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ane Denianer Penns ongeicn Heise Pedicto rage Tends Jeroen ts Comer ‘Neva de ado ‘ta teach de Caeaho Rioo () (Camas tees do nr, SF em) rio cred ite / HW, Any Ja sons onto tone tit Comal = 2 - So Inbar 1, ane Mina {Jamun Asbo Th Indices pars cathe strides al irs da dp ig ops oman start Sartne Fontes Ealtora Lm Indice Introdugio 6 PRIMEIRA PARTE: COMO A ARTE COMEGOU A arte magica dos homens das cavernas ¢ dos povos primitivos 14 © Paleolitico 14 O Neolitico 17 Arte primitiva 18 Arte para os mortos — Egito 22 (0 Antigo Império 24 ‘© Novo Império. 28 ‘Templos, palicios cidadelas — o antigo Oriente Préximo eo Egeu 32 Mesopotamia 32 Persia 39 OEgeu 40 Arte grega 46 Pintura 46 Templos 51 Escultura 56 Arte etrusca 67 Arte romana 70 Arquitetura 70 Escultura 73 Pintura 77 Mapa: O mundo antigo 82 Quadro sinético 1 84 SEGUNDA PARTE: A IDADE MEDIA. Arte crista primitiva e arte bizantina Arte crista primitiva 89 Arte bizantina 96 A Alta Idade Média no Ocidente 102 A [dade das Trevas 103 ‘Arte carolingia 106 Arte otoniana 111 Arte Romanica 116 Arquitetura 117 Escultura 123 Pintura 126 a 131 Cidades, catedrais ¢ arte goti Arquitetura 131 Escultura (1150-1420) 140 Pintura (1200-1400) 147 Mapa: A Idade Média 162 Quadro sindtico I 164 TERCEIRA PARTE: O RENASCIMENTO A “nova era” — 168 A pintura do Gético Tardio ao norte dos Alpes 170 Renascimento versus “Gético Tardio" 170. Pintura sufga e francesa 183 As artes gréficas 184 O Pré-Renascimento na Itilia 186 Escultura 186 Arquitetura 193, Pintura 196 O Alto Renascimento na Italia 207 Leonardo da Vinci 207 Michelangelo 211 Bramante Rafael 218 Giorgione 220 Ticino 220 no € outras tendéncias 22-4 224 Manei Pintura Escultura Arquitetura O Renascimento no Norte 237 Alemanha 237 Os Pafses Baixos 247 Franca 249) © Barroco na Ita eEspanha 250 ja, Flandres A Idade de Ouro da pintura holandesa 264 A Era de Versalhes 274 Pintura 275 Arquitetura 278 Escultura 281 Rococs 282 Mapa: O Renascimento Quadro sinético I 296 QUARTA PARTE: O MUNDO MODERNO- Introdugéo 302 YAcocimsicioe 0 rquitetura 308 Piotura 304 Bscultura 307 XO movimento romantico 309 Arquitetura 309 Bsculuura 312 Pintura 314 Pfeatisme ¢Impressionismo 328 intura 8 Escultura 340 P6s-Impressionismo 342 Pintura Escultura Aarte de nossa época 357 Expressionismo 357 Abstracao 365 Fantasia 376 Novas tendéncias Escultura 402 Arquitetura 416 Fotografia 424 Fotografia romantica Fotografia realista 42 A fotografia no século A-escola de Paris 433 A escola de Stieglitz 43 A Nova Objetividade 4 O perfoda herdico 439 Fotomontagem e folograma 441 Fotografia atual 442 432 Mapa: 0 mundo 446 Quadro sindtico IV 448. Glossario 453 grafia complementar 457 Indice remissivo 462 Créditos das ilustragdes 475, Introducaéo Imaginagao ‘Todos nés sonhamos. Sonhar é uma das formas de atividade de nossa imaginacao. Imaginar sig~ nifica simplesmente formar uma imagem — um. quadro — em nossa mente. Os seres humanos nao sao as tinicas criaturas dotadas de imagi- nagao. Até mesmo os animais sonham. No en- tanto, é claro que existe uma profunda diferenca entre a imaginacao humana ¢ a dos animais. So- mente os homens sao capazes de comunicar et tre si o contetido de sua imaginacao, através de relatos orais ou criagao de imagens. 4 muitas formas diferentes de ativar nos imaginacao. Quando estamos doentes e acama- dos, sem nada para fazer, uma simples fenda no teto, na qual concentramos nosso olhar, pode comegar a adquirir a forma de uma arvore ou de um animal. Nossa imaginacao acrescenta os tracos que antes nao se encontravam ali. O mes ‘mo acontece com uma mancha de tinta (fig. 1) que nos faz lembrar de outras coisas, embora tenha sido feita por acaso. Os psicologos sabem disso e criaram testes com manchas de tinta para descobrirem como funciona nossa mente, id que cada um de nds, dependendo do tipo de pessoa, vé uma imagem diferente na me ma mancha. A imaginacao é uma das facet riosas da humanidade. Pode ser vista como 0 elo de ligagao entre © consciente ¢ 0 subcons ciente, onde se dé a maior parte de nossa ativi dade cerebral. E, por assim dizer, a cola que mantém unidos a personalidade, o intelecto ¢ a espiritualidade do homem. Por ser suscetivel Ge reagir aos trés, a imaginagao atua segundo formas sistematicas, embora varidveis, que sao determinadas pela psique e pela mente. A imaginagdo ¢ importante porque nos dé condigoes de conceber todos os tipos de possi- bilidades futuras e compreender 0 passado de um modo realmente valioso para a sobrevivén- cia. E uma parte fundamental de nosso modo de ser. A capacidade de produzir arte, entre- tanto, deve ter sido adquirida ha relativamente pouco tempo, no curso da evolucao, Nao temos acesso ao registro das formas mais primitivas daarte criada pelo homem. Ha aproximadamen te dois milhdes de anos, o homem vive na Ter- ra, mas a arte pré-historica mais antiga de que temos conhecimento foi criada ha somente cer ca de vinte e cinco mil anos, embora tenha sido, sem duivida, a culminagao de um longo proceso de evolucao a cujas origens somos in- capazes de remontar. Até mesmo a arte etno- grafica mais “primitiva” representa um estagio tardio de desenvolvimento no interior de uma sociedade estavel, Quem eram os primeiros artistas? Com toda probabilidade, eram os xamas. Como o lend: rio Orfeu, acreditava-se que eles tivessem uma capacidade divina de inspiracao, podendo de: cer as profundezas do subconsciente através do transe €, ao contrario dos simples mortais, re- tomar em seguida 20 mundo dos vivos. Com sua capacidade exclusiva de penetrar 0 desconhe- cido e com seu talento excepcional para expres- silo através da arte, 0 xama adquiriu 0 con- trole sobre as forcas ocultas da natureza e do bomem. Mesmo hoje, o artista continua sendo um magico cuja obra ¢ capaz de nos seduzir e emocionar — fato embaracoso para 0 homem civilizado, que nao renuncia facilmente a sua ve- neracéo pelo controle racional Arte e significado O que 6a arte? Por que o homem a cria? Pou- cas perguntas sao capazes de provocar um i bate tio caloroso e resultar em tio poucas respostas satisfat6rias. Mas se nao conseguimos chegar a uma conclusio definitiva, hd, no en- tanto, muitas coisas que podemos dizer. Certa- mente, uma das razdes pelas quais 0 homem cria € um impulso irresistivel de reestruturar a si proprio e ao seu meio ambiente de uma for- ma ideal, A arte representa a compreensao mais profunda e as mais altas aspiracoes de seu cria- dor; ao mesmo tempo, o artista muitas vezes tem a importante funcao de articulador de cren- gas comuns. Eis por que uma grande obra con- tribui para nossa visio de mundo e nos deixa profundamente emocionados. Uma obra-prima tem esse efeito sobre muitas pessoas. Em ou- 1. Mancha de tinta sobre papel dobrado tras palavras, ela 6 capaz de suportar a andilise mais minuciosa e resistir ao teste do tempo A arte nos dé a possibilidade de comunicar a concepgdo que temos das coisas através de procedimentos que nao podem ser expressos de outra forma. Na verdade, uma imagem vale por mil palavras nao apenas por seu valor descriti- vo, mas também por sua significagao simbélica Na arte, assim como na linguagem, 0 homem 6 sobretucio um inventor de simbolos que trans- mitem idéias complexas sob formas novas. ' mos de pensar na arte nao em termos de prosa do cotidiano, mas como poesia, que é livre pa- ra reestruturar 0 vocabuldrio e a sintaxe con- vencionais, a fim de expressar significados estados mentais novos, muitas vezes multiple Da mesma forma, uma pintura sugere muito mais do que afirma. E, como no poema, o valor da arte encontra-se igualmente naquilo que ela diz, e como o diz. Mas qual é o significado da arte? O que ela tenta dizer? Os artistas em ge- ral nao nos dao uma explicacao clara, uma vez que a obra 6 a propria afirmacao. Se fossem capazes de dé-la em forma de palavras, entao seriam escritores. A arte tem sido consi ada um didlogo vi- sual, pois expressa a imaginacao de seu cri dor tao claramente como se ele estivesse falando conosco, embora o objeto e1 seja. mudo. Até mesmo as declaracées mais pessoais dos artistas podem ser compreendidas de al guma forma, ainda que apenas a nivel intui- tivo. No entanto, a existéncia de um didlogo pressupde a nossa participaco ativa. Se n&o podemos, literalmente, falar com uma obra de arte, podemos pelo menos aprender a reagir a ela. O processo é semelhante ao aprendi- zado de uma lingua estrangeira. Precisamos aprender 0 estilo e a forma de ver as coisa de um pais, de um period e de um artista, caso queiramos compreender adequadamente a obra. A apreciagao estética € condicionada apenas pela cultura, que é tao diversificada que se torna impossivel reduzir a arte a qual- quer conjunto de preceitos. Pode parecer, por- tanto, que as qualidades absolutas da arte sto enganosas ¢ que nao podemos deixar de obser- var as obras de arte no contexto do tempo € das circunst jas. E, de fato, de que outra maneira isso poderia ser, se a arte ainda est sendo criada a nossa volta, abrindo nossos olhos quase que diariamente para novas experiéncias e forgando-nos, assim, a reformular nosso mo- do de ver? 8 awtronucio Criatividade O que significa para nés 0 fazer? Se, para sim- plificarmos 0 nosso problema, concentréssemo- rnos nas artes visuais, poderiamos dizer que uma obra de arte deve ser algo tangivel e configu- rado por mos humanas. Vejamos agora a sur- preendente Cabeca de Touro, de Picasso (fig. 2), que consiste apenas no assento e guidao de uma velha bicicleta. Nesse caso, que significado tem nossa férmula? Naturalmente, os materiais uti- lizados por Picasso foram feitos pelo homem, mas, 0 assento € o guidao em si mesmos, nao constituem uma obra de arte, Ao mesmo tempo em que sentimos um certo choque ao identiti- carmos os componentes desse trocadilho visual, também nos damos conta de que agrupé-los as- sim, de forma tinica e original, foi uma proeza de génio, e nao podemos negar que certamen- te se trata de uma obra de arte, No entanto, 0 trabalho manual — a montagem do assento so- bre 0 guidao — ¢ ridiculamente simples. O que std muito longe de ser simples 6 0 salto de ima- xinagao dado por Picasso ao reconhecer uma cabeca de touro naqueles objetos que em nada a faziam lembrar; sentimos que apenas ele po- Geria ter tido tal idéia. E claro que precisamos ter 0 cuidado de nao confundir a criacao de uma 2. Pablo Picasso. Cabuga de Touro, 1843, Guidio em bronze moldado e assento de uma bicioleta, aleura: 0,41 m, Galeria Louise Leinis, Paris obra de arte com habilidade ou pericia manuais. Mesmo 0 objeto mais esmerado nao merece a designacao de obra de arte, a ndo ser que en- volva um salto imaginative. ‘Mas se isso é verdade, nao seremos forcados a conchuir que a criacao real de uma obra de arte ocorre na mente do artista? Nao, também nao é assim. Sem a realizacao da idéia na prtica nao haveria nenhuma obra de arte. Além do mais, 0 préprio artista nao sentiria a satisfacao de ter criado algo se apenas o fizesse com base em seu salto de imaginacao, e nao teria nunca a certeza da eficdcia da obra se nao a realizas- se na pratica. Assim, as maos do artista, por mais modesta que seja a tarefa que devam executar, so par- te essencial do processo criativo, Nossa Cabe- ea de Touro &, sem diivida, um caso idealmente simples, que envolve apenas um salto de ima- ginacao e um tnico exercicio manual em res- posta aquele. O salto de imaginagao é, as vezes, um lampejo de inspiracao, mas s6 muito raramente uma nova idéia surge plenamente de- senvolvida, como Atena da cabeca de Zeus, Pe- Jo contrario, em geral, € precedida por um longo periodo de gestacao, no qual todo o trabalho mais dificil € feito sem a descoberta da chave para a solugao do problema. Ao atingir 0 ponto ritico, a imaginacao estabelece relacdes entre partes aparentemente desconexas ¢ em sestui- da as recombina. 0 processo criativo consiste ‘numa longa série de saltos imaginativos por par- te do artista e de suas tentativas de dar-lhes forma, modelando 0 material de acordo com suas intengdes. Assim, ele gradualmente faz nascer sua obra através de uma definicao cada vex maior da imagem, até que finalmente toda ela adquira uma forma visivel. Nossa metafora do nascimento esta mais pré- xima da verdade do que estaria uma descri¢ao do processo em termos de uma transferéncia ou projecdo da imagem a partir da mente do artis- ta, pois a criagdo de uma obra de arte é tao ale- gre quanto dolorosa, cheia de surpresas, e de forma alguma mecanica. Além do mais, hd int- meras evidéncias de que 0 proprio artista ten- de @ considerar sua criagao como uma coisa viva, Talvez seja esse 0 motivo pelo qual a cria- tividade tenha sido outrora considerada um con- ceito reservado a Deus, uma vez que somente Ele seria capaz de dar forma material a uma idéia, De fato, o trabalho do artista aproxima- se muito da Criagdo como é descrita pela Biblia como foi, mais tarde, expressa com tanta elo- qiiéncia por Michelangelo, que descreveu a an- gtistia e a gloria da experiencia criativa quando se referiu a “libertar a figura do mérmore que a aprisiona’ Sbvio que a criacao de uma obra de arte tem, pouco em comum com aquilo que normalmen- te queremos dizer quando usamos a palavra “fa- zer”. Trata-se de um empreendimento estranho e arriscado, em que o criador nunca sabe mui to bem o que est fazendo até que o tenha real- mente feito; ou, para dizé-lo de outro modo, & um jogo de buscas e descobertas em que aque- le que busca nao sabe muito bem o que esta procurando, até que finalmente o descubra. En- quanto o artifice sempre tenta fazer aquilo que sabe ser possivel, o artista esta sempre tenta- do a pretender o impossivel — ou, pelo menos, 0 improvavel ou inimaginavel. Nao € de se ad- mirar que a forma de trabalho do artista seja ta0 rebelde a quaisquer regras estabelecidas, enquanto a atividade do artifice incentiva a pa dronizacao e a regularidade. Reconhecemos essa diferenga quando nos referimos ao artista dizendo que ele esta oriando algo e nao simples mente fazende algo, impulso de penetrar territérios desconhe- cidos e realizar alguma coisa de original pode ser sentido por todos nés algumas vezes. O que torna um verdadeiro artista um ser diferente das pessoas comuns nao tanto o desejo de procurar, mas sim aquela misteriosa capacida~ de de encontrar, a que damos o nome de talen- to, Também a chamamos de “dom”, querendo com isso dizer que se trata dle uma espécie de presente de algum poder superior, ou falamos em “génio”, um termo que originalmente que- ria dizer que um poder superior — uma espé cie de “bom deménio” — habita o corpo do artista e atua através dele. Tudo 0 que pode- mos realmente dizer sobre 0 talento & que ele nao deve ser confundido com aptidao. Aptidao € aquilo de que o artifice necesita; significa uma habilidade acima da média em fazer algo que qualquer pessoa pode fazer. Uma aptidao Galgo razoavelmente constante ¢ especifico; po- de ser medida com algum sucesso através de testes que nos possibilitem fazer uma previsao do desempenho futuro. Por outro lado, o talen- to criador parece ser profundamente imprevi- sivel; s6 conseguimos detecta-lo com base em irropugio 9 um desempenho passado, € mesmo assim nfo poderemos tera certeza de que um determinado artista continuara produzindo no mesmo nivel de suas obras anteriores. Originalidade A originalidade, portanto, & aquilo que cistin- gue aarte da destreza. Infelizmente, é também de definigdo bastante diffeil; os sinénimos co- muns — unicidade, novidade, ineditismo — nao nos ajudam muito, € os diciondrios dizem-nos apenas que uma obra original nao deve ser uma copia. Assim, se quisermos avaliar as obras de arte segundo uma “‘escala de originalidade”, nosso problema nao sera decidir se determina- im estabelecer da obra € ou nao original, mas exatamente quo original ela 6. Cada obra de arte ocupa seu préprio lugar especifico no espectro caquilo a que damos 0 nome de tradigao. Sem a tradigao — a pala. vra significa “‘aquilo que nos foi legado” —, nenhuma originalidade seria possivel; ela nos propicia, por assim dizer, uma plataforma s6li da e segura a partir da qual o artista dé 0 sew salto de imaginacao. O local em que ele cai se torna entao uma parte da teia, ¢ serve de ponto de partida para saltos posteriores. Para nos, também, a teia da tradicao ¢ igualmente essen. cial. Estejamos ou nao conscientes dela, a tra- digao é a estrutura dentro da qual forja nossa opiniao sobre as obras de arte ¢ avalia mos seu grau de originalidade Preferéncias ¢ aversées Decidir o que é arte ¢ avaliar uma obra de arte sao dois problemas distintos; se tivéssemos um método infalivel para determinar-o que arte @ 0 que nao é, isso nao nos capacitaria ne- cessariamente a avaliar a qualidade. Ha muito tempo estabeleceurse entre as pessoas 0 hé- bito de fundir os dois problemas em um; em geral, quando perguntam “Por que aquilo é arte?”, estao querendo dizer: “Por que aquilo 6 arte de boa qualidade?” Uma vez que os es: pecialistas nao determinam regras exatas, 0 eigo em geral recorre a tiltima instancia de suas defesas: “Bem, nao sei nada sobre arte, mas sei do que gosto” se lugar comum é um grande obstaeulo no caminho da compreensio entre o especialista LO iNrRonecao © o leigo. Existirao realmente pessoas que na- da sabem sobre arte? Se excetuarmos as crian- cas pequenas e as pessoas vitimas de grav doencas ou deficiéncias mentais, nossa respos- ta sera negativa, pois ¢ impossivel deixar de sa- ber alguma coisa sobre arte. A arte é parte tao integrante da tessitura da vida humana que nos deparamos com ela o tempo todo, mesmo que nossos contatos com ela se limitem ao mais. baixo denominador comum do gosto popular Mesmo assim, trata-se de algum tipo de arte; ¢ como se trata da tinica forma de arte conhe- cida pela maior parte das pessoas, ¢ 0 que configura suas idéias sobre arte em geral. Quan- do dizem “Sei do que gosto”, querem realmente dizer “Gosto daquilo que conheco (¢ rejeito tudo 0 que nao se assemelhe as coisas com as quais estou familiarizado)"; na verdade, fais preferéncias nao sao absolutamente suas, ‘mas foram-Ihes impostas pelo habito e pelas cir- cunstaneias, sem qualquer eseolha pessoal, Gos. tar daquilo que conhecemos e desconfiar do que nao conhecemos é uma das mais antig: caracteristicas humanas. Mas por que tantos de nos deverfamos acalentar a ilusao de ter fei- to uma escolha pessoal quanto as nossas prefe- rencias em arte, quando na verdade ndo a fizemos? Ha aqui um outro pressuposto tacito, que é mais ou menos o seguinte: “Uma vez que 2arte é um assunto tA0 ‘dificil de se dominar’ que até mesmo os especialistas discordam entre si, minha opiniao € tao boa quanto a deles — € tudo uma questao de preferéncia subjetiva. De fato, deve existir algo de errado com uma obra de arte, jd que sua apreciagao necesita de um especialista”. Esse, também, € um falso pressuposto, Para saber por que, precisamos refletir sobre a razao pela qual o artista cria ~ e para quem. Auto-expressao e ptiblico Toda arte envolve a auto-expressio. A maioria de nds esta familiarizada com 0 famoso mito rego do escultor Pigmaledo, que esculpiu uma estatua tao bela da ninfa Galatéia que se apai- xonou por ela e abragoua quando Venus deu vida a sua escultura. Recentemente, John de Andrea (fig. 3) deu ao mito uma nova interpre- tacao que, através da troca de papéis, muito nos diz.a respeito da criatividade. Agora 6 0 artista que, imerso em seus pensamentos, esta indife- rente ao olhar fixo da estdtwa, Bla baseiasse obviamente num modelo real € nao numa con- cepgao idealizada, estanda ainda em processo de “adquirir vida’, uma vez que o artista ainda nao terminou de pintar suas pernas brancas, A ilusao € tao convincente que nos perguntamos qual figura é real e qual est4 sonhando com a outra, o artista ou a escultura? De Andrea faz- nos perceber que, para o artista, 0 ato criativo 6 um trabalho de amor que faz com que a arte adquira vida. Mas nao poderemos também dizer que 6 a obra de arte que da vida ao artista? O nas- cimento de uma obra de arte é uma experién- cia intensamente pessoal e, no entanto, deve ser compartilhado pelo piiblico, num estagio final, para que possa ser bem-sucedido. O ar- tista nao cria simplesmente para sua prépria tisfagao, mas deseja que sua obra seja apro- vada pelos outros. De fato, a esperanca de apro- vacio pode ser aquilo que, primeiramente, 0 leva a criar, ¢ 0 proceso criativo nao estara completo enquanto a obra nao houver encontra- do um pubblico. Afinal, as obras de arte existem mais para que se goste delas do que para se- rem objeto de discussdes, Talvez possamos resolver esse paradoxo s compreendermos 0 que o artista entende por “publico”, Ele nao se preacupa com o piblico como uma entidade estatica, mas com 0 seu pu- blico especifieo; para ele, a qualidade é muito mais importante do que a quantidade. O publi- co que ocupa e inquieta a mente do artista é um piiblico restrito e especial, e nao 0 piiblico em geral: 0 mérito da obra de um artista nunca po- derd ser determinado por um concurso de po- pularidade. A qualifi membros daquele pablico po: suem em comum, € um amor muito bem informado pelas obras de arte — uma atitude ao mesmo tempo discri- minatéria e entusidstica que confere ao seu jul- gamiento um peso especial. Para dizélo em uma palavra, Sao especiatistas, pessoas cuja autori- dade encontra-se na experiéncia, mais do que nos conhecimentos tedricos A minoria ativa 4 qual demos o nome de ptt blico essencial do artista vai buscar seus recru- tas num ptiblico secundario muito maior e mais passivo, cujo contato com as obras de arte é me- nos direto e continuo. Esse grupo, por sua vez, dilui-se no imenso muimero daqueles que acre- ditam que ‘‘nada sabem sobre arte”, os leigos se Modelo. 1980. Polivi Andeea. O Art pura e simplesmente. O que distingue o leigo, como jé vimos anteriormente, nao é que ele ja realmente puro e simples, mas sim o fato de ele gostar de pensar em si préprio como sen do assim. Na realidade, nao existe nenhuma separacao nitida, nenhuma diferenca de carac- teres distintivos entre ele e o especialista, mas apenas uma diferenca de grau. O caminho que leva a especializacao nao exclui ninguém que tenha uma mente aberta e capacidade para ab- experiéncias. A medida que per sorver now: icromado sobre dleo; tamanho natural. Colegao Foster corrermos © aument descobriremos que passamos a gostar de mu to mais coisas do que havfamos julgado poss vel inicialmente. Ao mesmo tempo, entretanto, iremos gradualmente adquirindo a coragem de nossas préprias conviccdes, até que — se for mos suficientemente longe nesse caminho aprenderemos a fazer escolhas individuais 8 nificativas entre as obras de arte. Seremo to capazes de afirmar, com alguma justiga, que mos aguilo de que gostamos Tr a nossa compreensio, conhect PRIMEIRA PARTE Como a arte comecou A arte magica dos homens das cavernas e dos povos primitivos O PALEOLITICO Quando 6 homem comecou a criar obras de ar te? Com o que elas se pareciam? O que o induziu ? Toda historia da arte deve principiar por essas perguntas — e pela confissao de que nao somos, de respondé-as. Nossos mais primitivos ancestrais comecaram a andar na ‘Ter- 1a, sobre dois pés, ha cerca de dois milhoes de anos, mas s6 por volta de seiscentos mil anos mais tarde é que encontramos os primeiros indi- ios do homem como fabricante de utensilios, Ele deve ter usado utensflios durante todo esse tem- po, pois faz parte do comportamento dos simios utilizar-se de uma vara para derrubar uma bana- na, ou de uma peda para arremessé-la contra seus inimigos. A fabyicacao de utensitios € uma questao mais complexa. Antes de mais nada, ge a capacidade de pensar em varas ou pedras como “apanhadores de fruta: mi “‘trituradores de ossos"’, mesmo nas ocasides em que ndo so is para tais objetivos. Ao tornar-se ca- a forma, 0 homem descobriu que ‘aras € pedras tinham uma forma mais conyeniente que outras, ¢ guardou-as para serem usadas futuramente — ele as “classificou” como utensilios, pois havia comecado a associar forma e fancdo, Algumas dessas pedras sobreviveram; trata-se de grandes seixos ou fragmentos de ro- cha que trazem as marcas de um uso repetico para a mesma operacao, qualquer que tenha sido ela. O passo seguinte dado pelo homem foi ten- tar desbastar es islios com fim espect co, de modo a aperfeicoar a sua forma. Essa é a habilidade mais antiga de que temos conheci- ‘mento, € com ela passamos para uma fase da evo- lucdo humana conhecida como Paleolitico Arte das cavernas E nos tiltimos estagios do Paleolitico, que teve inicio ha cerca de trinta e cinco mil anos, que en- contramos as primeiras obras de arte conhecidas. , no entanto, jé revelam uma seguranga e re- squer origens mo- destas; devem ter sido precedidas por milhares de anos de lento desenvolvimento, sobre os quais desconhecemos absolutamente tudo. A época, a Ultima Era Glacial aproximava-se de seu final na Europa, ¢ o clima entre os Alpes e a Escandina- via assemelhava-se a0 clima atual do Alasca. Renas e outros grandes herbivoros vagavam, pe- las planicies e vales, acossados pelos ancestrais dos ledes e tigres atuiais — e por nossos préprios ancestrais. Esses homens viviam em eavernas ou abrigavam-se sob rochas grandes e salientes. Muitos desses locais foram descobertos, ¢ os eru- ditos dividiram os “homens das cavernas” em va ios grupos, dando a cada um deles um nome de acordo com um local caracteristico. Entre eles os aurinhacenses e madalenianos sobre como artistas especialmente talentosos. As obras mais surpreendentes do Paleolitico sao as imagens de animais pintadas nas super- ficies rochosas das cavernas, como as da caver- na de Lascaux, na regido francesa de Dordogne (lig. 4). Bisdes, veados, cavalos e bois esto pro- fusamente representados nas paredes € tetos, onde parecem movimentar-se com rapidez; al guns f€m apenas um contorno em negro e outre esto pintados com cores brilhantes, mas todos revelam @ mesma sensagio fantéstica de vida. Mais impressionante ainda € 0 Bisdo Ferido, no teto da caverna de Altamira, no norte da Espa- nha (lig. 5): 0 animal prestes a morver esta cafdo, mas mesmo nessa situagdo de desamparo sua postura, com a cabeca abaixada, € de autodefe- sa. O que nos fascina nao é apenas 0 agudo sen- so de observagao, os tracos Seguros € vigorosos, © sombreado sutilmente controlado que confere volume ¢ integridade as formas; o que talvez exis ta de mais fascinante nessa pintura seja a forca ¢ a dignidade do animal nos diltimos estertores de sua agonia Como se desenvolveu essa arte? A quais obje- tivos atendia? E como sobreviveu intacta por tan- tos milhares de anos? A tiltima pergunta pode ser facilmente respondida: as. pinturas raramente omnes 4. Friso de Animais (pintura roural), .18,000-10.000 encontram-se préximas 4 entrada das cavernas, ‘onde poderiam ser vistas (e destruidas) com facilidade, mas sim em seus recessos mais es curos, tao afastadas da entrada quanto possivel Ocultas como esto, nas entranhas da Terra, essas imagens devem ter-se prestado a um obje- tivo muito mais sério do que a simples decora cdo. Na verdade quase no ha dtivida de que faziam parte de um ritual magico cujo propdsito era o de assegurar uma caga bem-sucedida. Che: 5. Bisdo Peni (pintura rupestre). ¢ CC. Caverna de Lascaus (Dordogne), F gamos a essa conclusio nao apenas devido & sua localizacao secret tragos representande langas ou dardos que apontam para os animais, mas tam- bém devido a forma desordenada com que as imagens estao dispostas, umas sobre as outras (como na fig. 4). Aparentemente, para os homens do Paleolitico nao havia uma distin¢ao muito n: tida entre imagem e realidade; ao retratarem um animal, pretendiam fazer com que ele fosse tam: bém trazido ao seu alcance, ¢ ao “'matar 15.000-10.000 a.C, Altamira, Espanta 16 como a aRre comrcou imagem julgavam ter matado 0 espirito vital do animal. Conseqiientemente, cada imagem s6 ser- via para uma vez — apés a realizacdo do ritual de morte, ela estava “morta” e podia ser despre- zada. Podemos ter certeza de que a magia tam- bem funcionava. E provavel que os cacadores caja coragem havia sido assim fortalecida tives- sm mais sucesso em matar essas feras enormes com suas armas primitivas. Nem mesmo atual- mente perdev-se a base emocional desse tipo de magia; sabe-se que ha pessoas que rasgam a foto de alguém que passaram a odiar. Mesmo assim, ainda existem muitas coisas que nos deixam confusos no que diz respeito as pin- turas das cavernas. Por que esto localizadas em. lugares tao inacessiveis? E por que transmitem uma sensa¢zio t2#0 maravithosa de vida? O ato ma- gico de “matar” nao poderia ter sido praticado ‘com a mesma eficdcia em imagens menos realis- s? Talvez as pinturas madalenianas das caver- nas sejam a fase final de um desenvolvimento que comecou como simples magia para matar, mas «que mudou de significado quando os animais co- megaram a escassear (aparentemente, as gran- des manadas dirigiram-se para o norte quando clima da Europa Central ficou mais quente). Se foi assim, o objetivo principal das pinturas de Las- caux e Altamira pode nao ter sido o de “matar”, ‘mas sim o de “eriar” animais — aumentar o sen niimero, Sera que os madalenianos tinham que praticar sua magia propiciatdria de fertilidade nas entranhas da Terra por pensarem que ela fosse uma coisa viva de cujo titero surgem todas tras formas de vida? Isso ajudaria a explicar 0 admiravel realismo dessas imagens, pois um ar- tista que acredita estar realmente “criando” um animal tem maiores prohabilidades de latar por essa qualidade do que outro que simplesmente produzisse uma imagem para ser morta. Algu- mas das pinturas das cayernas dao-nos até mes- 0 da origem dessa magia de fertlidade: a forma de um animal freqtientemente parece ter sido sugerida pela formacao natural da rocha, de forma que seu corpo coincida com uma saliéncia on que seu contorno siga um veio ou fen- da, Um cacador da Idade da Pedra, com a men- te repleta de pensamentos sobre as grandes, cagadas das quais dependia para sobreviver, mu to provavelmente reconheceria tas animais en- tre as superficies rochosas de sua caverna € atribuiria um profundo significado sua desco- berta. E tentador pensar que aqueles particular- mente bons em descobrir tais imagens adqui- rissem um status especial de magos-artistas ¢ fossem autorizados a aperieigoar sua caca ima- gindria, em vez de terem que enirentar os peri os de uma cacada verdadeira, até que finalmente aprendessem a criar imagens com pouco ou ne- nhum auxilio das formagdes casuals, Objetos Além da arte das cavernas feita em grandes pro- porgoes, os homens do Paleolitico também cria yam pequenas esculturas do tamanho de uma mio, utilizando-se de osso, chifre ou pedra cor tados com talhadeiras rudimentares. Essas escul- turas também parecem dever sua origem a semelhaneas casuais. Num estigio mais primiti- vo, os homens do Paleolitico tinham se alegrado 0 coletarem seixos em cujo formato natural viam uma qualidade representacional “mdgica”, as >pecas mais minuciosamente trabalhadas dos tem- pos posteriores ainda refletem essa atitude. Assim, a chamada Venus de Willendorf na Aus- tria (fig, 6), uma das intimeras estatuetas da fer 6. Venus de Wilendors. ©. 15,000-10.00% a.C. Pedra, altura O12 m, Museu de Hist6ria Natural, Viena A ARTE MAGICA DOS HOMENS DAS CAVERNAS E DOS POVOS PRIMITIVOS. 17 tilidade, tem uma forma arredondada ¢ ‘bulbiforme que pode sugerir um “seixo sagrado’ oval. O NEOL{TICO Na Europa, a arte do Paleolitico assinala a mais, alta realizagao de um modo de vida incapaz de sobreviver para além das condigdes especiais cria~ das pelos deslizamentos de gelo da Era Glacial que estava chegando ao fim. Aproximadamente entre 10.000 e 5.000 , a Era Paleolitica che- ‘gou ao fim quando as homens fizeram suas pri- meiras e bem-sucedidas tentativas de domesticar s — um dos passos ver dadeiramente revoluciondrios da histéria huma- nna, mesmo que a revolucao tenha se estendido por muitos milhares de anos. 0 homem do Pa- leolitico havia levado a vida nomade de um c cador © coletor de alimentos, fazendo suas colheitas onde a natureza semeava, ficando, des- sa forma, & mereé de forgas que ele nae era ca: paz de compreender nem de controlar. Tendo aprendido a garantir sua provisie de alimentos através de seus prdprios esforoos, os homens esta- beleceram-se em comunidades permanentes nas fas; uma nova ordem e disciplina passaram a fazer parte de suas vidas. Hé, entio, uma dife renca basica entre 0 Paleolitico e o Neolitico, em: bora o homem ainda dependesse da pedra como ‘ material de seus principais utensilios e armas A nova forma de vida deu origem a um grande ntimero de habilidades e invencdes, muito antes 8.0 Grande Ciroulo. Stonehenge, Inglaterra onehenge. c. 1800-1400 a.C. Didmetro do circulo: 13 my; altura das pedras acima do solo: 4,11 m. Plan de Salishury, Wiltshire, Inglaterra do surgimento dos metais: a cerdmica, a tecela: gem e a fiacao, métodos basicos de construgao arquiteténica. Sabemos tudo isso a partir dos po- voacios do Neolitico que foram revelados por es: cavacdes. Esses remanescentes, contudo, em geral dizem-nos muito pouco acerca das condi: ‘ces espirituais dos homens do Neolitico; incluem, artefatos de pedra de um requinte técnico cada ver maior, ¢ uma grande variedade de recipien: tes de argila decorados com desenhos ornamen: tais abstratos, mas quase nada que se compare arte do Paleolitico. Mesmo assim, a importan- te passagem da caca para a agricultura de sub- sisténcia deve ter dado origem a profundas 18. como a ARTE CoMEGOU alteragdes na maneira do homem ver-se a si pr prio e ao mundo, e parece dificil acreditar que nao encontrassem uma forma de expresso na ar- te. Deveria haver, aqui, um enorme capitulo so- bre 0 desenvolvimento da arte que, no entanto, se perdeu, simplesmente por que os artistas do Neolitico trabalhavam com madeira e outros ma- teriais pereciveis Uma excecao a essa regra geral é 0 grande circulo de pedra em Stonehenge, no sul da In- glaterra (figs. 7 € 8), 0 mais bem preservado den- tre varios monumentos megaliticos ou “de grandes pedras”. Seu objetivo era religioso; apa- rentemente, 0 esforgo continuo necessdrio para construélo s6 poderia ter sido mantido pela fé — uma fé que, quase literalmente, exigia que se movessem montanhas. A estrutura inteira é vol- tada para o ponto exato em que o Sol se levanta no dia mais longo do ano, o que leva a crer que deve ter-se prestado a um ritual de adoracao do Sol. Mesmo atualmente, Stonehenge tem carac: teristicas majestosas e sobre-humanas, como se fosse obra de uma raca esquecica de gigantes. Se devemos ou nao chamar um monumento co- mo esse de arquitetura, é uma questa de defini- cao: temos a tendéncia de pensar a arquitetura em termos de interiores fechados e, no entanto, temos, também, arquitetos paisagistas que pro- jetam parques e jardins; nem poderiamos negar aos teatros de arena ou estadios o status de ar- quitetura. Talvez devéssemos consultar os gre- gos antigos que criaram a palavra. Para eles, ‘arqui-tetura” significava algo mais alto que a “tetura”” convencional (isto é, “construgdo” ou “edlficagdo”), uma estrutura diferenciaca daquela de tipo exclusivamente pratico e cotidiano, em termos de escala, ordem, permanéncia ou sun tuosidade de propésitos. Um grego certamente chamaria Stonehenge de arquitetura. E para nés, também, nao sera dificil fazer 0 mesmo, se com- preendermos que, para definir ou articular o es pago, nao é necessario fechd-lo. Se a arquitetura € “a arte de adaptar o espaco as necessidades € aspiragdes humanas”, ento Stonehenge faz mais, do que preencher esses requisites. ARTE PRIMITIVA Existem apenas alguns grupos humanos para os quais 0 Paleolitico perdurou até os dias atuais. Os modemos sobreviventes do Neolitico séo mui- to mais faceis de encontrar. Incluem todas as cha- madas sociedades primitivas da Africa tropical, das Américas e do Pacifico Sul. “Primitivo” uma palavra infeliz, pois sugere — muito errada- mente — que essas sociedades representam 0 estado original da humanidade, o que a fez ficar sobrecarregada por todos os tipos possiveis de inferencias emocionais. Mesmo assim, nao exis: te outra palavra melhor. A arte primitiva, apesar de sua ilimitada variedade, compartilha um tra- 0 dominante: a reestruturagio imaginativa das formas da natureza, em vez de observacao cui- dadosa. Sua preocupacio nao € com o mundo visivel, mas com 0 mundo invisfvel e inquietante dos espiritos. Para a mente primitiva, todas as coisas s20 animadas por espiritos poderosos — ‘0s homens, os animais, as plantas, a terra, 0s rios e lagos, a chuva, o vento, o Sol e a Lua. Todos esses espiritos tinham que ser apaziguados, e c bia a arte propiciar-Ihes as moradias adequada “aprisionando-os” dessa forma. Uma dessas ar- madilhas é a espléndida e antiqtifssima figura da Nova Guiné (fig. 9); essa figura faz parte de uma grande classe de objetos parecidos, sendo que tal- vez uma das caracterfsticas mais persistentes da sociedade primitiva seja a adoracao dos ance trais. A parte mais importante de suas formas & a cabeca, com seus ollios em forma de concha, de olhar fixo e intenso, a0 passo que 0 corpo — como em toda arte primitiva em geral — foi re- duzido a um mero apoio. O passaro que surge por tras da cabega representa 0 espitito ou a forca vital do antepassado. O movimento de quem es tivesse presies a voar, em contraste com a rigi- dez da figura humana, constitui uma imagem de grande forga — ¢ estranhamente familiar, pois nossa tradi¢ao também inclui 0 “passaro da al ma”, da pomba do Espirito Santo ao albatroz do Velho Marinheiro, de modo que nos descobrimos reagindo a uma obra de arte que, & primeira vis- ta, tanto parece enigmética quanto divergente de tudo que conhecemos. Mi Ao lidar com 0 mundo dos espiritos, 0 homem primitivo nao se satisfazia apenas com os rituais ‘ou oferendas diante dos objetos com os quais “capturava” os seus espiritos. Precisava repre- sentar suas relacoes com 0 mundo dos espiritos através de dancas e ceriménias dramaticas seme- Ihantes, nas quais ele préprio podia assumir tem- porariamente o papel de armadilha do espirito, aras © vestudrio A ARTE MAGICA DOS gera Mescutina com sm Pasar, Rio Sepik, Nova Guiné, Século XICXX. Ma Arte da Universidade Washington, Se. Loui disfarcando-se com mascaras e vestes de confec- 40 elaborada. Nem mesmo atualmente desapa recett 0 fascinio exercido pelas mascaras; ainda sentimos a emogao de uma troca de identidade quando usamos uma delas no dia das bruxas ou OMENS DAS CAVERNAS E DOS POVOS PRIMITIVOS 19 jeira, altura: 1,22 no carnaval. As mascaras com certeza constituem © capitulo mais fértil da arte primitiva, e também um dos mais enigméticos. Em geral ¢ impossi- vel determinar seu significado, uma vez que as cerimonias as quais normalmente se prestavam 20. como a ARTE coneot 10, Mascara d XIXXX, Mace ul Mascara da Século XIX-XX. Case Nac nal de Ant polo m, Muses Rie 1, Ziq la de Gazelle, Nova Bretanha, altura: 0.45 m, Museu continham elementos sigilosos, cuidadosamente mantidos fora do alcance dos nao-iniciados mnfase sobre o misterioso e o espetacular n3o apenas intensificava 0 impacto emocional do ri- tual, mas também incentivava os criadores de mascaras a esforcarem-se por obter novos efei: tos, de modo que, em geral, as méscaras estao menos ligadas A tradie3o do que outras formas de arte primitiva. O exemplo da figura 10 tra a simetria do desenho, bem ea exatidao do entalhe, caracterfsticos da escul- tura africana. Os tracos da face humana nao fo: 1m reorganizados; foram, por assim dizer, res: truturados, com as imensas sobrancelhas arque- ando-se sobre 0 restante como se fossem uma cobertura de protecio. A solidez dessas formas adquire uma evidencia surpreendente quando 10s omo a preciso observamos os tracos fluidos e assustadores de méiscara da ilha de Nova Bretanha, no Pa- ul (fig. 11), que pretende representar o es- pirito de um animal, mais exatamente um crocodilo. Ainda quimé do sudoeste cifico ais estranha é a mascara es- » Alasca (fig. 12). Os deta Ihes que 0 nao-iniciado € capaz de identificar sao 2. Mascara esquimé do sudoeste do Alasca, Inicio wo XX. Madeira, altura; 0,55 m, Museu do Indi ricano, Fundaczo Heye, Nova ¥ A ARTE MAGICA DOS HOMENS DAS CAVERNAS F DOS POVOS PRIMITIVOS 21 apenas 0 tinico olho e a boca cheia de dentes. No centanto, para aqueles que sabem “ler” essa mon: tagem de formas, trata-se da representacao con: densada de um mito tribal a respeito de um cisne que impele as baleias brane: a cadores. ss en diregi » aos Pintura Comparada 4 escultura, a pintura tem um papel subalterno na sociedade primitiva. Embora bas tante sada para colorir esculturas de madeira ou © corpo humano, mentais complexos, ela $6 ¢ fezes com desenhos orna- nseguiu. se firmar como arte independente sob condicoes excepeio. nais, Assim, as tribos indigenas que habitavam 0 arido sudoeste dos Estados Unidos desenvol ram a arte sem precedentes da pintura em areia (fig. 13). A técnica, que exige uma habill dade consideravel, consiste em derramar rocha ou terra em pé, de perficie lisa de areia jas cores, sobre uma su ‘Apesar (ou talvez por ¢ 13. Pintura ritual sobre areia para uma crianca doen sa) do fato de essas pinturas serem imper- manentes e precisarem ser refeitas a cada nova ocasio, os desenhos sdo rigorosamente tra dicior sao também bastante abstratos, © qualquer desenho de forma fixa que seja inter minavelmente repetido, Podemos comparar as composiges as receitas prescritas pelo “médico”, que supervisiona sua execugdo por parte do pintor, pois as pinturas em areia séo usadas essencialmente nas cerimonias de cura. Nossa ilustracdo atesta muito bem o quanto essas ses- sdes sto plenas de uma grande intensidade emo cional, tanto por parte do ‘‘médico"” quanto do. paciente. Uma uniao — ou mesmo, as vezes, uma jdentidade — tao visceral entre 0 sacerdote, 0 cu- randeiro e o artista podem ser atualmente de dificil compreensio. Mas, para 0 homem pri- mitivo, tentando curvar a natures cessidades através da magia ritual, as goes devem ter parecido aspectos diferentes de um mesmo proceso. E 0 sucesso ou fracasso desse processo era para ele, literalmente, uma questao de vida ou de morte (Navaho), Arizona Arte para os mortos — Egito Com muita freqtiéncia, ouvimos dizer que a his- toria a invengao da escrita, ba cerca de cinco mil anos. ‘Trata-se de um marco conveniente, pois a auséncia de registros escritos certamente constitu uma das diferencas funda mentais entre sociedades historicas e pré-histiri- cas, Obviamente, a pré-histéria foi tudo menos um periodo pobre em eventos: 0 caminho que vai da caca a agricultura de subsisténcia é longo e arduo. O inicio da historia, entao, significa um stibito aumento da velocidace dos eventos, a pas- sagem de uma marcha lenta para uma marcha acelerada. Veremos também que significa uma modificagao quanto aos tipos de eventos. Poderiamos definir a pré-histéria como a fase da eyolugao humana durante a qual o homem, en- quanto espécie, aprendeu a sobreviver num meio ambiente hostil; suas realizacoes eram respostas as ameacas de extincdo fisica. Com a domestica- ao de animais © 0 cultivo de plantas alimenti= cias, ele havia ganho uma batalha decisiva dessa guerra. Mas a revolugao que vai da caca a agri- cultura de subsisténcia colocou-o em um nivel no qual ele podia muito bem ter permanecido inde- finidamente, e em muitas partes do globo 0 ho- mem deu-se por satisfeito em permanecer ali. No entanto, em alguns lugares, 0 equilibrio da so- edade primitiva foi perturbado por uma nova ameaca, criada nao pela natureza, mas pelo pro- prio homem: a competicao pelas terras boas para pastagem entre as tribos de pastores, ou por solo aravel entre as comunidades agricolas. Tal situa- Zo podia ser resolvida de duas formas: a guerra constante entre as tribos podia reduzir a popula- (0, ou1 aS pessoas podiam unir-se em unidades sociais maiores e mais disciplinadas para a reali- zac de esforcos coletivos (tais como a constru- 20 de fortalezas, represas ou canais de inigacao) que nenhuma sociedade tribal precariamente or- ganizada teria sido capaz de realizar. Conflitos dessa espécie surgiram no vale do Nilo, do Tigre e do Eufrates ha cerca de seis mil anos, © a pressao por eles criada foi suficiente para pro- duzir um novo tipo de sociedace, muito mais com- plexa e eficiente do que todas as que existiram 22 anteriormente. Literalmente, essas sociedades fizeram bi 10 apenas deram origem a “grandes homens ¢ grandes feitos”, mas também fizeram com que eles se tormassem memordveis. (Para ser memoravel, um evento deve ser algo mais que “digno de ser lembrado”; deve ocorrer com uma rapidez suficiente, que lhe permita ser apreendido pela memoria do homem. Os fatos préhistéricos cram lentos demais para tanto.) A partir de entao, os homens passaram a viver num mundo novo e dinamico, onde sua capacidade de sobrevivéncia nao era ameacada pelas forcas da natureza, mas pelos conflitos surgidos no scio de uma mesma sociedade ou devidos as rivalidades, entre sociedades diferentes. Esses esforcos para enfrentar seu meio ambiente humano mostraram ser, para 0 homem, uma ameaga muito maior do que a sua luta contra a natureza, A inveneiio da escrita foi uma realizacao in dispensavel, origindria das civilizacdes historicas do Egito e da Mesopotamia. Nao conhecemos as origens de seu desenvolvimento, mas deve ter consumido varias séculos depois que as novas so- ciedades ja haviam superado seu estagio ini A histéria j4 estava em andamento na época em que jd se podia fazer uso da escrita para o regis- tro dos eventos historicos. A civilizagdo egipcia tem sido ha muito tempo eonsiderada a mais rigo- rosamente conservadora de que se tem noticia. Ha alguma verdade nessa concepeao, pois os pa- drdes basicos das instituicdes, crencas e ideais ar- tisticos egincios formaram-se entre 3000 e 2500 a.C. e foram continuamente reatirmados nos dois, mil anos seguintes, de tal forma que toda a arte egipcia, & primeira vista, tende a parecer uni- forme. Na verdade, a arte egipcia oscila entre 0 conservadorismo e a inovagdo, mas nunca é es- tatica. Algumas de suas maiores realizacoes ti veram uma influéncia decisiva sobre a Grécia e Roma. Desse modo, podemos nos sentir ligados ito de cinco mil anos atrés por meio de uma tradicao viva e continua. ‘A historia do Egito divide-se em dinastias de soberanos, de acordo com o antigo costume esp cio, iniciando-se com a Primeira Dinastia, um 1A. 0 Principe Rahn , 2880 aC. Caleério i p, altura: 1,20 Museu Egtpcio, 23 24 como A ARTE coMECOU pouco antes de 3000 a.C. Essa forma de contar © tempo hist6rico exprime simultaneamente o for- te senso de continuidade egipcio e a importancia avassaladora do faraé (rei), que nao era apenas 6 regente supremo, mas também um deus. To- dos os reis afirmam reinar em nome ou pela gra- ga de alguma autoridade sobre-humana (€ isso ‘que os torna superiores aos cheies tribais); 0 fa- rad 0s transcendia a todos — sua realeza nao lhe era delegada de cima, mas era absoluta e divina. Nao sabemos exatamente como os primeiros fa- ads firmaram sua pretensao a divindade, mas sa- bemos que moldaram 0 vale do Nilo num estado eficiente e original e aumentaram sua fertilidade através do controle das inundacdes anuais das Aguas do rio, 0 que foi possivel gracas 4 constru- ao de diques e canais. Atualmente nao existe um tinico remanescen: te dessas obras puiblicas. Nosso conhecimento da civilizagdo egipcia baseia-se quase que inteira- mente nas sepulturas e no seu contetido, ja que restou muito pouco dos antigos palacios e cida- des egipcios. Isso nao ¢ acidental, pois e pulturas foram construidas para durarem para sempre. Todavia, os egipcios nao encaravam a vida nesta terra essencialmente como um cami- ho para @ sepultura; o seu culto dos mortos é um elo de ligacto com © Perfodo Neolftico, mas o significado que the deram era totalmente isen- to daquele medo sombrio dos espiritos dos mor- tos que domina os primitivos cultos dos ancestrais, Pelo contrério, sua atitude era a de que o homem pode obter sua propria felicidade apés 2 morte, equipando sua sepultura como uma especie de réplica sombria de seu ambiente coti- diano para o prazer de seu espfrito, o ha, e asse- gurando que o Aa viesse a ter um corpo para habitar (seu proprio cadaver mumificado ou, co- mo substituto, uma estatua de si prdprio). O ANTIGO IMPERIO Escultura No inicio da historia egipcia existe uma obra de arte que é também um documento histérico: uma paleta de ardésia que celebra a vitéria de Nar- mer, rei do Alto Egito, sobre 0 Baixo Egito, a mais antiga imagem conhecida de um persona- gem historico identificado por seu nome. Essa obra ja apresenta a maior parte dos tracos carac- 15. Palete do Rei Narmer, de Hieracdmpolis. c. 3000 a.€. Ardésia, altura: 0,64 m, Museu Egipcio, Cairo Mas antes de nos ocu- parmos deles, “leiamos” primeiro a cena. O fato de sermos capazes de fazé-lo é outra indicacao. de que deixamos a arte primitiva para trés, pi osignificado do relevo torna-se claro nao apenas devido as indicacdes hierogitficas, mas também através da regularidade racional do desenho. Nar- mer agarrou um inimigo pelo cabelo e esta pres tes a maté-lo com sua clava; outros dois inimigos caidos esto colocados na parte inferior (a pequena forma retangular proxima ao da esquer- da representa uma cidade fortificada). Na parte superior, & direita, vemos uma particuta comple- xa de escrita pictogrdfica: um falcdo sobre uma moita de papiro segura uma corrente presa a uma cabeca humana que “cresce"” a partir do mesmo solo da planta. Na verdade, essa imagem repete a cena principal a nivel simbélico — a cabeca e © papiro representam o Baixo Egito, enquanto o faledo vitorioso é Hérus, 0 deus do Alto Egito. Nitidamente, Horus e Narmer sao 0 mesmo: um. deus triunfa sobre adversirios humanos, Conse- Giientemente, o gesto de Narmer nao deve ser entendido como a representa¢4o de uma luta ver- teristicos da arte egipe éadeira, O inimigo encontra-se, jé de inicio, em situagdo de desamparo, e a morte é um ritual, a0 invés de um esforco fisico. Percebemos isso de~ vido ao fato de Narmer ter descalgado as sanda- lias (0 oficial da corte atras dele carrega-as em sua mao esquerda), uma indicacao de que ele es pisando em solo sagrado. A mesma noc&o rea- parece no Velho Testamento, quando o Senhor ordena a Moisés que tire os sapatos antes que Ele lhe apareca na sarca ardente. A nova légica intema da paleta de Narmer fica imediatamente clara, embora a concepcao moderna de mos uma cena como ela apare- ceria a um tinico observador, num momento tni- co, seja, para o artista egipcio, tao estranha quanto havia sido para os seus antecess¢ Idade da Pedra. Ele esforcase por obter clare- za, € nio ilusao, selecionando dessa forma a ima- gem mais importante em cada caso. Mas ele impde a si mesmo uma norma rigorosa: ao mu: dar seu angulo de visao, deve fazé-lo a 90°, co- mo se estivesse acompanhando as arestas de um cubo com 0 olhar. Assim, ele s6 reconhece trés perspectivas possiveis: rosto inteiro, perfil exato verticalidade a partir de cima. Qualquer posi- cao intermediaria o desconcerta (observe as figu- ras dos inimigos derrubados, com um curioso aspecto de borracha). Além do mais, ele tem de encarar 0 fato de que a figura humana em pé, 20 contrério de um animal, nao tem um tinico perfil principal, mas dois perfis antagénicos, de tal for- ma que, por uma questao de clareza, ele deve combinar as duas concepcdes. Como ele o faz € nitidamente mostrado na figura de Narmer: olho € ombros vistos de frente, cabeca e pernas de per- fil. O método funcionava tao bem que sobrevive- ria por dois mil e quinhentos anos, apesar — ou talvez por causa — do fato de nao prestarse & representacao de movimento ou aco. O cardter glacial da imagem pareceria ser especialmente adequado a natureza divina do faraé; os mortais, comuns agem, ele simplesmente é ‘A abordagem “cdbica’” da forma humana po- de ser mais notavelmente observada na escultu- ra egipcia, tal como 0 espléndido grupo do fara Miquerinos e sua rainha (fig, 16). O artista deve ter comecado por delinear os planos frontal e I teral nas superficies de um bloco retangular, € em seguida trabalhado para dentro, até que esses planos se encontraram. Sé desse modo ele poderia ter obtido figuras de una firmeza e imo- bilidade tridimensionais tao intensas. Que mag: ARTE PARA 0S MORTOS — HGITO. 25 16, Migucrinos e sua Expose, de Gizé. c. 2500 a.C. Ardosia, altura: 142 m, Museu de Belas Artes, Boston nificos recipientes para a moradia do ka! Ambas sstao com 0 pé esquerdo para diante, e todavia nada leva a pensar em um movimento para fren: te. O grupo também apresenta uma comparacao interessante entre a beleza masculina e a femini- na segundo a concepedo de um excelente escul tor, que nao apenas soube contrastar a estrutur dos dois corpos, mas também enfatizar as formas suaves e salientes da rainha através de um vesti- do leve e ajustado ao corpo. O escultor que fez as estdtuas do principe Raho- tep e sua esposa Nofret (fig. 14) foi menos sutil a esse respeito. O casal deve sua admirével apa- rencia de seres vivos ao colorido expressivo, que deve ter compartilhado com outras estétuas 26 Como & ARTE coMEEOU 17, Piramide em cegrau, momumento funerario di semelhantes, mas que apenas em alguns casos, sobreviveu completamente intacto. A cor mais es- cura do corpo do principe ndo tem uma impor- tancia individual; trata-se da forma padronizada de pele masculina da arte egipcicia. Os olhos foram embutidos em quartzo brilhante, para tor nélos 0 mais vivos possivel, e a qualidade de retrato dos rostos € bastante acentuada, Arquitetura Quando nos referimos a atitude dos egipeios pa- a com a morte € a imortalidade, devemos ter 0 iado de deixar claro que no nos referimos ao jem médio, mas apenas & pequena casta de aristocratas que se agrupava ao redor da corte real. Ainda ha muito por aprender sobre a ori gem e o significado das sepulturas egipcias, mas o conceito de imortalidade que refletem aparen- temente aplicava-se apenas aos poucos privilegia- dos, devido & sua associacdo com os farads imortais, A forma padronizada dessas sepulturas, era a mastaba, um tamulo de forma trapezoidal recoberto de tijolos ou pedra, acima de uma ca- mara mortudria que ficava bem abaixo do solo e ligava-se 4 mastaba por meio de um pogo. No interior da mastaba hé uma capela para as ofe rendas ao ka € um cubiculo secreto para a es he tata do morto, As mastabas reais chegai a aleancar um tamanho admiravel e logo trans formaram-se em piramides. A mais antiga € m provavelmente, a do rei Zoser (fig. 17) em Sak: karab, uma piramide de degraus que sugere um agrupamento de mastabas, por oposi¢ao aos exemplos posteriores regulares, As piramides nao eram estruturas isoladas, mas ligavam-se a imensos distritos funerarios, com templos e outras edificagdes que eram 0 cenario de grandes celebracoes religiosas, tanto durante quanto apés a vida do faraé. O mais elaborado desses distritos € 0 que se encontra ao redor da piramide de Zoser: seu criador, Imhotep, € 0 pri- iro artista cujo nome a historia registrou, e 0 fez merecidamente, uma vez que sua obra — ou de Gizé, mais planos e © que dela resta — causa enorme impressao ain- da hoje. A arquitetura egipcia havia comecado com estruturas feitas de tijolos de argila, madei: ra, junco e outros materiais leves. Imhotep usou a pedra talhada, mas seu repertério de formas @ quitetOnicas ainda reflete formas e esquemas de- senvolvidos durante aquela fase anterior. Assim, jescobrimos colunas — sempre ““presas”, em vez de independentes — que imitam os feixes de jun- Cos ou os suportes de madeira que costumavam ados em paredes de tijolos de argila ser cole para dar-lhes uma resisténcia adicional. Mas 0 préprio fato de que esses segmentos haviam per- dido sua funcao original permitiu que Imhotep e seus arquitetos os reprojetassem de modo a fa- zer com que se prestassem a um novo € express: v0 propésito (fig. 18). O desenvolvimento da pirdmide atinge seu pox- to culminante durante a Quarta Dinastia, na mosa triade de grandes pirdmides em Gizé (fig. 19), todas elas com a conhecida forma regular e plana, Originalmente, possuiam um revestimen to exterior de pedra cuidadosamente polida, que desapareceu, exceto prdximo ao topo da pirami- de de Quéfren. Agrupadas ao recor das trés gran- ces piramides ha varias outras, menores, e um, grande mimero de mastabas para membros da familia real e altos oficiais, mas o distrito funerd: rio unificado de Zoser tommou possivel uma orga- nizagao mais simples; a volta de cada uma das grandes piramides, na direcdo leste, existe um templo funerario, a partir do qual um caminho elevado processional conduz a um segundo tem- plo, num nivel inferior, no vale do Nilo, a uma distancia aproximada de 1.600 metros. Proxim a0 templo do vale da segunda pirdmide, a de Qué- fren, esta a Grande Esfinge esculpida na rocha viva (fig. 20), talvez uma corporificacao da rea- leza divina ainda mais impressionante do que as prprias piramides. A cabeca real, que surge do corpo de um ledo, eleva-se a uma altura de 20 metros e tinha, muito provavelmente, os tracos de Quéiren (os estragos a ela infligidos nos tem- os islamicos tomaram obscuros os detalhes da ARTE PARA 08 MORTOS —EGITO. 27. 18, Meias-colunas papiriformes, Paldcio do Norte, Camara Funersria da Rei Zoser, Sakkarab, ¢. 2560 aC. face). Sua impressionante majestade é tal que, mil anos mais tarde, podia ser vista como uma ima- gem do deus-sol. Empreendimentos numa escala assim gigantes ca caracterizam 0 apogeu do poder dos farads Apés o término da Quarta Dinastia (menos de dois séculos depois de Zoser) nunca mais foram tentados, embora piramides de proporedes bem mais modestas continuassem a ser construidas. O mundo vem incessantemente maravithando-se a simples visio das grandes piramides, bem co mo com as proezas técnicas que elas represen- 28 cOMO A ARTE COMECOU tam; mas elas também vieram a ser vistas como simbolos do trabalho escravo — milhares de ho- ‘mens forcados, por supervisores cruéis, a se pres tarem a glorificacdo de imperadores absolutos. E possivel que tal quadro seja injusto: foram reservados certos registros indicativos de que co trabalho era remunerado, de modo que estaria: ‘mos mais proximos da verdade ao considerarmos esses monumentos como imensos “‘projetos de obras ptiblicas” que propiciavam uma forma de seguranca econdémica para uma boa parte da populacao. O NOVO IMPERIO Apés 0 colapso da centralizacao do poder farad- nico ao término da Sexta Dinastia, 0 Egito en- trou em um periodo de distiirbios politicos ¢ ma sorte que duraria quase setecentos anos. Duran- tea maior parte desse tempo, a verdadeira auto- ridade esteve nas maos dos governadores das provincias locais ou regionais, que ressuscitaram a velha rivalidade entre o Norte e 0 Sul. Muitas dinastias seguiram-se umas as outras em rapida sucessio, mas apenas duas, a Décima Primeira ea Décima Segunda, sao digas de nota. A iti ma constitui 0 Médio Império (2134-1785 a.C.), quando varios reis competentes. conseguiram reafirmar-se contra a nobreza provincial. Contu- do, uma vez transgredido o fascinio da divinda- de do poder real, este nunca mais voltou a 20. A Grande Esfinge. Velho Império, ¢. 2500 a.C. Altura 20m adquirir sua antiga vitalidade, e a autoridade dos faraés do Médio Império tendeu a ser pessoal, em vez de institucional. Logo apés o encerramen- to da Décima Segunda Dinastia, pais enfraque- Cido foi invadido pelos hicsos, um povo asiatico acidental de origem um tanto misteriosa, que se apoderou da area do Delta ¢ a Gominou por cen- toe cingtienta anos, até serem expulsos pelo prin cipe de Tebas por volta de 1570 aC. ‘Os quinhentos anos que se seguiram a expul- 10 dos hicsos, compreendendo a Décima Oita- va, Décima Nona e Vigésima Dinastias, representam a terceira Idade de Ouro do Egito. O pais, mais uma vez unido sob reis fortes e ca- pazes, ampliou suas fronteiras ao leste, até a Pa- lestina € a Siria (daf esse periodo ser também conhecido como o Império). perfodo de apogeu do poder e prosperidade deu-se entre cerca de 1500 eo final do reinado de Ramsés II], em 1162 aC. Aarte do Novo Império abrange uma vasta gama de estilos e qualidade, de um rigoraso con- servadorismo a uma brilhante criatividade, de uma ostentacao despoticamente opressiva a0 mais delicado requinte. Como a arte da Roma Im perial de mil e quinhentos anos mais tarde, é quase impossivel fazer umd sintese em termos de uma amostragem representativa. Fios de textu- ras diferentes entrelagam-se para formar um tecido tao complexo que qualquer escolha de monumentos pareceré certamente arbitrétia O maximo que pociemos pretender 6 transmitir parte do sabor de sua variedade. Arquitetura A divindade do poder real do faraé foi afirmada de uma nova forma durante 0 Novo Império: através da associacao com 0 deus Amon, cuja identidade havia sido fundida com a de deus-sol Ra ¢ que se tomara a divindade suprema, ele- vandorse acima dos deuses menores da mesma forma que o farad elevava-se acima da nobreza provincial. Assim, energias arquitetonicas sem precedentes foram canalizadas para a construgao de imensos templos de Amon sob 0 patrocinio real, tal como o templo de Luxor (fig. 21). Seu projeto é caracterfstico do estilo geral dos tem- plos egipcios posteriores. A fachada (fig. 21, extrema esquerda) consiste em duas paredes ma- cigas com laterais em declive, que flanqueiam a entrada; esse pértico ou pilono leva a um patio, um vestibulo com pilastras, um segundo patio e 5 I (©. 1260 aC) © col 21. Pitio e pil Mt-Khonsu, Luxor outro vestibulo com pilastras, além dos quais se encontra o templo propriamente dito. Toda essa seqtiéncia de patios, vestibullos e templo era ocul- tada por altos muros que isolavam o templo co mundo exterior. Com excecao da monumental fa chada, uma estrutura desse tipo é projetada p ra ser apreciada a partir de seu interior; os fiéis comuns ficavam confinados ao patio, e podiam apenas maravilhar-se com a floresta de colunas que protegiam os recessos escuros do santudrio. O espaco entre as colunas tinha que ser peque- no, pois elas suportavam as traves de pedra (lin- tis) do teto, as quais tinham que ser pequenas, para evitar que as colunas se partissem sob seu préprio peso. Todavia, o arquiteto explorou cc cientemente essa limitagao, fazendo as colunas bem mais pesadas do que precisavam ser. Em resultado, 0 observador sente-se quase que esma- gado por sua grandiosidade. O efeito de intimi- dacao é certamente impressionante, mas também um tanto vulgar quando comparado as primeiras obras-primas da arquitetura egipcia. Basta-nos comparar as colunas papiriformes de Luxor com suas antecessoras de Sakkarah (ver fig. 18) para percebermos qua pouco do genio de Imhotep ainda sobrevive aqui. Akhenaton; Tutancamon O desenvolvimento do culto de Amon trouxe uma ameaca inesperada A autoridade real: os sacer- ARTE PARA OS MORTOS — FGITO. 29 ata e patio de Amenhotep Ill (c, 1390 aC), Templo de Amon: dotes de Amon transformaram-se numa casta de tamanha riqueza e poder que ao rei s6 se tornow possivel manter sua posigao caso aqueles 0 apoiassem. Um faraé admiravel, Amenhotep IV, tentou derrubé-los proclamando sua f€ em um tinico deus, Aton, representado pelo disca do Sol. ‘Muciou seu nome para Akhenaton, fechou os tem: plos de Amon e transferiu a capital para um novo local, Sua tentativa de colocar-se a frente de uma nova fé monotefsta, no entanto, nao sobreviveu ao seu reinado (1372-1358 aC), ¢ a ortodoxia foi rapidamente restaurada sob seus sucessores. Durante 0 longo perfodo de declinio do Egito, apés 1000 a.C., 0 pais passou a ser cada vez mais dirigido pelos sacerdotes, até que, sob do- mfnio grego e romano, a civilizacao egipeia che, gou ao fim, em meio a um caos de doutrin: religiosas esotéricas. Akhenaton foi um revolucionério nao apenas em sua f6, mas também em suas preferéncias ar tisticas, incentivando conscientemente um novo estilo ¢ um novo ideal de beleza. O contraste com © passado fica admiravelmente claro em um re- trato em baixorelevo de Akhenaton (fig. 22); comparado com as obras no estilo tradicional (ver fig. 15), essa cabeca parece, a primeira vista, uma caricatura brutal, com seus tracos estranhamen- te desfigurados e contornos sinuosos ¢ excessi- vamente enfaticos. Ainda assim, podemos perce- ber sua afinidade com o busto merecidamente famoso da rainha de Akhenaton, Nefertiti (ig. 30. COMO A ARTE COMEGOU 22, Abhenaton (Amenhotep IV). c. 13652.C. Caleério, alt ra: 0.08 m, Museus do Berlim 23), wna das obras-primas do “estilo de Akhena- ton”. O que caracteriza esse estilo nao é tanto um maior realismo, mas sim um novo sentido da for- ma, que procura abrandar a imobilidade tradicio- nal da arte egipeia; nao apenas os contornos, mas também as formas plésticas parecem mais malea- veis e suaves, antigeométricas, por assim dizer. A antiga tradicaa religiosa foi rapidamente res taurada apés a morte de Akhenaton, mas as ino- vagbes artisticas que ele incentivou ainda foram, sentidas na arte egipcia por um longo perfodo de tempo. Mesmo 0 rasto do sucessor de Alkhena- 24. Cobertura da sarcéiago 4 altura total: 184 m. Museu Tutancamon (parte). © sipcio, Cairo 23. A Rainha Nofevtti . 1360 aC, Caleairio, altura: 0.51 m, Museus do Estado, Berlim ton, Tutaneamon, como aparece em seu atatide de ouro, revela um eco do estilo de Akhenaton (fig. 24). Tutancémon, que morreu aos 18 anos, deve toda sua fama ao fato de seu timulo ter sido o nico descoberto, em nossa era, com o seu contetido intacto. O simples valor material do ttimulo € inacreditavel. (S6 0 atatide de ouro de Tutancamon pesa 112,5 kg:) Para nés, 0 aca- bamento requintado do atatide, com o esplén- dido jogo de incrustagoes coloridas em contraste com as superficies de ouro polido, é ainda mais impressionante. 1340 2.€. Ouro, inerustado com esmalte e pedras preciosss; Templos, palacios e cidadelas — 0 antigo Oriente Préximo e o Egeu MESOPOTAMIA £ um fato estranho e surpreendente que o ho- mem tenha surgido a luz da historia em dois lugares diferentes e mais ou menos na mesma época. Entre 3500 e 3000 a.C., quando o Egito estava sendo unificado sob o dominio do fara6, outra grande civilizacdo surgiu na Mesopotamia, a “terra entre os rios”. E, por aproximadamente trés milénios, os dois centros rivais mantiveram suas caracteristicas distintas, embora tenham es- tado em contato desde os seus primérdios. As presses que forcaram os habitantes de ambas as regides a abandonar 0 padrao de vida comu nitaria pré-histrica podem muito bem ter sido as mesmas. Mas o vale do Tigre e do Eufrates, a0 contrario do vale do Nilo, nao é uma estreita faixa de terra fértil protegida por desertos; pare- ce mais uma depressao larga € rasa com pouce defesas naturais, facil de ser invadida por qual- quer direcao. Dessa forma, a regiao mostrou-s ‘quase imposstvel de ser unificada sob um mes- mo governante. A hist6ria politica da Mesopot mia antiga ngo apresenta um tema subjacente, tal como 0 cardter divino da realeza que existia no Egito; as rivalidades locais, as invasdes estran- geiras, a stbita eclosao eo jguaimente stibito co- lapso do poder militar € que constituem a sua substancia. Mesmo assim, houve uma admiravel continuidade das tradigdes artisticas ¢ culturais, que, em grande parte, so criagdo dos antepas- sados que fundaram a civilizacao mesopotamica, aos quais chamamos de sumeérios, a partir de Su- méria, nome da regio proxima a confluencia do Tigre e do Eufrates, onde viviam, A origem dos sumérios continua obscura. Um pouco antes de 4000 a.C., vieram da Pérsia para sul da Mesopotdmia, fundaram algumas cida- des-estados e desenvolveram sua escrita incon- fundivel, em caracteres cuneiformes (em forma de cunha) sobre placas de argila, Infelizmente, os, remanescentes concretos dessa civilizagao sumé- ria sao muito escassos quando comparados aos do Egito; devido a falta de pedras, os sumérios s6 construfam em madeira e tijolos de argila, de modo que quase nada de sua arquitetura sobre- viveu, exceto os alicerves. ‘Tampouco comparti- Thavam com os egfpcios a preocupagdo com a vida apés a morte, embora algumas sepulturas suntuosamente trabalhadas tenham sido encon- tradas na cidade de Ur. Nosso conhecimento da Givilizagao suméria depende muito, portanto, de fragmentos casuais — inclusive de um grande niimero de tabletes de argila com inscricées — trazides a luz por meio de escavacoes. Aprendemos também o suficiente, nas tltimas décadas, para podermos formar um quadro geral das realizagdes desse povo vigoroso, cria- tivo e disciplinado. Cada cidade-estado suméria tinha seu proprio deus local, que era seu “rei” e dono, Esperava- se que ele, em troca, defendesse a causa de seus stiditos junto as outras divindades que controla- vam as forcas da natureza, tais como o vento e o clima, a fertilidade e os corpos celestes. A co- munidade também tinha um dirigente humano, © procurador do soberano divino, que transmitia as ordens do deus. A propriedade divina também nao cra tratada como uma ficcao religiosa; supunha-se que 0 deus passuisse, literalmente, nao apenas 0 territorio da cidade-estado, mas também a forga de trabalho da populacao, bem como os seus produtos. O resultado era um “so- cialismo teoerdtico”, uma sociedade planejada que se centrava no templo. Era o templo que con- trolava a divisdo do trabalho e os recursos para empreendimentos camo a construco de repre- sas ou canals de irrigacao, além de arrecadar e distribuir grande parte das colheitas. Tudo isso exigia que se mantivessem minuciosos registros escritos, razao pela qual as primitivas inscricoes sumérias tratam principalmente de assuntos ec nomicos e administrativos, embora a escrita fo se um privilégio dos sacerdotes. eu zigurate, Uruk (otualmente Planta do "Templo Branco” (segundo I. Pranictort) eu zigurate, Ural Arquitetura © papel dominante do templo como centro da existéncia espiritual e fisica admiravelmente re presentacio pelo esquema das cidades sumeria- nas. As casas agrapavam-se ao redor de uma area sagrada que era um vasto complexo arquitet6ni co, compreendendo nao apenas os santuarios mas também oficinas e armazéns, bem como os alo: jamentas dos escribas. No centro, numa platafor ida, ficava o templo do deus local. Es mas logo chegaram a altura de verdadei- ras montanhas feitas pelo homem, comparaveis as piramides do Egito pela imensidao do esforco requerido e por seu efeito de grandes marcos elevando-se acima da planicie sem maiores rele- 10 conhecidas como zigurates. O mais moso deles, a Torre de Babel biblica, foi com: pletamente destruido, mas um exemplo muito anterior, construido antes de 3000 a.C. e, portan- vos. w . 3500-3000 a.€ to, varios séculos mais velho do que a primeira das piramides, existe ainda em Warka, 0 local da cidade sumeriana de Uruk (chamada de Erek na Biblia). A elevacao, com suas partes laterais em declive reforgadas por sélida alvenaria de tijolos, 34 como A ARTE CoMEgOU e a uma altura de 12 metros; escadas rampas levam até a plataforma na qual fica 0 san- tudvio, chamado de “Templo Branco” por causa de seu exterior de tijolos caiados (figs. 25 e 26). Suas pesadas paredes, articuladas por saliéncias € reentrancias separadas por espacos regulares, encontram-se suficientemente bem preserv para sugerir algo da aparéncia original da estru- tura, Devemos ver o zigurate e 0 templo como um conjunto: todo o complexo planejado de tal forma que o fiel, partindo da base da escadaria do lado leste, vé-se forcado a prosseguir em cir culos, acompanhando todos os volteios do cam: nho até ale: 9 principal do templo. O inho processional, em outras palavras, lem: bra uma espécie de espiral angulosa. Essa “abor dagem de eixo inclinado” 6 uma caracteristic: fundamental da arquitetura religiosa da Mesopo tdmia, em contraste com 0 eixo simples, em li nha reta, dos templos egipcios. Bstatuas do Templo de Abu, Tell Asmar, ¢. 2700-250 do traque, Ragdé e Instituto Oriental, Universidade de Chi cultura A imagem do deus a quem 0 era dedicado foi perdida te, tratava-se de Anu, 0 deus do céi, Outros tem- plos também nos legaram obras de estatuadria em pedra, como o grupo de figuras de Tell Asmar (fig. 27), contemporaneo da piramide de Zoser. A figura mais alta representa Abu, o deus di getacdo; a segunda figura maior é uma deusa mie, @ 0s demais sto sacerdotes e fiéis. O que diferencia as duas divindades nao é apenas o ta- manho, mas 0 maior diametro das pupilas de seus olhos, embora os olhos de todas as figuras sejam enormes, Seu insistente olhar fixo é enfatizado por incrustagoes coloridas. Pretendia-se que 0 sacertlote e 0s fidis se comunicassem com os doi dos olhos. “Representacao”, aqui, Jo muito direto: acreditav: sem presentes em 5 ‘emplo Branco” provavelme deuses atravé tem um signifi que os deuses estive ima aC. Macmore, altura Museu a imagem mais alta: 0,76 m gens, ¢ as estatuas dos fiis tinham a funcao de substituir as pessoas que retratavam. No entax to, nenhuma delas 6 indicativa de qualquer ten- tativa de alcancar uma semelhanga individual — ‘0s Corpos, bem como 0s rostos, sio rigorasamente esquematicos e simplificados, para evitar que a c desvie dos olhos, as “janelas da alma”. entido da forma do escultor egfpcio era essencialmente cibico, 0 dos sumerianos baseavae se no cone e no cilindro: bragos € pernas tém a rotundidade de tubos, ¢ as longas saias usacas por todas as figuras mostram curvas tao polidas regulares que parecem ter sido lavradas por um tomo. Mesmo em épocas posteriores, quando a escultura mesopotamica havia chegado a um repertario de formas muito mais harmoniosas, essa caracteristica volta s¢ A simplificagao conico« de Tell Asmar € caracteristica do escultor, que trabalha lapidando suas formas a partir de um bloco sétido, Um estilo muito mais flexivel e rea: lista predomina entre a escultura sumeriana que foi feita por adi¢ao, endo por subtracao listo é, maodlelada em material macio para ser fundida em bronze, ou que resulta da combinacao de subs tancias diversas, tais como madeira, folha de ouro ¢ lépis-lazil), Algumas pecas desse ditimo tipo, ‘mais ou menos contemporaneas das figuras de ‘Tell Asmar, foram encontradas nas sepulturas de Ur as quais ja fizemos referéneia. Incluem 0 fascinante objeto mostrado na figura 28, um su- porte de oferendas em forma de um bode empi- nando-se por trés de uma drvore em floragao. O animal, maravilhosamente vivo e forte, tem uma forca de expresso quase demonfaca ao olhiar-i0s por entre os ramos da arvore simbélica. E talvez assim seja, pois 6 consagrado ao deus Tammuz representando assim © principio masculino da natureza. Essa associagao de animais com divindades é remanescente dos tempos pré-historioos; nao a encontramos apenas na Mesopotamia, mas tam- dém no Egito (wer o falcdo de Horus na fig. 15). que caracteriza os animais sagradios dos sumé. ios € 0 papel ativo que representam na mitolo gia, Infelizmente, grande parte desses fatos e tradicdes ndo chegou até nés de forma escrita, mas alguns relanees fascinantes podem ser obti- clos em representagoes pietoricas tais como as que se encontram num painel incrustado de uma har- pa (fig. 29), que foi recuperado juntamente com 0 suporte de oferendas de Ur. O herdi que abraca (OS, PALACIOS E CIDADELAS — 0 ANTIGO ORIENTE PROXIMO EO EGEU 35, dois touros com cabecas humanas era um tema tao popular que seu desenho tornou-se uma f6r- mula rigorosamente simétrica, mas as outras secdes mostram animais realizando algumas ta- refas humanas, de uma forma viva ¢ precisa: 0 Jobo e 0 led levam alimentos e bebidas para um banquete invisivel, enquanto o asno, 0 urso ¢ 0 veadlo cuidam da apresentagdo musical (a harpa 0 mesmo tipo de instrumento ao qual o painel estava ligado). Na parte de baixo, um homem- cescorpiao e umn bode carregam alguns objetos que retiraram de um grande vaso, O artista que criouw ‘essas cenas estava muito menos preso a regras do que seus contemporneos exipcios; embora ele também crie suas figuras sobre uma base de li nhas geométricas, ndo se constrange em justa- por as formas ou reduzir as dimensdes das figuras, segundo a perspectiva. No entanto, devemos ter 0 cuidado de nao interpretar erradamente 0 seu objetivo — 0 que pode surpreender-nos como algo deliciosamente humoristico provavelmente era feito com a intenedo de ser visto com seriedade. Se pelo menos conhecéssemos 0 contexto em que esses atores desempenhavam seus papé Nao obstante, podemos vé-los como os pri- meiros ancestrais conhecidos da fabula em que intervém animais irracionais_personiti- cados, que mais tarde floresceu no Ocidente, de Esopo a La Fontaine. Babilonia Apés a metade do terceiro milénio a.C., os habi- tantes semiticos do norte da Mesopotmia cli giram-se para o sul em ntimero cada vez maior, até que tornaram-se mais numerosos que os su: mérios, Embora tenham adotado a civilizagao suméria, estavam muito menos presos a tradicao do socialismo teocrstico; foram eles que geraram 0s primeiros dirigentes mesopotmicos atte se re- feriam abertamente a si proprios como reis ¢ tor naram publica a ambicao de conquistar os seus vizinhos. Poucos foram bem-sucedidos; 0 segun- do milénio a.C. foi um periodo de distirbios qua se ininterruptos. Sem diivida nenhuma, a maior figura da época foi Hamurabi, sob cujo governo @ Babilonia tornou-se o centro cultural da Meso- potamia. Sua realizacao mais memoravel ¢ seu cédigo de leis, que tem a fama merecida de ser © mais antigo corpo uniforme de leis escritas, de coneepedio surpreendentemente racional e huma- 36. Como 4 ARTE ComEGoU 28. Baie Arvore, Suporte de oferendas, de Ur, ¢, 2600 a.C. Madeira, earo, lapis ali altura: 0,51 m. Museu da Univer Sate de Filad PALACIOS F CIDADELAS — 0 ANTIGO ORIENTE PROXIMO EO EGEU 37 arpa. Betume com grande placa de pe- ‘uja parte superior \ defrontando-se com 0 rei-sol Shamash (fig. 30) O braco direito do rei esta ergui ido num gesto de fazendo relatos ao rei divino. O relevo € tao alto que as duas figur 30, Parte superior da placa de pedra do Cédigo de Hamu Tabi, c, 1700 a.C. Diorta, altura da placa: 2,13 my; aura do 1,71 m, Museu do Louvre, Paris rem estétuas cortadas pela metade. Por ¢ zo, © escultor foi capaz de fazer os olhi forma que podem ser vistos de todos os lados. Hamurabi e Shamash olham-se com uma forca ¢ objetividade que faz lembrar as estétuas de Tel Asmar (ver fig. 27), cujos olhos enormes indicam nna tentativa de estabelecer a tre deus e homem numa fase anterior da civili: zagao mesopotamica, ssma relacdo en: Assirios As descobertas arqueolégicas mais abundantes datam da terceira fase mais importante da hist6- ria mesopotamica, aquela entre cerca de 1000 € 500 a.C., que foi dominada pelos assirios. Bsse povo expandira-se lentamente a partir da cidade estado de Assur, no curso superior do Tigre, até dominar 0 pafs inteiro. No apogeu de seu poder, ‘o Império Assirio estendeu-se da peninsula do Sinai até a Arménia, Tem-se afirmado que 08 as- sirios eram para os sumerianos aquilo que os romanos eram para os gregos. Sua civilizagao alizacées do sul, mas reinterpre- tavaras para que se tomassem apropriaclas as suas, 88 como A ARTE comE¢oU 31. A Leod Forida, de Ninive. c. 650 aC. Caleario, altura da figura: 0, caracteristicas distintivas. Grande parte da arte assiria é dedicada a glorificar o poder do rei, soja através de representages minuciosas de suas conquistas militares, ou do soberano sendo ‘mostrado como matador de ledes. Essas cacadas reais eram combates cerimoniais (os animais eram soltos de jaulas no interior de um quadra- do formado por soldados com escucios, onde o rei voltava a representar seu antigo papel de pastor supremo que mata os predadores que ameacam © rebanho comunitario, Nesse particular, a arte assiria atinge niveis extraordindrios, especialmen- te nos espléndidos releves de Ninive, que mos- tram cenas de cagadas de ledes. Por estranho que possa parecer, a5 mais belas imagens dessas ce- nas ndo sao 0 rei e seu séquito, mas os anima Ao doté-los de forca e coragem magnificas, 0 es- cultor enaltece o rei, capaz de matar adversarios tao poderosos. A Leoa Ferida (fig. 31) é admird- vel néo apenas pelas gradacoes sutis da supe cie esculpida, que exprime toda a forca e volume do corpo, apesar da pouca profundidade do rele- vo, thas principalmente pela tragica grandiosida de da agonia derradeira do animal 5m. Museu Briténica, Londres Neobabilénios O Império Assirio foi derrubado por uma inva- sao do leste. Naquela ocasio, 0 comandante do exército assirio no sul da Mesopotamia procia- mouse rei da Babilénia; sob seu governo ¢ o de a velha cidade teve um breve e derradeiro florescimento entre 612 e 539 a.C., antes que fosse conquistada pelos persas. O mais conhecido dentre esses governantes ‘‘neoba- bilonicos” foi Nabucodonosor, o construtor da Torre de Babel. Ao contrario dos assirios, os neobabilonicos usavam tijolos cozidos ¢ esmalta- dos em suas construgdes, pois ficavam muito dis- tantes das fontes de lajes de pedira. Essa técnica também havia sido desenvolvida na Assitia, mas era agora usada em muito maior escala, tanto pa- a 0s ormamentos ce superficie quanto para os re- Jevos arquiteténicos. Seu efeito caractersstico fica evidente no recinto sagrado do Portal de Ishtar de Nabucodonosor, na Babilonia, que foi recons- trufdo a partir dos milhares de tijolos esmaltados que cobriam sua superficie (fig. 32). A majesto- sa seqiiéncia de touros, dragdes e outros animais Ge tijolos modelados, dentro de uma estrutura de faixas omamentais de um vivo colorido, tem uma_ graca e vivacidade muito distantes da arte assf- ria, Aqui, pela tiltima vez, sentimos novamente aquele génio especial de que era dotada a arte mesopotamica antiga para a representacao pic: t6rica de animais. PERSIA A Pérsia, o altiplano cercado de montanhas a0 leste da Mesopotamia, tem a origem de seu no- ‘me no povo que ocupou a Babilonia em 539 a. C., tornando-se herdeiro daquilo que havia sido o Im perio Assirio, Atualmente, o pais chama-se Ira, seu nome mais antigo e mais adequado, uma vez que 0s persas, que colocaram a drea no mapa da ‘histéria mundial, foram retardatarios que s6 che- garam & cena alguns séculos antes de terem dado inicio &s suas conquistas memoraveis, Con- tinuamente habitado desde os tempos pré-his- t6ricos, 0 Ira parece ter sido sempre o caminho de entrada para tribos migrat6rias das estepes asidticas ao norte, bem como da India, ao leste: Uma vez que as tribos nomades nao deixan mo- numentos permanentes ou registros escritos, s6 pocemos rastrear suas peregrinagoes através de uum estudlo cuidadoso dos objetos que enterravam, juntamente com seus mortos. Tais objetos, de ‘madeira, osso ou metal, representam um tipo especifico de arte mével a que damos 0 nome de equipamentos do némade: armas, freios para cavalos, fivelas, fechos e outros objetos de adeor- no, xicaré s etc., que tém sido encontra: dos numa area muito grande, da Sibéria & Europa Central, do Ira a Escandinavia. Possuem em co- mun nao apenas uma concentracao de desenhos omamentais que fazem lembrar j6ias, me bém um repertorio de formas conhecide como & filo animalista, Uma das fontes desse estilo pare ser o antigo [ra. A caracteristica principal do es tilo animalista, como 0 nome sugere, € 0 uso de corativo de motivos animais, de uma forma bastante abstrata ¢ imaginativa. O ormamento de haste (Eig. 33) consiste em um par simétrico de ‘bodes monteses com pescogos ¢ chifres extrema- mente alongados; suspeitamos que, originalmen- te, fossem seguidos por um par de ledes, mas 0s seus corpos foram assimilados pelos dos bodes, cujos pescocos foram alongados até adquirirem uma clegancia de cragies 82, Portal de Ishtar (restaurado), da Babilonia, c. 575 aC. Tijolo esmaktado, Museus do Estado, Berlim Orienta Aqueménidas Apés conquistar a Babilonia em 539 a.C., Ciro assumiuo titulo de “Rei da Babildnia”, juntamen: te com as ambigdes dos governantes assirios. O- império que ele fundou continuou a expandir-se sob seus sucessores; tanto o Egito quanto a Asia Menor cairam em seu poder, e a Grécia escapou por tm triz de ter o mesmo destino. Em seu apo- geu, sob Dario I e Xerxes (523-465 a.C.), 0 Im- pério Persa foi muito maior do que 0 de seus antecessores egipcio ¢ assirio juntos. Além do mais, esse imenso dominio durou dois séculos — foi derrubado por Alexandre, 0 Grande, em 331 a.C, — e durante a maior parte de sua existéncia foi governado com eficiéncia e magnanimidade. & quase milagroso que uma obscura tribo de no: mades tenha chegado a tanto. Em uma unica geragao, os persas nado apenas dominaram a complexa maquina da administracao imperial co- mo também desenvolveram uma arte monumen- tal e de admiravel originalidade, para expressar a grandeza de seu governo. ‘Apesar de sua capacidade de adaptacao, 0s per 40. como a ARTE comEcoU sas conservaram sua propria crenga religiosa, derivada das profecias de Zoroastro; era uma {é aseada na dualidade do Bem e do Mal, corpori icados em Ahura Mazda (Luz) e Ahriman (Tre: vas). Como 0 culto de Ahura Mazda era feito a0 ar livre, em altares de fogo, os persas nao po sufam uma arquitetura religiosa. Por outro lao, seus palacios cram estruturas imensas ¢ impres sionantes. O mais ambicioso deles, em Persépo lis, fo: iniciado por Dario Tem 518 aC. Tinha um grande mimero de salas, vestibulos e patios, con- «gregados em uma plataforma elevada. As influen: cas de todas as partes do Império combinaram-se de tal forma que 0 resultado é um estilo novo e exclusivamente persa, Assim, em Persépolis, as colunas s4o usadas em grande escala. A Sal Audiencias de Dario, uma sala de 23.2: nha um teto de madeira apoiado por 36 colun: de doze metros de altura, algumas das quais ain dase encontram em pé (fig. 34). Um ntimero tao grande de colunas faz lembrar a arquitetura ¢} cia (compara fig. 21), e, de fato, a influéncia exip- 33. Omamento de haste, do Laristao, Séeulos IX-VIl a.C Bronze, altura: 0,19 m, Muses Britinico, Londres cia aparece nos detalhes ormamentais das bases apitcis, mas o fuste elegante e revestido de ca neluras das colunas de Persépolis deriva dos gre- gos jonios da Asia Menor, conhecidos por teem, fornecido artistas @ corte persa O EGEU Se navegarmos 0 delta do Nilo e cruzarmos Mediterraneo em direcdo noroeste, nosso primei- ro relance da Buropa sera a extremicade orien tal de Creta. Mais além, encontramos um pequeno grupo de ilhas dispersas, as Ciclades, ¢, tum pouco mais adiante, 0 continente grego, vol tado para a costa da Asia Menor, localizado do outro lado do mar Bgeu. Para os arquedlogo “Egeu” nao é apenas um termo geograficy adotaram-no para designar as civilizacdes que flo Fesceram nessa drea durante o terceiro e segun- do milénios a.C., antes do desenvolvimento da civilizacao grewa propriamente dita, Existem tré intimamente relacionadas, embora distintas en: i: a de Creta, chamada mindica devido 2o len- dio rei cretense Minos; a das pequenas ilhas ao norte de Creta (cicladense), @a do continente gre- go (helddica). Cada uma delas foi, por sua vez, dividida em tres fases: Antiga, Média e Recen- te, que correspondem, de forma muito apro- ximada, ao Antigo, Médio e Novo Impérios do Egito. Os remanescentes mais importan- tes € as maiores realizacdes artisticas da- tam da Ultima parte da Fase Média e da Fase Recente. Arte cicladense O povo que habitava as Ilhas Ciclades entre cer- ca de 2600 ¢ 1100 a.C. quase nao deixou vesti gios, além de seus modestos timulos de peda. As coisas que enterravam junto com seus mor tos sio admiraveis em apenas um aspecto: in- cluem um grande nlimero de idolos de marmore, de um tipo particularmente interessante. Quase todos representam a figura de um nu feminino em pé, com os bragos cruzados a altura do té- rax, supostamente a deusa-mae da fertilidade, gue j4 conhecemos da Asia Menor e do antigo Orien- te Proximo, cuja linhagem remonta ao Paleoliti- co (ver fig. 6). Também compartilham uma forma caracteristica que, & primeira vista, faz lembrar as qualidades angulosas e abstratas de escultura TEMPLOS, PALACIOS E rit oad ME 34, Sala de audiéncias de Dario, Persépolis. ¢, 500 a.C. primitiva: 0 formato sem relevos e cuneiforme do corpo, 0 pescoco forte @ em forma de coluna © o escttdo oval ¢ inclinado do rosto, onde o tinico trago marcante € 0 nariz alongaco e em forma de crista. No entanto, dentro desse tipo rigoro- samente definido e estavel, os idolos cicladense apresentam enormes variacoes de escala (de al- guns centimetros ao tamanho natural), bem como | de forma. Os melhores centre eles, coma 0 da figura 35, apresentam um refinamento discipli- nado totalmente além das caracteristicas da arte primitiva ou da [dade da Pedra. Quanto niais estudamos essa peca, mais nos damos conta de que suas qualidades s6 podem ser descritas em termos de “elegancia’”’ e fisticagao"’, por mais inadequados que tais termos possam pa~ recer em nosso contexto. B extraordingria a per- cepcao da estrutura organica do corpo que nota nas curvas deticadas de seu contorno e nas insinuagdes de convexidade que assinalam os joelhos e o abdome. CIDADELAS — 0 ANTICO ORIENTE PROXIMO EO BGEU 41. WTA Arte mindica 10 minéica é sem diivida a mais rica, bem como a mais estranha, do mundo egeu. O que @ coloca a parte, nao apenas do Egito e do Oriente Préximo, mas também da civilizagéo Classica da Grécia, € uma falta de continuidade que parece ter causas mais profundas do que o ‘mero acidente arqueol6gico. Ao examinar as prin Cipais realizagdes da arte mindica, nao podemos realmente falar de crescimento ou desenvol: vimento; cles aparecem e desaparecem tao abruptamente que seu destino deve ter sido determinado por forcas externas — mudangas si: bitas e violentas que afetavam toda a illa — so- bre as quais pouco ou nada sabemos. No entanto, o carater da arte mingica, que é alegre, até mes: mo brincalhao, € cheio de movimento ritmico, nao da nenhuma indicacao de tais ameacas. A primeira dessas mudangas inesperadas ocor- reu por volta de 2000 a.C., quando os cretense 42. COMO A ARTE COMEGOL - [dole ciekidico, de Amorgos. 2500-1100 a.C. Marmore, altura: 0,76 m. Museu Ashmolean, Oxford criaram no apenas o seu proprio sistema de es- crita, mas também uma civilizagao urbana, cen- trada em varios grandes palacios. Pelo menos tr deles, Cnosso, Festo e Malia, foram construidos com rapidez € sem problemas. Quase nada so- brou, atualmente, desse stibito fluxo de constru- ‘Goes em grande escala, pois todos os trés palacios foram destruidos 20 mesmo tempo, por volta de 1700 a.C.; apés um intervalo de cem anos, no- vas estruturas ainda maiore ‘sua vez, por volta de 1500 a.C. Sao esses vos” palcios que constituem a nossa principal fonte de informac’o sobre a arquitetura mindi- ca, O de Cnosso, chamado de O Palacio de Mi- nos, era o mais ambicioso, compreendendo uma vasta area e composto de tantas dependéncias que sobreviveu, na lenda grega, como o labirinto do Minotauro. Foi cuidadosamente escavado & parcialmente restaurado. Na arquitetura do edi- ficio nao havia nenhum esforgo no sentido de efei- tos monumentais e unificados. As unidades individuais sao em geral bastante pequenas e os tetos, baixos (fig. 36), de modo que mesmo as partes da estrutura que tinham varios andar nao podiam ter parecido muito altas. tante, 0s intimeros pérticos, escadari minés de ventilacdo devem ter dado ao palécio um aspecto Juminoso ¢ arejado; alguns de seus interiores, com suas paredes suntuosamente de- coradas, conservam sua atmosfera de elegdncia intimista até os dias de hoje. A construgao de alvenaria dos palacios mindicos é excelente em todos os sentidos, mas as colunas eram sempre de madeira. Embora nenhuma delas tenha sobre- vivido, sua forma caracteristica (0 fuste de colu- na sem relevos, encimado por um capitel amplo e em forma de almoiada) ¢ conhecida a partir de representacdes em pintura e escultura. Nada po: demos afirmar sobre as origens desse tipo de coluna, que em alguns contextos podia também ter a funeao de simbolo religioso; também nada sabemos sobre as possiveis ligagdes com a ar: quitetura egipe Depois da catdstrofe que destruiu os palécios mais antigos e de um século de lenta recupera- a0, houve 0 que parece, a nossos ollnos, uma explosiva expansao de riqueza, bem como um incremento igualmente admirével de energia eria- tiva. O aspecto mais surpreendente desse stibito florescimento € composto, entretanto, por suas goes na pintura. Infelizmente, os TEMPLOS, PALACIOS E CIDADELAS — 0 ANTIC CHO x nea 36. Aposento da Rainba, Pakécio de Minos, Cnossos, Cr murais “naturalistas” que outrora cobriam as pa- redes dos pakicios noves sobreviveram forma de pequenos fragmentos, de tal forma que raramente podemos ter uma composicao comple ta, muito menos o desenho de uma parede intei- ra, Muitos deles eram cenas da natureza que mostravam animais © passaros em meio a uma vegetacao luxuriante, A vida marinha (como po- de ser visto no afresco com 0 peixe ¢ 0 golfinho na figura 36) era também um dos temas favori- tos da pintura mindica, e uma percepgio das coisas do mar também impregna tudo mais; po- demos até mesmo senti-la no Ajresco do Tourciro, ‘maior e mais dinamico cos murais minéicos até hoje recuperados, também do Palacio de Minos (fig. 37; 08 trechos mais escuros sao os fragmen: tos originais nos quais se baseia a restauracao) O titulo convencional nao nos deve enganar: 0 que vemos aqui nao € uma tourada, mas um jogo Ti- tual em que os participantes saltam sobre as cos~ tas do animal. Dois dos atletas de cinturas esbel- tas sao mulheres, ciferenciadas (como na arte egipcia) principalmente pela cor mais clara de suia pele. Nao ha a menor dtivida de que o touro era em ORIENTE PROXIMO EO EGEU 43 um animal sagrado ¢ de que 0 salto sobre os tou: +05 tinka um papel muito importante na vida re- ligiosa minéica; cenas como essa ainda ecoam na lenda grega dos jovens ¢ virgens sacrificados ao Minotauro. Se, no entanto, tentarmos “ler” 0 afresco como uma descrigao do que realmente acontecia durante essas apresentacées, aché-la~ emos estranhamente ambigua. As trés figuras mostram fases sucessivas da mesma agao? Como 6 jovem ao centro chegou as costas do touro, ¢ em que direcdo esté se movendo? Os eruditos chegaram mesmo a consultar especialistas em rodeios que fossem obtidas respost ras para essas questoes. Elas nao signific que 0 artista mindico fosse mediocre — seria absurdo culpéio por aquilo que ele, antes de mais nada, nao pretendeu fazer — mas que a facilidade de movimentos fluidos ¢ sem esforcos era, para ele, mais importante que a precisio factual ou forca dramatica. Ele, por assim di idealizou o ritual, ao enfatizar seu aspecto har- monioso e jovial com tanta intensidade que os participantes comportam-se como golfinlos dan- do cambalhotas no mar. 44 como a ARTE comegou 37. “Afiesco Mase Arqueal Tourvive eo, Heraklion, Creta Arte micénica Ao longo das praias no sudeste do continente gre- 0 existia, a época do Periodo Heladico Recente (c. 1600-1100 a.C.) um grande ndimero de povoa- des que correspondem, em grande parte, as da Creta mindica. Essas povoacdes também agru- pavamse ao redor dos palacios. Seus habitantes, passaram a ser chamados de micenenses, a par- tir de Micenas, a mais importante dessas povoa- ‘goes. Como as obras de arte ali desenterradas revelavam, muitas vezes, um cardter surpreen- dentemente mindico, pensou-se a principio que os micenenses haviam vindo de Creta, mas atwal- mente € consenso geral que descendiam das pri- mitivas tribos gregas que haviam entrado no pais logo depois de 2000 a.C. Por cerca de quatrocentos anos, esse povo ha- via levado uma vida pastoral anénima em sua nova patria; seus modestos ttimulos nada mais revelaram além de simples trabalhos em cerémi- cdo Palacio de Minos, Cnossos, Creta, ¢. 1500 a. Altura: 0,62 m: fincluinda a faixs superior ca ¢ algumas armas de bronze. Por volta de 1600 aC, entretanto, comecaram subitamente a en- terrar seus mortos em tiimulos em forma de tkineis profundos e, um pouco mais tarde, em camaras cénicas de pedra, conhecidas como tt ‘mulos em forma de colméia. Essa evolucao atin- git seu ponto culminante por volta de 1300 a.C. ‘com estruturas tao impressionantes quanto a que se ¥é na figura 38, construida em camadas con- céntricas de blocos de pedra cortados com pre cisao, Seu descobridor achou que se tratava de uma construcdo ambiciosa demais para ser um ttimulo e deu-the o nome enganoso de ““Tesouro de Atrew”. Sepulturas assim elaboradas $6 po dem ser encontradas no Egito, durante o mes: mo periodo. Além de detalhes como a forma das coltinas ou 98 motivos ornamentais de tipos variados, a ar- quitetura micénica pouco deve a tra sia ‘to Tesouro de Atreu, Mivenas, ¢. 13001250 ca. Os palacios no continente eram fortale: no alto de colinas, cercadas por muralhas de- fensivas de enormes blocos de pedra, um tipo de construcao bastante desconhecido em Creta. ‘A Porta dos Leaes em Micenas (fig. 39) € 0 re manescente mais impressionante dessas enormes fortalezas que inspiraram tanta admiracdo aos gregos dos tempos posteriares que eles as con- sideravam obras dos Ciclopes (uma raca mitica de gigantes de um olho 6). Outro aspecto da Porta dos Ledes, estranho & tradicao mindica, € © grande relevo em pedra acima da entrada. Os dois ledes ladeando uma coluna mindica simbéli- ca tém uma majestade austera e heréldica. Sua CIDADELAS — 0 ANTIGO ORIENTE PROXIMO F.0 EGEU 39. A Porta dos Leses, Micenas, . funcio de guardiaes da porta, seus corpos tex sos @ musculosos seu desenho simétrico suge rem, novamente, uma influéncia do antigo Oriente Proximo. A essa altura podemos lembrar- nos da Guerra de Tréia, imortalizada na Miada de Homero, que trouxe os micenenses & Asia Menor logo apés 1200 a.C.; parece provavel ntretanto, que comecaram a viajar através do Bgeu, para 0 coméreio e a guerra, muito antes disso. Arte grega As obras de arte que conhecemos até agora so como estranhos fascinantes; aproximamo-nos de- las com plena consciéncia de seu contexto impe- netravel e das “dificuldades de linguagem” que apresentam. No entanto, assim que chegamos ao século Via.C., na Grécia, nossa atitude passa por ‘uma transformagao: sentimos que esses no so estranhos, mas estamos ligados a eles por alu: ma forma de parentesco — sao membros mais velhos de nossa prépria familia. Ser também conveniente lembrar, ao voltarmomnos para esses nossos “ancestrais”, que a tradi¢ao ininterrupta que nos liga aos gregos antigos é tanto uma van- tagem quanto uma desvantagem: ao examinar- mos as obras gregas originais, devemos ter 0 cuidado de nao permitir que as lembrangas de. suas incontdveis imitacdes posteriores se inter- ponham em nosso caminho. ‘Os micenenses e outros grupos de ancestrais comuns descritos por Homero foram as primei- ras tribos que falavam grego a vaguear pela pe- ninsula, por volta de 2000 a.C. Mais tarde, por volta de 1100 a.C., outras vieram, triunfando e absorvendo as que j4 se encontravam ali. Dentre os que chegaram posteriormente, os dérios es tabeleceram-se no continente; outros, os jénios, espalharam-se pelas ilhas do mar Egeu e pela ia Menor. Alguns séculos mais tarde, aven: turaram-se pelas aguas do Mediterraneo ociden- tal, fundando colonias na Sicilia e no sul da Ttdlia. Embora os gregos fossem unidos pela lin- gua € crengas religiasas, as velhas lealdades tri- bais continuaram a dividi-los em cidades-estados. A intensa rivalidade existente entre elas por ques tées de poder, riqueza e status, sem diivida esti- mularam 0 desenvolvimento das idéias ¢ instituigdes; no final, entretanto, pagaram caro pe- la sua incapacidade de fazer acordos e conces ses, pelo menos 0 stliciente para ampliar s conceito de governa do estado, A Guerra do Pe Ioponeso (431-404 a.C.), na qual os espartanos e seus aliados venceram os atenienses, foi uma catastrofe da qual a Grécia nunca se recuperou. a 46 Estilo geométrico A fase de formagao da civilizagao grega abrange cerca de quatrocentos anos, dec. 1100 a 700 a.C, Sabemos muito pouco dos trés primeiros séculos Gesse periodo, mas, apds 800 a.C., os gregos sur- gem rapidamente a plena luz da historia. Esse pe- rfodo também testemunhou o desenvolvimento total do mais antigo estilo caracteristicamente grego nas artes plasticas, o chamado estilo ge métrico. $6 0 conhecemos na pintura em cera mica ¢ na escultura em menor escala (a arquitetu- ra monumental e a escultura em pedra nao apa- receram até o século VIT a.C)) Inicialmente, a ce- 40. Vaso de Dipylon, Séeulo VII a.C. Altura: 1,08 m, Mur seu Metropolitano de Arte, Neva York (Rogers Fund) Ps ramica s6 havia sitio decorada com desenhos abs- tratos — tridngulos, formas em xadrez, circulos concéntricos — mas, por volta de 800 a.C., figu ras humanas ¢ de animais comecaram a aparecer no interior de uma concepcao geométrica, e nos exemplos mais amadurecidos essas figuras jé constituiam cenas de uma maior elaboracao, Nosso espécime (fig. 40), do cemitério de Dipy Jon em Atenas, pertence a um grupo de muito grandes, usados como monumentos dos ttimulos; seu fundo tem orificios através dos quais as oferendas liquidas podiam filtrar-se até 0 mor- to, embaixo. Na parte principal do recipiente ve $$ 0 morto, que jaz em camara ardente, laceado por figuras com os bracos erguidos em um gesto Ge lamentagao, e um cortejo fiinebre de car muagens ¢ guerreiros a pé. O que hé de mais admirdvel nessa cena € 0 fato de ela nao con- ter nenhum: propésito € exclusivamente comemorativo. Aqui jaz um homem digno, € 0 que cla nos diz, que foi pranteado por muitos e teve funerais esplén referéncia a vida apds a morte; seu AI. Psiax. Hires Estrangulando o Led de Nevéia. Anfora atica de figuras em preto, de Wuici, Periodo areaico, c. 52 CC. Altura: 0,50 m, Museu Civico, Brescia, Italia didos. Ser , entio, que 0s gregos ndo tinham uma concep¢ao da eternidade? Tinham, mas para cles o dominio dos mortas era uma regio sem cores e vagamente definida, onde as almas, ou “sombras”, lev: m uma existéncia insigni ficante e passiva, sem fazerem quaisquer exigén- cias aos vivos. Estilo arcaico Por voita de 700 a.C., a arte grega, estimulada por um incremento das relagdes comerciais com © Egito e o Oriente Proximo, comecou a absor- ver poderosas influéncias dess 2m vida as inexpressivas imagens geométricas déricas. Do final do século VII até cerca de 480 a.C., esse amalgama produuziu aquilo que chama- mos de estilo arcaico; mesmo no possuindo ain- dao equilibrio e a perfeicao do estilo eldssicn, que surgiu na parte final do século V a.C., o estilo ar- caico tem um maravilhoso frescor que faz com s vital da ar- regides, que de- que muitos 0 considerem a fase ma te grega. Figu s em preto Por volta dos meados do século VI a.C., 08 pin- tores de vasos eram particularmente tao estima, dos que os melhor obras. A cena de Hércules estrangulando o lea de Neméia, na anfora de Psiax (figs. 41 © 42), € uma manifestacao jé muito distante das figuras convencionais do estilo geométrico. Os dois pe- saclos corpos parecem quase unidos para sempre inhas incisas e detalhes em

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