabelecer um ponto intermediario entre a censura somente cultural ¢ a somente policial. Na proposta, os dois autores - José Roberto de Macedo Soares, Encarregado de Negécios do Brasil na Italia e o professor doutor Luciano de Feo, presidente do Instituto Intemacional de Cinematografia - sugeriram a participagiio de membros do Ministério da Educagiio nas repartigdes responsiveis pela entrega de certificado de censura aos filmes. Sugeriram também que o Ministério da 20 Idem, ibdem. 21 Idem, ibdem. 22 Idem, ibdem. 23 Projeto de docreto sobre a censura cinematogrifica, realizado em 1935.Documento encontrado no CPDOC, R. Janeiro, GC 34.00.0072, 33 Educagdo tivesse competéncia para avaliar os filmes que deveriam obter dispensa do pagamento de taxa cinematogrdfica por serem educativos. Segundo os redatores, 0 projeto teria como principal objetivo “cessalvar os interesses da educagdo popular e o prestigio do Ministério que a superintende"4 sem contudo " prejudicar, em nada, 0 que possa interessar a0 Ministério da Justiga"’S. O texto do projeto tenta regulamentar a agdo de toda a atividade de censura e inspegao de salas de exibigées cinematogrdficas, inclusive determinando os motivos em que a agao de censura aos filmes seria correta. Entre as causas mencionadas pelos claboradores do projeto esto: referéncia a fatos ¢ acontecimentos que possam causar danos seguranga do Estado, ou incutir idéias de separatismo, comunismo ou anarquismo; tratamento no simpatico a povos ou regides ou paises ou ainda a personalidades historicas, tratamento inadequado a personalidades politicas do pais ou estrangeiras: divulgagao de fatos de interesse militar, ridicularizagdo de rituais ou ceriménias religiosas; mengao a fatos lesivos 4 moral - nesta categoria entram o incentivo a0 consumo de entorpecentes, formas de sensualidade e erotismo, ¢ perverséo, com a ressalva de que tudo o quanto fosse sugestiio julgada prejudicial aos espectadores poderia ser censurada -; e fatos que representassem crimes particularmente cruéis, ¢ enaltecimento dos seus autores, A partir da anilise deste projeto pode-se dizer que a idéia de censura no era combatida pelos opositores do governo, no entanto seriam necessarios certos cuidados com aquele que exerceria a fungaio de censor. Ao atribuir 24 Exposigtio de Motives do Projeto de Decreto sobre a Censura Cinematngrifica, op. cit, 25 Idem, ibdem. 34 esta fungdo a uma comissao formada por membros das artes e da educagaio, os autores tentavam determinar que a censura fosse dirigida no sentido de orientagio educacional, ¢ nao ficasse vinculada diretamente a interesses politicos do Estado. A consecugdo da idéia encontrou limites internos a0 proprio aparelho de Estado. O govern Vargas deveria se preservar da oposigdo existente em suas préprias fileiras: j4 havia conflitos entre os diversos intelectuais que faziam parte da estrutura burocratica recém- criada. O que conferia legitimidade a esfera da cultura ¢ 0 fato do aparelho de Estado ter conseguido congregar nessa area os intelectuais mais importantes do pais, independentemente de sua filiagdo ideolégica. No entanto, ¢ exatamente isto que Ihe confere a forga o fundamento de sua fraqueza. Configuram-se claros limites de aplicabilidade das interpretagGes e propostas daqueles intelectuais sobre a realidade brasileira face a diregao politica adotada. Os interesses antag6nicos dos burocratas e militares - defensores da idéia de centralizagio do Estado e da destruigao de idéias oposicionistas para fortalecimento do poder do governo -, ¢ dos intelectuais - defensores de nova estrutura nacional mais modema, sem regionalismos, mas observando certos parametros que garantissem a liberdade de expressiio-, foi uma constante no governo Vargas. Embora sua tendéncia tenha sido de impedir a livre manifestagdo, pode-se dizer que Vargas tenha oscilado entre um polo ¢ outro deste conflito. Essa oscilagaio se reflete na legislago criada na época. Em paralelo a estes conflitos, intemos ao governo, estavam sendo constituidas as empresas cinematograficas, que comecam a defender seus interesses como uma classe. 1.2 -Produgiio das décadas de 30 e 40 ‘A. produgio cinematografica da década de 30 foi marcada fundamentalmente pela realizagdo de documentarios para empresas, cine- jomais ou filmes educativos. Fntretanto, sem que fosse central em sua politica de produgéo, as companhias realizaram, nesse periodo, alguns filmes bastante importantes para a historia do cinema nacional. Entre as produgdes da Cinédia no periodo de 1930 a 1940 esto os seguintes filmes: "Ldbios sem beijos” (1929), "Ganga Bruta" (1933), "Bonequinha de Seda" (1936), ¢ "Pureza” (1940). Durante esta década, além da criagdo das novas empresas, existiam varios produtores independentes atuando no Brasil, dentre eles, Wallace Dowley, um norte-americano que realizou, ironicamente, um filme chamado “Coisas nossas" (1931), falando de samba, camaval e outras "coisas" brasileiras, que fez grande sucesso. A Cinédia, como ja foi dito antes, investiu na linha carnavalesca, mas foi em associagao com Dowley, na Waldow Filmes, em 1935, que realizou o filme "4/6, Alé Brasil", com uma série de cantores do radio como Almirante, Mesquitinha, Ari Barroso, Custodio de Mesquita e Aurora e Carmen Miranda cantando com o Bando da Lua. Esta relagdo entre cinema/radio/teatro de revista foi a marca fundamental desta nova fase do género carnavalesco no cinema brasileiro. Até entdo jé tinham sido realizados cerca de 70 filmes sobre a tematica do carnaval”, mas pode-se dizer que a empresa firmou a chanchada como género”. No ano seguinte, langaram juntas "Al, alé Carnaval". Em 1939, produz conjuntamente com a Sonofilmes, "Banana da Terra" ¢ "Laranja da China". Na mesma 36 "Guia do Filmes" - R. Janeiro, Embrafilme, 1975. 278m artigo entitulado "Cinédia.o estidio que desvobriu o Carnaval”, na Fotha de 8. Paulo, de 26/4/1988, na Folha Tlustrada, p. A33, 0 jornalista afirma 0 contririo, que a empresa comesou a pproduzir os filmes que traziam a temdtica carnavalesca. década, a Brasil Vita Filmes realizava em 1935, "Favela dos meus amores", em 1936, "Cidade-mulher", ¢ “Argila”, em 1940, para citar os mais famosos. Uma série de leis protecionistas com relagéo ao cinema nacional foram adotadas pelo governo Vargas, posteriormente pelo governo Dutra, ¢ continuadas no governo democratico de Vargas. Elas atuavam no sentido de obrigar a exibicdo de filmes nacionais nas salas de cinema, e, mesmo sendo consideradas insuficientes pelos produtores, permitiram a continuidade do funcionamento das produtoras. Em 1939, ficou estabelecido que fosse exibido ao menos um filme nacional, longa- metragem, por ano, por sala de exibigao cinematografica. E claro que se considerarmos que cada filme ficava, em média, uma ou duas semanas em cartaz, ao menos outros 25 filmes estrangciros estariam sendo exibidos por sala, Entretanto, é bom lembrar que antes da lei, as salas podiam exibir os filmes que thes aprouvessem, sem nenhuma restrigao sendo aquela do decreto que obrigava exibir um filme de curta-metragem nacional por programagaio. A Atlantida surgiu uma década depois da criagio da Cinédia, em condigdes nao muito favordveis: esta empresa estava com suas produgdes de longas-metragens paralisada; a Sonofilmes tinha acabado de sofrer um incéndio; e a Brasil Vita Filmes estava com sua equipe voltada para a produgdo cara ¢ interminavel de "Inconfidéncia Mineira". Suas produgées iniciais foram, como ja foi dito, jomnais de atualidades complementos obrigatorios. Mas, em 1943, fez uma tentativa de iniciar a 37 produgdo de longas-metragens com o filme "Moleque Tido", uma versio romanceada da vida de Sebastiéio Prata, o Grande Otelo, j4 famoso ator do Teatro de Revista, conhecidissimo no Cassino da Urea. O filme obteve algumas boas criticas ¢ contou com grande piblico. Alguns criticos chegaram a anunciar "uma novidade no panorama cinematogrifico brasileiro", chegando a comparar a produgio ao filme "Obsessione” de Luchino Visconti, que inaugurara o neo-realismo no cinema italiano. Ainda nesta linha de produg&o foi realizado "E proibido sonhar". O filme também nao tinha nada do género que consagrou a empresa: a chanchada, Os criticos da época desprezavam este tipo de filme que utilizava a tematica do carnaval para “misturar” misicas em um roteiro "sem pé nem. cabega", produzido sem muitos recursos técnicos, que utilizava linguagem de duplo sentido ¢ gestos grosseiros. A este tipo de espetaculo considerado de "pouco valor artistico" chamavam “chanchada”. A atribuigao do nome {jd foi pejorativa. Mas, se os criticos ndo gostavam, 0 piblico adorava, E depois de umas poucas tentativas no sentido de produzir filmes considerados "sérios", a empresa entrou no filo dos filmes "nao-sérios", nas comédias burlescas, para obter sucesso de piblico, E foi com este género que a empresa conseguiu ser reconhecida, tomando-se a maior ¢ melhor produtora de chanchadas do pais. Na linha de comédias musicais que basicamente caracterizou a produgio da companhia, foram produzidas "Tristezas néo pagam dtvidas”, em 1944, e "Ndo adianta chorar™, em 1945, Ambos ja contavam com as marcantes presengas de Grande Otelo ¢ Osearito, que ainda nao compunham a famosa dupla. IL- Periodo Dutra - 1946/1950 Em 1946, a obrigatoriedade de exibicio foi ampliada para 3 filmes nacionais, considerados de boa qualidade pelo Servigo de Censura de Diversées Pablicas do Departamento de Seguranga Piblica, por ano, por sala exibidora. § importante reparar que apés o final do governo do Estado Novo, a censura, até entiio exercida pelo DIP - até o dia 25 de maio de 1945-, passou a ser exercida por membros do Departamento Nacional de Informagdes (DNI), criado ento, com uma Divisdo de Cinema e Teatro, e subordinado ao Ministério da Justiga. O DNI ficou responsavel pela censura cinematogrifica até 24 de janeiro de 1946, quando foi outorgado 0 Decreto n. 20493, que regulava o Servigo de Censura de Diversdes Pablicas, subordinado ao Departamento Federal de Seguranga Pablica, que centralizava a coordenagao das policias civis e militares. Portanto, quando se encerrou o periodo autoritario, a atividade de censura nao foi reestabelecida para o Ministério da Educagdo, mas passou do DIP - subordinado a Presidéncia da Repiiblica - para outros departamentos, sempre subordinados ao Ministério da Justiga, continuando a ser atividade da policia. A participagdo de autoridades policiais na fiscalizagio das determinagdes da censura oficial, ja havia sido regulamentada no decreto n. 21240, de 4 de abril de 1932. Entretanto foi apenas através do Decreto n. 22337, de 10 de janciro de 1933, que a censura cinematogrifica foi regulamentada de maneira especifica, em separado da censura exercida em outros meios de comunicagdo como radio ¢ imprensa escrita. Em 1946, a Adléntida produziu "O gol da vitdria”, que tratava de outra paixdo nacional: o futebol; e "Segura esta mulher", que embora tivesse 39 criticas muito desfavordveis, foi exibido na Argentina. Nesse ano, entretanto, o maior sucesso de bilheteria foi o filme langado pela Cinédia, dirigido por Gilda de Abreu, "O ébrio”, com Vicente Celestino no papel principal, Este foi o filme nacional que contou com maior publico durante varias décadas. A partir deste ano, a Atlantida comegou a produzir filmes que jé tinham grande parte dos elementos que definiriam a comédia musical da década seguinte: a parédia aos filmes norte-americanos, a sitira a componentes da chamada cultura erndita, ¢ a exposigao por meio da "gozagio", da Tidicularizagao de alguns problemas politicos ¢ sociais do pais. No ano seguinte, surgiu uma nova produtora , a Cineléndia Filmes, que langou como primeira realizago "Querida Suzana", marcando a estréia do casal Anselmo Duarte ¢ Ténia Carrero, que posteriormente fariam grande sucesso no cinema nacional, cada qual em uma companhia: Anselmo Duarte se tomou um dos galiis da Atlantida, depois produtor e diretor de cinema premiado em Cannes com "O pagador de promessas" em 1962; Ténia Carrero tomou-se uma das estrelas da companhia Vera Cruz, fundada cm final de 1949. A Adantida tangou um filme com Cacilda Becker, em sua estréia cinematografica, “Luz dos meus olhos". Nesse mesmo ano, Luis Severiano Ribeiro, dono de wn dos maiores circuftos exibidores da época no pais, tomou-se 0 maior acionista da Atlantida, A empresa teve uma injegdo de investimentos ¢ passou a operar como distribuidora ¢ como laboratério cinematogréfico. A participagdo da empresa em todas as etapas, desde a produgSo, até a exibigao do filme, 40 trouxe dinamismo necessério para a manutengdo do funcionamento da companhia. Os fucros advindos dessa fusdo de atividades era bastante grande. A gestio de Severiano Ribeiro na companhia dinamizaria a produgao por um lado, mas manteria os padrées de produgdo em niveis de custos bastante baixos, permitindo alta rentabilidade. A ordem era filmar rapidamente, evitando longas e caras produgées, realizando trabalhos que fossem aprovados pela censura que exigia um certo padrao de qualidade do produto nacional, mas nada muito elaborado e, principalmente nao custoso. A empresa foi uma das tinicas a no buscar os beneficios concedidos pelo governo em 1949, quando foi permitida a importagéo de equipamentos ¢ materiais cinematogréficos com isengao de impostos. Foi mantido o esquema de produgao com equipamento de segunda-m&o e pequenas ‘equipes técnicas revesando-se exaustivamente para conseguir completar os muitos trabathos feitos por ano. A formula encontrada por Ribeiro era relativamente simples: ndo deixar o estudio vazio, estar sempre produzindo um filme; ter baixos custos operacionais; ¢ investi na distribuigdo. A empresa ndo seguia os padres de produgdo de Hollywood, nao tinha estiidios modemos, funcionando para produzir grandes espetaculos cinematograficos. Produzia muitos filmes por ano, em um ritmo de produgdo que se tomou marca a ser alcangada pelas outras companhias do pais. Neste sentido pode-se considerar ter implementado 4 produgao um ritmo industrial. Era uma linha de montagem, rapida e eficiente com relago ao produto final, mas bastante inapropriada quando se considera as, etapas de elaboragao do filme. Os atores usavam suas proprias roupas para 41 realizar os trabalhos, os equipamentos nao eram "os mais sofisticados" - para nio dizer serem os menos -, 0 prazo de filmagem era reduzidissimo - muitas vezes demorava-se menos de um més para fazer um filme, quando em Hollywood demorava-se oito ou dez meses -, os estidios eram galpdes nao refrigerados, sem nenhum conforto especial para técnicos, atores ou diretores. Entretanto os filmes saiam nos prazos certos para langar os sucessos carnavalescos daquele ano, os atores eram exclusivos - aos moldes de Hollywood -, mesmo com pagamentos minguados ao final de cada més. Este esquema de estrelas ¢ galas com contratos de exclusividade era uma novidade no pais, ¢ alguns atores aceitavam cachés miseraveis porque a presenga na tela possibilitava trabalhos e sucesso no teatro e shows nos cassinos. O piiblico comegou a se acostumar a ver suas estrelas, ao invés de somente ouvi-las. Além disso, trabalhando ou nao nos filmes da empresa, o ator estaria recebendo salario, uma garantia de vida para a maioria deles. Os depoimentos de alguns artistas da época revelam que o piblico esperava que cles fossem miliondrios, como as estrelas de Hollywood, e se espantava quando os via esperando o Onibus de linha que os conduziria ao estidio para mais um dia de trabalho, assim como qualquer outro trabalhador. Apesar de nao funcionar como uma Hollywood dos sonhos dos cineastas ¢ atores brasileiros, a Atléntida conseguiu atrelar a seu modo toda a indastria de espeticulos da época aos filmes que producia, A imagem nas telas possibilitava que os atores fossem conhecidos ¢ ganhassem publico para seus espeticulos de teatro ¢ shows nos cassinos, ¢ o trabalho no cinema das chanchadas produziu uma grande parte dos profissionais que foram para a televistio na década de 50. Alguns atores acabavam se dedicando 42 quase exclusivamente ao cinema, porque eram muito requisitados. Os atores que deixaram de ser exclusivos da Afldntida, o fizeram por desentendimentos pessoais, ¢ ndo por motivos salariais ou por falta de condigdes de trabalho. E importante ressaltar estes aspectos que permitem vislumbrar 0 que era a produgao cinematogréfica da época: nao era Hollywood, nem nos padrdes de produg4o, nem na quantidade de capital investido, mas as empresas conseguiam se manter produzindo em larga escala e tinham profissionais contratados para todo 0 ano. Eram empresas que centralizavam as produgSes porque tinham um "staff" técnico ¢ executivo, além de atores exclusives. A Adantida ainda fez mais: criow formulas de sucesso e as repetin indefinidamente. Em 1949, a empresa langou "Carnaval no fogo”, que unia a comicidade ao género policial. Neste filme, a dupla Oscarito/Grande Otelo foi consagrada. Na década seguinte, os seus filmes conseguiram maior destaque junto a0 piblico, ¢ os diretores da companhia, principalmente José Carlos Burle, Watson Macedo e Carlos Manga, conseguiram criar um estilo marcante ¢ dinamico na confecgao das chanchadas. Em 29/05/1950, por determinagéio de uma portaria baixada pelo Servigo de Censura de Diversées Piblicas, ficou resolvide que seria obrigatoria a exibigdo de no minimo seis filmes nacionais de longa-metragem por ano por sala de cinema. Entretanto, os exibidores entraram com recurso na Justiga, alegando que a produgiio nacional era insuficiente para atender as exigéncias do mercado, Segundo os produtores, o problema do cinema nacional era sempre relacionado a distribuigdo ¢ exibigdo, pois caso houvesse mercado para os produtos, eles surgiriam. Cabe lembrar que as leis de obrigatoriedade de exibigdo dificilmente eram cumpridas por causa da falta de fiscalizag4o, e nao abrangiam os cinemas do interior do pais. HI - Era democratica de Vargas Jé em 1951, no governo democratico de Vargas, houve a exigéncia de se exibir 1 filme nacional de longa-metragem para cada 8 estrangeiros de igual metragem por sala exibidora em todo o territério nacional**. Nesta época, a atividade de censura cinematogréfica ainda era exercida pelo mesmo Servigo de Censura de Diversdes Publicas. Alberto Cavalcanti, em relatério entregue a Getiilio Vargas por ocasido da apresentagao de projeto de Ici que criava o Instituto Nacional de Cinema?’, explicava as falhas do sistema de censura em vigor na época. Segundo ele, os censores eram insuficientes para a quantidade de filmes que deveriam ser assistidos, além de serem incapacitados para estabelecer a “boa qualidade” da pelicula”, Cada filme passava pelo exame de uma comissdo de trés censores - para evitar empates de opinides sobre a obra avaliada -, dentre os quais nfo existia nenhum critico cinematografico nem técnico em cinematografia. Portanto, Cavalcanti levantou a seguinte questéo: como opinar a respeito de um assunto sobre o qual pouco se entende? Em seu texto sobre a criagdo do Instituto Nacional de Cinema, apontou para a precariedade das condigdes em que se exercia o poder de censura no pais. Além da falta de 28 Deereto n. 30.179, de 19/11/1951- Ficou conhecido como "decreto 8 por 1". Sobre o assunto ver Afrainio CATANI - A Aventura Industrial ¢ o Cinema Paulista - in Femio RAMOS, " Historia do Brasileiro", op. cit ‘Documento datado de 11/09/1951, op. cit. O instituto 9 foi efetivamente criado em 1966, com ‘tra configuragio. Sobre o assunto, ver José Mario Ortiz RAMOS - O.Cinema Brasileiro ‘Contemporsinea in Ferniio RAMOS, * Hist6ria da Cinema Brasileito", op cit; e do mesmo autor," Ginema, Estado ¢ Lutas Culrurais", R. Janeiro, Paz ¢ Terra, 1983. *°Conforme estabelecia 0 artigo 19 do Capitulo UL, do Decreto n. 20493, que criava o Servigo de ‘Censura de Diversdes Piblicas em 24/01/1946 44 profissionais com competéncia especifica, 0 autor indica a falta de locais apropriados para o trabalho, Mas talvez 0 maior meérito de seu Ievantamento e anilise critica da situagdo da censura no pais, seja 0 fato de que questiona a possibilidade de se aprovar uma obra, de qualquer género, depois de fazer cortes. Segundo ele, a obra de um autor é intocavel, sendo melhor nao lé-4a ou assisti-la caso a obra nao esteja disponivel em sua integridade. Portanto, a idéia de que alguém pode submeter um filme a cortes de consura, parecia-lhe completamente descabida de sentido. A pedido de Getilio Vargas, fez uma extensa pesquisa, talvez 0 levantamento mais completo existente sobre o setor privado cinematografico, trazendo uma enormidade de informagées relativas aos érgios € entidades vinculados a0 governo que mantinbam alguma atividade relacionada com o setor, além de um ante-projeto de lei sobre a criagdo de érgio com competéncia para centralizar os dados teferentes a cinematografia nacional, privada e governamental". Verifica-se, a partir do relatério, que durante os anos do Estado Novo, multiplicaram-se os drgios governamentais que no apenas utilizavam recursos cinematograficos para o ensino ¢ divulgagéo de seu trabalho, como também tinham seus préprios laboratérios ¢ equipamentos para produzir os filmes de que necessitassem. Portanto, 0 mesmo Estado protetor para o cinema nacional, tinha produzido, paralelamente, uma burocracia capaz de realizar produgées préprias, entrando em competigao 31 Mensagem 4 Camara dos Deputados - 11/09/1951 - Encontrada no Arquivo Nacional do R. Janeiro. ‘op cit. Também ha algumas referéncias sobre as atividades do referido érgfo no "Relatério ‘omplementar encaminhando sugestics a serem adotadas no ante-projeto que cria o INC" - GC 510227 =CPDOG, R. Janeiro, 45 pelo mercado ja restrito. O Estado passara de interventor a concorrente na produgdo cinematografica. Segundo o autor do ante-projeto de lei, a criagdo do érgio era necesséria, pois as atividades oficiais tinham sido pulverizadas em uma série de érgdos ¢ repartigdes, quase auténomos, que nao mantinham nenhum contato entre si. Também ja se podia sentir que as leis que protegiam o cinema nacional precisavam ser atualizadas com relagdo ao surgimento de novos problemas, decorrentes do desenvolvimento da industria cinematografica no mundo. Além de desatualizadas, nossas leis nem sempre eram cumpridas, muitas vezes por serem obsoletas. O Instituto nao foi realmente criado, embora Cavalcanti sempre tenha defendido sua importancia, inclusive em seu livro "Filme e realidade", publicado em 19537. Um Instituto Nacional de Cinema foi criado em 1966, mas com organizagfo e objetivos completamente diferentes dos propostos por Cavalcanti Este estudo realizado durante 0 governo democratico de Vargas demonstra a importéincia que o setor tinha para o aparelho de Estado. i um imenso trabalho que reune documentagdo suficiente para preencher mais de 500 paginas sobre © setor, mais os anexos das leis e decretos sobre cinema ¢ censura. Trata-se do mais completo documento oficial produzido em todos ‘os tempos no Brasil sobre cinema. A analise minuciosa realizada sobre os problemas do setor demonstra que o Estado pretendia reestudar a politica interventora praticada até entdo. 32 Alberto CAVALCANTI, "Filme ¢ Realidade", R, Janeiro, Arte Nova/Embrafilme, 1977, 3. edigto, 46 Politica cultural e 6rgaos disciplinadores Durante o governo de Getilio Vargas, tanto no Govemno Provisério, como durante 0 Estado Novo ¢ no periodo democritico, houve nfo apenas a criagiio de legislagao referente aos meios de comunicagao, mas também a concepeao de orgéos governamentais que conseguissem implantar as leis. Houve o casamento entre as atividades de legislagéo e administragao publica, que A primeira vista pode parecer resultado unicamente de um governo autoritério. Todavia tal conchusdo é bastante simplista. Embora nao seja objeto da andlise proposta por este trabalho, pode-se supor que esta perfeita unifio deve-se em grande parte a um projeto ideoldgico coerente e forte, que sustentou a tomada de poder em 1930, e nos anos que se seguiram®’. A. Atlantida foi mais uma etapa da idealizagao do uso do cinema como divulgador de educagdo ¢ cultura para um povo analfabeto de um pais com dimensdes continentais, aliada & proposta govemamental de uma politica de comunicago de massa, A legislagdo da época favoreceu a implantago € 0 crescimento de empresas que atuassem nessa area, © 0 govemo as utilizou para produzir ¢ divulgar sua propaganda ideolégica. Além desse trago politico, assinale-se que 0 surto empresariat do cinema e do radio no Brasil também foi possivel a partir da absorgéio de técnicos estrangeiros, principalmente vindos da Europa, que se fixaram no pais no 38 Evelina DAGNINO, "State and Ideology: Nacionalism in Brazil; 1930-1945", Disserlagdo para ‘btengéo do grau de PhD. apresentada na Universidade de Stanford, dezembro de 1985. A tese trata da ‘questo ideolagica do periods. 47 pos-Guerra, Alguns técnicos norte-americanos vieram para o Brasil trazendo conhecimentos sobre a tecnologia mais moderna existente na época. Os EUA criaram uma enorme industria em tomo dos meios de comunicagdo, tanto na produgao de equipamentos ¢ materiais, quanto na formagao de técnicos que nem sempre cram absorvidos pelo mercado hollywoodiano. Apesar das constantes reclamagdes daqueles que estavam envolvidos na produgiio cinematografica no Brasil, o periodo que se seguiu a 1930, até 1954, foi bastante proficuo quanto ao néimero e, certamente, também quanto a qualidade de filmes. A criagdo de leis protecionistas se nao foi plenamente satisfatéria, ao menos permitiu a formagao de uma pequena reserva de mercado para a produgao nacional Vejamos pois alguns 6rgaos criados no perfodo que tiveram importante atuagdo no sentido de estimular, orientar, e proteger a produgdo cultural no pais. Seguiam 0 modelo dos Conselhos Técnicos formulado por Oliveira Vianna, destituidos, portanto, de base representativa*. LQ Insti Nacional de Cinema Educativo A criagéo do INCE data de margo de 1936 mas, somente em janeiro de 1937, com a reforma adtninistrativa do Ministério da Educagao ¢ Satide, o 6rgio foi incluido definitivamente no quadro dos servigos piiblicos"’. O projeto de lei de reorganizagao do Ministério foi enviado ao Congresso Nacional em 1935, e jé mencionava a criagao do Instituto, embora exigisse 34Ver Oliveira VIANNA, © Problema do Govemo . parte IV, Jn: "Problemas de Politica Objetiva", Cia [gitora Nacional, Caps X XE ‘Data da promulgacdo da Lei n, 378 foi 13/01/1937. Esta lei den nova organizagto ao Ministerio da Fducacio ¢ Saide 48 legislagdo posterior para regulamentd-lo. A possibilidade de sua criagio sob a coordenagio do Ministério da Educagao surgiu com as modificagdes ocorridas no Departamento de Propaganda e Difusio Cultural, votadas pelo Congresso Nacional em 1934. As atribuigdes que tinham passado ao Ministério da Justiga e que estavam diretamente relacionadas 4 educagao popular, principalmente aquelas referentes ao cinema educativo, voltaram 4 jurisdig%io do Ministério da Educagio e Saiide. A censura, entretanto, ainda seria exercida pelos oficiais subordinados ao Ministério da Justiga, geralmente oficiais da Policia Civil. Na exposig&o de motivos que antecede o projeto de lei, de 24/02/1936, aponta-se que jé no Decreto n.21240, de 1932, 0 govemo previa a necessidade de crid-lo para centralizar decisGes referentes ao uso do cinema na educagao popular. Segundo este documento, os municipios e os estados estavam se preocupando com a utilizag¢do do cinema e¢ outros sistemas fonogrificos em escolas, necessitando de orientagdo e assisténcia técnica do Estado, além de exigirem mais material para ser exibido, que deveria ser avaliado, e, muitas vezes, produzido.%© O documento aconselhava que nao se demorasse na criagdo do orgio para poder extrair destes meios aquito que poderiam oferecer & educagao piiblica. O entao ministro da Educagao, Gustavo Capanema, pediu a Roquette Pinto que elaborasse projeto de lei de organizagao do Instituto, para que o mesmo comecasse a funcionar o mais rapidamente possivel. Os argumentos de Capanema para a criagdo do érgilo, sem esperar a votagdo 36txposigdo de motives do Projeto de Lei de Regulamentagao do Instituto Nacional de Cinema Educative, de 24/02/1936 - Arquivo Gustavo Capanemta, GC 350000/2A - CPDOC. 49 do Legislativo, eram todos baseados na morosidade do processo: caso dependesse da apreciagdo, que demoraria até o meio do ano, 0 Instituto s6 estaria funcionando como deveria no final de 1936. Como ministro, acreditava que seria "conveniente que o Instituto fosse ao menos um servigo em organizacao” por isso fez proposta para decreto do Executivo.>7 0 periodo de funcionamento provisério serviria de experiéncia anterior & apreciagio do Legislativo, e as possiveis modificagdes seriam propostas ¢ feitas "a luz da experiéncia’.>® Estes argumentos que enfatizavam a "urgénci do projeto talvez néo fossem a preocupagao real do ministro, sim a ignordncia referente ao setor por parte da maioria dos deputados. A urgénoia n&o era, de maneira alguma, relacionada a desorganizagao do setor, mas as necessidades politicas do governo Vargas. © projeto foi entregue em 24/02/1936, apreciado, e aprovado em 10/3/1936 pelo presidente Vargas. O pessoal responsavel pelo funcionamento do Instituto foi contratado para "servigo de natureza transitéria" ¢ as instalagdes provisrias. A lei n. 183, de 13/01/1936 permitia que 0 governo fizesse este tipo de contratagdo. Sua existéncia mostra a urgéncia que o Estado tinha de reorganizar sua estrutura institucional, 0 que s6 ocorreria com a entrada de novos funcionérios, capazes de executar tarefas até entdo inexistentes. Com estas contratages, posteriormente regulamentadas por leis, o Estado fortaleceu estrutura burocrética independente dos poderes regionais, tomando 0 governo federal mais centralizado e forte. No projeto aprovado, os objetivos do Instituto seriam: a) manter filmoteca educativa; b) organizar ¢ editar filmes 37 Carta de Gustavo Capanema a Getiilio Vargas por acasido da entrega do projeto de lei da _Rgulamentago do INCE - GC350000/2A - CPDOC. idem, ibdem. educativos brasileiros; c) fazer permutagdes de copias de filmes com instituigdes municipais, estaduais ¢ federais; d)censurar filmes educativos; ) censurar material fonogrdafico, f) editar discos ou filmes sonoros de aulas, palestras; g) permutar os mesmos; h) publicar revista sobre educagao e usos de técnicas moderas: cinema, fondgrafo, radio, etc; i) censurar programas radiofénicos na Capital Federal. O inicio das atividades do INCE foi patrocinado pelo Executivo, mas 0 projeto de lei j4 previa a captagiio de recursos através da inserigao de particulares para a utilizagio de seus servigos. Além disso, todas as estagdes de radio do pais deveriam transmitir a0 menos uma hora por dia de programas feitos pelo orgao, destinados educago popular. A fiscalizago ficaria por conta do instituto, embora nao estivesse especificada a forma como atuariam os representantes fiscais, que nem estavam previstos no organograma de funcionarios do mesmo. Entretanto, pode-se supor que seria realizada censura prévia dos programas, sendo aprovados aqueles que preenchessem as exigéncias "educacionais ou cutturais", ¢ contivessem a hora dedicada a difusdo dos produtos do INCE ~ discos educativos com palestras, ligdes, conferéncias com artistas, literatos ou cientistas idéneos. A criagio deste rgdo permitiu que fossem centralizados recursos financeiros para a compra de equipamentos moderos para a confecgdo de filmes escolares sonoros, ¢ a redugdo de filmes sonoros de 35mm para o “formato escolar" (16mm). O Instituto também deveria manter atividades que atualizassem os professores no uso de técnicas modemas para o ensino. Para tanto, seria necessario manter corpo de profissionais técnicos Si capazes de demonstrar ¢ propor novos métodos de utilizagdo do material. Para direcionar a pesquisa de metodologia de ensino, o Instituto contaria com a publicagéo de revista especializada. Além destas atividades, os técnicos do 6rgdo teriam que enfrentar dificuldades praticas para a perfeita execugdo de suas tarefas: a falta de equipamentos e material para ser exibido, Entre as importantes fungées desempenhadas, © Instituto coletou & armazenou uma série de informagées sobre cinema nacional, como sobre cinema educativo. No préprio ano de sua criacdo, fez levantamento das produtoras de filmes, nome dos empresarios, balango da produgao e do equipamento.3? Foi imprescindivel para avaliago da capacidade produtiva do setor. Foram relacionados os produtores membros da Associagaio Cinematografica de Produtores Brasileiros - que representava 90% de toda a produgdo nacional, além dos produtores ndo-associados e operadores independentes, Foram levantados 31 produtores. Aparentemente, 0 relatorio permitiria que as instituigdes do govern pudessem avaliar qual a ‘melhor produtora para eventuais trabalhos cinematograficos. Esta relagdio entre governo ¢ produtores cinematogrificos aparece mais claramente em telegrama enviado pelos mesmos a Secretaria da Presidéncia da Repiblica. # Todas as empresas fomeceram a quantidade de metros de filme produzidos na forma de "complementos", cuja exibigiio cra obrigatéria em todas as sessbes cinematogrificas do territério nacional. Também foram registrados como “trabalhos diversos", os jomais de 39 Vide anexo “Informagies sobre o Cincina Brasileiro", 49 Vide anexo, Idem. 52 atualidades ¢ propaganda de instituigdes ¢ empresas. A classificagdo dos complementos compreendia curta-metragens sobre assuntos nacionais como folclore, paisagens turisticas, curiosidades, ecologia, entre outros. ‘Um relatorio feito em 1942 sobre a atuagéo do INCE revelou que sua filmoteca contava com 528 filmes sobre medicina, historia natural, geografia, literatura, literatura infantil, educagao fisica, histéria, musica, cigncias sociais, fisica e tecnologia, além de algumas cépias de documentarios € cine-jomais. Outro relatorio feito em 1951 sobre as atividades do orgdo revelou que tinham sido produzidos 213 filmes de 16mm e 88 de 35mm, de 1936 a 1950. No mesmo periodo, tinham sido adquiridos por compra 286 filmes de 16mm ¢ outros 65 de 35mm. Foram recebidos como doagées 83 filmes de 16mm e 29 de 35mm. ‘A organizagao definitiva do Instituto ocorreu apenas em 02/01/1946, através do Decreto-lei n, 8536. Até entiio, o rgio tinha funcionado sob a orientagdo de Comiss&o Instaladora. A partir do decreto n. 8536, 0 ministro da Educagao péde criar o regimento interno do mesmo, que foi aprovado pelo presidente no mesmo dia, 2 de janeiro de 1946. M1 - O Conselho Nacional de Cultura Durante sua gestéo no Ministério de Educagiio e Satide, Gustavo Capanema criou também o Conselho Nacional de Cultura. Segundo a exposig&o de motivos para a criago do 6rgdo, o Ministério acumulava “atividades cada vez mais numerosas ¢ significativas"*!, nfo podendo 41 Carta de Gustavo Capanema a Gevilio Vargas - 6/6/1938 - CPDOC - GC 380606, 53 dispender "ao problema do desenvolvimento da cultura 0 cuidado que lhe é (..) necessirio™?. © érgio ficaria pois responsdvel pela difusdo cultural nos diferentes meios; pela conservagdo do patriménio cultural; pelo cultivo das artes; pela produgdo filoséfica, cientifica e literdria; por fazer balango das atividades no pais quanto ao desenvolvimento cultural; por estudar a situagiio de instituigées culturais privadas para opinar quanto as subvengées concedidas pelo Estado. O érgao foi criado pelo Decreto 1.526, de 1/7/38, mas s6 foi regulamentado em 1942, embora houvesse disposigao sobre o Conselho de 24/10/1938, no Decreto-lei n. 802. Com a regulamentagiio do mesmo foram criadas 4 cémaras, uma de Ciéncia Pura ¢ Aplicada, uma de Literatura, uma de Arte e Historia ¢, finalmente, a de Misica ¢ Teatro. Depois de sua regulamentagao, 0 Servigo de Patriménio Historico ¢ Artistisco Nacional, criado em 1937, passou a coordenagao da Camara de Arte ¢ Histéria, ¢ 0 Instituto Nacional do Livro, criado também em 1937, passou 4 coordenagdo da Camara de Literatura. E importante salientar que todos estes drgios foram criados durante ¢ depois da reformulagaio do Ministério da Educagio e Saitde, ocorrida em 1937. A nova estrutura do Ministério permitiria maior eficiéneia no desempenho de suas fungdes, pois acrescentou uma série de érgdos com fungdes e atividades especificas, além de permitir a contratagao de pessoal mais qualificado para fungdes burocriticas. A criagio de érgios que regulamentassem e atuassem nas areas de educagio ¢ cultura era fundamental para a modificag&o politica ¢ social a que se propunha o governo Vargas. O Conselho Nacional de Cultura se dedicaria as atividades culturais propriamente ditas, enquanto que as atividades educacionais ficariam subordinadas ao Conselho Nacional de Educagao. *® Idem, ibdem. Esta divistio entre educagao e cultura, tornando-as esferas diferenciadas dentro da estrutura criada pelo poder piblico, iniciou um processo que avangou posteriormente no sentido de desvincular, completamente, uma da outra. Esta n@o era, no entanto, a motivagdo que levou a criagio dos Conselhos. A idéia original era conseguir exercer as fungdes determinadas pelo govemo ao Ministério da Educagdo ¢ Saiide. Como o proprio nome diz, o Ministério ainda acumulava fungdes referentes 4 satide piblica, uma vez que noses basicas de higiene ¢ salide estavam intimamente ligadas educagao, conforme concepgiio da época. Além disso, o setor de Satide estava relacionado a pesquisa cientifica, que, mais uma vez, tinha relagao com educago. A idéia nao era totalmente destituida de senso, uma vez que ‘os hospitais da época eram, em sua maioria, vinculados as sociedades filantropicas da Igreja Catélica, que também mantinha estabelecimentos de ensino, € até pouco tempo antes, a Igreja era a responsavel pelo atendimento assistencial 4 populagdo em geral. Este Ministério acabou assumindo o que representava a base da atuagao do Estado nos servigos assistenciais prestados a populagSo: educagdo e saitde basicas. IL- O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) © Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) - criado em 27/12/1939, pelo Decreto-lei n.1915 - no poderia ser analisado como continuagdo do érgao criado em 1934, como foi feito por alguns analistas do periodo"®. Foi criado um érgdo completamente novo, com estrutura diferente, com novas ‘3 z:yelina DAGNINO, “Stato and Ideology: Nacionalism in Brazil, 1930-1945", op cit. A passagem ‘que desoreve a criago do DIP esti no cap. VI, p. 338. fungdes, subordinado apenas a Presidéncia da Republica, supervisionando inclusive as atividades dos ministérios. Este érgao fiscalizou, a partir de sua instituig&o, todas as atividades relacionadas 4 informagao, 4 educago € 4 coltura. Tomou-se uma extenso dos poderes da Presidéncia, que na poca ndo eram poucos. O Departamento de Propaganda e Difusao Cultural sofreu tantas modificagées, inclusive estruturais, que ao final, uéo se tratava mais do mesmo drgdio. J4 em 1934, com a indicagao de Gustavo Capanema para titular do Ministério da Educagao e Satide, foi novamente atribuida ao mesmo fungao de difusto cultural. Para que tal ocorresse, 0 Departamento de Propaganda e Difusdo Cultural, subordinado ao Ministério da Justica foi desmembrado, ficando a divisdo de propaganda inicialmente a cargo deste Ministério, ¢ a de difusao cultural retomaria ao Ministério da Educagao. O érgdo responsavel pela propaganda oficial passou a ser denominado Departamento Nacional de Propaganda. Posteriormente, por sugestao do ministro da Justiga, este tgdo passou a se chamar Departamento de Propaganda do Brasil, ¢ tomou-se subordinado direto da Presidéncia da Republica. Ainda nesta época, suas fangdes eram limitadas A organizagdo ¢ divulgagao da propaganda oficial e privada no interior do pais e a publicidade do pais divulgada no exterior. A etiagaio do Departamento de Imprensa ¢ Propaganda, que se seguiu, pretendia nao apenas unificar as informagdes divulgadas pelo Estado, mas também tinha "a seu cargo a elucidagao da opiniao nacional sobre as diretrizes doutrinarias do regime, em defesa da cultura, da unidade espiritual e da civilizag4o brasileira"* Somente com a aprovagio do regimento deste 6rgao, criado em 27/12/1939, € que a censura deixou de ser exercida pelo Ministério da Justiga. Documentos oficiais elaborados na época @ 44 Decreto n, $077, 29/12/1939, aprovando o regimento do DIP. CPDOC - GC 40922 posteriormente, em 1951, referem-se ao Departamento de Propaganda e Difusdo Cultural como extintot® Este Orgdo sim, tinha clara influéncia das proposigdes de atuagSo do Ministério da Propaganda da Alemanha Nazista { Reichsministerium fuer Volkssufklaerung und Propaganda). Na Alemanha, o referido Ministério deveria explicar as idéias ¢ principios do governo, defendendo-o de possiveis agressdes de adversarios politicos no interior e exterior do pais; controlar os meios de comunicagdo; controlar a produgdo artistica do pais, ‘bem como combater aquilo que considerasse nocivo a formagiio do povo; enviar propaganda oficial para o exterior, bem como representar 0 governo em possiveis trocas culturais com paises estrangeiros; introduzir habitos de higiene e cultivo de esporte; controle da participagdo do pais em mostras, feiras e exposigées intenacionais, organizagio de festas civicas e manifestagdes oficiais; cuidados com a educacdo civica. ‘Apesar da inegivel importincia do DIP durante 0 governo de Gettlio Vargas, existe documentag&o que prova dificuldades enfrentadas pelo orgao, resuliantes da pouca dotagao orgamentaria que foi destinada para 0 mesmo. Com a criagao do novo departamento, fungdes anteriormente exercidas por funciondrios da administragdo federal e da Policia Civil do Distrito Federal tinham passado de maos, e a burocracia contratada pelo DIP era insuficiente. Foram listados, em carta do dia 12 de dezembro de 450 documento que se refere A extingéio do citado 6rgdo € datado de 11/09/1951, e foi apresentado a0 presidente Getlio Vargas por Alberta Cavalcanti, acompanhando o projoto de lei que dispuna sobre 4 criago do Instituto Nacional de Cinema, Este docamento se encontra no Arquivo Nacional, no R Janeiro. 57 19404, cerca de 53 tipos diferentes de servigos prestados pelo érgao, para os quais dispunha de apenas 140 fimcionarios. Alguns dos servigos eram administrativos como conservagao do Palacio Tiradentes ¢ administragéio do érgio, porém a extensdio da sua a¢ao aumentara muito. O DIP produzia © programa de radio "Hora do Brasil” , a revista "Brasil Novo", a coordenagio da publicagao "Cultura Politica’, filmes e conferéncias, além da edig&o de livros; realizava a censura de imprensa, do radio, de teatro, de cinema e de livros; distribuia noticias sobre érgios do governo e toda a propaganda oficial; mantinha discoteca, filmoteca ¢ biblioteca com fins educativos; fazia estatisticas oficiais sobre cinema e turismo; mantinha sucursais da Agéncia Nacional nos estados; ¢ organizava festas civicas. Na verdade, comparando com as atribuigdes do Ministério da Propaganda alemao, o Departamento tinha fungdes quase idénticas. O diretor chamou a atengiio para o tipo de trabalho que realizava, durante as 24 horas do dia, todos os dias da semana, inclusive domingos e feriados, 0 que desgostava muito os antigos funcionarios da burocracia que tinham sido deslocados para assumir cargos no 6rgdo. Segundo seu relato, os antigos funcionarios do Congresso Nacional - que tinha sido fechado, e por isso teve seus funcionarios colocados em disponibilidade - haviam sido transferidos para © trabalho no DIP, que nada tinha a ver com suas anteriores tarefas de Ambito parlamentar. As reclamagdes dos mesmos se referiam aos hordrios de trabalho, mas principalmente 4 quantidade e urgéncia do mesmo. Em janeiro de 1941, 0 orgio apresentou ao presidente da Repablica, um balango de suas atividades. Aparentemente, a expectativa sobre o poder do 46Cana de Lorival Fontes @ Getilio Vargas, 12/12/1940 - Arquivo Nacional - R. Janeiro - Classificado ‘como documento n. 30013, da Secretaria da Presidéncia da Repsblica, 1940, érgio foi maior do que a possibilidade de execugiio. No documento, o diretor do DIP afirmou que os Ministérios, as entidades autérquicas ¢ outros estabelecimentos de administragaio piblica estavam "transgredindo" a determinag4o de passar toda e qualquer informagéo e publicidade a ser veiculada pelo DIP. Inclusive, a determinagdo ia mais além: 0 drgio deveria elaborar os textos e propagandas para todos os drgios. Ao utilizarem "servigos particulares de informagGes @ imprensa", os drgios estariam dificultando a atividade principal do DIP, que era centralizar as informagdes. Além disso, o trabalho feito em tais condigSes nao permitia que 0 noticiério forecido pelos jornais fosse devidamente “filtrado". Os argumentos do diretor no sentido de observar as normas que propuseram a criagiio do érgio apontavam para a dificuldade de exercer a atividade de censura de textos ndo examinados previamente. Segundo ele, a recusa a submisso as novas normas devia-se, muito mais, a motivos de ordem "sentimental" do que a motivos relacionados com insubordinagao. ‘Acteditava que os profissionais que anteriormente desempenhavam estas fungdes nos érgaos e autarquias, temiam a perda do emprego, caso os profissionais do DIP tomassem para si a redago dos textos a serem distribuidos para os meios de comunicagdo. Entretanto, o diretor afirmaya que tal ndo ocorreria, pois seriam mantidos em seus cargos, elaborando os textos, s6 que sob a supervisiio dos censores, O DIP faria a distribuigiio das matérias, ¢ cortaria 0 acesso direto dos jomalistas do governo com os érgios de imprensa privados. Um oficio enviado aos principais funcionarios das empresas, Orgios e autarquias ptblicas, pedia que observassem 0 poder do DIP, instituido por lei. Este mesmo oficio, assinado pelo secretario da Presidéncia, Alberto de Andrade Queiroz (interino), ¢ datado de 13 de maio de 194147, foi também enviado a todos 08 ministros de Estado, o que demonstra que 0 rgto no era to paderoso quanto se poderia imaginar pela determinagdio de snas fungées. O DIP foi fundamental para controlar a produgdo cultural feita no pais. Vargas reconhecia a importincia dos meios de comunicago de massa como formadores de opinitio. Na Constituigo de 1937, a imprensa foi apresentada como “fungao publica”. A censura ocorreu durante varios anos, ¢ de mapeira eficiente, por parte do Estado. Entretanto, os meios de comunicagao, principalmente o radio ¢ o cinema revelaram-se essenciais para divulgar nfo apenas a propaganda governamental, mas também toda a ideologia construida pelo Estado Novo. Em um pais praticamente analfabeto, o radio € © cinema teriam penetragdo nas mais diversas camadas da populacdio, nos locais mais inacessiveis. Por isso mesmo o govemo teve que relacionar-se de maneira “amistosa" com os produtores culturais, mantendo-os sob sua tutela, protegendo-os, mas ao mesmo tempo, controlando suas produgées. Ponderagées sobre os efeitos das leis Os poderes estabelecidos por lei pelos drgdos criados por Vargas talvez fossem muito mais observados com relagdo a sociedade civil que propriamente com a estrutura administrativa. A obediéncia as 47 Officio enviado pelo Secretério da Presidéncia a Gustavo Capanema, em 13/5/1941, circular n.8/41, referente fs cartas enviadas pelo dietor do DIP, chamando a alenglo para 0 descumprimento do artigo 19 do decreto-lei 1915, que tinha criado 0 referido rg - encontrado no Arquivo Nacional, R. Janeiro. determinagdes dos decretos era maior entre aqueles que nao participavam, em nenhuma instancia, do aparato do Estado. Talvez isto acontecesse porque ao construir um Estado centralizado, forte e poderoso, Vargas tenha criado ¢ se apoiado em uma estrutura burocratica forte ¢ auténoma. © “orgulho" de ser funciondrio piblico, baseado na capacitagio da burocracia ¢ em sua importancia estratégica, teve um efeito duplo: motivou os funciondrios para o trabalho de construir uma nova nagao, mas também tornou-os tio importantes quanto jamais o foram. A idéia de manter a estrutura burocritica apesar das mudangas nos governos, a chamada estabilidade, foi acompanhada da idéia de imutabilidade © de intangibilidade. Além disso, criou corporativismo entre eles, transformando-os em categoria profissional. Pode-se dizer que isto também ocorreu com outras categorias profissionais. Vargas estimulou e projetou as novas formas assumidas pelos sindicatos de trabalhadores da época. Através das relagdes dos mesmos com a estrutura do governo, conseguiu controlar suas atuagSes. Entretanto, com relagao aos funcionarios piblicos, era mais facil controlar a alta burocracia do que os funcionarios de carreira. Nio se pode esquecer que Vargas precisava da estrutura burocratica, seu governo dependia da sua existéncia para controlar as forgas sociais ¢ politicas, enfim, dependia dessa burocracia para manter-se no poder. E claro que, inicialmente, podia contar com a adesdo das massas a seu projeto politico, mas sO uma estrutura administrativa auténoma possibilitaria a centralizagdo do Estado e a manutengao do governo. As constantes cartas ¢ repetidos apelos que o presidente Vargas recebeu nos primeiros anos do periodo do Estado Novo, vindos de praticamente todos os responsiveis por érgios ¢ antarquias piblicos, refletem as 61 dificuldades de se instalar nova estrutura administrativa que pudesse dar conta da centralizagéo de poder do Estado. O que se pode perceber, ¢ que havia caréncia de organizagtio na nova estrutura da administrago publica, falta de recursos nos cofres federais, burocracia insuficiente ou completamente despreparada para assumir novas fungdes. Além de criar novos drgdos, 0 govemno se deparou com a necessidade de criar planos de cargos © catreiras piblicos, mecanismos que possibilitassem a centralizagsio de recursos tributirios recolhidos pelo Estado. Além disso, para operar a centralizago, © governo atuou na diregio de modificar a mentalidade regionalista das elites. No mesmo sentido figuram 0 projeto de "educagiio do povo para a cidadania”, a difusio do nacionalismo, além da modificagdo da cultura sobre 0 trabalho existente até ento. O cinema foi utilizado de maneira 4 colaborar na difusdo ¢ consolidagdo dessas idéias. ‘No entanto, Vargas ndo conseguiu consenso dentro do préprio govemo, 0 que se pode verificar a partir da longa correspondéncia existente entre as repartigdes, Ministérios, Secretarias e drgdos da administragao. A ambiguidade existente na proposta de governo Vargas, que se explicita nas escolhas para a ocupacao de cargos de confianga, foi se aprofundando até que o presidente niio conseguia agradar nem os mais centralizadores, nem os mais liberais. A proposta nacionalista, que parecia agregar todos a sua volta, nao conseguiu dar conta de unificar os diversos ¢, muitas vezes, contraditorios interesses. Essa oposigdo existente entre os interesses de govemo, de configuragio do Estado, seu escopo ideolégico ¢ de seu aparato administrativo, e os interesses daqueles que se vincularam a Vargas por causa de sua proposta nacionalista, se explicitou em uma série de confrontos ocorridos no periodo. Os produtores culturais faziam parte 62 deste segundo grupo. Obviamente o cinema nao é alheio a essa confrontagaio. ‘A maior parte dos estudos a respeito do desenvolvimento da indistria cinematogréfica sobre a época que compreende 1930 a 1954 trata dos percalgos dos produtores, das dificuldades relacionadas a produgao ¢, mormente das relacionadas 4 distribuigao e exibigéo dos filmes *. Entretanto, afirmar que o Estado era interventor de maneira prejudicial ao cinema nacional, e concorrente dos mesmos produtores que tentava ajudar, parece incongruente quando se fala de um periodo em que se desenvolveu, apesar das referidas dificuldades, a indastria cinematografica brasileira. Foram produzidos ¢ exibidos mais de 120 filmes nacionais de longa- metragem ndo-documentirios e surgiram mais de 10 companhias produtoras. Esse balango de filmes nao compreende aqueles considerados inapropriados pela censura do periodo, nem as produgdes consideradas pornograficas. Se por um lado 0 governo Vargas foi interventor, por outro inieiou uma série de leis protecionistas para a industria cultural do pais. As leis foram insuficientes para conseguir manter a proporcionalidade de exibigao entre as produgdes estrangeiras ¢ as nacionais no mercado brasileiro, mas também operaram na manutendo de varias produtoras, em um periodo de intensa produgdo cultural norte-americana, e de clara expanso da area de influéncia politico-cultural daquele pais. Entre as mais claras evidéncias de que as leis eram protecionistas esté a decisio da Motion Pictures 8para citar apenas alguns deles, vet José Luiz VIETRA, A Chanchada ¢ 9 Cinema Carioca ; ¢ Afrinio CATANI, A Aventura Industrial ¢ 0 Cinema Paulista . In: Fernio RAMOS, " Historia do Cinema Brasileiro", op. cit. Association of America de enviar um emissério para realizar 0 lobby das empresas exibidoras daquele pais no Brasil, em 1954. Foi Harry Stone, que se instalou e permaneceu no pais até 1994, deixando um substituto.*Mas é bom salientar que apesar do sucesso de piblico e da grande quantidade de chanchadas tealizadas no pais, no auge da sua produgao, representavam apenas 6% dos filmes exibidos em todo o territorio nacional. Depois de 1954 até 1960, poucas foram as resolugdes governamentais que modificaram a situagio do cinema nacional. Neste periodo, as grandes companhias de cinema entraram em processo de decadéncia, principalmente aquelas que produziam filmes mais sofisticados, com custos de produgao altissimos. Alguns produtores comegaram a se movimentar no sentido de criar comissées de cinema, primeiramente a nivel municipal ¢ federal, Em 1956, foi criada a Comissio Federal de Cinema, que depois evoluiu para o Grupo de Estudos da Industria Cinematografica, criado sob a tutela do Ministério da Educagdo. A Atlantida continuou atuando como produtora até 1964, ano em que produziu apenas um filme. Também co- produziu um filme em 1972. 0 ultimo ano de produgdo em ritmo industrial foi 1962, quando foram realizados 3 filmes. Vejamos agora alguns dos principais aspectos que marearam os quase vinte e trés anos e mais de 70 filmes produzidos pela companhia. "Entrevista concodida pelo mesino para Revista Exame VIP, setemibro de 1995, ano 14, n. 9, pgs. 88.1 91, reportagem de Mariella Lazareti 64 Capitulo 2 - As caras do Brasil Eu fui fazer Um samba em homenagem A nata da malandragem Que conhego de outros carnavais: Eu fui & Lapa E perdi aviagem Que aquela tal malandragem No existe mais Agora jé néto é normal O que dé: de malandro Regular, profissional ‘Matlandro com contrato Com gravata e capital Que munca se dé mat ‘Mas o malamdro pra valer Apasentou a navatha Tem muther ¢ filho Ewathae tal Dizem as més linguas Que ele até trabatha Mora lé longe e chacoatha ‘Num trem da Central. Homenagem ao Malandro, de Chico Buarque de Holanda, para "Opera do Malandro"- comédia musical de sua autoria. A"fabrica" de filmes Buscarei mostrar neste capitulo que as chanchadas da Ailéntida de um lado expressam 0 clima cultural politico ¢ social do periodo, sendo nesse sentido produto da época, ¢ de outro reforgam algunas teses sobre 0 povo brasileiro, que se constituirdo em elementos fundamentais ndo apenas para balizar a concepgdo do cardter brasileiro, como bases importantes para fundar politicas de condugo do povo. As chanchadas eram feitas segundo uma formula bem delineada garantidora do sucesso. Se por um lado esse desenho permitia abusar do improviso - nas interpretagdes de Oscarito e Grande Otelo, por exemplo -, por outro no admitia espago para modificagSes que comprometessem a qualidade do filme. Os improvisos durante as filmagens, como uso de roupas dos atores, ndo podiam transparecer no produto final. Apés alguns anos de existéncia, a empresa estruturou-se de forma a climinar também esse tipo de improvisago. Segundo depoimento de Carlos Manga, um dos principais diretores da empresa: “Nada de improviso. A chanchada era una coisa muito planificada, muito estudada. Era muito séria, dentro de toda a brincadeira. O que havia era um clima dentro do estudio, um clima dentro da Atlantida, que era uma coisa muito doméstica, de muito amor, muito carinho, porque era um grupo s6."' *Depoimento de Carios Manga ao programa "90 anos de historia do cinema", produzido e exibide peta Rede Manchete, ent 1985. 67 Existem alguns principios basicos que compdem as tramas dos roteiros das chanchadas produzidas pela companhia. Primeiramente, este tipo de produgao difere dos filmes de comédia musicais norte-americanos pela énfase dada aos comediantes, em detrimento do par mocinha/gala, que ficam relegados a segundo plano no roteiro. A chanchada pode prescindir de pares roménticos, mas nfo existe sem comediantes. Por isso, mais importante que os galas da empresa era Oscarito, seu cémico, que tornou- se marca registrada da Adlantida. A comicidade quase espontanea deste ator, atravessada por elementos circenses, tornou-se uma forma de interpretar imitada por muitos atores brasileiros, inclusive apés a instalagdio da televistio. Oscarito criou um género, muito mais abrangente do que os tipos desenvolvidos por Z6 Trindade ou Mazzaropi, por exemplo, A estruturagdo de tipos, como 0 caipira de Mazzaropi (fez apenas um filme na companhia), ou o malandro de Zé Trindade (fez dois filmes na empresa), restringia a possibilidade de atuagdo destes cémicos a roteiros que girassem apenas em tomo desses personagens. Oscarito nao produziu um tipo tmico, pelo contrario, apresentava uma versatilidade que permitia a interpretagdo dos mais variados tipos, incluindo alguns dramaticos. ‘Nao tinha, entretanto, a mesma capacidade interpretativa de Grande Otelo, que foi, por muitos anos, seu principal parceiro nas telas. Otelo tinha 0 mesmo talento para a comédia e para o drama, o que fez dele o grande ator que foi, com possibilidade de atuagdo nado apenas no cinema, mas nos ‘mais diversos meios de comunicagao. Este trago acabou por favorecer a carreira de comediante de Oscarito, pois juntos criaram interpretagdes antologicas nas chanchadas, bem ao estilo burlesco do circo. I - As trocas de identidade Outra forma de construgdo das tramas dos filmes da Afléntida constituia-se na utilizagao de “trocas", seja de identidade, seja de objetos?. Um dos personagens podia ser confundido com um sésia. Isto possibilitava a criagdo de situagdes as mais variadas; poderiam ocorrer confusdes involuntarias ¢ mesmo voluntérias entre as duas pessoas. Isto acrescentava interesse a trama, por multiplicarem-se as ocorréncias ambiguas: 0 desconhecimento de aspectos essenciais da personalidade “substituida”, ou as estratégias para livrar-se dos confrontos com os amigos "do outro". ‘Nesse mesmo procedimento, a trama poderia comportar a criagdo, pelo personagem de uma pessoa completamente diferente de si mesmo, com 0 sentido de obter vantagens. No entanto, nao tendo tido tempo para conseguir referéncias completas relativas profissio e a familia de sua criatura, acaba por trazer um clima de ambiguidade 4 situagdo e com isso tumultuar os didlogos. Sto intmeros os exemplos para ilustrar este tipo de trama, e geralmente envolvem 0 cémico. Mas muitas vezes referem-se ao vil&o, que finge ser alguém que nao é, também visando alguma vantagem. O objetivo, tanto do comediante, como do vilio é 0 mesmo; entretanto, desenvolve-se uma 23obre a idéia de trocas nas chanchadas ver: Sérgio AUGUSTO, “Este Mundo ¢ um Pandiro", S. aul, Cia as Letras, 1589. Oavto escreve vias sass om que es fem ¢ wild, chegando a se referir como sendo "o macete medular da chanchada”. A designacio chamou a atengio de Alcir LENHARO, que o cita em *Cantores do Radio: A Trajetéria de Nora Ney ¢ Jorge Goulan ¢ 0 ‘Meio Artistico dc scu Tempo", Campinas, Editora da Unicamp, 1995. Sobre o assunto, ver também: Jean-Claude BERNARDET, "Trajetoria Critica, S. Paulo, Polis, 1978, O autor apresonta este fenémeno como recurso das comédias norte-americanas. 69 empatia do publico com o primeiro, levando a aceitagdo de sua conduta ¢ ndo do segundo. Seria simplista afirmar que 0 pablico "gosta do cémico, por isso aceita suas limitagdes, ¢ "odeia" o vilio, no justificando suas atitudes somente por causa disso. Na verdade, criam-se duas esferas - bondade e maldade - no interior da pelicula. O enredo constroe-se em fungao do final do filme, e é nessa diregao que vao se justificar os comportamentos dos personagens. As agdes do cémico, que é intrinsecamente "bom", embora questiondveis, resultam em uma situagdo de bem-estar do qual os "bons" se beneficiam. Ao contrario, o vilio é intrinsecamente "man", e por isso suas atitudes sempre visam a maldade. Outra perspectiva da mesma questo é a busca, através do roteiro, de justificativas para o cémico na "forma" como age: nao ¢ perverso, ndo maltrata ninguém e engana "as pessoas certas", O vildo é perverso, engana a mocinha e o gala, por isso suas atitudes s&o injustificaveis. Varias so as situagdes encontradas nas chanchadas que serviriam para ilustrar esta oposigdo, que encerra certa ambiguidade, entre o cémico e o vildo. Esse maniqueismo é fundamental para fundar as diferengas entre as figuras do “malandro” e do "vildo". A radicalidade das definigdes entre o bem e o mal so necessérias para a identificagdo imediata por parte do pablico das fungdes exercidas na trama pelas duas figuras. O comico é 0 "malandro” no sentido dado pelas produgées cinematogrificas do pericdo. A ele sio creditadas trapagas pouco prejudiciais, ou seja, que nfo ocasionam danos permanentes ou sérios as demais pessoas, e, principalmente, sdo trapagas bem-humoradas e divertidas. Diferentemente disso age 0 vildo: ele nao é um trapaceiro bem-intencionado, mas um enganador. Enquanto o “malandro" permanece num terreno intermedidrio entre o que é 70 absolutamente correto em termos éticos ¢ legais e 0 que é incorreto, 0 vilao encontra-se num "locus" marcado pela incorregao moral e legal. Tomando como exemplo dois personagens de duas peliculas da companhia, poderemos analisar melhor estas formas diferentes de atuagdo aparentemente semelhantes, mas essencialmente desiguais. O primeiro, criado por José Lewgoy - um dos atores que mais interpretou vildes na Atlantida - em "Carnaval Atlantida", dirigido por José Carlos Burle em 1952, € 0 Conde Verdura. Trata-se de um chofer que se faz passar por um rico conde com o propésito de casar-se com a sobrinha de um produtor cinematografico, O segundo ¢ criado por Oscarito em "Pintando o sete” , de Carlos Manga (1959), que finge ser um famoso artista plastico, Picanso. Sao casos extremamente parecidos: ambos fingem ser algo que nio so. Entretanto, o Conde Verdura quer estrelar um filme e para isso deve casar- se com a sobrinha do produtor, que se apaixona pelo cémico. Suas agées, Pportanto, nao visam apenas enganar ingenuamente os outros, mas prejudicar a moga ¢ seu novo namorado. Oscarito no outro filme apenas finge ser um pintor muito conhecido para ajudar seu amigo- interpretado por Cyll Farney- a provar que no se avalia bem arte moderma no Brasil. Ele no vende seus quadros, ndo pretende utilizar seu novo "status" para prejudicar as pessoas, s6 para pagar uma divida. De certo modo, os fins justificam os meios. Desta forma ficam caracterizados os momentos em que a malandragem é permitida, aA TI-_As trocas de objetos A troca de objetos é comum nas tramas das chanchadas?. Muitas vezes este objeto se constituia na "senha" para a identificagao de um personagem e a apropriagdo do mesmo transformava seu novo “proprietario" em alvo de situagdes embaragantes. Exemplo deste tipo de situagéo € a criada em "Carnaval no fogo" , de Watson Macedo (1949). O chefe de uma quadrilha de ladrdes, conhecido como Anjo, interpretado por José Lewgoy, deve se encontrar com membros de seu bando na boate do Copacabana Palace. Sua cigarreira de prata é 0 objeto que, manipulado por cle, serviria para seu reconhecimento. A senha passa, acidentalmente, para o poder de Ricardo, personagem descmpenhado por Anselmo Duarte, que acaba por ser confundido com o bandido. Além da ilustragao acima, s4o imimeras as tramas que utilizam as trocas de objeto para fundar a ago nas chanchadas. E claro que nao se trata de uma condugdo original. Esta solugdo é bastante comum em comédias norte-americanas, na medida que produz riso facil ao expor 0s personagens a situagdes sobre as quais nao detém controle. A confusdo torna-se o fundamento da graga. TIL O confronto Além da troca, a chanchada utilizava nas tramas confrontos entre personagens. Essa oposigao resultava em conflitos que se resolviam com 0 desenrolar do filme. O gala geralmente se opunha ao vildo; 0 vildo se opunha & mocinha; o vildio também se opunha ao comediante; 0 comediante se opunha & megera; a megera se opunba ao casal romdntico do filme. As + Idem, ibdem, oposigdes auxiliavam a construg’o do enredo, baseado no principio maniqueista do Bem contra 0 Mal. Esta contraposigo no entanto, nfo aparecia claramente nos prineipios adotados por cada lado do combate. Nem sempre os "bons" eram aqueles que ficavam inteiramente do lado da lei, da ordem e da Justiga dos homens. Muitas vezes, os "bons" utilizavam meios nao muito ortodoxos para obter resultados que no final do filme se revelavam "bons para todos’. Esta ambiguidade que cerca a questo da luta do Bem contra 0 Mal nas chanchadas pode ser em parte explicada pela utilizagio da figura do “malandro", central nos roteiros. E importante salientar que 0 malandro criado pela chanchada no corresponde ao personagem noturno carioca, como sera explicado posteriormente. TV-Q "jeitinho" brasileiro Através da criagdo de tipos e da confecgio de tramas, a Adl@ntida foi capaz de operar na difustio de uma nova interpretagdo de Brasil, que havia sido formulada no periodo. Era 0 pais do carnaval, onde imperava a alegria eo samba. Esse tipo de musica, caracteristico do Rio de Janeiro, através do avango das comunicagdes, transformou-se em ritmo nacional. Na medida em que se associa ao samba a idéia de rompimento com a rigidez & a austeridade, via musicalidade ¢ danga, divulga-se a idéia de que 0 povo & gracioso e harmonioso. Essa concep¢ao do brasileiro veio se somar a outras tais como "povo alegre ¢ gentil”, "povo hospitaleiro", ea algumas nao muito lisonjeiras como "povo que nao gosta de trabalhar", “povo desonesto”, "povo néo-sério”. B As muitas generalizagées que atribuiram essas qualidades 4 populagdo do pais, no cinema produzido nas décadas de 40 e 50, tiveram sua raiz na concepgao de que o brasileiro era dotado de "graga". O significado desse termo em nossa lingua é amplo, ¢ também sfio numerosas as caracteristicas que podem ser creditadas a partir de sua mengao. Pode significar habilidade de produzir movimentos na danga ou na pritica desportiva: capacidade de ser engracado ou cémico; ter um comportamento social adequado, sabendo se movimentar em festas ou acontecimentos de ordem social. Entretanto, como caracteristica atribuida ao povo brasileiro, ©, por consequéncia, generalizada para se transformar em parte do carter nacional, apresenta uma série de ambiguidades. Se por um lado "ter graga" é uma forma garantida de boa convivéncia social, por outro, ser engragado todo o tempo produz um certo desconforto para o interlocutor: afinal, sera possivel levar esse povo a sério? Existem horas em que a seriedade & absohitamente necessdria para a resolugdo de problemas, ¢ nesses momentos de expectativa, ¢ até mesmo ansiedade, uma brincadeira pode ajudar a descontrair ou criar uma situagdo dificil de anti-climax. Disseram, uma vez, que o general De Gaulle afirmou certa vez que "o Brasil no era um pais sério”. Apesar de se dizer agora que esta afirmativa nunca foi feita pelo general francés, na verdade, quem a proferiu pouco importa. O que interessa ¢ que foi dita, e, principalmente aceita como caracterizagao do pais, e ndo significando o seu sentido mais amistoso. Quis dizer que nao se tinha firmeza de opinides, de posigdes politicas ¢ diplomaticas, em resumo, ndo era um pais com postura confiavel. No cinema, o ‘dom da graga’ foi mostrado com todas as suas nuances. Talvez se possa dizer, sem exagero, que esta foi a caracteristica cleita 74 pelas chanchadas como o cerne do caréter nacional. Dentre as outras, parecia ser esta a que melhor sintetizava as possiveis diferengas existentes entre 0 povo brasileiro os outros povos. Era na alegria e na graga, segundo as chanchadas, que todos se encontravam; brasileiros, de forma geral; e até estrangeiros, desde que estivessem dispostos a ‘integrar o clima da terra’. A afirmagiio dessa harmonia atribuida as personalidades individuais ¢ ao carater do povo brasileiro ganha um sentido especifico no momento em que € formulada. A harmonizagao dos contrastes é parte intrinseca da tese de identidade nacional, tema fundamental nas décadas de 30 e 40, no Brasil. Em outros termos, constituia-se em elemento importante para afirmar-se a necessidade de uma centralizagao politica: um Estado capaz de perceber as necessidades de uma Nao vista como uma unidade. Assim, o cinema ajudou a criar o "cimento cultural” adicional da politica centralizadora de Getilio Vargas, e por isso, sua concepgao de pais foi tio importante quanto sua capacidade disseminadora. Algumas idéias propostas por autores que discutiram a questéo nacional brasileira foram pulverizadas nessas “produgdes pouco elaboradas", as chanchadas, e difundidas com uma forga desconhecida até ent&o. E verdade que o radio tinha maior poder de penetragdo em um pais de dimensdes continentais, com varias barreiras naturais que dificultavam o acesso as longinguas regides de seu interior. Os filmes demoravam a chegar aos lugares mais afastados, ndo apenas por isso, mas principalmente porque a comercializagZo nos menores centros urbanos era pouco interessante para as grandes empresas distribuidoras. No entanto, a associagao dos dois - cinema ¢ radio -, processo operado pelas chanchadas da Ad/antida, ajudou a superagao do impasse. Embora sé 5 © radio atinja certas regides, ele carrega em si o mito do cinema. Os dois meios conjugados foram utilizados para difundir as idéias nacionalistas ¢ centralizadoras do primeiro perfodo getulista. Fabricando o povo e a nacio O conceito de nag&o nfo pode ser dissociado do seu povo. No caso brasileiro, a formagao da populagdo foi tematica amplamente debatida por varios de autores que discutem a questo nacional‘. A existéncia de varias ragas na composi¢io do brasileiro possibilitou a criagdo da tese de democracia racial, da confluéncia de diferentes culturas para a formagao de uma cultura nacional. As diversas caracteristicas atribuidas as diferentes ragas estariam fandidas no povo resultante dessa composiga0. Trata-se da tese de Gilberto Freyre, formulada em 1933s, que ganha corpo ¢ acaba por transformar-se em senso comum no periodo posterior. Esse autor aponta para o fato de ter a miscigenagiio, ocorrida no Brasil entre os portugueses, Cito apenas alguns autores envolvidos nesse debate, Alberto TORRES, "A Organizago Nacional, R. Janeiro, Imprensa Nacional, 1914, Oliveira VIANNA, "Populagdes Meridionais do Brasil", 5. ediao, R, Janeiro, José Olympio, 1952; "Evolugto do Povo Brasileiro, 4, edict, R, Janeiro, José Olympio, 11956; "Raga ¢ Assimilagfo". 2. edigfo, §, Paulo, Companhia Editora Nacional, 1934, Paulo PRADO, "Retrato do Brasil: Ensaio sobre a Tristeza Brasileira", 5. edig8o, S Paulo, Brasilicnse, 1944. Gilberto FREYRE, "Casa Grande & Senzala: Formagdo da Familia Brasileira sob o Regimen de Economia Patriarchal", 2. ediglo, R. Janeiro, Schimidt Editor, 1936; “Sobrados e Mucambos: Decadéncia do Patriarcado Rural e Desenvolvimento Urbano", 5. Paulo, Companhia Editora Nacional, 1936. Caio PRADO JUNIOR, "Evelugio Politica do Brasil", 13. edigo, 8, Paulo, Brasiliense, 1983. Sérgio ‘Buarque de HOLANDA, ‘Raizes do Brasil", 3, edigfo, S. Paulo, José Olympio, 1956. O texto de Vicente Licinia CARDOSO, "A Margem da Hist6ria da Repiiblica”, Brasilia, Editora UnB, 1981, ‘publicado em primeira versio em 1924, reune trabalhos de varios autores que discutem a questo. ‘Assinalo alguns deles: Gilberto AMADO, Oliveira VIANNA, José Antonio NOGUEIRA, Ronaid de ‘CARVALHO, Pontes de MIRANDA, Tasso da SILVEIRA, Tristlo de ATHAYDE, A. Cameiro LEAO. SGilberto FREYRE, "Casa-Grande & Senzala", op.cit. Sobre o antor, ver Flide Rugai BASTOS, “Gilberto Freyre ¢ a formagSo da sociedade brasileira", teso de doutorado, PUC-SP, 1986; e Gilberto Im: Reginaldo MORAES et alli, “Inteligéncia brasileira”, 8. Paulo, Brasiliense, 1986. 6 indigenas ¢ negros, resultado num encontro étnico e cultural que singulariza 0 povo brasileiro. Mais ainda, indica a ocoméncia de um encontro democratico entre as trés ragas que acaba por resultar no estabelecimento de uma "democracia racial", patamar para o equilibrio das relagdes sociais na sociedade brasileira, O povo brasileiro ¢, portanto, conforme essa formulagiio, mais que a somatéria de aspectos de cada uma das ragas formadoras: constitui-se numa sintese superior. Na medida que no trata, nessa reflexdo, de definir apenas um encontro racial, mas principalmente de uma articulagdo cultural, a afirmagio ganba centralidade cada vez que a andlise diz respeito 4s manifestagdes culturais. Isto ocorre principalmente quando o objeto analitico é a cultura popular. Lembrar a presenga de componentes da cultura negra/africana, indigena e branca/européia no folclore, por exemplo, além da constatagao inegavel, faz parte de uma operagio de “fabricagao"simultanea de uma cultura nacional ¢ da unidade da nagfio. Em que pese que algumas vezes a resolugdo desse amélgama aparega como tensa, a unidade se impée sobre a diversidade. O personagem da literatura brasileira que melhor expressa essa relacdio entre as diversas manifestagdes raciais é Macunaima, de Mario de Andrade. Um herdi é aquele que simboliza seu povo, concentrando em si mesmo as qualidades consideradas mais importantes para os membros de um grupo social, sendo positivas ou negativas, estas na maior parte das vezes vistas em um aspecto positive. Esse personagem é a sintese do encontro das trés ragas, contendo em si mesmo o resultado psicolégico dessa miscigenagiio. 17 A escolha da temética carnavalesca nos filmes da Addntida possibilita justamente enfatizar o "encontro". O camaval é visto como um momento especial no qual se expressa a democracia social, onde impera a igualdade, onde as racas e culturas se encontram harmonicamente. E nesta manifestagio popular que se superam todas as diferengas, sejam elas regionais, sociais, politicas ou raciais. Trata-se de um “espago democratico". O camaval é uma unanimidade nacional, comemorado de norte a sul do pais. Por isso, é tematica de toda a produg%o cultural vinoulada a divulgago de massa da época. Nas radios, as misicas camavalescas tém espago durante todo o ano, principalmente nos meses que antecedem a maior festa popular. Nos outros meses, as radios elegem sua corte - reis, rainhas ¢ princesas - a partir da divulgacdo de seus nomes, geralmente vinculados as misicas cantadas na época do camaval. Os filmes também utilizavam esse esquema de divulgagdo de misicas, antecipando grande parte dos sucessos do ano seguinte. O carnaval surge, pois, como uma festa que unifica o territério, apesar de manter algumas caracteristicas regionais. As diferengas foram de certa forma incorporadas pelo projeto unificador da cultura nacional, pois eram menos enfatizadas do que as semelhangas. Hoje em dia, estamos assistindo uma tentativa de resgate de tradigGes carnavalescas locais, mesmo assim, houve algumas modificagdes essenciais que permitiram a aceitagao dessas diferengas dentro da mesma festividade. Verifica-se o resultado deste processo via televisao: em Salvador, os trios elétricos, as bandas de ritmos afro-brasileiros, em Recife, os blocos de rua, o frevo, os bailes de saléo; em Olinda, os grandes bonecos na Tua; no Rio, as escolas de samba; no resto do Brasil, variagdes em tomo dessas organizagées. A semelhanga 78 entre as mnitas "variagdes" do camaval ja aparece nas narragdes dos reporteres: primeiro quanto A duragdo, pois so poucas as cidades brasileiras que respeitam o limite de quatro dias de comemoragdes; outra € a quantidade de pessoas atraidas pela festa, sempre se ressalta a alegria dos folides, e o colorido da multidao; também se comenta a caracteristica “local” do evento, sempre seguida da “constatagdo" de que se trata de uma “tradigo” do cammaval naquela localidade. Na verdade, as narrativas nos canais de televisio nos dizem o ébvio: o camaval ja néo é uma manifestagio popular - embora o povo participe dele, podendo ser considerado uma manifestagdo de massas -, tomou-se uma festa institucionalizada, fazendo parte até do calendario turistico oficial de muitas cidades brasileiras. Tomou-se um evento turistico, grande negécio, ¢ suas “diversas” formas sfo formulas para atrair mais visitantes. £ importante perceber que ao se tomar fator de atragio para o turismo, enfatizando a possibilidade da participagao nas festividades, o carnaval, tal como esta organizado, tomon-se um evento sem local marcado, sem data marcada - existem manifestagdes com caracteristicas semelhantes durante todo o ano, principalmente no verdio. Perdeu sua principal caracteristica de "festa transgressora” para se transformar em um “negécio", mas ainda guarda, no imagindrio popular, a caracteristica de possibilidade de “encontro", ¢ certamente, de "transgressiio", pois nele ha a possibilidade de "quebra da rotina". © cinema teve papel fundamental como definidor da unidade da cultura popular no seio da diversidade cultural, sendo 0 carnaval 0 momento simbélico desse processo. I- A mulata e o negro: duas caracterizacoes preconceituosas A tese "vencedora" sobre a caracterizagao do povo brasileiro nos anos 30 é sem divida, a da existéncia entre nds de uma democracia racial, resultante de uma "sabia" convivéncia entre as ragas, atravessada pela incorporag&o a formagio nacional de elementos da cultura negra. Esse processo de assimulagiio, basico de nossa estrutura social, resulta na convivéncia harménica de elementos aparentemente contraditérios, sejam_ raciais, sociais ou culturais. Tal processo marca o perfil do povo, 0 que o tora uma populagao diferente das demais. O tipo que melhor caracteriza a idéia do "encontro" das ragas, principalmente vinculado ao carnaval, é a mulata. Figura ideal, pois além de enfatizar a possibilidade de "branqueamento" da raga através da miscigenagiio - corrente entre as varias interpretagdes do Brasil -, contempla a idéia de capacitagao ritmica do povo brasileiro, O estereétipo da mulata sensual ¢ bonita, com "ginga", capaz de dangar o samba como ninguém mais, foi perpetuado durante muitas geragdes no pais. A referéncia 4 mulata como simbolo da mulher brasileira, principalmente ao se falar do carnaval ¢ das praias, é comum no imaginario popular. Apesar das muitas ¢ importantes discussdes sobre a questo feminina e a condigéo negra no pais, 0 preconceito ainda esté Jonge de ser vencidos Podemos ilustrar essa concepgao com “Dupla do Barulho" , de Carlos Manga (1953). Neste filme, Grande Otelo e Oscarito formam uma dupla de comediantes que viaja por todo o pais. No inicio, se apresentam em espetdculos itinerantes, muitas vezes em circos. Com o tempo, fazem Sobre os diversos esteredtipos que assumiram os negros no cinema ver: Jodo Carlos RODRIGUES, "O- "Negro Brasileiro ¢ 0 Cinema", R. Janciro, Editora Globo(Fundagio do Cinema Brasileiro-miinC, 1988, 80 sucesso, e comegam a se apresentar em teatros, Um dos mimeros da dupla mostra uma bailarina, representada pela estrela da companhia (Edith Morel). O cendrio é um chalé estilizado, ¢ neva muito. A bailarina danga ballet. Em seguida, entra em cena Grande Otelo, caracterizado como uma mulata, dangando a mesma misica em ritmo de samba. Oscarito personifica um pinguim encantado pela bailarina, mas que sucumbe realmente ao ritmo e a "ginga” da mulata. Todavia, mesmo com a intengao explicita de assinalar-se 0 "estado de democracia racial" que se vive no Brasil, desnuda-se 0 mito com a afirmagdo de uma situago preconceituosa quanto ao lugar social que o negro ocupa na sociedade brasileira. Assim, apesar do ‘sucesso’ da mulata, so poucas as aparigdes de atrizes negras nos filmes da companhia, sendio como empregadas domésticas - a exemplo da personagem Guilhennina, empregada da pensdo de Dona Inocéncia no filme "Garotas e Samba" , de Carlos Manga (1957) -, ou camareiras - em "Dupla do Barulho". A maior estrela da companhia era Eliana Macedo, um tipo bastante afastado da "brasileira tipica", lembrando a atriz norte-americana Debbie Reynolds. Neste filme pode-se perceber, ndo apenas a caracterizagao da mulata como sensual ¢ submissa 4 alegria ligada ao ritmo do samba, como também a desventura que enfrenta Tido, o personagem desempenhado por Grande Otelo. No inicio do filme, Tido era apenas um entre muitos trabalhadores do circo onde a companhia se apresentava. Entretanto, tendo o parceiro de Tonico, personagem de Oscarito, fugido com a mulher-serpente, passa a ‘ocupar, com sucesso, seu lugar. Com a substituigao, a dupla passa a fazer muito sucesso. Tonico, que consumia muito bebidas alcodlicas, deixa de 81 beber. A dupla, que faz. sucesso nos palcos, € bastante amiga, realizando peripécias fora dele. Entretanto, Tido se apaixona pela estrela da companhia, Silvia (Edith Morel), que por sua vez, ¢ apaixonada por Tonico. Ouve uma conversa entre ela ¢ sua camareira na qual revela a impossibilidade de se interessar por ele; assim, passa a beber. Nao se apresenta para o espetéculo ¢ é expulso da companhia. A dupla se dissolve; enquanto Tonico segue para o cinema com Silvia, Tido bebe cada ‘vez mais. Para voltar novamente a profissio, Tido precisou tanto da caridade de Silvia, que o interna em um hospital e consegue que volte a se apresentar em teatros pequenos, quanto da solidariedade de Tonico, ator de sucesso, que prestigia sua estréia ¢ o aplaude, quando ninguém o faz. O interessante deste filme, ¢ abordar uma situago comum, em termos da populacao brasileira: dois homens, que por motivos diferentes tomam-se dependentes do alcool. Tonico nao tinha sucesso profissional, por isso bebia. Ao fazer sucesso, deixa o vicio. Tido nfo suporta a rejeigao da amada, ¢ comega a beber. Entretanto, somente com a ajuda dela, e de seu parceiro, consegue se reerguer na vida. Nao hd referéncias no filme de que Tido bebesse antes de sua decepgo amorosa, enquanto que Tonico sim, sempre tinha bebido. A bebida, entretanto, destréi a vida de Tido, ¢ nfo de Tonico. Outro aspecto importante a ser notado € que Tonico bebia ¢ ficava ligeiramente alterado, enquanto que Tiao toma-se imediatamente um alcodlatra. Nao € o objetivo do filme apresentar estas diferengas entre os dois personagens, mas torna-se flagrante o contraste entre o que representa © Alcool para o negro ¢ para o branco. Ao final do filme, conclui-se que Grande Otelo representava um "fraco de caréter”, um perdedor, enquanto que Oscarito fazia o "forte", inctinado a vencer por si mesmo. Embora 0 82 filme nao faga referéncia, em momento algum, raga de um ou do outro, mais uma vez, o esteredtipo de que o negro é mais suscetivel as paixdes, ¢ que possui um cariter frégil, ¢ portanto mais atraido pelos vicios, foi reforgado. Il- Q encontro possibilitado pelo carnaval Apesar destes elementos, apresentados de forma sutil e passados sub- liminarmente ao piblico, os filmes da empresa transmitiam uma atmosfera de encontro, pois o clima da produgdo tinha muita relagdo com o tema que os inspirava: o camaval. A formula mais utilizada pela empresa cra a comédia escrachada, quase circense; além das satiras ¢ parédias, formas de jinguagem de comédia amplamente utilizadas no carnaval. Nesta festa, estas sao as formas assumidas pela critica social e politica, e ocorre 0 mesmo em alguns filmes da empresa. Sob este ponto de vista, pode-se dizer que pouquissimas de suas produgdes mostravam a existéncia de confrontos sérios. Por isso, nos filmes da Ad/dntida inexistiam os possiveis conflitos raciais, ¢ também no eram mostrados os sociais ou politicos. ‘A maior parte da produgdo da companhia desconhecia a existéncia de antagonismos sociais. Nesse sentido, os roteiros reproduzem um lugar comum nas interpretagdes sobre o Brasil, escritas no periodo: somos um povo pacifico, nossa histéria nfio ¢ marcada por rupturas violentas. Esta visio, j4 arraigada no senso comum, é uma decorréncia natural da tese da democracia racial. O patriarcado teve a sabedoria de, no processo de colonizagio, assimilar os setores dominados - escravos indigenas e negros - tanto racial como culturalmente, Disso resultou uma harmonia social que 83 permitiu que as relagdes sociais se desenvolvessem sem a presenga de grandes conflitos, embora o “lugar social" dos atores fosse desigual. Assim, no Brasil "no se conhecem"conilitos que acabassem por ocasionar transformagées essenciais na ossatura da sociedade, Trata-se de uma soviedade que no conheceu rupturas. Isto se deve, nfo apenas aquela sabedoria patriarcal, mas porque os temperamentos porventura exaltados de cada uma das ragas formadoras sto equilibrados pela combinagao entre ‘os mesmos efetuada no proceso de miscigenagdio. Por isso 0 povo brasileiro é um povo pacifico. E, pelo mesmo mativo, alegre’ e festivo. E clara a interdependéncia entre as duas teses - democracia racial/ sociedade equilibrada e sem rupturas violentas - um dos suportes de uma conduc&o politica que reprimia todas as manifestagdes que apontavam para a desigualdade, o conflito ¢ os confrontos de interesses. O cinema, nesse processo, assume a fungao de transformar essas idéias, elaboradas pelo pensamento social na década de 30, em elementos que compéem o senso comum do brasileiro médio. Essa tese, elaborada por autores como Gilberto Freyre, Almir de Andrade, Paulo Augusto Figueiredo, Monteiro Lobato, para citar apenas alguns, ¢ amplamente divulgada pelos meios de comunicagao do Estado Novo - Revistas Cultura Politica, Ciéncia Politica. O cinema faz parte desse clima, fundamental para legitimar um Estado forte, capaz de compreender a "esséncia pacifica da alma brasileira” ¢ por isso "autorizado" a coibir forgas que operam em diregéo contraria a essa indole. Assim, a énfase nos roteiros era dada justamente a possibilidade de ‘encontro', de semelhangas de gostos € costumes entre as mais diferentes 7 A tes parece de forma sistenstia em Gilberto FREYRE, "Casa-Grande & Senza" opt ‘Tambeém assinalo que o tema de uma sociedad sem rupturas ¢ descavolvido nos textos "1 do Brasil", R Janciro, José Olympia, 1947, e "Nordeste", 2. edigo, R Janciro, José Olympio, 1951, do ‘mesmo autor. pessoas, das mais diversas origens sociais, Essa idéia de ser o ‘encontro! mais importante do que as diferengas é frequente nos filmes da Atlantida. As situagdes adversas sdo resolvidas através do didlogo, sempre recheado de trejeitos cémicos, duplo sentido das palavras, enfim, a partir da 'graga’ Pade-se dizer que essa forma de superar as diferengas tem raiz na idéia de que 0 povo brasileiro nao é afeito as discérdias ¢ confrontos, aceitando de bom grado as solugdes alternativas propostas a partir do didlogo, sempre disposto a obter 0 consenso. Nao se entenda dai que as chanchadas enfatizavam uma possivel racionalidade existente por tris deste tipo de conduta. Mostravam que o brasileiro nao gostava de seguir rigidamente as regras do convivio social, mesmo porque estas eram importadas, ¢ por conta da sua ‘simpatia' e seus ‘encantos pessoais' conseguia fazer valer sua vontade. A incapacidade de seguir fielmente as normas era explicada por dois aspectos do cardter nacional. O primeiro era a capacidade criativa. As tegras geradas en um contexto que desconhecia a diversidade nacional, cram vistas como limitagées para a expansio integral da efervescéncia criadora, capaz de retirar 0 ‘lado bom’ de situagGes adversas, capaz de adaptar-se a improvisagées, capaz de produzir ritmos musicais a partir da ‘batucada em caixas de fésforo. Ora, esta capacidade criativa s6 poderia se expressar em sua plenitude a partir da ndo-aceitagdo ¢ rompimento com as regras. Cabe notar que se aceita muito facilmente a idéia de que os artistas no devem moldar scus comportamentos a partir das normas estabelecidas para o resto da sociedade. A arte necessita de improviso, é no momento do rompimento com as tradigdes artisticas do passado que se langa para algo inovador. Se em muitos momentos da vida o brasileiro deve improvisar 85 para garantir sua sobrevivéncia, ndo é de se estranhar que se identifique com os artistas. Associando a idéia de que todo brasileiro tem a possibilidade de criar ritmo, seja com instrumentos, com utensilios, ou com © proprio corpo, ¢ a de que sabe improvisar como ninguém, pode-se concluir que todo brasileiro é um artista em potencial. Os filmes da empresa enfatizam a existéncia de "talentos" em toda a parte. S%o faxineiros que compdem sambas, mocinhas recém-chegadas do interior que s6 aguardam suas chances nos espeticulos da noite carioca ou nos programas das radios. Ei o espirito dos musicais de Hollywood revivido nos trépicos, mas obviamente com tempero tropical. Apesar das musicas poucas vezes estarem incorporadas diretamente nos roteiros dos filmes, a empresa contava com elenco contratado permanentemente para atuar em imusicais: Cyll Famey, galé que tocava piano e cantava, participou de 25 filmes na companhia, Francisco Carlos fez filmes esporadicamente (4 filmes), sempre interpretando o gala ; Ivon Cury (5 filmes), apesar de dificilmente ser utilizado como ator dramatico ou gala, muitas yezes cantava; entre as mulheres estava Eliana Macedo (14 filmes), a mocinha carioca de "boa familia”; Adelaide Chiozzo (7 filmes) , a mocinha ingénua do interior, Doris Monteiro (3 filmes), a mocinha rica; Sonia Mamede (9 filmes), que ndo representava a mocinha tipica, fazendo patte, na maioria das vezes, do elenco cémico; ¢ outras contratadas para algumas produgdes como Edith Morel e Maria Antonieta Pons (um filme cada). Este conjunto de atores cantava, dangava e interpretava. Existia um grande elenco de apoio, além de Oscarito, o principal cémico da Adantida, ¢ seu ator mais importante, com contrato exclusivo por mais tempo (fez 33 filmes pela empresa); ¢ Grande Otelo, que quando comegou a trabalhar na empresa ja era famoso artista dos espetdculos do Cassino da Urea (fez 25 filmes pela empresa ¢ uma infinidade de outros para varias empresas ¢ produtores independentes). Outro aspecto explicativo da incapacidade de seguir ficlmente as normas, ra a aversio aos ritualismos, numa interpretagao do tema discutido por Sergio Buarque de Holanda, em Raizes do Brasil, Os filmes da empresa enfatizam a incapacidade do povo brasileiro para seguir regras de convivio social pré-estabelecidas. E mostram também uma relagdio entre povo triste © cumprimento estrito de regras e normas. Na sua maioria, mostram que aqueles que sempre seguem normas ¢ ndo assumem certos riscos, nunca conseguem alcangar seus objetivos, a nfio ser os rotineiros. Mais que isso: ‘os que se submetem totalmente 4 ordem social véem seus sonhos solapados e se transformam em marionetes do sistema. A individualidade é a unica forma de ser reconhecido socialmente, em qualquer nivel ou classe social. A versio dada pela Adléntida enfatiza o cardter individualista na resolugaio dos impasses sociais; no considera a existéncia de grupos sociais que a0 se reunirem se capacitam melhor para enfrentamentos sociais. Muito pelo contrario. A idéia transmitida é que apenas a partir do destaque individual, & que as pessoas conseguem mudar sua histéria. Embora varias vezes presentes na historia brasileira, os projetos coletivos so ignorados pelos roteiros. * Sérgio Buarque de HOLANDA, "Raizes do Brasil", opt. Uma interpretag3o apressada do capitulo ‘O Homem Cordialdo citado texto lovou a que sc difundlissc a idéia da aversto as ritualismos como ‘uma marca superior do cardter brasileiro, Retirada a afirmacao do autor do coatexto do debate, deixa~ se de lado um elemento essencial da reflexdo que é apontar para ofato de a cordialidade fundar as, relagdes no campo da ética e niio da politica. Porém € aquela versdo primeiramente apontada que ganha popularidade, figurando a averséo aos ritualismos vista nessa diresio como elemento constitutive do carter brasileiro 87 Estas duas caracteristicas do povo brasileiro - a criatividade ¢ a averstio a ritos - so frequentemente mostradas ¢ reforgadas nos filmes da empresa. A constatagéio da existéncia de artistas "por toda a parte" estd presente em praticamente todos os roteiros; no entanto, nao se pode esquecer que esta € uma caracteristica de varias peliculas musicais. A tematica dos musicais muitas vezes retrata 0 "mundo dos espetaculos", mostrando as relagdes entre membros de uma mesma ‘troupe’, o cotidiano de muito trabalho coroado pela fama. Também nos filmes musicais de Hollywood, a descoberta de talentos é bastante frequente, mesmo porque, o "mundo dos espetdculos" depende de renovagao constante. O que talvez seja original nos filmes da Atféntida, é a frequéncia com que se pode "esbarrar" em novos talentos, porque, na verdade, todos os brasileiros tm uma pequena porgdo de artista, Sao faxineiros que retiram sonoridade de latas de lixo, engraxates que lustram sapatos enquanto batucam nas suas caixas, frequentadores de bar que criam sambas batendo em caixinhas de fosforo. Assim, 0 que é caracteristico do brasileiro, o que o torna diverso face aos outros povos, é sua alegria inata, que permite a emergéncia do talento. A combinagao samba/camaval ilustra bem esse trago dionisiaco do povo brasileiro. O filme "De vento em popa" , de Carlos Manga (1957), exemplifica esses tragos acima relacionados. Sénia Mamede é uma clandestina no navio em que Oscarito trabalha como gargom. Sdo antigos conhecidos e pretendem ganhar a vida como artistas, Haviam formado a dupla Maracangalha. Ambos esperam uma chance para demonstrar publicamente seu trabalho, ¢ no navio surge esta oportunidade. O comandante pretende apresentar um espeticulo a bordo e encarrega Cyll Farney de organiza-lo. A principal atragéo 6 Zezé Macedo, famosa cantora de Opera, que se encontra no navio. Oscarito arquiteta um plano para tirar a cantora do show, ¢ substitui- la pela dupla Maracangalha, que 6 muito aplaudida. Entretanto, o comandante descobre que Sénia Mamede é clandestina, ¢ resolve punir Osearito como seu cimplice. Cyll Farney intervém salvando os dois, e os convida para montar um show na chegada ao Rio de Janeiro. Cyll Famey, neste caso, também é um talento desconhecido: tendo ido 4 Europa para estudar engenbaria nuclear, retoma para o Brasil com o diploma de misico, pois foi o que decidiu tornar-se. Seus pais ndo sabem de nada, e a trama do filme se desenrola a partir da tentativa de manter a mentira para o pai, objetivando obter recursos para montar a boate onde estreara seu espetaculo. Em "Garotas ¢ samba" , também de Carlos Manga (1957), temos mais ‘uma ilustragdo daqueles tragos apontados. Trés mogas se conhecem em ‘uma pensdo e tém 0 mesmo objetivo: vencer na cidade grande. Uma delas quer arranjar um marido rico, ¢ as outras duas pretendem tornar-se artistas. Sonia Mamede deseja tomar-se vedete em uma boate da qual conhece 0 dono; Adelaide Chizzo quer uma chance para ser cantora de radio. Representam o tipo médio da moga de interior sonhando com a possibilidade de ser a nova Rainha do Rédio, ou mesmo apenas ter a chance de viver no Rio de Janeiro. A mitificagao das grandes cidades vistas como alternativa para "mudanga de vida" era tema comum: maior possibilidade de empregos; a efervecéncia da vida noturna, inexistente em comunidades rurais e em cidades pequenas; a enorme quantidade de produtos para 0 consumo. O mito fez do Rio de Janeiro, ¢ posteriormente de Sao Paulo, polos recebedores de migrantes. A imensa maioria teve que 89 se contentar com empregos bem menos glamurosos do que o radio, 0 cinema, 0 teatro de revista, mas necessdrios ao novo projeto de industrializago que entio se figurava. Coube ao radio ¢ ao cinema construir 0 sonho, “necessario" 4 realidade que se delineava. Ser astro/estrela de radio ou cinema significava ser conhecido por milhares de pessoas. Tomnou-se um apelo particularmente forte nas décadas de 30, 40 ¢ 50, quando os fenémenos de massa ocorreram com mais frequéncia, Nese sentido, pode-se dizer que os meios de comunicago operaram na diregéo de reforgar o binémio urbanizagao/industrializagao. A cidade passa a ser ‘vista como o espago possivel da criatividade, da fuga 4 rotina, da liberdade face as regras e ao autoritarismo. E a cidade, centro do novo poder que se configurava, representava um novo modo de vida que destruiria as "velhas" formas de organizar o social. Tratava-se, porém, de uma situagio marcada pela ambiguidade. O fortalecimento de um poder central "tinha" que compreender, também, os poderes regionais capazes de manter a ordem. Nesse dirego operam as afirmagGes de criatividade ¢ aversdo a ritos para enfatizar a diversidade do pais, composto de regiées cultural e socialmente diferentes entre si. Ora, € exatamente essa heterogeneidade que significa a no aplicabilidade de regras gerais ao pais. Por exemplo, as leis sobre o trabalho s6 se aplicam aos trabalhadores urbanos e no aos rurais. Em outros termos, a dupla afirmagao criatividade/averso a ritos ganha um sentido politico amplo na diregao de reafirmar a nfo necessidade de adotarem-se medidas gerais para o pais. Assim, o cinema transformou-se em instrumento de divulgacdo de representagdes sobre 0 povo adequadas a uma visdo de intervengdo politica. Apesar de ndo atuar amplamente no territério nacional, o cinema brasileiro da época apresentava uma série de idéias a respeito do pais que se tormaram parte do repertério popular. Durante muito tempo, a imagem que o brasileiro tinha de si mesmo passava por concepgdes presentes em discusses sobre o carfiter nacional de autores importantes das décadas de 30, 40 e 50, A popularizago destas idéias foi feita em grande parte pelo Estado Novo, utilizando 0 radio ¢ 0 cinema. Foram usadas como "cimento" cultural necessario para conseguir unificar as diferentes facedes politicas existentes entdo, e, naturalmente, para legitimar a nao necessidade de representagao politica do povo, “tao bem compreendida" pelo poder central. Alegria: 0 retrato do Brasil Talvez a caracteristica mais marcante dos filmes da Adéntida seja a alegria. Sugere-se que o povo brasileiro nada tem da melancolia, da tristeza de que falou Paulo Prado em Retrato do BrasiP, O camaval aparece nos filmes nfio somente como festa nacional, mas, principalmente, como estado permanente de espirito. E transmitida a idéia de que o pais € 0 reino da alegria, onde imperam a musica, a danga e a liberdade individual. A concepgdo de liberdade individual ¢ bastante peculiar, porque esté relacionada com a auséncia de regras, ou melhor, com a nfo-necessidade Paulo PRADO, "Retrato do Brasil: Retrato sobre a Tristeza Brasileira", op ct. Este livro teve grande repercussiio no final da década de 20. A epierafe do mesmo, retirada de uma carta de Capistrano de ‘Abreu, define bem o tema desenvolvido: "O jaburi.. a ave que para mim syrbolisa a nossa terra, Tera ‘stanura avantajada, pemnas grossas, azas fornidas ¢ passa os dias com uma perna cruzada na outra, triste, triste, 'aquella austorae vil tristeza". Ou ainda, a primeira frase do texto: "Numa terra radiosa ‘vive unt povo triste”. (p.9) (Oautar mostra o caréter do povo brasileiro marcado por alguns tragos que constituem-se em ‘tstaculos 2 sex pleno desenvolvimento, Sto eles: a Iuxdria, a cobiga, a iste ¢ o romantismo. 91 de cumprimento das mesmas. Os filmes da empresa mostram um pais com habitantes déceis e afaveis ao convivio social, alegres ¢ musicais. A escolha do carnaval como festa nacional!? obriga 4 modificagio de caracteristicas locais. Neste momento é privilegiada a manifestago ocorrida em grandes cidades, principalmente 0 Rio de Janeiro. Isto porque se pretende mostrar, e 0 cinema é ideal para isto, 0 Brasil modemo, representado pela capital federal. A festa apresentada nos filmes é 0 camaval das misicas das radios, dos bailes de salao, das fantasias bem feitas, e nao dos blocos de sujos, dos bonecos de Olinda. A nacionalizagao das caracteristicas da festividade permitiu criar-se a idéia de “festa brasileira’. Ao se eleger 0 carnaval como festa nacional ¢ popular também se atribuiu ao povo as caracteristicas do camavalesco. Tomou-se uma festa da qual todos participavam, assim como 0 samba transformou-se em ritmo nacional. Os filmes da Adléntida trabalham bastante a idéia de que & impossivel resistir ao samba, ¢ também a alegria do camaval. A musica cantada por Marlene diz tudo 0 que se pensava sobre 0 assunto: "Quem ndo gosta de samba, bom sujeito nao é; E ruim da cabeca, ou doente do pé...""O samba tomou-se pois o ritmo brasileiro por exceléncia, o ritmo que embala o cotidiano popular, a representagéo mais auténtica da musicalidade nacional. 14 transformasdo ocorrida com 0 Camaval - de festa popular local, para fendmeno de massas cin oi esiudada com bastante propriedade por Edson Silva de FARIAS em *O Desfile ¢a ‘0 Carnaval/Espetaculo Carioca", de Mestrado apresentada ao Departamento de Seog da UNICAM (SP) em stb de 1995, sob orientagdo do professor-douter Renato Ortiz. 92 Em "Carnaval Atlantida" esta idéia est presente como nunca: nao sé 0 samba e 0 carnaval contaminam os estrangeiros, representados no filme por Maria Antonieta Pons, um simbolo sexual cubano, como também conseguem “escravizar” eruditos A sua alegria ¢ sonoridade. O professor Xenofontes, interpretado por Oscarito, é estudioso de historia grega, mas aprende a gostar do samba, bem mais sensual quando associado ao ritmo dos quadris da personagem interpretada pela atriz cubana. Trata-se de um filme sobre a confecgao de um filme. O diretor Cecilio B. de Milho - uma clara alustio a Cecil B. de Mille, produtor de épicos hollywoodianos -, interpretado por Renato Restier, quer produzir uma pelicula sobre Helena de Troia e ndo consegue ninguém para redigir o roteiro, Ha uma certa ma vontade dos empregados do estidio em criar um filme sobre este assunto. Querem fazer um musical, com temas populares, Segundo cles, mitologia ndo tem apelo para o publico, nao "chama bilheteria", deveria ser "uma coisa mais chacoalhada, mais movimentada". A solugdo encontrada pelo produtor € contratar um especialista: o professor Xenofontes, do Colégio Atenas, que ao final, ¢ levado a colaborar com a execugo do musical. Presente durante toda a pelicula, esta a idéia de que "fazer filme sério" era impossivel no Brasil. Como se a escolha de um tema ja definisse o resultado. A escolha de Helena de Trdia como tema, sé poderia resultar em um filme "chato", "magante", por no ser popular. A imagem de cultura erudita transmitida pelos filmes da Adlantida é sempre de algo macante, enfadonho, distante do conhecimento da maioria das pessoas. Mais que isso, a escolha do tema deveria permitir a execugdo de filmes alegres, comédias que permitissem situagdes de riso que Oscarito era mestre em 93 provocar. © espirito que rege as chanchadas é 0 seguinte: ir ao cinema é sinnimo de gargalhadas, caso contrario, nao se trata de diversio. O filme "Carnaval Atlantida” foi simbélico de uma discussao travada nas telas entre duas concepgées diferentes de cinema nacional: uma representada pela Atlantida ¢ outra pela companhia Vera Cruz. Esta ultima fundada no final da década de 40, em S. Bernardo do Campo (SP), com estiidios modemnos, com os melhores equipamentos da época, e técnicos ¢ diretores vindos de fora do pais, a maior parte deles abandonou a Europa do pés-guerra para refazer a vida em outra parte do mundo. O tipo de filmes que a empresa se propés a fazer era diametralmente oposto aquele feito pela Atlantida ¢ outras empresas que funcionavam na época. Tratava- se de obra mais proxima aquelas realizadas por Carmen Santos e Humberto Mauro, com tematica mais complexa do que os musicais carnavalescos. Os temas escolhidos eram adaptagdes de romances, filmes histéricos, sempre buscando tramas que exigissem personagens complexos do ponto de vista psicoligico. Ao mesmo tempo, langou um personagem popularissimo: Mazzaropi, Apesar de ser um sucesso de critica e ter um ator tao popular, comercialmente a empresa nao foi muito bem: ndo conseguiu ter grandes sucessos de bilheteria que compensassem o investimento inicial de capital. Seus filmes foram bastante premiados, "0 Cangaceiro" , de Lima Barreto (1952), recebeu um prémio em Cannes; langaram estrelas de sucesso como Ténia Carrero, mas nao obtiveram sucesso de bilheteria. A empresa Adéntida seguia produzindo chanchadas, intercalando com produgdes de outro tipo, geralmente adaptagdes de romances ou novelas radiofénicas. Este tipo de pelicula, com tematica que no utilizava os 94 recursos das chanchadas, era chamado "filme sério". Foram trabalhos pelos quais a empresa chegou a receber prémios da critica, mas nfo se transformaram em sucessos de piblico. Exemplos disso foram "Também Somos Irmédos" , de José Carlos Burle (1949), considerado o melhor filme do ano pela Associagéo Brasileira de Criticos Cinematogréficos; e "A Sombra da Outra" , de Watson Macedo (1950), premiado como o melhor diretor do ano pela mesma associacao. Watson Macedo e José Carlos Burle faziam filmes denominados "sérios" nos intervalos das filmagens de chanchadas, que cram o grande interesse comercial da empresa, Macedo, no entanto, conseguia realizar alguns feitos como na diregdo de "A/ Vem o Bardo" (1951), prémio de melhor filme no Festival Cinematografico do Distrito Federal, e que foi um fenémeno de bilheteria. Tipologia J- A estrutura da chanchada A analise sistematica de alguns filmes da companhia Atlantida indica a existéncia de personagens recorrentes e tramas bastante parecidas. Os enredos tm variagdes de historia, mas as resolugdes dos conflitos existentes nas tramas sdo bastante similares. A similitude se explica no por “falta de criatividade", mas pela certeza de sucesso ao utilizar formulas j4 conhecidas e aceitas pelo grande piblico. Assim, repetem-se clementos que se transformam em senso comum, operando-se a fisngao ja descrita de tomar-se uma visao nacional, uma cultura politica. 95 Além da semelhanga entre os personagens de diferentes filmes, a empresa criou tipos que s6 podiam ser interpretados por determinados atores. As tramas geralmente exigiam um par roméntico, uma dupla de comediantes ( e alguns atores de apoio ), um vilio ( ¢ equipe de apoio), ¢ os grupos musicais. O que diferenciava a chanchada de comédias musicais de Hollywood na época era a énfase dada na trama 4 dupla de comediantes, que geralmente mantinha o foco da agdo, tomando-se a base do desenvolvimento de todo o enredo, Esta dupla cra formada, invariavelmente, por Oscarito e outro comediante, na maior parte das vezes Grande Otelo, até que este deixasse a companhia. O casal roméntico era, geralmente, interpretado por Eliana Macedo e Cyll Famey ou Anselmo Duarte (fez 7 filmes na Aflantida), e os vildes eram Renato Restier (fez 13 filmes para a empresa), José Lewgoy e Wilson Grey (fizeram 12 filmes cada na companhia). A conslancia de tramas a associagio de um ator com determinado tipo parecia agradar. Na verdade, permitia que se criasse identidade com 0 meio de comunicagdo. O espectador ia ao cinema como se estivesse indo a uma festa na qual conhecia todos os convidados, e sabia 0 que podia esperar deles. A trama era de facil cntendimento, nfo existiam sutilezas cuja compreenstio dependia de maior preparo educacional ou cultural. Os filmes da época cram quase uma sucessdo continua de esquetes de Teatro de Revista ou circenses, com um tipo de humor caracteristico do Carnaval e do Circo. Il- Tipos Os tipos criados nos filmes da empresa pouco ou nada diferem da maioria daqueles criados em musicais camavalescos do periodo. Eram personagens caricatos, com trejeitos facilmente identificados como caracteristicos de uma personalidade. A chanchada nao criou tramas psicologicamente densas. Nao era esta a intengao dos produtores. Tratava-se de uma comédia leve, de facil compreensdo, sem grandes prentensdes estéticas ou estudos profundos sobre a natureza dos problemas humanos. Entretanto os personagens adquiriam vida a partir das interpretagdes dadas pelos atores. ‘A caracterizagio dos tipos dependia muito da forma como eram representados. Por isso alguns atores se tornaram canditados quase naturais para determinados personagens. Veremos esta associago entre ator e personagem representado ao destacar os seguintes tipos interpretados pela Atlantida: 1) A megera Esta personagem permite, por si s6, uma boa caricatura. Geralmente 6 a mulher do cémico, o que cria uma primeira situagdo de contraste: um tipo alegre convivendo com um tipo amargo. Situagdes de conflito ou contraste foram largamente exploradas nas chanchadas. Sua caracterizagdéo Taramente escapava do esteredtipo popular da mulher ma, ou melhor, mesquinha, porque a megera néo é ma por natureza, Tornou-se mesquinha por uma série de acontecimentos da vida. Estes "acontecimentos" nao sio relatados, nem sua personalidade ¢ assunto trabalhado com profundidade nos filmes, mas ficam sub-entendidos. Foram criados alguns tipos de megera, com algumas caracteristicas comuns. Mesmo quando as 97 caracteristicas eram diferentes, enfatizavam exatamente 0 mesmo aspecto da personalidade. Trata-se de uma caricatura da mulher "mal resolvida", por isso marcada pela maldade. ‘A megera apresenta um tipo de voz caracteristico, ou muito mais grosso do que a maioria das mulheres, ou muito mais fino, chegando a ser esganigado. No primeiro caso, é "mandona". Ao ouvir sua voz, 0 "pobre" marido se encolhe, fica paralisado, sua frio. Sempre se resigna 4 vontade da megera. Se ela perder a paciéncia...tudo pode acontecer, ¢ as previsdes do marido s&io sempre catastréficas. No segundo caso, ela é irritante, sua voz enfatiza sua "chatice". Em ambos os casos, a voz € um recurso utilizado para revelar a personalidade daquela que a possui, nao deixando dvidas sobre o que se pode esperar dela. A voz é s6 mais um reforgo 4 idéia de que megera é aborrecida. As vozes doces ¢ melodiosas pertencem 4s mocinhas ¢ as "vamps". ‘A megera sempre ¢ feia nas chanchadas. Através da feitira se contrapée as. mocinhas, sempre bonitas. A mulher feia retratada como infeliz, ¢ portanto, esté ai a explicagao para a "chatice” da megera. Sua feitira sempre é exagerada, enfatizada por olheiras, sulcos no rosto, rugas ¢ eavelhecimento precoce. O tipo fisico também é fundamental, pois complementa a idéia de feiiva absoluta. Sobre este aspecto entretanto, houve a possibilidade de criar tipos opostos: a magricela e a gordona. A idéia essencial ¢ a mesma: nunca ¢ uma mulher "desejavel". Esta caracteristica nfo contrapée a personagem diretamente 4 mocinha, mas a outro tipo de mulher: a "vamp". Nas chanchadas, a mocinha é fundamentalmente "boazinha ¢ bonitinha", mas existem também as mulheres bonitas ¢ "boas" ou "gostosas”, que representam um tipo de eleza que na época podia ser caracterizado pelas vedetes. O tipo fisico da megera ¢ sempre desproporcional, enfatizado por roupas inadequadas ou completamente fora de moda. A conclusao do piiblico a respeito de seu aspecto é que cla nao apenas ¢ horrorosa, como também “néio se ajuda”. Outra caracteristica de uma megera que se preza ¢ “manter-se permanentemente alerta". A patrulha com relagio ao marido € a iinica forma de manté-lo "na linha", longe das "tentagdes”. O cardter do marido é sempre fraco - a0 menos é no que acredita -, contrastando com a forte personalidade da mesma. De maneira geral, ele nao lhe impée resisténcia, mas quando o faz, surpreendentemente (ou nem tanto!), ela cede. O marido, segundo sua versio, precisa ser controlado, ou melhor "domesticado”. Além disso, por ser "fraco" de carater, precisa ser conduzido para longe das “tentagdes", que abrangem a bebida, o jogo e as mulheres. A construgaio deste tipo nos filmes da Add@ntida mostra uma ambiguidade basica na sua personalidade que permitiria sua "conversio”. Na chanchada, a megera sempre pode ser domesticada ou domada, desde que se saiba como. Ac final dos filmes, 0 marido "descobre uma forga interior" ¢ torna-se capaz de enfrenté-la. Quando nfio é este 0 caso, o gala do filme consegue aplacar sua ira com uma demonstragao de afetividade, um beijo no rosto geralmente é suficiente. Este é um reforgo para a teoria de que a feitra pode tomar qualquer mulher infeliz. Nas chanchadas, a megera pode ser domada por alguém que fale mais alto do que ela ou com afeto, reforgando 0 conceito machista da época: para a mulher ndo existe problema algum que nao possa ser devidamente resolvido com a presenga de um homem. 99 Essas caracteristicas fazem da personagem o contraponto ideal para uma série de outros importantes roteiros produzidos pela empresa. Utilizam com frequéncia situagdes de antagonismo entre tipos para compor sequéncias que levem ao riso. A megera ¢ um dos mais utilizados para criar estes antagonismos. Em "O Homem do Sputnik", dirigido por Carlos ‘Manga (1959), a personagem interpretada por Zezé Macedo - que é casada com Oscarito -, é a ilustragdo tipica. Foi uma das atrizes mais utilizadas para interpretar este tipo de personagem durante os anos que trabalhou na Adfntida, tendo participado de 7 filmes. Enfatizou suas caracteristicas fisicas que a contrapunham aos padrées de beleza da época, criando varias ‘personagens memoraveis. Nao era bonita, e com a ajuda de maquiagem reforgava seus tragos angulosos. Era magérrima, 0 que a contrapunha ao tipo de beleza da época, de formas arredondadas. Neste filme, aparece sempre ao lado do marido, cuja vida foi completamente alterada ao ter desabado um sputinik em seu quintal. Por causa deste acontecimento, o personagem interpretado por Oscarito passa a receber atengdes exageradas de representantes diplomaticos e espides de todas as partes do mundo. A megera passa a vigiar os passos do marido, principalmente quando recebe as atengdes do personagem interpretado por Norma Benguell, uma espid francesa chamada “BB”, em clara alusio a Brigitte Bardot. Segundo o diretor do filme, a atriz realmente inspirou a criag%o do personagem e a interpretagdo de Benguell. Zezé Macedo caracterizou a megera com sua voz esganigada, sempre “de olho" em Oscarito, para que ndo cedesse aos encantos de "BB". Vigiar o marido significa, principalmente estar no lugar certo, na hora certa - para ela - ¢, no lugar errado e hora errada - para ele -, o que a acaba caracterizando como aquela que “estraga a festa’. A forma 100 antipatica como controla os passos do marido sempre a transforma em uma pessoa muito desagradavel aos othos do piblico. O marido é sempre aquele que inspira pena e simpatia, mesmo que esteja agindo da forma mais absurda, Outro exemplo deste tipo é interpretado por Suzy Kirby em "Garotas e Samba", dirigido por Carlos Manga (1957). Ela & casada com o personagem interpretado por Zé Trindade, ator que se caracterizou por interpretar homens que querem cercar-se de mulheres bonitas, por isso gostam de boates, bebidas e companhia de mogas. Sua mulher é mandona, muito maior que ele, ¢ promete promover uma “cagada” contra as mulheres que se lhe aproximarem. Esta € também outra caracteristica das megeras, embora sejam ameagadoras para com seus maridos, geralmente se voltam contra as mulheres "que os desencaminham", ¢ nao diretamente contra eles. Zé Trindade fica encantado com Renata Fronzi, uma moga cujo objetivo na vida é “agarrar um miliondrio". Para engand-lo, finge ser mais rica do que 6, vestindo-se com roupas carissimas pelas quais nflo pagou. Por sua vez, 0 milionario, encarnado por Zé Trindade finge nfo ser casado, o que também provoca cenas engragadas com perseguigdes empreendidas por sua mulher. As chanchadas promovem a idéia de que beleza é qualidade essencial as mulheres, enquanto para os homens a riqueza é fundamental. Deste ponto de vista, mulheres bonitas sempre estardo cercadas de homens, embora nem sempre estejam casadas com eles. J4 os homens ricos estario cercados de mulheres bonitas, embora nem sempre, ou quase nunca, se casem com clas. Os gals podem se casar com mulheres bonitas, assim como os vildes se cercam das vamps, entretanto os homens ricos, 104 geralmente so casados com megeras, que os controlam, nao permitindo que “aproveitem a vida". A megera parece encarnar permanentemente o espirito de moralidade, o que a toma mesquinha e antipatica. Geralmente assume a defesa da moral de maneira exagerada, inadequada para os tempos em que vive. O tratamento dado a esta personagem pelos filmes da época indica que ela é infeliz e quer que todos os que ¢stao 4 sua volta nao se divirtam, ou seja, também se tomem infelizes. E personagem de apoio fundamental para oferecer confronto aos atores principais como o comediante ou o casal roméntico do filme. Pode ser utilizada na trama para desmascarar algum malandro ou para por fim aos planos de romance entre o gala ¢ a mocinha. Por isso mesmo também pode ser uma "solteirona". No ja mencionado filme "Garotas e Samba", Zezé Macedo interpreta a proprietaria de uma pensiio para mogas, com o sugestivo nome Dona Inocéncia. Recrimina as mogas que estdo sob sua tutela por estarem sempre "atras de namorados". Controla os hordrios de entrada ¢ saida das mogas, e, principalmente nao permite a entrada e muito menos a permanéncia de rapazes em sua penséo. Desta forma, segundo sua concepgiio, consegue manter o decoro e a moralidade. No final do filme, o gala Francisco Carlos, cantor famoso da Radio Nacional, vai até sua pensiio fazer uma proposta de trabalho para a mocinha, interpretada por Adelaide Chiozzo. Ele se vé obrigado a forgar a entrada, uma vez que a megera interpretada por Zezé Macedo nao parece disposta a escuté-lo de maneira alguma. Nao conseguindo nada por bem, empurra a dona da pensio no sofé ¢ grita bastante com ela, o que de cesta forma resolve 0 problema, pois a mantém calada, Quando consegue finalmente esclarecer a situagéo, volta a falar com a dona da pensiio, da- 102 Ihe um beijo, dizendo que o mereceu por permanecer "tio boazinha", tomando-a feliz. Esta situagdo exemplifica a idéia exposta acima sobre a necessidade de “controlar a megera". Trata-se, segundo o esteredtipo criado pelo cinema da época, de uma mulher amargurada ¢ descontrolada, que necessita de um homem capaz de domesticé-la. Zezé Macedo interpreta outra megera inesquecivel no filme "De vento em popa” de Carlos Manga (1957). Representa uma cantora lirica, que participa de um cruzeiro maritimo, quando é convidada a realizar uma apresentagdo para os passageiros do navio. O comandante pede a Cyll Famey, que faz parte da elite carioca e estudon misica na Europa, para organizar um "show de talentos” 4 bordo. Quando comegam os ensaios, percebe-se que todos curtem rock and roll, sons mais modemnos, ou sons mais locais, como a misica nordestina interpretada por Oscarito ¢ Sénia Mamede. Zezé Macedo, porém, odeia tudo isso, e firma posigdo irredutivel ao dizer que cantara a Aria da Loucura de Lucia di Lammennoor. ‘Ninguém se interessa por sua interpretagdio durante o ensaio, ¢ Oscarito, que quer apresentar-se no show, coloca sonifero no copo da cantora, para entrar em scu lugar. Posteriormente, Oscarito fica hospedado na casa de Cyll Famey fingindo ser seu professor estrangeiro de fisica nuclear, isso porque Famey foi 4 Europa para se formar em "energia nuclear", ¢ no entanto, resolveu estudar misica, o que desgostaria muito seu pai. Planeja © seguinte golpe: apresentar Oscarito como um famoso cientista decidido a ajndéJo a montar um laboratério para estudar energia atémica no Brasil, garantir o financiamento do pai para este projeto, utilizando o dinheiro para montar uma boate. Sénia Mamede aparece como assistente do professor. Zexé Macedo chega depois que ambos ja estio instalados para ficar 103 igualmente hospedada em casa dos pais de Cyll Famey. E a mica pessoa capaz de reconhecer Oscarito e "colocar areia” no plano. Quando finalmente 0 reconhece, conta para o pai de Cyll Famey, que resolve contratar “alguns homens fortes" para impedir a estréia do show que inaugurara a boate. Felizmente para 0 gala, a estréia da muito certo, tudo é um sucesso, € seu pai acaba accitando o inevitavel: ele nasceu para ser misico ¢ ndo cientista. 2)0 malandro Este tipo jé foi descrito incontaveis vezes por diversos autores''. Nas chanchadas, ¢ representado por uma infinidade de personagens, bastante diferentes entre si. Talvez isto ocorra porque 0 malandro é 0 tipo mais complexo criado nos filmes do género. Os personagens, em geral, apresentam caracteristicas que permitem a identificagio do piblico ou aproximago com personagens conhecidas. © malandro, porém, apresentava certa universalidade: tinha caracteristicas creditadas a todos os brasileiros pela idcologia da época. Malandragem e esperteza se apresentam como tragos quase sinénimos. Nao sendo vistos como negatives, compéem elementos do cardter nacional. Inicialmente tais caracteristicas foram atribuidas aos cariocas, talvez porque o malandro fosse um personagem nascido na noite do Rio de Janeiro. Posteriormente, com a difusao do tipo através dos filmes, os atributos do malandro foram esvaziados de conotagdo social ¢ cultural, permitindo assim, que todos aqueles que tentassem driblar a lei, ou em algum momento tentassem se valer do "jeitinho" pudessem ser considerados malandros. Era como se, no 1 Sobre o tema ver: Anténio CANDIDO, Dialética da Malandragem, in Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, 1970, Ver também: Roberto DA MATTA, "Carnaval, Malandros e Herbs", Rio de Janciro, Zaha, 1978. 104 fundo, todos os brasilciros tivessem "alma" de malandro, de norte a sul do pais, © malandro passa a no ser mais aquele personagem tipico dos bares da Lapa, no Rio de Janciro, ou "dono da lei" na zona do baixo meretricio, Praga XV. Nao é mais aquele sujeito descrito pela crénica jomalistica, que vive de expedientes, principalmente noturnos, explorador de mulheres ¢ criangas, jogador de sinuca ou baralho sempre a dinheiro, batedor de carteiras, vendedor de jogo do bicho. Nao era mais aquele homem vestido com ternos de cores claras, chapéu panamé, sapatos bicolores, gomalina no cabelo, com leve cheiro de alfazema barata, que percorre a cidade em busca dos famosos "otdrios", ou "patos". Nao mais o jogador de capoeira, que se defende com uma navalha afiadissima, sorrindo com o canto da ‘boca, 11a qual sempre brinca um palito, com um fino - quase imperceptivel - bigode sobre os labios. Nao mais o personagem que vive no limite da contravengao penal, pois a malandragem passa a ser designaglo de todo comportamento que busca as "brechas" da lei. A “ldbia" da conversa do malandro passa a ser caracteristica nacional, ¢ cada brasileiro, um campedo do jogo-de-cintura. Passa, nto, a simbolizar o "jeitinho brasileiro" 12 ‘Ao mesmo tempo em que houve a tentativa de generalizar caracteristicas do malandro, suas qualidades nfo-socidveis foram escamoteadas, Criou-se um mundo dividido entre otérios - aqueles que so tapeados, "passados para tris" - ¢ malandros, no qual todos ora assumem uin papel, ora outro. A criminalidade nao faz parte desse universo, embora seja aceitavel algum tipo leve de contravengio penal, O malandro das chanchadas é 12 No sentido atribuldo por Roberto DA MATTA, op.it. 105 socializado, caso contrario aparece como marginal, e nesse caso é vildo. Nos filmes da Ad@ntida, os malandros trabalham, embora muitas vezes demonstrem pouguissima vontade nisso. Gostaria de estar estirado nas praias de Copacabana, geralmente demonstrando ter outro tipo de condig’io social ou mais dinheiro. Este é o "golpe" do malandro da Adlantida: passar por quem nao é. Em quase todos os filmes da empresa, é a base do enredo. Os motivos que o levam a fazer isso podem ser inameros, mas o resultado 0 mesmo: sempre existe alguém que pode desmascaré-lo, e passard por boas encrencas tentando despistar esta pessoa. Bom exemplo deste tipo de situago enfrentada pelo malandro é aquela jé deserita anteriormente em “De Vento em Popa”, na qual Oscarito passa por um professor estrangeiro de fisica miclear - na época chamada de “energia atémica"-, quando na verdade é ex-camareiro de bordo de navio com pretensdes ao estrelato. O publico se identifica com o ator porque na realidade n&io 6 um "mau sujeito”, ido o que faz é para conseguir sua chance de estrelato, para dar uma oportunidade igual a sua parceira, Sénia Mamede, e para ajudar o gala do filme, Cyll Famey. Afinal, os fins justificam os meios! Este tipo de malandro, que ndo consegue seguir exatamente "as regras do jogo", ¢ utiliza alguns meios pouco licitos para alcangar seus objetivos, é Jargamente aproveitado pelos roteiros da companhia. E um tipo bastante aceito pelo piblico, pois no chega a prejudicar ninguém com suas trapalhadas. Na verdade, nfio é bem assim: Zezé Macedo nao se apresenta no navio porque foi dopada por Oscarito. Mas 0 piiblico parece accitar certos procedimentos pouco licitos, ¢ isso talvez possa ser explicado ao 106 considerarmos as partes envolvidas. O publico se identifica com Oscarito & Sénia Mamede, cujos personagens representam 0 povo, so pessoas que trabalham, que nao tiveram chances na vida, mas tém talento, ¢ principalmente pretendem se destacar no mundo dos espetaculos através da projegio da cultura popular. Zezé Macedo representa no filme uma cantora lirica ja couhecida, com talento duvidoso, e é mostrada como uma pessoa descolada da realidade cotidiana do povo brasileiro. Nao gosta do que é popular, e por isso jé aparece para o piblico como alguém antipatico ¢ arrogante. Quando Oscarito "tira de cena" a cantora, dando-lhe remédio para dormir, esta atitude pode ser interpretada como algo semelhante ao que Robin Hood fazia durante suas expedigdes pelos bosques ingleses: tirar dos ricos ¢ dar aos pobres. Na verdade, para o piiblico, Oscarito nem chega a prejudicar a cantora, uma vez que esta ja tinha uma carreira de sucesso, ele apenas aproveita aquela que talvez fosse a unica chance de mostrar seu talento. E claro que néio agiu muito corretamente, mas tudo di certo, no ha grandes prejuizos para ninguém, ¢ na légica das chanchadas, por um final feliz tudo é justificavel. Quanto a representar uma pessoa que nao é, ele o faz por uma "boa causa”, ou seja, para ajudar Cyll Famey a conseguir 0 dinheiro necessério para abrir a boate. De certa forma, os fins justificam os meios. Neste caso, Cyll Farney também é uma espécie de malandro, pois engana 0 pai dizendo que estudou fisica nuclear, quando na verdade tomou-se misico. Pede dinheiro para montar um laborat6rio, quando o utilizaré para abrir uma casa de espetéculos. Mas representa 0 "bom mogo", apesar de mentir 0 tempo todo para os pais. O piblico, mais uma vez, accita este procedimento porque o pai do gala é apresentado como uma pessoa 107 irredutivel, pouco interessada naquilo que o filho gostaria realmente de fazer, que impde sua maneira de encarar o mundo a todas as pessoas que 0 rodciam. Enviou o filho 4 Europa para aprender tudo sobre "energia atémica” a fim de que fosse capaz de, ao voltar para o Brasil, construir uma bomba. Enquanto scu pai sonha com projéteis para destruir o mundo, Famey projeta coisas menos bélicas, relacionadas com musica, samba ¢ alegria. Por isso, ja se torna simpatico ao publico, mesmo que no fosse o gal que arranca suspiros das platéias femininas, e odiado ¢ imitado pelas platéias masculinas. O malandro tem caracteristicas que o aproxima do piblico porque no é man, sempre tem uma “descutpa” para agir da forma como age. No show de estréia de sua boate, Doris Monteiro canta uma cango, cujo refitio poderia definir bem o personagem representado por Famey: “Mocinho bonito, que ¢ falso malandro de Copacabana...". O testante da misica fala de um mogo de origem humilde que passa por "gra- fino”. O personagem de Farney nao tem essa caracteristica, embora passe por quem nfio ¢. Os gals dos filmes da Addntida geralmente nao fingem ser ricos quando ndo 0 s&o, mas justo ao contrério: fingem ser pobres, menos afortunados, quando séo ricos, ou fazem sucesso como cantores ou atores jd reconhecidos. O malandro tem caracteristicas fluidas, nfo muito delimitadas, que podem enquadrar quase qualquer pessoa no tipo. Por exemplo, no filme "Garotas e Samba", Zé Trindade apresenta um tipo que sai as noites para "cagar" mulheres bonitas, mesmo sendo casado. Sua "desculpa” € 0 fato da sua esposa ser uma “megera”. A idéia de existir sempre um motivo para um individuo tomar-se malandro, para esquecer as “regras" quando so pouco vantajosas, 6 comum nos filmes da companhia. Isto possibilita a aceitagio 108 do personagem por parte do piblico. O malandro ¢ um desafortunado que nao se conforma, e decide "virar a mesa", transformando as coisas de forma a que lhe sejam favoraveis. Nao rompe as "regras do jogo", apenas as perverte. O fato de nao jogar sem regras e no desrespeitar flagrantemente as leis é 0 que o distingue do vildo, que é um bandido. Esta idéia de que ha uma grande diferenga entre ir contra a lei ¢ modificd-la conforme sua conveniéncia, é o que possibilita a existéncia do malandro. Sem a possibilidade de viver ligeiramente 4 margem da legalidade, em desacordo com alguns aspectos aparentemente nao essenciais, este tipo de personagem seria impossivel. Entretanto cabe ressaltar que a forma como o smalandro perverte a lei nao tem semelhanga com a utilizago dos meandros das leis pelos advogados. Vive 4 margem da legalidade, burlando a lei, sem contudo ser flagrado. Néo é um ladrao, mas utiliza expedientes escusos para conseguir dinheiro, ou se apropria de dinheiro alheio para fazer seus negocios, mesmo que depois o restitua para seu verdadeiro dono, O que esta atras das atitudes do malandro é sempre o motivo e a forma como atua. Nao usa armas, nao coage ninguém, usa subterfigios, engana, representa. O malandro nao propée confrontos, porque sabe que na confrontagao pode ser desmascarado. Via de regra, procura agir se ndo de maneira legal, pelo menos no ilegalmente. Utiliza o famoso "jeitinho", que consiste em fazer algo proibido, mas de maneira a nao prejudicar irremediavelmente ninguém, ou fazé-lo por pouco tempo, e principalmente, nao chamando a atengdo para si mesmo. Na verdade, quando o malandro torna-se um tipo com certa universalidade, definidor do brasileiro, tem varias de suas caracteristicas suprimidas, principalmente as anti-sociais. A malandragem passa a ser uma forma de se relacionar com o mundo 109 exterior, uma maneira de lidar com os limites impostos pela sociedade organizada. A sociedade civil se define pela igualdade de direitos dos cidadaos, ¢ o malandro ndo admite viver conforme as regras que valem de maneira indistinta para todas as pessoas. A utilizago do "jeitinho” tem no fundo essa idéia de protesto, da ndo-aceitagéio do fato de se tomar membro da massa. O malandro passa a ser todo aquele que consegue, ou ao menos tenta conseguir, transformar as regras gerais em algo mais conveniente para si, Nesse sentido pode-se dizer que se constata, no desenrolar dos filmes, uma evolugéo do malandro como tipo. Ele se "aperfeigoa" quando incorpora a nogdo de "jeitinho" como trago do personagem. Em “Entre Mulheres e Espioes", de Carlos Manga (1962), Oscarito representa um ator de segunda categoria, chamado para fingir ser um espiao internacional. Devera prender Dimitri, um espiao que tenta roubar a formula de combustivel de foguete que utiliza bananas como matéria- prima, descoberta por um cientista brasileiro. Oscarito é um ator que nao se limita a interpretar aquilo que o roteiro espera dele, sempre criando situagSes para aparecer mais do que o previsto. Aceita representar 0 espido porque esté devendo uma série de prestagdes do carro que comprou. Quando os cobradores chegam para tomar seu carro, diz: "E dai? A divida externa também é grande, mas ninguém vem cobra-la!" © malandro pode ser "caloteiro”, mas 0 piblico ainda se identifica com ele. Isso porque nao comete crimes como roubar, apenas cria situagdes em que parece "ter tomado algo emprestado”. Também neste filme, impede que a formula seja roubada fingindo ser um extraterrestre que aparece para o cicntista. Outra caracteristica do malandro é que ndo mente simplesmente, ou inventa uma desculpa qualquer, mas cria uma representagio tdo implausivel, que é 110 como se aquele que estivesse sendo enganado quisesse que isso acontecesse. O piblico vé a situagdo como se 0 otdrio estivesse "pedindo” para ser ludibriado. Quando Oscarito representa um malandro, torna-se de tal maneira irresistivel, que todos parecem "querer" que ele os engane. Além disso, as trapalhadas de Oscarito nunca parecem ferir ou lesar ninguém, Representa um irresponsavel, aquela pessoa que utiliza todos os expedientes possiveis para conseguir 0 que deseja, ¢ isso é visto como uma qualidade e nfo um defeito. O malandro ¢ encarado como um vencedor. E importante satientar que sua legitimidade esti fundada justamente em colocar-se em relagiio individualizante, que prescinde de julgamento coletivo na situagio do filme. A legitimidade ¢ dada pelo piiblico. Nesse sentido, é possivel dizer-se que os tipos, como so resolvidos nas peliculas, constituem-se em uma mediagao entre a situagdo real e a ideal. Assim, sua fungo é de absorgao do conflito. 3) A mocinha A mocinba das chanchadas tem algumas caracteristicas especificas, embora pudesse apresentar-se como "moga da cidade grande", ou “moga do lar”, 0 que para os padres da época significava "impedir os avangos dos rapazes". Caso se relacione com o mocinho do filme, esses procedimentos eram quase desnecessarios, pois ele "sabe se comportar". Muitas vezes a percepgiio das mocinhas varia: algumas mais ingénuas, ndo identificam as més intengdes dos rapazes quando menos explicitas; outras, no entanto, mais "vivas", ndo sé as identificam como também sabem se livrar facilmente das "cantadas”. Receber "cantadas", por exemplo, nao era algo de "muito bom tom", a interior”. Deve ter um comportamento "exe 11 mocinha deve evité-las. O mocinho nunca "canta" a mocinha, espera o momento adequado para demonstrar seus sentimentos de maneira romantica, Nas chanchadas existe uma clara disting&o entre uma "cantada", geralmente grosseira e vulgar pois ressalta atributos fisicos ligados a sexualidade, e¢ que € feita em voz alta, o que expde a uma situagdo vexatéria a pessoa que é 0 objeto do comentario; e um elogio, geralmente feito em tom de confidéncia, roméntico, que ressalta qualidades ligadas ao "espirito", ou faz referéncias platdnicas a beleza do objeto do comentario. A “cantada” nunca é bem intencionada, e por isso mesmo, seu emissor ¢ um tipo determinado de homem, capaz de fazer "propostas indecorosas". ‘As chanchadas dividem as mogas que recebem a “cantada” entre as que aceitam - cujo comportamento é inadequado, so vulgares e ninguém deve “por a mo no fogo” apostando na "pureza" de seus sentimentos -, ¢ as que nao aceitam - cujo comportamento é o esperado para "as mogas de familia", que no caso significa adequadas para a moral da época. Bi interessante notar que nfo ha ambiguidade no que se refere ao ‘comporiamento esperado de uma moga nas chanchadas. As mulheres se dividem entre mogas e¢ velhas; bonitas e feias; “as que servem para casar" e “aquelas que mamae ndo aprovaria"; as boazinhas, as megeras e as “boazudas". No mundo criado pelas chanchadas, as mulheres podem ser classificadas segundo uma tipologia pré-estabelecida, existindo poucas variagdes dentro de cada tipo. Nao existem nuances previstas de comportamento e pensamento que devam ser explicadas através de uma analise mais profunda. Os personagens das chanchadas em geral, ¢ os femininos em particular, s&o superficiais, no suportando exames psicolégicos. 2 Existem varios exemplos de mocinhas nos filmes da At/dntida. A maior parte delas foi interpretada por Eliana Macedo, que tornou-se uma espécie de "marca registrada" de moginha das chanchadas. Ela era suficientemente bonita sem apelos sensuais, bem comportada, cantava ¢ dangava, em resumo, perfeita para encamar qualquer papel do tipo, em qualquer roteiro dos musicais. Em "Carnaval Atlantida" de José Carlos Burle (1952), interpreta a filha do proprietario de uma produtora de cinema e se apaixona por Cyll Famey, um dos mocinhos prediletos da companhia. Juntos conseguem realizar um filme camavalesco nos estidios do pai da moga, anteriormente especializado em produzir grandes épicos. Outras atrizes que desenvolveram papéis de mocinhas foram: Fada Santoro ( fez 4 filmes), que fazia o género sensual, morena, beleza latina, a mocinha mais exuberante da empresa; IIka Soares (fez 3 filmes) ¢ Doris ‘Monteiro que encamaram ontro tipo, pertencentes a ‘alta sociedade’, Eliana fazia o protétipo da mocinha de classe média; Adelaide Chiozzo representava a mocinba vinda do interior, com pretensdes a tomar-se grande artista na ‘cidade grande’, Sénia Mamede representava mocinhas vindas do Nordeste brasileiro, sem nenhuma ingenuidade, sabendo lidar muito bem com os ‘malandros'e 'gavides, giria utilizada para denominar os ‘conquistadores' mais ousados. Os personagens masculinos apresentam variantes de conduta ¢ ambiguidade de comportamento. 3

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