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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E£ CIENCIAS HUMANAS A REVOLUGRO COPERNICANA - GALILEANA: ORIGEM, SIGNIFI- GADO E INSERGAO NA HISTORIA DO PENSAMENTO CIENTIFICO- FILOSOFICO AN'TIGO E MEDIEVAL. Pitima Regina Kedrigues fvora Orientador: Prof.Dr. Michel Ghins é, pl bnten Mor Upnrats/tou ct le cha frugal AK Tere a dace f~a ai fuadida pile. 519. FAT Reewa kocugves Evlowe Ge Jade pele Ce 71970 floods. Cavcajprve ;28 de ageto hi 9Sh. Tese apresentada para chtengao do grau de mes~ tre em Filosofia. 4 Agosto de 1987 yNICc AMP aRLIOTECA CENTRAL Neste trabalho analisa~ © desenvolvimento da ciéncia de Nicolas Copérnico e Galileo Galilei, e suas meto- dologias, visando compreender a origem, o aleance ¢ a signi- ficagdo da revolugao copernicana~galileana, e a sua insergao na histéria do pensamento cientifico-filoséfico antigo e me- dieval. Numa primeira parte feita @ feita uma discussao da ciéncia antiga e medieval a fim de tragar em linhas ge~ rais 0 universo cientifico filoséfico no qual Copérnico e Ga lileo estavam inseridos ao claborarem suas teorias. Também 6 analisada a revolugdo copernicana, sua origem, motivacao ~ e teses principais. A seaunda parte desta tese @ dedicada 4 andlise historiografica da ciéncia de Galileo. Esta leitura é feita informada por estudos epistemolégicos, notadamente os de Paul K. Feyerabend. Ao prof. Michel Ghins, pela orirntagao segura e pelo estTmulo para 3 realizagdo deste trabalho. Aos profs. Harvey Brown e Baltazar Barbosa Filho, pelas criticas e discussoes na fase inicial do meu mestrado. Ao Prof. Roberto Martins, pelas criticas, sugestées e incentivo na fase final deste trabalho. Aos amigos e colegas da pos-graduagao do IFCH, Gilson Schwartz ,Ney Branco de Miranda e Jorge Luis Grespan com quem as conversas sobre temas ligados ou nao a minha tese aproximaram-me cada vez mais da Filosofia. Aos profs. Guilherme Fontes Leal Ferreira e Silvestre Ragusa, do Instituto de Fisica e Quimica de Sdo Carlos - USP, pelo apoio que derain @ minha decisdo de deixar o mestrado em Fisica, indo para a Filosofia. Aos meus pais, irmiio.e marido, pelo apoio em todos os sentidos, Aos funcionarios do IFCH e do Centro de Logica e Epistemologia que contribuiram, cada uma seu modo, para tornar este trabalho viavel As bibliotecarias do Instituto de Fisica e Quimica de Séo Carlos ~ USP, que com sua eficiéncia e amizade facilitaram enormemente 0 meu trabalho. K FAPESP, ao CNPq e @ CAPES, pelo suporte financeiro. KR Ligia, ao nene e ao Cesar. PARTE 1 ~ ASTRONOMIA E COSMOLOGIA PRE-GALILEANA 01 Cap. 1 - ASTRONOMIA E COSMOLOGIA DOS ANTIGOS............0c0eeee ee 05 1.1- De Thales a Philolaus: as primeiras doutrinas astronémi- €AS GregaS .eeeeeeeee bev vveeeeeeeees . 07 1.2- Universo das formas perfeitas de Platdo e seus disci- 1,3- A dinamica celestial e a mecanica terrestre de Aristo- - %6 1.4- As primeiras teorias heliocéntricas: Heraclides de Pon - tos e@ Aristarchos de Samos ......c0ccseeeceeeseeeeseeesaseeee 36 1.5- Sistema de Epiciclo e Deferente., 1.6- Astronomia Ptolomaica.....-.ce:eesseeseeereeeeeee ee 51 Cap. 2 - COPERNICO E SUA REVOLUGKO .. 6 2.1- Introdugio ... 6 2.2- Origem do copernicanismo . . 63 2.2.1- Idade Média: uma longa e tenebrosa noite dos mil anos? 63 2.2.2- A critica medieval a dindmica aristotélica.... 74 2.2.3- Discussio em torno da possibilidade do movimento da Terra 2.2.4- Cosmologia medieval. ......seceseseseterenereee 98 2.2.5- Conclusao .. 2.3- A influéncia neo-platonica na Revolugiio Copernicana..106 2.4- As esferas celestes: sua origem e seus movimentos....126 Apéndice tecnico PARTE 2 - REVOLUGRO GALILEANA +166 Cap. 3 - SIDEREUS NUNCIUS , 3.1- Os primeiros anos de Galileo e sua conversdo ao coperni- canismo .... eve 193 3.2- Telescdpio: um sentido superior e mais aperfeicoado. .190 3.2.1- Construgao dos primeiros telescOpios ........ 190 3.2.2- A descoberta galileana do telescdpio: fruto de raciocinio dedutivo? ... 3.2.3- Discussao em torno das bases tedricas de Galileo para a construgao do telescopio » 224 3.3- Testes terrestres e extrapolacao para o Céu ........ 256 3.3.1- Contexto da justificagao... 3.3.2- As primeiras observagoes telescopicas de Gali - 3.3.3- 0 problema dos dados celestes Cap. 4 - GALILEO £ 0 DIALOGO SOBRE OS DOIS SISTEMAS DE MUNDO - PTO- LOMAICO £ COPERNICANO . » 286 4.1- Introdugao . 4,2- Do impetus 2 inércia circular .......seceee sees enone 293 4.2.1- Galileo e os precursores da ffsica inercial...295 4.2.2- PrincTpio da inércia circular ........sseueee 301 4.3- Movimentos Compostos e a relatividade dos movimentos ...,. 318 4.4- Consideracdes finais sobre o argumento da torre ..-....+++ 34 Cap. 5 - CONCLUSAO . - ma 343 Nao me inclino (com efeito) a com- primir doutrinas filosoficas em espagos acanha - dissimos e a adotar aquele estilo rigido, consi- so e desgracioso, aquele estilo despido de qual~ quer adorno que @ proprio dos gedmetras puros e€ que os leva a sO utilizar palavra que a eles se tenha imposto por estrita necessidade...Ndo con- sidero erréneo falar de coisas mialtiplas e diver sas, mesmos nos tratados devotados a um tinico assunto...pois entendo que a grandeza, nobreza , exceléncia de nossos feitos e invengdes nao esta no que @ necessario - embora, de outra forma, passasse a corresponder a um grande equTvoco - mas no que nao 0 é. Galileo Galilei (carta a Leopoldo de Toscana, 1640) A Filosofia da ciéncia contemporanea assistiu nas filtimas décadas ao fracasso total de todas as formas de justificacionismo ou verificacionismo, quer aquelas que acre ditavam que o conhecimento € 0 conhecimento demonstrado pe- lo poder do intelecto, quer aquelas que idenficavam o conhe- cimento com o conhecimento demonstrado pela evidéncia — dos sentidos. Assistiu-se também ao “enorme esforgo realizado pelos racionalistas classicos em tentar salvar os principios sintéticos a priori do intelectualismo e dos empiristas clas sicos para tentar salvar a certeza de uma base empiricae a validade da inferéncia indutiva. Para todos eles a honestida de cientifica exigia que ndo se afirmasse nada que nao esti- vesse demonstrado, Todavia, ambos foram derrotados: os kan- tianos pela geometria ndo-euclidiana e a fisica nao-newtonia na, € oS empiristas pela impossibilidade légica de estabele- cer uma base empirica (como assinalarani os kantianos, os fa- tos nao podem demonstrar enunciados) e de estabelecer uma 16 gica indutiva. Resultou que todas as teorias sao igualmente indemonstraveis" (01), Mesmo as tentativas neo-justificacionistas, ou (01) Lakatos, T., Methodology of rch Programmes, grave (eds,), Criticism and the Growth of Knowledge, ( Lon- on and tl in Imre Lakatos and Alan Mus Scientific Rese dres: Cambridge University Press, 1972), p. 92 ii probabilistas, segundo as quais as teorias cientificas, embo ra igualmente indemonstraveis tém diferentes graus de proba- bilidade relativa 4 evidéncia empirica disponivel ndo re- sistiram ds criticas filoséficas comtempordncas, principal- mente aquelas de Karl Popper, para quem todas as teorias nado sé sdo igualmente indemonstraveis, como igualmente improva- veis, uma vez gue o estabelecimento de uma légica da inferén cia provavel, ou légica da probabilidade, se encontra diante das mesmas dificuldades que o estabelecimento da légica indy tiva, e estas sio ao ver de Popper intranspontveis. Diante desta situagao surgiram varias correntes falsificacionistas propondo uma outra saida a fim de manter a possibilidade do pensamento racional. De acordo com estas correntes nao se deve exigir que um sistema cientifico seja suscetivel de ser dado como valido definitivamente, em um sentido positivo, porém a sua forma légica deve ser tal que se torne possivel validi-lo através de recurso a provas em- piricas, em um sentido negativo, Deve ser possivel, em prin- cipio, refuta-lo pela experiéncia. Portanto, embora a verdade de um enunciado cien- tifico ndo possa ser demonstrada, a sua eventual falsidade pode, isto devido a uma assimetria entre a verificabilidade e a falseabilidade, assimetria esta que decorre da forma 16- gica dos enunciados universais. Assim teorias cientificas po dem ser eliminadas mediante o mecanismo da refutagao. Entre as correntes falsificacionistas encontra-~ mos uma que foi duramente criticada por Karl Popper e Imre Lakatos, 0 chamado falsificacionismo dogmAtico ou naturalis- ta que 6 sustentado sobre dois pressupostos biasicos: 0 pri- iii moiro & que existe uma £ronteira natural (i.e. psic légica ) entre os enunciados tedricos ou especulativos e os enuncia- dos de fato ou observacionais (ou basicos); e 0 gundo pre: suposto & que se um enunciado satisfizer a condigado psicolé- gica de ser observacional entdo cle terd seu valor verita- tivo assegurado de modo indubitavel, pois constitui nosso co nhecimento imediato genuino, pode-se dizer que ele é provado a partir dos fatos. A refutagdo de uma tcoria se dara quando os enunciados tedricos forem contraditados pelos enunciados de fato. "porém, (como afirmou Lakatos) ambos pressupos- tos sio falsos. A psicologia testifica contra o primeiro, a légica contra o segundo" (7), pois mesmo que existisse uma demarcagao natural (psicolégica) entre os enunciados observa cionais e os enunciados tedricos, o valor veritativo dos enunciados observacionais nao poderia ser decidido de modo indubitdvel: "nenhum enunciado de fato pode ser demonstrado a partir de um experimento". Os enunciados s6é podem ser jus- tificados por outros enunciados, logo os enunciados de fato sdo indemonstraveis e portanto faliveis. "Se sdo faliveis en tao o conflito entre teorias e enunciados de fato nao sao » (03) falsificagdes, sendo simplismente inconsisténcias Além disso 0 critério de demarcagao do falsifica cionismo dogmatico, segundo o qual uma teoria sé é dita cien tifica se tiver uma base empirica @ inutil uma vez que eli- (02) Lakatos, I., Falsification and Methodology..p.96 (03) idem, p. 97 iv minarja a classe mais importante das que comumente se consi- deram teorias cientificas. Diante deste quadro o que resta aos fildsofos in teressados em descrever a ciéncia, em deserever o progres do conhecimento cientifico? "Se todas as teorias cicntificas ndo sao demons- traveis, nom probabilizaveis, nem contra-demonstraveis, en- tao os cGticos estavam certos: a ciéncia nao 6 mais do que especulagao va e nao existe algo como o progresso no conheci nto cientifico" (04), Lakatos parece decepcionado com este fim e tenta encontrar um meio de nao ter que se render ao ceticismo. Pa- ra isso ele tenta elaborar uma teoria da ciéneia capaz de ex plicar o progresso cientifico enquanto um progresso racio~ nal, tentando encontrar os critérios sobre os quais se ba- seia a eliminagdo de teorias. ere & Esta teoria da ciéncia a que Lakatos se re una extensdo do que ele chama de falsificacionismo metodolé- gico sofisticado, que constitui um ramo do convencionalismo e que j4 estava parcialmente presente em Popper. Segundo Popper, a ciéncia comega a partir de um problema, Esse problema pode ser resultado de um conflito en tre uma expectativa e uma observagao, ou de contradigdes in- ternas a uma teoria, ou entre duas teorias diferentes ou ain da de um conflito entre teorias 2 nossas observagées Uma vez formulado 0 problema, cabe ao cientista (04) Lakatos, resolvi-lo. Isso equivale a inventar uma teoria relevante , fal eAvel em grau maior do que qualquer teoria alternativa, porém ainda nio falseada, que resolyva o problema em ques tentando explicar © conflite que o yerou. Esta nova teoria ve ser "capaz de explicar cer tos fatos experimentais - 05 fatos que as teorias anteriores explicaram com Gxito, outros que nio conseguiram explicar e outros ainda que refutaram essas teorias. A nova teoria deve ria também resolver, se possivel, certas dificuldades teéri- cas (por exemplo dispensar determinadas hipéteses ad hoc ou unir duas teorias" (05) + Além de explicar todos os explanan- da que propde a explicar, esta nova teoria, para ser consi- derada cientifica por Popper, deve também ter consequéncias novas e testaveis (de preferéncia de um novo tipo) e d var 4 previsio de fendmenos que até entéo nao foram observa- dos. Elaborada a teoria, conjecturalmente porém ainda nao justificada, deve-se atacd-la, criticd-la, pois o debate racional dentro da ciéneia, segundo a visdo poppericana, con siste na tentativa de criticar e ndo na tentativa de demons- trar ou tornar provavel. Cada passo dado no sentido de proteger da criti-~ ca a teoria analisada & um passo que afasta da racionalida- de. Devemos sim procurar o conjunto dos falseadores — poten- (05) Popper, K., Conjecture and Rejutations: The growth of scientific knowledge, 3rd ed. (London: Routledge and kegan Paul, 1969), cap. 10, item XVIII. vi ciais da teoria em questdo e especificd-los bem; e através deles tentar refutar tal tcoria. A refutagdo da teoria ocorrera se um cnunciado basico contradiser os enunciados que estGo sendo submetidos a provas. Quando isso ocorre, cla deve ser afastada, mas nao no sentido de algo que tenha sido contra-demonstrado defini- tivamente, j4 que o falseamento de teorias depende de enunci ados basicos, cuja aceitagao tem um carater de convengao. © convencionalismo da accitagao dos enunciados basicos deriva do fato de que Popper exige que todos os enun ciados, para serem considerados cientificos, devem ser obje- tivos, ou seja, devem ser passiveis de testes intersubjeti- vos: entdo es enunciados que se referem @ base empirica da ciéncia (enunciados de fatos singulares que podem atuar como premissa falsificadora - 0s enunciados baisicos) deverdo tam- bém ser objetivos, logo, suscetiveis de testes intersubjeti- vos. A possibilidade de testes intersubjetivos implica em que outros enunciados suscetiveis de téstes intersubjetivos possam ser deduzidos dos enunciados que devem ser submetidos a testes. E assim ad infinitum. Ora, 6 claro que os testes nao podem ser realiza dos ad indtum, e a exigéncia popperiana é a suscetibili- dade de testes ad infinitum. A opgao de parar com a cadeia de provas, e consequentemente a aceitagao do filtimo enuncia- do basico submetido a testes, requer uma decisao, a saber, a (06) Popper, K., The Logic of Scientific Discovery, New York: Harper, 1969), cap. IV, item 30. de accité-lo temporariamente como verdadciro. “Sob um prisma légico, o teste de uma teoria de- de onunciades bisicos, cuja accitagao ou re jeigio pende, por sua vez, de nossas decisocs. Dessa forma, sao as (6) Ses yue estabelecem o destino das teorias". Poréw, a convengio ou decisdo ndo determina, de mancira imediata, nos sa aceitagdo de cnunciados universais, mas, ao contrarie, in flui em nossa aceitagdo de enunciados singulares . Popper sustenta que, em filtima instancia,decide- se 0 destino de uma teoria pelo resultado de uma prova; isto , pela concorréncia.acerea de enunciados bisicos, a escolha de uma teoria particular 6 decididamente influenciada pela aplicagdo da teoria e pela aceitagio dos enunciados bisicos ligados a essa aplicagao. Consequentemente, “a base empirica da cidneia objetiva nada tem, portanto, de absolute". A cién cia nado repousa em pedra firme. "A estrutura de suas teorias levanta-se, por assim dizer, num pantano" (07), © progresso, entdo, se di quando passamos de uma para outra teoria, onde a nova teoria tem mais contetdo emp rico que a anterior, oferecendo assim alguma informagdo nova comparada com a sua predecessora, sendo que alguma parte des sa informagao excedente esta corroborada. A refutacgdo poppe- riana nao é simplesmente uma relagao entre uma teoriae a base ompirica, mas uma relagao miltipla entre teorias alter- nativas, a ‘base empirica' original e o desenvolvimento empi (07) Popper,K. The Logic of Scientific Discovery, cap. Iv, item 30 viti rico resultante do conflito entre as tcorias alternativas. © que torna uma teoria racional ou empirica se- gundo esta visdo, nao & o fato de podermos deduzir determi- nados enunciados a partir dela, mas antes o fato de podermos examina-la criticamente, sujeitd-la a tentativa de refuta- Jo, inclusive com testes obtidos mediante observagées "~ . mais racionalidade da ciéncia resideVia escolha racional das no- vas teorias do que no seu desenvolvimento dedutivo" (8) | Assim 6 a receita de Popper: vale tia nas conje! turas, de uma parte, e austeridade nas refutagées, por ou- tra. A honestidade intelectual nao consiste em assentar a prépria postura demonstrando-a; mas sim especificar com pre cisdo as condigées sob as quais se est disposto a abandonar a prépria postura. A teoria popperiana sofreu um grande golpe apés a critica de Thomas Kuhn e Paul Feyerabend; ambos apoiam su as criticas sobre a hist6ria da ciéncia, acreditando que es- ta ndo pode ser posta de lado como sendo irrelevante para os netodologistas. Todavia as consequéncias epistemoldgicas que cada um deles deriva de seu estudo de casos sao completamente diferentes. Kuhn, ao contrario de Popper, considera que 0 debate racional sé ocorre na ciéncia em raros momentos de crise. 0 desenvolvimento da ciéncia normal, do ponto de vis- ta Kuhniano, se caracteriza pelo dogmatismo quase religioso (08) Popper, K., Conjectures and Refutation, cap. 10 item V. ix © por uma postura néo critica por parte dos cientistas, que tentam a todo custo proteger sua tcoria da refutagdo. A revo lugdo cientifica, segundo Kuhn, nado sé nado caracteriza a ci- éncia, ce 9 excopeional: ela @ extra-cientiFica. Kuhn apés constatar o fracasso, tanto do justifi cacionismo como do falsificacionismo, em descrever racional- mente o desenvolvimento da ciéncia, conclui que a prefer cia de uma teoria cientifica T por outra nao se da racional- mente, a mudanga cientifica corresponde a uma esp cie de con versao mistica ou religiosa, que nado é nem pode ser governa- da pela razao. Feyerabend, por sua vez, considera que receitas epistemolégicas embora possam pare ser espléndidas quando com paradas a outras receitas epistemoldgicas najo se pode assegu rar que clas jam 0 melhor meio de se descobrir nao uns pou cos 'fatos' isolados, mas também algun: profundos segredos da natureza. ‘A idéia de conduzir os negdcios da ciéncia com © auxilio de um método que encerre principios firmes, imuta veis © incondicionalmente obrigatérios vé-se (segundo Feyera bend) diante de consideravel dificuldade, quando posta em confronto com os resultados da pesquisa histérica. Verifica~ mos, fazendo um confronto, que nao ha uma sé regra, embora plausivel e bem fundada na epistemologia, que deixe de ser (09) Feyerabend, P.K., Against Method (Londres: NLB, 1975), trad. 0. Mota e L. Hegenberg, Contra o método (Rio de Janeiro: F. Alves, 1977), p- 29 violada om algum momento. rha-se claro que tais violagées nao 40 eventos acidentais, nado sao o resultado de conheci- mento insuficiente ou de desaten: que poderia ter sido evi tada. Perccbemos, ao contrdrio, que as violagdes sao neces- sarias para 0 progresso. Com efcito, um dos notaveis .tragos dos recentes debates travados em torno da histGria e da filo sofia da ciéncia 6 a compreensao de que acontecimentos e de- senvolvimentos tais como a invengiio do atomismo na Antigui- dade, a revolugao copernicana, o surgimento de moderno ato- mismo,..., © aparecimento gradual da teoria ondulatéria da luz sd ocorreram porque alguns pensadores decidiram ndo se deixar limitar por certas regras metodolégicas Sbvias — ou (09) porque involuntariamente as violaram A cigéneia tal como é conhecida hoje, %3 pode xistir, de acordo com Feyerabend, se forem abandonadas as re gras do racionalismo proposto por Popper; basta analisar al- guns exemplos da hist6ria para verificar que nao foi a par- tir de um problema, como propdemos popperianos, que se desen volveram algumas teorias, muito menos aquelas que constitu ram as chamadas revolugdes cientificas, mas, antes, a par- tir de uma atividade muitas vezes sem importancia, vindo a resolugao de problemas apenas como efeito colateral. Além Gisso, sejam quais forem os exemplos por nés considerados, verificamos, segundo Feyerabend, que os principios do racio- nalismo critico (tomar os falseamentos a sério, aumentar © contefido, evitar hipdteses ad hoc, e assim por diante) pro - porcionam inadequada explicagao do passado desenvolvimento da ciéncia e sio suscetiveis de prejudicar-lhes o desenvolvi mento futuro. xi Um dos mais fortes exemplos, apresentados por Feyerabend, de violagao das regras metodoligica © desen = volvimento da dout: ina copernicana, desde 0 tempo de Galileo até © século Xx. Neste caso, partiu-se "de uma firme convicgao contrria 3 razio e & experiéncia da época. A conviegio se semina © encontra apoio em outras convicgées que s gualmente ou mais desarrazoadas (lei da inércia, telescépio} A pesquisa toma novas diregdes, constroem-se novos tipos de instrumentos, a evidéncia passa a ser relacionada com as teo rias segundo novas linhas, até que surja uma ideologia sufi- cientemente rica para oferecer argumentos especificos em de- fes. a de cada uma de suas partes e suficientemente plastica para encontrar es: argumentos sempre que se fagam necessd rios. Hoje, podemos dizer que Galileo trilhava o caminho certo, pois sua persistente busca de algo que,acerta altura se afigurou uma ridicula cosmologia, veio a criar os elementos necess&rios para defendé-la contra aqueles que sé aceitam um ponto de vista quando ele é apresentado de deter- minado modo e que s6 confiam nele quando encerra certas fra ses mAgicas, denominadas relatos de observagao. E isto nao & excegio, & 0 caso comum: as teorias 53 se tornam aras ¢ razoaveis depois de terem sido usadas, por longo tempo, va- rias partes incoerentes que as compoem. Essa operagao desar- razoada, insensata, sem método 6, assim, condigdo inevitavel de clareza e éxito empirico" (0) | Assim, conclui poyerabend, © anarquismo epistemolégico favorece a concretizacao do pro- gresso (quer o progresso no sentido popperiano, quer no sen- tido empirista, que em qualqueroutro sentido que a ele se de xii cida empre tar). Mes © uma ciéncia que se paute pelo bem or- denado sé alcangara resultados, segundo Feyerabend, se admi- tir ccasionalmente, procedimentos andrquicos. Diante das criticas kuhnianas e feyerabendianas, qual a saida para a filosofia da ciéncia? 0 irracionalismo quase que religioso de Kuhn, ou 0 anarquismo epistemolégico de Feyerabend? A nosso ver a saida nao reside na proposta kuh- niana, isto porque a histéria da ciéncia, e principalmente das revolugdes cientificas nao se desenvolve de acordo com os padrdes metodolégicos de Kuhn. As revolugées cientificas, (como por exemplo a revolugao copernicana, que serA analisa- da no Cap. IT desta tese) nao ocorrem somente quando o actmu lo de anomalias gera um estado de crise, quando entdo um no- vo 'paradigma' @ proposto, diante do qual ocorre uma espécie de conversdo mistica que nado 6, © nado pode ser, govornada pe la razdo. S6 nos restaria entao o anarquismo feyerabendia- no? Nao sei, certamente ha necessidade de uma nova abordagem geral da ciéncia, que talvez possa ser desenvolvi- da a partir da metodologia dos programas de investigagao ci- entifica de Lakatos. Porém aqui nao nos propomos a encontrar tal resposta, mas antes analisar um episddio da histéria da ciéncia que é apresentado tanto por Kuhn, como por Feyera - (10) Feyerabend, P.K., Against Method, Contra o Méto~ do, p. 33. xiii bend para sustentar as suas eriticas ao racionalismo critico e empirismo légico, a saber a Revolucgdo Copernicana- Galilea na. Devemos notar que Kuhn se ocupa princi palmente da Revolugao Copernicana, enquanto Feyerabend, embora apre - sente inimeros emplos histéricos a fim de s istentar sua po sigdo, di particular énfase 4 forma como Galileo desenvolveu as teorias, principalmente aquelas presentes em suas alti- nas @ mais importantes obras; Dialogo sopra ¢ due mascvimt sis temi del lemateo e Copernieano (1632), onde Galileo apresenta sua pesquisa astronGmica, e uma ampla discussdo da controvérsia copernicana, e 08 Diseorst e Dimonstrastont ma- atiche intorna a Due Nuove Seten: z (1638). Assim pretendemos nesta pesquisa analisar 0 de- senvolvimento da ciéncia de Nicolas Copérnico e Galileo Gali, lei e suas metodologias, visando compreender a origem, o al- cance e a significagao da revolugao copernicana-galileana, e a sua insergdo na hist6ria do pensamento cientifico - filo- s6fico antigo e medieval. Esta tese serd dividida em duas partes: PARTE 1 - Astronomia e Cosmologia pré-galileana PARTE 2 - Revolugao Galileana Na parte 1 ser& feita uma discussado da ciéncia antiga e medieval a fim de tragar, em linhas gerais, o uni - verso cientifico e filoséfico no qual Copérnico e Ualileo es tavam inseridos ao elaborarem suas teorias. Esta parte sera subdividida em dois capitulos: Cap. I - Astronomia e Cosmolo gia dos antigos, e Cap. II - Copérnico e sua Revolucao. xiv No capitulo I serio analisados alguns aspéctos da fisica © cosmoloyia de Aristételes © do pensamento cosmoldgi- ee Platdo © seus discipulos, cujo esplrito de simplicidade e harmonia influenciaram fortemente o pensamento de Copérnico e Galileo. Sera também discutida a influéncia de Pitagoras e seus seguidores sobre as idéias cosmoléyicas de Platao, Copér nico e Galileo. Ainda no Cap. I, serao analisados os notaveis sistemas césmicos propostes pelo rimeiros a acreditarem em algum tipo de movimento da Terra, tais como Philolau 1 0 pita gérico; Heraclides de Pontos e Aristarchos de Samos. Além disso serao discutidos algunspontos de Ptolo meu, em especial aqueles que serao alvo da critica copernica- na. No capitulo II serao analisados os trabalhos de alguns medievais como os de Philoponus, dos arabes Avicena, Avempace e Averroes, e dos membros da escola nominalista de Paris, tais como Jean Buridan e Nicolas Oresme, que teréo um papel decisivo na erftica escoldstica que tem lugar nos sécu- los que precedem a revolugao copernicana. Também no capitulo II sera analisada a Revoluc&ao Copernicana, sua motivagao e su as teses principais. A segunda parte desta tese sera dedicada A anAli se historiografica da ciéncia de Galileo Galilei. A leitura histérica sera feita informada por estu dos epistemolégicos, notadamente os de Paul K. Feyerabend. A partir desta leitura sera feito um paralelo entre ela e aque- la feita por Feyerabend comparando as duas visdes no que diz respeito 4 postura epistemolégica de Galileo. xv te paralelo sera fcite tendo cm mente o debate entre Feyerabend ¢ Peter Machamer Machamer contesta tanto a Ie tura historiografica por Feyerabend da ciéncia de Galileo, come a andlise vpistemo légica dela derivada. Diante da controvérsia Feyerabend versus Machamer e a fim de verificar se de fato a revolugao galileana consti- tu. uum exemplo de violagao do empirismo légico e racionalis- ta critico, como afirma Feyerabend, serd feita, nesta parte » uma andlise historiografica dos dois aspectos do trabalho de Galileo sobre os quais Feyerabend sustenta que a metodolo- gia da ciéncia 6, e deve ser, "tudo vale". Estes dois aspectos sao: 0 trabalho telesc de Galileo e a sua nova mecanica. A analise destes aspéctos serA dividida em dois idereus neius) serdo capitulos. Num primeiro (intitulado discut ido: © telescépio, contexto da descoberta © da sua justificagio, e as observagées astronémicas de Galileo. Serao também analisados aspéctos da éptica medieval, desenvol vidos por Alhazen, Witelo, Robert Grosseteste, Roger Bacon, John Peckham, Francesco Maurolico, Giovanni Battista della Porta e¢ finalmente Johannes Kepler, que poderiam ter servido de bases teéricas para a construgao do telescépio ce gao de seu uso. Um segundo capitulo (Galileo ¢ © Dialogo sobre os dois sistemas de Universo, Ptolomaico e Copernicano) sera de- dicado 4 reconstrugao e analise dos argumentos mecdnicos de Galileo em favor da mobilidade da Terra, inserindo-os na dis- cussdo medieval em torno da possibilidade do movimento da Ter xvi ra; sorao também discutidas as novas idGias introduzidas por Galileo (lei da inéreia circular, nova mecénica e principio da relatividade) a fim de sustentar as suas respostas 4s obje ges aristotélicas ao movimento da ‘Terra. o1 PARTE I ASTRONOMIA E COSMOLOGIA PRE-GALILEANA Um erro que tem influenciado muito os historiado- res da ciéncia 6 a nogéo de que a ciéncia natural comegou no s6culo XVII, com a Revolugdo Galileana-Cartesiana, ou talvez no século XVI, com a Revolucdo Copernicana: os Gregos nfo pas sariam de especuladores e todos os pensadores medievais te~ riam se inspirado na teologia e na superstigao. Nés, por outro lado, acreditamos que a ciéncia na- tural foi-se desenvolvendo desde a antigiiidade e que a cién- cia moderna, como diz A. Koyré, “nao brotou perfeita e com- pleta, qual Atenas da cabega de Zeus, dos cérebros de Galileo e de Descartes. Ao contrario, a revolugde yalileana-cartesia na ~ que permanece apesar de tudo uma revolugao ~ tinha si QQ) do preparada por longo esforgo de pensamento Assim sendo, para compreender a origem, 0 alcance © a significagdo da revolugdo copernicana-galileana — tema desta tese — e a sua insergao no pensamento cientifico - fi (1) Koyré, A., Etudes d'hi e_de 1a pensée scientifique (France: Editions Gallimard, 1973) p, 196. Texto de uma con- feréncia feita no Palacio da Descoberta a 7 de ao de 1955. 02 loséfico antigo © medieval —, devemos analisar, ainda que rapidamente, a ciéncia pré-galileana, sobretudo aquela desen volvida por Aristételes (384-322 a.c 1) © © pensamento cosmold gico de Platdo (428-347 A.C.) © seus discipulos, cujo espirito de simplicidade e harmonia influenciaram fortemente o pensa- mento de Copérnico (1473-1543) e Galileo (1564-1642). Ndo poderfamos deixar de discutir também a influén cia de Pitagoras (séc. VI A.C.) © seus seguidores sobre as idéias cosmolégicas de Plat&o, Copérnico e Galileo. Wem dei- xar de analisar os notaveis sistemas césmicos propostos pe- los primeiros a acreditarem em algum tipo de movimento da Terra, tais como Philolaus (séc. IV A.C.), 0 pitagdrico, que colocou © fogo no centro e transformou a Terra on mais uma e: trela girando entre outras, Heraclides de Pontos (387-315/10 A.C.), que propds uma teoria semi-heliocéntrica, considerou 0 Cosimo ao diaria infinito e dotou a Terra de um movimento de rotag em torno de seu préprio eixo, e Aristarchos de Samos (310-230 A.C.), um precursor de Copérnico. Além disso se faz necessdrio a discussdo de alguns pontos do sistema de Ptolomeu (séc. 1), em especial aqueles que serdo alvo da critica copernicana, Também os trabalhos de alguns medievais como os de Philoponus (séc. VI), dos Arabes, Avicena (980-1037), Avempa ce (1106-1138) e Averrées (1126-1198), e€ dos membros da esco la nominalista de Paris, tais como Jean Buridan (1300?-1358) © Nicolas Oresme (1323?-1382), deverdo ser analisados, a que terdo um papel decisivo na critica escolastica que tem lugar nos séculos que precedem a revolugdo copernicana. 03 Finalmente, antes de entrarmos na discussio dos tra balhos de Gi lileo propriamente dita, analisaremos a revolu- yo Copernicana, sua motivagio © suas Leses princi pai Nao pretendemos aqui fazer uma discussao detalhada da ciéncia antiga e medieval, porém achamos fundamental tra- gar, em linhas gerais, o universo cientifico e filoséfico no qual Galileo e Copérnico estavam inseridos ao elaborarem as suas teorias. Cabe lembrar uma circunstancia, assinalada por A. Koyré, e que é muito freqiientemente esquecida, a saber, "o fato de que a fisica de Aristételes nao 6 um amontoado de in coeréncias, mas ao contrério é uma teoria cientifica, alta- mente claborada e perfeitamente coerente e que, no somente possui uma base filosdfica muito profunda, mas ainda, assim como o mostraram P. Duheme P. Tannery, concorda ~ bem me lhor que a de Galileo — com o senso comum e a experiéncia quotidiana"(?) , Nao concordando integralmente com Koyré, T. Kuhn afirma que “ndo dificil encontrar incoeréncias na obra de Aristételes, nem, inclusive, esporddicas e flagrantes contra GigSes, contudo, sua visdo do horem © do Universo apresenta uma unidade fundamental e jamais desde entao havia sido levada a cabo uma sintese comparfvel 4 sua quanto a ex- tensio ¢ originalidade"(?, (2) Koyré, A., Etudes d'histoire de la pensée scientifique, p+ 201. (3) Kuhn, Thomas $., The Copernican Revoluti a, (Cam bridge: Massachusetts), 1957, p. 77. o4 As idéias ci moldyicas de Aristételes, ou seja, suas idéias sobre a real estrutura do Universo, assim como sua teoria da substancia e os principios fundamentais da ex- plicagdo cientifica, dominaram o pensamento europeu até as primeiras décadas do século XVII. Suas opinides tiveram uma grande influéncia e constituiram 0 ponto de partida para a maior parte do pensamento cosmolégico medieval e grande par- te do renascentista, Platdo, por outro lado, embora sem dar uma substan cial contribuigdo 4 astronomia, influenciou varios astréno- mos da antigiidade, como Eudoxos, Callipos, Heraclides de Pon tos, e até mesmo Aristételes; alguns medievais e renascentis tas, como Copérnico e Galileo, entre outros. CAPITULO 1 ASTRONOMIA E COSMOLOGIA DOS ANTIGOS "Nada é ma utr aos toto do qua atri gregos uma Liura autdetone: pelo contrd- rio, eles sorveram toda a eultura viva de outros povos e, se foram ta 0 Longe, & pre- etsamente porque sabi. am retomar a Langa on de um outro pove a abandonou, para arremes sd-la mats longe. Sado admirdvets na arte do aprendinado fecundo ..." Frievrich Nietzehe (A filusofia na época trdgica das gregas ~ 1873) A literatura grega reflete o interesse dos antigos pelos corpos celes es e seus novimentos, bem como a inf luén- cia vital destes sobre as atividades religiosas, agricolas e de navegagdo. Ja nos poemas homéricos, compilados provavelmen te no século IX A.C., encontramos citagdes das constelagdes Ursas, Bodtes, Pléiades, e a estrela de Sirio. Contudo o interesse pelos movimentos celestes nao nasceu com os gregos. Estava presente entre todas as civili- zagdes antigas. Os babilénios, por exemplo, embora, sem formu lar qualquer tipo de teoria geométrica do movimento celeste, 06 desenvolveram una astronomia matemati altamente refinada a partir da qual era possivel conhecer precisamente os pertodos do Sol, da Lua e dos planctas. te conhecimento os capacita va a predi as posigées destes corpos no Céu e a ocorrén- cia de eclipses lunares; apesar disso a cosmologia babiléni- ca era essencialmente mitolégica. Entre outras civilizagdes antigas, tais como a egipcia e a indiana, cosmologias igualmente primitivas e mi- tolégicas prevaleciam. E embora 0s egipcios nao ignorassem os aspectos astronémicos, as observagées celestes, entre eles, 1 eram raras‘!), Podemos entdo dizer que: embora a astronomia tenha possivelmente nascido na Babildnia, a cosmologia, enquanto ciéncia, desvinculada da mitologia e edificada sobre observa @, gdes astronémicas, surgiu apenas com os gregos (1) Sobre a astronomia e cosmologia dos babilénios, egfpcios e indus ver: M.R. Cohen e I.E. Drabkin, A Source books of Greek Science (Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1966); e Planetary Systems from Thales to Kepler , (Cambridge University Press, 1906; reimpresso pela A JsL.E. Dreyer, History of th Dover Publications, Inc., New York, 1953, sob o titul History of Astronomy from Thales to Kepler ); M.K. Munita ed. Theories of the Universe from Babylonian Myth to Modern Science , (New York: The Free Press, A Division of MacMillan Pub. Co., Inc., 1957); 0. Neugebauer A History of Ancient Mathematical Astronomy (3 volumes) (New York: Springer-Verlag, 1975). (2) Devemos notar, como o fizeram Cohen e Drabkin, que embora o desenvolvimento da astronomia geométrica grega tenha ocorrido praticamente patalelo ao desenvolvimento da astrono, mia matematica dos babilénios, até agora a influ@ncia mitua entre os métodos geométricos dos gregos ¢ os métodos nunér cos dos babilénicos permanece completamente sem resposta, 07 Assim concordamos com Thomas Kuhn quando ele afir- ma que: "todas as civilizagdes e culturas que conhecemos tem Gado sua resposta ao problema de elucidar qual é a estrutura do Universo, mas sé as civilizagées ocidentais que descendem da Grécia helénica prestaram singular atengao ao aspecto dos céus para obter tal resposta"‘}), ou seja: a estreita vincu- lagdo entre astronomia e cosmologia & um trago caracteristi- co dos ocidentais. goricos supunhan que} harmonta musteal eum ni- Aristételes (Metaphysica I, S, 986 A preocupagao dos gregos por explicar as variagées ciclicas observadas nos Céus (movimento dos planetas e es- trelas) dentro de um marco tedrico j4 estava presente entre os pré-socraticos, tais como Thales (640 aprox. -546 A.C.) e Anaximandros (610-547 A.C.), ambos da escola de Mileto, Pita goras de Samos (aprox. 580-500 A.C.) @ Anaxagoras (500-428 A.C.). Isto pode ser evidenciado por alguns escassos fragmen tos do pensamento cosmolégico deste periodo primitivo da as- (3) Kuhn, T.S., The Copernican Revolution, cap. I, p. 5. 08 tronomia areqa, 05 quais chegavam até nés através de eseri- tos de pensadores mais recentes, partlicularmente Aristételes. Neles encontramos freqiientes referéncias ds especulagées as- tronémicas e@ cosmolégicas de seus predecessores. ‘ambém se recorre aos poucos fragmentos que restaram do livro de histé ria da fisica de Theophrastus (séc. IV A.C.), principal dis- cipulo de Aristételes, ou as varias compilagdes feitas por escritores mais recentes que parecem ter sido baseadas no li vro de Theophrastus. Esta primeira fase da astronomia grega 4 inaugura- da por Thales, fundador da escola Jonica, a quem 6 atribuida uma série de descobertas tais como: a divisaéo do ano em 365 dias, a determinagdo do solsticio e do equindcio, ¢ a previ- sao de um eclipse total do Sol, provavelmente aquele que ocor reu em 28 de maio de 584 A.C. Segundo Sir Thomas Heath, 6 boa a evidéncia de que hales tenha realmente previsto o eclipse solar mencionado acima‘"), embora provavelmente ele ndo tenha compreendido a verdadeira causa dos eclipses uma vez que ele sustentava que (4) Devemos notar que nao existe unanimidade entre os historiadores da ciéncia com respeito a previsao do eclipse solar de 28 de maio de 584 A.C., feita por Thales. George Sarton, por exemplo, afirma que Thales nao deve ter previsto tal eclipse "pois ele nao tinha o conhecimento necessario, mas ele proprio poderia ter alegado que cle o havia previsto ow seus companheiros poderiam ter sido levados a acreditar que ele o tinha previsto" Sarton, G. A History of Science, ancient ience through the Golden age of Greece, (Cambridge: Harvard University Press, 1966), p. 170. 09 a Terra era um disco circular flutuando sobre a dyua que, a seu ver, correspondia ao elemento IMisico da constituigao de todas as coisas. Além destas descobertas sio geralmente atribuidas a Thales, em comum com outros astronémos em cada caso, algu- mas outras descobertas que, segundo Heath, sé chegaram a ser realmente feitas muito tempo depois da fundagdo da escola de Mileto. Diante da enorme controvérsia com respeito a estas descobertas Heath resolveu apresentar a sua 4 Ht ory of Greek Mathematies uma lista que contém apenas 0 nome dos as- trénomos aos quais as respectivas descobertas podem, com el mais certeza, ser atribuidas, @ ela: "1) 0 fato de que a Lua obtinha a sua luz a partir do Sol (Anaxagoras ¢ possivelmen- te Parménides); 2) a esfericidade da Terra (Pitdgoras); 3) a divisdo da esfera celeste em cinco zonas (PitAgoras e Parmé- nides ; 4) a obliquidade da ecliptica (Qenopides de Chios); 5) a estimativa do diametro do Sol como do circulo do $ol (Aristarchos de samos)" ©). Dentro da astronomia pré-socratica Pitagoras e os pitagéricos ocuparam um importante lugar e alguns historiadg (5) Heath, Sir Thomas, A History of Greek Mathematics, vol. I, from Thales to Euclides, (New York: Dover, Publications, 1981), p. 138. As descrigoes das descobertas de Thales feitas por Heath, e por outros historiadores mais recentes, geralmente referem-se a descrigdes anteriores, principalmente aquelas feitas por Cicero (séc. I A.C.), Plinio, o velho (séc. 1), Clemente de Alexandria (séc. I), Diogenes Laértius (séc, IIL) e Eusébius (? séc. III). 10 res, como Arthur Berry, chegam mesmo a afirmar que: um real progresso astronémico sé ocorreu a partir de Pitagoras e sous seguidores. Segundo o sistema astrondmico desenvolvido por Pi- tAgoras a Terra estd no centro do Universo em torno do qual gira a esfera das estrelas fixas (diariamente de leste para oeste). O Sol, a Lua, e os outros planetas movimentam-se se- a do uma trajetéria circular em sentido oposto ao da rota~ gSo didria. © sistema astronémico conhecido como pitagérico pro vavelmente ndo foi desenvolvido pelo préprio Pitagoras, mas sim por seus discipulos a partir do fim do século V A.C. be acordo com esse sistema o Universo era composto de uma imen- sa esfera em movimento, onde estavam incrustadas as estrelas, cujo centro era uma grande bola de fogo, o Altar de visfvel para um observador terrestre; todos os outros corpos celestes, incluindo a Terra c o Sol, movimentam-se segundo uma trajetéria circular ao redor do fogo central. A Terra, para os pitagéricos, perdeu seu estatuto privilegiado e pas- sou a ser apenas mais um corpo celeste entre outros. Cada pla neta, cada estrela era, para eles, um mundo tal qual a Terra rodeada de ar e flutuando no eter ilimitado. Além da esfera das estrelas fixas, Terra, Lua, Sol e dos cinco planetas visiveis (Merciirio, Venus, Marte, Jipi- ter e Saturno), os pitagéricos acreditavam na existéncia de um décimo planeta, que Philolaus (séc. IV A.C.) chamou de antichton (anti-Terra), que seria invisivel para um observa- dor terrestre, devido a sua posigao e perfiodo de revolugdo ll no Universo (ver Figura I); este décimo planeta era preconi- ido pelos pitagéricos porque dez 6 um niimero perfeito. A te respeito diz Aristételes: "quando eles (os pitaydricos) encontravam em algum lugar uma lacuna nas relagées aur ricas Gas coisas, eles, imediatamente, ocupavam-na a fim de fazer toda sua teoria coerente. Como dez 6 um nimero perfeito, e admitindo que ele mtenha a nalureza toda dos nGmeros (sen- do a soma dos quatro primeiros niimeros) ele sustentavam que devia haver dez corpos movendo-se no Céu, mas como somente ove sGo visiveis eles fizeram (& (6) ) anttehthon o déci no! Devemos notar que no de Caglo It, 13, 293%, 20-25, e 2932 21-25, Arist6teles apresenta uma outra razdo que te- ria levado os "filésofos italianos conhecidos como pitagéri cos" a introduzirem este décimo planeta, diz ele: "junto ao centro, eles (os pitagSricos) dizem que esti o fogo, ¢ a ‘terra é uma jas estrelas, criando a noite ¢ 0 dia por seu movimento circular ao redor do centro. les além disso construfram ou- tra Terra em oposigao a nossa para a qual eles dio o nome de chihon (anti-Terra) ... Todos os que negam que a Terra yepousa no centro pensam que ela gira ao redor do centro, e ndo somente a Terra mas, como dissemos anteriormente, a an- ti-Terra também. Alguns deles’ consideram possivel que haja 5-15, 1952 (6) Avistételes, Metaphysica, I, cap. 5, trad. W.D. Ross, Chicago i i (Great books of the Western World, VIII). Doravante todas as citagdes do Metaphysica de Aristételes serao feitas a pactir desta tradugdo. * Grifo meu 12 The Spitem of Philoteus (Dante and the Early Astronomers, M.A. Orr (Mrs, John Evershed), 1913, apud Gomperz Theodor, The Development of the Pythagorean Doctrine, no Theories of the Universe, from Babylonian Myth to Modern Science t Munitz, M.K, ed. (New York: The Free Press, 1965, p. 37). FIGURA I - "figura superior: noite na Terra. Somente o lado oposto ao centro & habitado; conseqiientemente o é Fogo Central e 0 Antichthon (anti-Terra) sao in- “figura inferior: doze horas depois, dia na Terra, A Terra completou meia revolugao, © seu lado ex- terior est& agora iluminado pelo Sol, que moveu- se somente meio grau para frente de sua Srbita anual. O antichthon completou também meia revolu gio, portanto permanece invisivel”. 13 0s corpos movendo-se, que sio invisiveis para nds devido A interposigao da ‘terra, Isto, eles dizem, di conta do ato celipses da Lua serem mais freyiientes do que os do Sol: pois, além da Terra, cada um destes corpos méveis podem obstrui- la". Muitos historiadores consideram ser esta a verda plicagdo para a introdugdo da anti-Terra no sistema pitagérico e citam esta particular passagem do ve Caelo para sustentar sua posigéo. Eu, por outro lado, considero que seria mais ra- zofvel pensar que a introdugdo do untiehthon tenha sido moti vada mais pela idéia de harmonia e perfeigdo do que para ex- plicar a ocorréncia de um fendmeno, embora ela tenha sido uti lizada por muitos adeptos da doutrina philolaica, com este m, isto porque, eu creio que o sentimento de beleza, harmo nia e simetria entre os pitagéricos era muito mais forte que a necessidade de se buscar as idéias nas suas realizagOes con eretas nos fenémenos da nature a, postura esta tipicamente aristot@lica. © préprio Aristételes ao comentar a postura dos pitagéricos, enfatiza, om varias passagens do be Caco, 1 @ Phystea, que eles buscavam a confirmagéo de suas idéias olhando "mais para as teorias do que para os fa~ tos da observagio" (De Caelo 11, 13, 2932, 30). Inclusive na passagem do De Caelo citada acima, onde Aristételes fala da relagdo entre a construgdo da anti-Terra e a explicagao dos eclipses, ele descreve de for- ma bastante clara a postura dos pitagSricos diante dos fatos 14 da observagio; afirma Aristételes: "Nisso tudo (celocagdo do fogo no centro do Universo, transformagdo da Terra em uma es trela, ¢ a construgio da anti-Terra) eles nao estio buscando teorid 8 @ causas para dar conta dos fatos obs: vai mas além a e tentando acomo- Mm, so estao forgando suas observagG di-las a certas teorias e opinides deles préprios Ao’ se referir a este notdvel sistema cdsmico Aris tételes nao o atribui a um fildsofo em particular, mas aos pitagéricos em geral; porém Aétius, 0 doxdgrafo, sempre e claramente, atribui, a maior parte, seno todo sistema a Philolaus. Ao comentar o sistema de Philolaus, nos seus laevta, Aétius afixrma: "LI. 7.7 (Philolaus sustenta quel o melo é natu- ralmente o primeiro na ordem, @ rodeando-o dez corpos divinos novem-se como em uma danga, 0 Céu e os cinco planetas, de- pois deles o Sol, embaixo dele a Lua, e embaixo da Lua a Ter ra e embaixo da Terra a anti-Terra; depois de todos cles vem © fogo que & colocado como uma lareira ao redor do centro. III, 11.3. Philolaus, © pitagérico, coloca o fo go no meio, pois este 6a lareira de todos; depois dele ele coloca a anti-Terra, e terceiro a Terra habitada, que ele co (7) Aristételes, De Caelo I1, 13, 293%, 25-30, trad. J.L. Stocks, Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952 (Great books of the Western World, VIII). Doravante todas as cita- goes do De Caelo serdo feitas a partir desta tradugio. 15 loca oposta a anti-Terra, girando com ela; esta 6 a razao por, que aqueles que vivem na anti-Terra sio invistveis para aque L s que vivem na nossa terra, III. 13.1-2, Outros sustentavam que a Terra per- manecia em repouso. Mas Philolaus, o pitagérico, sustentava gue ela girava ao redor do fogo em um circulo obliquo, do mesmo modo que o Sol e a Lua. II. 20.12. Philolaus, o pitagérico, sustentava gue o Sol era transparente como o vidro, e que ele recebia a reflexdéo do fogo do Universo c transmitfa-nos tanto a luz co mo o calor ..."(®) Apesar das diferengas entre o sistema desenvolvi do por Pitdgoras e aquele desenvolvido por seus discfpulos, ambos obedecem aos mesmos principios matemiticos ou estéti- co-matem&ticos cujos elementos essenciais sao: a idéia de que © comportamento das coisas @ o produto de suas estruturas geo métricas; a visao de que a esfera é a mais’ bela e a mais per feita das figuras s6lidas; que o movimento circular e unifor me 6 0 mais perfeito; e principalmente que "o nimero & todas as coisas, que o némero nao representa meramente as relagdes dos fenémenos entre si, mas é a substancia das coisas, a cau sa de todos os fenémenos da natureza. Pitdgoras e seus segui (8) Avcivs, Placita, apud Cohen, M.R. and Drabkin, I.E., A Source Book in Greek Science (Cambridge, Mass: Harvard Uni versity Press, 1966) p. 97. 16 dores foram levados a es ta suposigio ao perceberem como tudo na natureza 6 governado por relagdes numéricas, como a harmo nia dos sons musicais depende de intervalos regulares, dos quais a avaliago numérica cles foram 3 nar o . primeiros a determi Finalmente ndo podemos deixar de mencionar que pa ra eles 0 Universo é regido por um senso de beleza, simetria © harmonia, dentro do qual todos os corpos celestes sio esté ricos € movem-se uniformemente em trajetérias circulares. Ca da uma das diferentes revolugdes destes corpos, segundo os pitagéricos, produz diferentes sons, compondo uma masica in- cessante, que nossos ouvidos sao incapazes de ouvir jd gue temo-la ouvido desde o nosso nascimento. Esta misica é conhe cida como “harmonia das esferas". Assim, como afirma Aristételes, "eles, (os pita- géricos] supdem que os elementos dos niimeros sdo os elemen- tos de todas as coisas, e todo o Céu é um niimero e uma harmo nia musical" (a esse respeito, ver: Arist., Met: 363 986= 1-10). Podemos entdo concluir que para Pitdgoras e os pitagSricos a astronomia @ pura matem@tica, uma combinagio de geometria, aritmética e harmonia. E que a estrutura do Uni- verso pode ser entendida e expressa na linguagem ma~ tory of Astronomy from Thales (9) Dreyer, J.L.E., AH to Kepler, 2% ed., (New York: Dover, 1953) p. 36. 17 ematical! | "Que ninguém ultrapasse minha porta sem conhee YP a geonetria" (inserigio que, segunda se diz, esta va colocada na porta da Academia de Platdo) Embora a preocupagao por explicar as variagées ciclicas observadas nos Céus dentro de um marco tedrico 4a estivesse, como dissemos anteriormente, presente entre os pré-socraticos, Platéo, no inicio do século IV A.C., parece ter sido o primeiro a enunciar aquele que foi, talvez, por cerea de dois mil anos, o problema mais importante dos astr. nomos, a Saber: Quais so os movimentos circulares uniformes e ordenados que podem ser tomados como hipéteses para expli- : {aL car os movimentos aparentes dos pianetas? 1!) * Sobre o papel da geometria na ciéncia ver: — Platao, VIL, 527. (10) Para uma leitura mais minuciosa sobre o pensamento el pitagérico ver: Gomperz, T. The Dev ment of the Pythagorean » no Theories of the Universe, Munitz, M.K. eds, vol. I (eap. V, istory of Astronomy fron Thales to Kepler. (cap. Il, The Pythagorean School); e Coben, M.R., and Drabkin, I.£. A Source Book in Greck Science (Pythagorean Astronomy). (11) A este respeito ver: Simplicius, In Aristotelis ory of Greck Mathematic Pythagorean Geometry); Dreyer, J.L.E. AW Neath, T. A His quatuor libros de caelo commentaria, livro II, comentario 43. reek apud Coher, M.R., and Drabkin, A Source Book of p. 97, © Platao, Repiblica, VII, 527” ss. 18 As idGias cosmoléyicas de Platao so apresenta- das, na sua forma ma completa e final, no 7 vaeuc, embora encontrenos em outros didlogos, 0 Phuedo, a Repibl ea, @ as , alyumas cons iderag: es a este respeito. Sua visdo @ for tem nte influenciada pelo sistema de Pitdgoras "que da énfa- se aos niimeros, 4 uniformidade basica que subordina a aparen te irregularidade e ao movimento circular e formas esféricas, como os mais perfeitos de suas espécies"(!?) , Nem sempre é facil seguir a construgdo do Univer so platénico e hd varias opinides divergentes sobre muitos pontos do seu sistema césmico. Esta dificuldade se deve, par ticularmente, ao fato de que os Didlogos de Platao sao mais uma meditagdo filoséfica do que o que nds poderiamos chamar a3) de uma ciéncia sistematica Além disso, como afinm Dreyer, seus textos "sdo freqliontemente interrompidos com ilustragées mitolégicas a partir das quais seu significado filoséfico de ve ser extraido, embora haja na realidade uma perfeita con- cordincia entre as passagens claramente enunciadas e aquelas revestidas de imagens mitolégicas. Mesmo no Gnico didlogo que @ especialmente devotado ds questées fisicas, o tio misturou mito e ciéncia"(!, (12) Cohen, M.R. e Drabkin, 1.£., A Source Book of Greek Science, p. 98. (13) £ bem verdade que a distingao por nds empregada aqui entre a ciéncia sistematica e meditagao filoséfica @ mais mo derna que antiga. (14) Dreyer, J.L.E., A History of Astronomy from Thales to Kepler, 2% ed., p. 54. 19 © sistema cosmolégico de Platéo, embora n > desen= volvido detalhadamente e@ apresentado de uma forma niio sist ftica, influenciou, e muito, o desenvolvimento posterior da astronomia. Por isso alguns pontos deste sistema a vem ser notados. Segundo Platao, Deus "fez 0 mundo na forma de um globo, uma esfera, tendo seus extremos em todas as diregdes equidistantes do centro, a mais perfeita e a mais semelhante a si mesma de todas as figuras; pois ele considerou que o se melhante & infinitamente mais belo que o dessemelhante" (15), Fora do mundo nao havia nada e sua superficie foi, por Deus, arredondada e polida. No centro dessa esfera repousaria a Terra, que tam a6) férica , a qual permaneceria 14, para ndo alterar (15) Platdo, Timaeus 33, trad. B. Jowett, Chicago, Eney- clopaedia Britannica, 1952 (Great book of the Western World, Vit). Doravante as citagdes do Timacus serao feitas a partir desta tradugao. (16) Nés dissemos que de acordo com Platao a Terra ocu- pava o centro do Universo e nao possuia movimento algum. Po- rm muitos comentaristas antigos e modernos atribuem a Platao stas in- a idéia de que a Terra gira em torno de seu eixo. terpretagdes se basciam numa obscura passagem do Timaeus (40B) "A Terra, nossa governanta, gira ao redor de um eixo estendi do de polo a polo através do Universo" Essa passagem @ comentada por Aristételes nos se- guintes termos: "Alguns dizem que a Terra, realmente, esta colocada no centro, e ainda gira e se move em torno de um ei xo estendido através do Universo de polo a polo como esta es crito no Timaeus" (Arist., De Caelo I1, 13, 293°, 30). 20 © equilibrio simétrico do Universo, sem necessidade de ar ou de qualquer forga similar para sustenti la, j& que para pla- tao "uma coisa em equilibrio no meio de qualquer substancia uniforme ndo teria causa para inclinar-se mais ou menos para qualquer diregao" (17), A esfera do Universo platénico gira uniformemente de leste para oeste, no mesmo lugar, em torno do seu préprio cixo, que passa pelo centro da Terra. As estrelas ~— representando seres cternos, divinos @ imutdveis — tal como eram observadas, moviam-se, segundo Platdo, com velocidade uniforme em torno da Terra, na mais perfeita e regular de todas as trajetérias, 0 circulo continuagao da nota 16 Sir Thomas Heath comentando este texto de Aristéreles afirma: “Isto naturalmente implica que Aristételes atribuia a Platao a visdo de que a Terra girava em torno do seu eixo, Tal visio @ contudo, inteiramente inconsistente com todo 0 sistema descrito no Timaeus (e também nas Leis, que Platao nao viveu para terminar) onde @ a esfera das estrelas fixas que pola sua revolugae em torno da Terra em 24 bh, far a noite @ o dia; além disso, ndo hi nenhuma razio para duvidar da evi- déncia de que foi Heraclides de Pontos o primeiro @ afirmar a rotagao da Terra em torno de seu proprio eixe em 24 horas", (Neath, Sir Thomas, A History of Greak Mathematics, vol. 1, from Thales to Euclides), (Oxford: Clarendon Press, 1921, reimpresso pela Dover Publications, New York, 1981), p. 314. Outros detalhes sobre a priori axial da Terra, ver item 1.4 desta tese. de da descoberta da rotagao -{1?) Plat&e, Phaedo, 109", apud Heath, T., A History of Greek Mathematics, vol. I, p. 310. ° aL interminave1 ‘18) | © Sol, a Lua e as cinco estrelas, que so chamadas de planetas, sdo carregados pela rotagdo da esfera exterior, "horizontalmente, para a direita", no movimento que, segundo Platdo, Deus "chamou Ge movimento do Meso". Além deste movi mento cada um dos planetas, no Universo platénico, tem seu préprio movimento circular independente, que faz parte do mo vimento do circulo interior, chamado movimento do Outro, em um plano que corta o Equador celeste (ver: Mmaeus, 36°), Cornford ao comentar a passagem do Yimaeus (36°) onde Platao descreve 0 movimento do Mesmo e do Outro, apre- senta o seguinte diagrama: (18) 0 fenSmeno da precessao dos equindcios, que corres ponde a variagao das distancias das estrelas fixas com respeito aos equindcios, ndo era conhecido antes de Hipparchos (séc. IL A.C.), que descobriu a prece fo mparando sua propria deter minagio da longitude de certas estrelas, feita em 129/128 A.C., com aquela feita por Timocharis, em 283 ow 295 A.C. Hipparchos descobriu, por exemplo, que a distancia entre a estrela Spica e o ponto de equindcio de outono havia diminuido 2° durante os 150 anos que separam suas observagoes daquelas feitas por Ti mocharis. A esse respeito ver: Dreyer, J.L.E., A History of Astronomy ..., p. 48 e pp. 202-203; Neugebauer, O., A Mistory of _Anc ent Mathematical Astronomy, parte I, p. 292; © Sarton, G., A History of Science, Ancient Science through the Golden Age of Greece, p. 290. 22 NN Soutii! Pote FIGURA IT - "AB @ um diametro do Trdpico de verao, CD um dia metro do Trépico de inverno, CB a diagonal do retangulo obti do pela liga © AC, BD. 0 movimento do Mesmo & um movimento de toda esfera de leste (esquerda) para oeste (direita) no plano do Equador (BF), que @ paralelo aos planos dos Trépicos ¢ deste modo & ‘na dires#o dos lados' AB, CD. 0 movimento do Diferente (na tradugao de B. Jowett denominado de movimento do Outro) & em sentido oposto e no plano da diagonal CB, que um didmetro da Felfptica, um grande circulo que tangencia 0 Trépico de verdo junto ao ponto (B) em Cancer, e 0 Tropico de in- verno junto ao ponto (C) em Capricdrnio, 0 Zodiaco @ uma ban da larga, contendo doze signos, ao longo de cujo ¢ (19) ntro gin ra a Ecliptica' (19) Cornford, F.M., Plato's Cosmolog of Plato translated with a running commentary), (London: Routledge © Kegan Paul Limited, 1948), p. 73. Segundo Cornford, 0 movi mento do Nesmo @ visivelmente manifestado na esfera das es~ trelas fixas (ver: Cornford, F., Plato's Cosmology, p- 76)- Segundo Koyré 0 circulo do 'Mesmo' corresponde ao circulo do Zodfaco e © ‘do Outro’ ao circulo da kelfptica. (ve Paris: Edition Gallimard, 1973, p. 31). Esta visdo nao @ compar Koyré, A., Etudes D'Histoire de la Pensée Scientifique, tilhada por Cornford, segundo o qual o circulo do Outro “an- tes de ser subdividido deve ser identificado com 0 Zodiaco, mais do que com a Ecliptica" (Cornford, F.M., Plato's ..., p. 76). 23 Platdo considera a 'revolugio do Me pmo" superiox a "do Outro', dado que a primeira foi a finica que pe teria deixado sem dividir; enquanto que o movimento do Outro "ele dividiu em seis partes e fez ete circulos desiguais" (ver: , 36° -364), Depois de ter formado o corpo do Sol, Lua ec das cinco estrelas ‘errantes' (planetas), Deus "colocou-o: nas 6rbitas onde o circulo do Outro estava se movendo — nas se te Srbitas sete estrelas: primeiro, encontra-se a Lua, na 6r bita mais préxima da Terra; e o seguinte, o Sol, na segunda dérbita depois da Terra; entdo vem a estrela da manhd (Vénus) e a estrela consagrada a Hermes (Merciirio), movendo-se em 6r bitas com a mesma rapidez que o Sol, mas em diregaéo oposta; e Lucifer (Vénus) al- gu (20) e esta @ a razdo porque o Sol e lierme cangam e sio alcangados uns pelos outro: = Quanto aos ou tros planetas, Platdo nao entra em detalhes, no Timaeus, so- bre sua posigdo, afirmando apenas que eles se movem com “ve- locidades diferentes tanto entre eles, como em relagdo aos trés primeiros (Sol, Mercério e vénus), mas segundo uma pro- porgdo devidat(?1) | Uma vez que cada um dos planetas chegou a sua Grbi ta apropriada, eles comegam a girar na Grbita do Outro que é obliqua e "passa através da Srbita do Mesmo e é dominada por ela. Uns giram em érbitas maiores e outros em érbitas meno- res — aqueles que tem 6rbitas menores giram mais rapidamen- (20) Platao, Timaeus, 38°-38°, (21) Platao, Timaeus, 36°-36°. 24 te, © aqueles que tem érbitas maiores mais lentamente, agora, devido ao mov mento do Mesmo, aque le que giram mais rapido parece ser alcangados por aquelen que movem=sc mais lenta= nente, embora realmente sejan estes que séo alcangados, pois o movimento do Mesmo faz eles todos girarem em espiral" (22) , Assim, segundo Platéo a real trajetéria, no espago com respeito a Terra, de qualquer um dos planctas @ transfor mada em uma espiral, isto devido 4 combinagao do movimento do Mesmo (movimento circular de leste para oeste, em um plano paralelo ao equador celeste) com o movimento do Outro (imovi- mento circular em um plano que corta o equador). Tal Grbita, obviamente, estG incluida entre dois planos paralelos ao cqua der cele ste, sendo a distancia entre cada um dos planos e o equader igual ao afastamento maximo de cada um des planetas em relagao ao equador. Cornford, comentando as conseqiiéncias da teoria do movimento duplo de Plat&o, afirma que uma delas € a rotagao espiral, a qual segundo Cornford, 6 explicada. por martin con se segue: "O Sol, por exemplo, que neste sistema é un plareta, descreve do solst{cio de inverno ao solsticio de verdo, so- bre a superficie de uma esfera cujo raio 6 a distancia a Sol ao centro da Terra, uma espiral ascendente contida entre os dois trépicos; entdo ele desce novamente a partir do solsticio de verdo ao solsticio de inverno descrevendo sobre a mesma esfe ra uma espiral inversa 4 anterior. As duas espirais tomadas juntas completam tantas voltas quanto sao os dias do ano. As vol (22) Platdo, Timaeus, 38-39". 25 tas das duas espirais tornam-: s@ maiores quando clas aproxi- mam-se do equador, mas elas séo todas percorridas em tempos iguais" (Martin, ii, 76). "Se imayinarmos — (conclui Comford) um modelo de esferas celestes r olvendo como um todo para a direita, enquanto os circulos planctirios dentro revolven mais jentamente para a esquerda, a rotagdo espiral seré a trajeté ria seguida por qualquer um dos planctas sobre uma esfera com © mesmo raio que aquele do circulo do préprio planeta. Nao obstante, serd verdade que o planeta, com respeito a seu pr prio movimento, mantém sempre uma trajetéria circular, repre sentada pelo circulo que lhe é fixado"(23), Assim os movimentos dos planetas, no Universo pla- ténico, embora ndo constituindo circulos perfeitos, s4o cer- tamente combinagdes de circulos perfeitos, j4 que os plane- tas, sendo corpos celestes, devem mover-se da maneira mais adequada 4 sua elevada categoria, ou seja mover-se com o mo- vimento circular uniforme. A idéia platénica de que o movimento observado dos corpos celestes pode ser decomposto cm movimentos circulares © uniformes influenciou todos os sistemas antigos medie~ vais. Aristdteles, por exemplo, tentou explicar os fatos obser vados nos Céus por meio de seu sistema de esferas concéntri- cas que giravam uniformemente. (23) Cornford, F.M., Plato's Cosmology, p. 114. 26 "Sob o alto edu da sempiterna pas gt- ra uma esfera a infludneia bela se ant ma tudo 0 que po » dentro jaz" ante Alighieri ("A divina comédia* Parafso, canto II, 112-115) © Cosmos ou Universo aristotélico tem muitas carac teristicas comuns aquele de Platao. Em ambos os sistemas, o Universo se contém a si mesmo e é auto-suficiente; e tem co- mo estrutura basica © Universo das duas esferas, sendo forma do por uma pequena esfera — a ‘Terra, suspensa no centro geo métrico de uma vasta, porém finita, esfera em rotagao, que leva consigo as estrelas fixas. Além da esfera exterior nado nada, nem espago, nem matéria. Diz Aristételes om uu tra tado De Caclo: "A partir de nosso argumento, é evidente que nado so * a 4 Na Divina Comédia, escrita por volta de 1300, Dante com bikou a visdo cosmolégica de Aristételes coma concepgao erista de paraiso, purgatério e inferno. Segundo John North, nesta, que féi a mais majestosa de todas as alegorias medievais, Dante teria desenvolvido o tema moral "dentro da estrutura cosmold gica aristotélica. 0 Paraiso de Dante & mais do que uma conti nua sucessao de descrigées da felicidade celestial. Ele tem uma estrutura astrondmica, e quando a alma, por exemplo, se eleva um nivel apés o outro, os niveis sao simplesmente as es feras planetarias" (North, J., The Medieval Background to Copernicus in Copernicus, Yesterday and Today, Beer, A. and Strand, K. ed., New York: Pergamon Press, 1975, p. 5). 27 mente ndo ha, mas também que nunca poderia haver qualquer mas sa de nenhum corpo fora da circunfer neia (habitualmente cha mada de todo ou totalidade, “o Céu" + © mundo como um todo, portanto, inclui toda matéria disponivel (...). Portanto, nem hd agora, nem houve antes, nem poderd existir mais de un céu, mas este nosso Céu 6 um, Gnico e completo". "além disso 6 evidente que nao ha lugar, nem va- zio, nem tempo fora do Céu. Pois em todo lugar ha possibili- dade de haver um corpo; e o vazio se define como aquele em gue a presenga de um corpo, embora nio real, 6 possivel ( pw Uma diferenga entre ambas as cosmologias 6 que a de Aristételes apresenta varios refinamentos, descrevendo com muito mais detalhes a constituigdo interior do Universo. 0s refinamentos geométricos do sistema aristotélico sao deriva gos, na verdade, de Budoxos e Callipos‘?®) Além disso, Aristételes, como afirma Dreyer, ao con trario de Platdo “procura a idéia na sua realizagao conereta nos fenémenos da natureza, e todos os resultados da experién (24) Aristételes, De Caelo 1, 279% (5-15), trad. Juke Stocks. (25) Eudoxos, (408 A.C.-355 A.C.), discfpulo de Platao, foi o primeiro a responder a pergunta de Platao sobre os movimentos ci- clicos dos planetas. No sistema homocéntrico, proposto por Eu doxos, cada planeta’se encontra em uma esfera interior de um grupo de duas ou mais delas, interconectadas e concéntricas, cuja rotagao simultanea em torno de diferentes cixos repro duz os movimentos observados dos planetas. 28 cia e observagae, portanto, chamavam sua aten Sua cosmologia estava fundada na “percepgdo sensi- vel" © no enso comum e, embora incorporando em seu sistema os artificios geométricos do sistema matemitico das esferas homocéntricas de Fudoxos e Callipos, Aristételes considera problomdtica a identificagao do — espago conereto do Cos- mos, que para ele @ £inito e ordenado, com o espago da geome tria(??), Dois princfpios fundamentais sustentam a cosmologia ari totélica, a saber: "(1) que o comportamento das coisas era devido a formas ou naturezas qualitativamente determina- das, © (2) que em sua totalidade es as eram arran- jadas para formar um todo ou Cosmo hierarquicamente ordena- don (28), A maior parte do Cosmo de Aristételes, (Vigura TID esta cheio por um s6 elemento: o eter, que 6 um elemento ce- leste, a quinta esséncia, puro, cterno, inalteravel e incor- ruptivel (Arist., De Caelo, 270”, 20-30). (26) Dreyer, Jul » A Histo of Astronomy ..., p. 108, (27) A este respeite @ sugestiva uma passagem do De Caclo 239" 1-5, onde Aristdteles, comentando a cosmologia dos pita géricos, afirma: “Eles sustentam que a parte mais inportante do mundo, que @ © centro, seria mais exatamente guardada, e chamam-na, ou melhor ao fogo que ocupa este lugar, altar de Zeus, como se a palavra “centro” fosse inteiramente inequivo ca, ¢ 0 centro da figura matematica fosse sempre o mesmo da coisa ow o centro natural to Galileo, (Cambridge, (28) Crombie, A.C., August Harvard University Press, 1979), vol. 1, p. 89. 29 FIGURA LIT ~ “Ari From Petrus Apianus, Cosmographia per Gemma Phrysius restituta, ntwerp, 1539" apud Crombie, A.C., Augustine to lileo, vol. 1, p. 130. Fixada no centro do Universo estava a esfera da Ter ra, sendo rodada concentricamente por uma série de esferas ocas. As primeiras delas correspondem ds dos trés elementos terrestres, a Agua, 0 ar e o fogo respectivamente. Imediatamente apds a esfera de fogo existem, segun do Aristételes, exatamente cingiienta e cinco esferas crista- 30 (29) Linas interconeetadas, cujo centro couum & a Terra » Cada um dos se te planctas, Lua, Mercirio, Vonus, Sol, Marte, Jips ter © Saturno, se encontra ne interior de un grupo destas feras, cada uma das qua. completa uma revolugio axial em in tervalos de tempo diferentes reproduzindo a Sim, com boa apro ximagdo, 0 movimento planetério ce explicando os movimentos irregulares, as estagdes do ano e os movimentos rcetrdgrados c a 5 és (30) dos planetas, observados temporariamente zi A ft ngdo dessas esferas era a de proporcionar uma engrenagem capaz de manter em rotagao o conjunto de esferas homocéntricas. 0 movimento de todo o sistema era transmitido pelo contato de uma esfera com as outras, A esfera das estre las, om scu movimento, arrasta a mais exterior das sete esfe ras homocéntricas, que compSem o conjunto que Leva consigo Sa Curne, As rotayoes axiais destas sete esferas (com diferentes velocidades, algumas vezes em sentidos diferentes © eu Lorne de diferentes eixos) reproduzem co movimento de Saturno, nao permitindo que este seja carregado, tal qual uma estrela fi (29) 0 sistema de esferas homoctntricas proposte por Aristdteles en cerra cm um mecanismo fisico o sistema matemitico das esferas — homocén- tricas claborado por Fudoxos e pelo seu sucessor, Gallipos. Assim, para Avistételes as esferas ndo sao apenas representagées de formulas matema- ticas, mas antes elas tem realidade fTsica compondo uma vasta miquina na qual 0s corpos celestes so mantidos em movimento. (30) De um modo geral, os planctas se movem diariamente para oeste sendo carregado pela esfera das estrelas fixas, e simultaneamente deslo- cam-se lentamente para leste no seu chanado ‘movimento normal’. Porém es te movimento normal de cada um dos planetas, execto aquele do Sol e da Lua, & substituldo, durante breves intervalos de tempo, por um movimento de retrocesso para oeste, conhecido com movimento retrégrado dos plane- tas. 31 xa, pelo movimento diurno da esfera estrelar., Dentro da pe- ndltima esfera do conjunto de Saturno, Aristételes adiciona una esfera que, devido a posigdo dos seus polos, sentido e magnitude da sua velocidade de rotag3o, se move como se esti vesse unida 4 primeira esfera que, por sua vez, se move jun- to com a esfera das estrelas fi Portanto a filtima esfera do grupo das sete esferas de Saturno se move da mesma forma gue a esfera das estrelas fixas. E esta iltima esfera trans- nitira o movimento ao seu vizinho mais prdximo, a primeira es fera do planeta seguinte, Jipiter. Assim Jipiter se movera como se as esferas de Saturno nao existissem. Uma engrenagem semelhante dquela que Aristételes propés para as csferas de Saturno, ele propde para os outros planetas. Através deste mecanismo o movimento @ finalmentc transmitido 4 esfera mais baixa, aquela responsAvel pelo movimento da Lua (para mais de talhes ver Dreyer, A History of Actronomy..., cap. V). A filtima esfera, a da Lua, divide o Universo em duas regides nitidamente distintas, a terrestre e a celestial, ocupadas por materiais distintos e governadas por leis dis- tintas. Todas as coisas que compdem a regido celestial, a saber, as estrelas, os planetas e as esferas cristalinas, so feitas de éter. Todas as coisas que pertencem 4 regiao ter- restre, por outro lado, sio feitas de um dos quatro elementos terrestres: a terra, 0 ar, 0 fogo e a Agua (ou de uma combi- nagio deles). No Universo aristotélico, cada uma das coisas, se- ja celestial ou terrestre, tem seu lugar "natural" e seu mo- 32 vimento local “naturai"@G) para est lugar. Yodo movimento que nao & natural 6 violento. Além de dividir o movimento local em natural e vio lento, Aristételes divide o movimento natural em movimento celestial, que & circular e uniforme; e o te rrestre, que 6 retilineo (ou para cima ou para baixo). A tendéncia do movimento para cima ou para baixo das coisas terrestres depende da natureza da substancia de gue 0 corpo particular é composto. Assim 0 lugar natural da terra, que 6 absolutamen- te pesada, & no centro do Universo (que, por sua vez, coineé de com © centro da Terra) e seu movimento natural é para bai XO, OU se@ja em diregéo ao centro do Universo; 0 lugar natu- ral da 4gua é a regiao imediatamente apds a reyiao central e seu movimento @ para baixo, exceto na regido central; o lu- gar natural do fogo, que € absolutamente leve, @ a regido ex terna da esfera sublunar e seu movimento é para cima em rela go ao centro do Universo; finalmente o. lugar natural do ar (31) 0 conceito aristotélico de movimento (kinesis) nao corresponde a um estado, como ocorre na dinamica moderna, mas a uma espécie de processo de mudanca, & a "realizagao (grifo meu) do que existe potencialmente, na medida em que existe po tencialmente” (Arist., Physica, TIT, cap. 1, 201°, 10). £, como afirma Aristételes, "é sempre com respeito.a substancia ou quantidade ou qualidade ou lugar que o que muda auda" b . . (Arist., Physica, IIT, cap. 1, 2007, 30-35). Assim o movimen to para Aristdteles inclui nao apenas a locomogao, como tam- s, como alteragao qualitativa, ge bém outros tipos de mudanga ragao e corrupcao. 33 6 a regido intermediaria entre a agua co fogo, @ seu movi- mento natural 6 para cima exeeto na regiao do fogo (a este respeito ver: Arist., De Caelo, IV, cap. 4, 311 1 5-15). 0 lugar e 0 movimento natural dos corpos compostos por mais de um elemento corres; ondem Aqueles do elemento predominante. Todo movimento local, para Aristételes, 6 ou reti- Lineo ou circular, ou uma combinagdo destes dois, isto por- que, segundo ele estas duas linhas, retilinea e circular sao as Gnicas magnitudes simples (ver: Arist., De Caelo, I, cap. 2, 268, 14-15). No caso dos corpos simples, que sio entendi dos, por Ari teles, “como aqueles que possuem um principio . sori (22 de movimento em sua prépria natureza"(*?) + seus movimentos de vem ser ou retilineos ou ao redor de um centro (ver: Arist., elo, 268, 10-30). E embora o movimento circular seja natural para os corpos celestes, ele é ndo-natural para os terrestres, pois afirma Aristételes, "todo movimento ou é natural ou ndo-natu ral (forgado), ¢ aquele movimento que 6 ndo-natural para um corpo @ natural para outro - assim, por exemplo, € © caso com o movimento para cima e para baixo, que @ natural e nao- natural para o fogo e para a terr necessariamente que o movimento circular, sendo ndo-natural para estes corpos é o movimento natural para algum outro (.. b (32) Aristdteles, De Caclo, I, 268°, 30. Aristételes con tinua sua definigdo de corpos simples, corpos regidos por um principio Gnico, apresentando dois exemplos: "o fogo e a ter ra com suas espécies e tudo quanto for semelhante a cles". 34 Se, por outro lado, o movimento de rotagio dos corpos em tor no de um centro fo; © ndo-natural, seria extraordina ioe na verdade inconcebivel que este movimento fosse continuo e eter 033) no, sendo contrério 4 natureza Deste argumento seguc-se necessariamente que se a Terra girasse em torno de seu préprio eixo, como propds Herd clides de Pontos, um discipulo de Platdo (no séc. IV A.C.) a © seu movimento ndo poderia ser eterno, j4 que é nio-natu- ral, Para que o movimento de rotagdo axial da Terra fos. se eterno, segundo a dindmica aristotélica, cle deveria ser © movimento "natural" da mesma. Porém, se assim o fosse, to- das as particulas que pertencem 4 Terra deveriam, cada uma delas, compartilhar, com a Terra, de seu movimento "natural", movendo-se entdo, "naturalmente", segundo uma trajetéria cir cular. Mas ndo & isto que & observado; elas, pelo contrario, movem-se ao longo de uma linha reta em diregdo ao centro do Universo. Portanto o movimento circular seria para a ‘Terra forgado e ndo-natural, Mas “como todas as coisas cujo movi- mento é violento e nao-natural sao movidas por algo, e algo (34) exterior a elas (um motor em contato direto), temos que (33) Aristételes, De Caclo, 1, 2698(3), 269°(1-10), (34) Aristételes, Physica, VIII, 255°, 30-35, trad. R.P. Hardie e R.K. Gaye, Chicago: Encyclopaedia Britannica 1952 (Great book ..., VIII). Doravante todas as citagoes da Physica serao feitas a partir desta tradugao. 35 para que o movimento da Terra fosse eterno, continuo e infi- nito, haveria a necessidade de que algo exterior a ela cau- © movimento infinite, pordu "nada, finite pode cau- sar movimento que dure um tempo infinito" (Arist., 2662, 10-25) © uma forga infinita nao pode re sidir cm uma magnitude finita, Mesmo no caso da ferra ser movida por algo que esta, cle préprio, em movimento, © que, novameate, @ mo- vido por algo exterior que estd em movimento, ¢ assim conti- nuamente, segundo afirma Aristételes, a série ndo poderia ir ao infinito (ver Arist., Physica, Livro VII, 2422, 15-20). Portanto o movimento de rotagao da Terra, em torno do seu pro prio eixo, "sendo ndo-natural e violento, ndo poderia ser eterno; porém a ordem do Universo é eterna" (Arist., De Caelo, livro 11, 14, 296%, 25-30). Segue-se que: Omovimento circular observado no Uni- verso sendo eterno, ndo pode ser atribufdo 4 Terra. Embora 0 sistema das esferas homocéntricas, propos to por Aristdteles, como modelo explicativo dos movimentos ce incipais irregularidades planeté- p: p lestes, desse conta das rias, tais como os movimentos retrdyrados dos planctas, cle © todos os sistemas que postulavam que o Universo era forma do de uma série de esferas concéntricas nfo conseyuiam dar conta de um certo nimero de fendmenos Sbvios, em particular a variagdo no brilho aparente dos planetas e no didmetro apa rente da Lua, e do fato de que os eclipses solares sdo algu- mas vezes totais e algumas vezes anulares. Esta dificuldade dos sistemas das esferas homocén- tricas se deve ao fato de que eles supunham que a distancia entre cada corpo celeste ea Terra cra invaridvel. Assim sen do todos os fendmenos celestes deveriam ser explicados sim= plesmente por meio das rotagdes das diversas esferas Varios astrénomos gregos, depois de Aristételes, tentaram formular sistemas que expli ssem os fatos de que o sistema aristotélico ndo dava conta. Entre eles de! taca-se 0 yoposto por Apollonios (240-170 A.C.) © Hipparehos (190-120 A.C.) : 0 sistema de epiciclo e deferente. 1.4- As_primeira Embora Plat&o e Aristételes nunca tenham abandona~ do a idéia de que a Terra permanecia em repouso, no centro do Universo, enquanto o Céu girava de leste para oeste fazendo © dia e a noite; e embora a cosmologia aristotélica tenha dg minado 0 pensamento ocidental até meados do século XVI, al- guns antigos adotaram sistemas claramente contrarios 4s cos- mologias platénica e aristotGlica, dotando a Terra de algum tipo de movimento. Entre os primeiros a acreditarem no movimento da Terra, além de Philolaus e de alguns membros da escola pita- gdrica, como vimos anteriormente destacam-se: Heraclides (teracleides, Herakleides) de Pontos (387-315/310 A.C.), um contemporaneo de Aristételes e talvez aluno de Platdo, que considerava o Cosmo infinito e defendia uma teoria semi-he~ Jiocéntrica, segundo a qual Vénus e Mercfirio giram, como sa~ 37 télites, ao redor do Sol, enquanto que este e outros corpos ceolestes giram ao redor da Terra, que por s a vez gira an tor eu proprio cixe em 24 beras (ver Figura fv); « : Aris- tarchos de Samos (310-230 a. sor de Copérnico, que pos que as estrelas fixas c o siol esto iméveis, mas que a Terra possui dois movimentos, o de rotagdo diurna em torno do seu eixo e de translagdo ao redor do centro do @ Universo, onde esta o Sol. FIGURA IV - Sistema semi-heliocéntrico de Weraclides de Pontos. Devemos notar que Heraclides pode ndo ter sido o nico a sustentar a hipétese da rotagdo axial diaria da Terra, j4 que Ecphantus de Siracusa (Séc. IV A.C , um pitagérico, se~ gundo Hippolytus, também teria afirmado que "a Terra, 9 cen- tro do Universo, move-se ao redor de seu préprio centro na 38 por sua vez, apelando para a au toridade de Thoophr A a prioridade da teoria da rota- ¢do axial da Terra a Hicetas ( 2 = 338 A.C.), baibtn de Siracusa. Afirma Cicero: "Hicetas ... sustentava que o Céu, o Sol, a Lua, e as estrelas, todos os corpos celestes » em poucas pala vras, estdo em repouso; e que nada no Universo move-se, exce to a Terra, e como a ferra gira e roda em torno de seu eixo a velocidade muito alta o efeito 4 tamente o mesmo, como se o Céu estivesse rodando ¢ a Terra ostive 16 so" (36), © em repou- Porém muito pouco se sabe sobre os trabalhos de Bephantus e Hicetas; dessa forma nado se pode afirmar com cer teza se eles realmente pensaram na rotagao axial da Terra. Quanto a Heraclides de Pontos, néo ha divida que ele pensou na rotagao axial da Terra, nem hd divida com res peito 4 originalidade de sua teoria semi-heliocéntrica. “Heraclides de Pontos (afirma Simplicius} supds que a Terra estd no centro e gira (lit. move-se em um circulo ) enquanto 0 Céu esta em repouso, ¢ ele pensou isto para sal- var as aparéncias"@?”), (35) Hippolytus, Refutation of All Heresies T is. apud Cohen, MN. and Drabkin I.E., A Source Book in Greek Science, p. 106, (36) Cicero, Academica II, 39-123, apud Cohen M. and Drabkin I.E., A Source Book + pe 106. (37) Simplicius, Commentary on Aristotle's De Caele, p 519, 9-11, apud Heath, T., A History of Greek ..., p+ 317. 39 Porém, embora Heraclides tenha dado o primeiro pas so em diregio 4 teoria heliocéntrica, cle ainda mante ea Tor atro do Iniverso. O pr simo passo 36 Loi dido por Aris tarchos de Samos, um genial astrénomo e geémetra, que deslo- cando a Terra do centro do Universe, desenvelveu um sistema astronémico que antecipou as hipdteses heliocéntricas de Co- pérnico. © sistema de Aristarchos pode ser descrito nas pa- lavras de um jovem contempordnco seu, e, talvez, seu princi- pal comentador: Archimedes (287-212 A.C.). No Arenayius Arm imedes afirma: "Vooé (Rei Gelon) esta ciente de que 'tniverso' é 6 nome dado por muitos astrénomos A esfera cujo centro 6 0 cen tro da Terra, que seu raio é igual a linha reta entre o cen- tro do Sol e¢ o centro da Terra ... Mas Aristarchos publicou um livre considerando certas hipéteses, no qual aparece, como uma conseqiiéncia destas suposigées, que o Universo @ muitas vezes maior do que o "Universo' nencionado acima, Suas hipd- teses sido que as estrelas fixas e 0 Sol permanecem iméveis, que a Terra gira em torno do Sol em uma circunferéncia de um circulo, o $ol repousa no meio da 6rbita , e que a esfera das * ape 2 , 0 significado preciso da Gltima frase @ duvidoso (0. Neugebauer Isis, 32 (1942), 6) traduz assim: “a circunferén~ cia de um circulo que repousa no meio do curso (dos planetas)" eo Dreyer (A History of Astronomy ..., p+ 37) traduz assim Terra & carregada ao redor do Sol em um circulo que esta no meio do curso", ¢ Dreyer comenta, cm seguida, que este circulo é aquele “que nds chamamos de ecliptica que naqueles dias era 4 4 conhecida como circulo médio do Zodiaco 40 estrelas fixas, situada ao redor do mesmo centro gue o Sol , & tdo grande que o circulo, no qual cle supos a Terra revol- ver, mantém uma proporgao t (0 grande em relagdo 4 distancia das estrelas fixas quanto © centro da esfera mantém em rela- gio a sua superticienO® © cAlculo da distancia entre a esfera da Grbita da Terra e 0 centro desta esfera, ou seja da distancia entre a Terra e 0 Sol, que repousa no centro do Universo, foi desen- volvido por Aristarchos, através de um método extremamente en genhoso no qual ele calcula as distancias comparativas do Sol e da Lua em relagdo 4 Terra. Este calculo & apresentado no extenso tratado 'So- bre os tamanhos eas distdncias do sol e da buat?) que co- mega com seis hipéteses a partir das quais Aristarchos preten de provar dezoito proposigées, por meio de demonstragées ab- solutamente rigorosas. (38) Archimedes, Sand-Reckoner ou Arenarius, apud Heath T., A History of Greek ..., vol. Il, Pp. 3. (39) Aristarchos de Samos, On the Sizes and Distances of the Sun and Moon, trad. J.L. Heath (Oxford, 1913). A respeito deste que foi o dnico tratado de Aristarchos que foi preser- vado devemos notar que nele Aristarchos nao se refere as suas hipdteses heliocéntricas, talvez, porque estas hipdteses te- nham sido formuladas depois dele escrever o tratado em ques~ tio. Se bem que seu método geométrico de cdlculo das distan~ cias comparativas do Sol e da Lua independa da real posi- gao da Terra, do Sol e da Lua; ele se baseia nas posigoes re lativas destes corpos celestes. 41 As trés primeiras hipdteses sao: "1) que a Lua recebe a luz do Sol" "2) que a Terra se comporta como um ponto e cen- tro para a esfera na qual a Lua se move" "3) que, quando a Tua tos parece dividida om duas partes iguais, o grande circulo que divide as porgées clara - oe 4 e escura da Lua estd na diregdio do nosso olho" 49), Dado que a Lua recebe sua luz do Sol, no momento da dicotomia os centros do Sol, Lua e Terra formam um triangulo retangulo, como mostra a figura abaixo: FIGURA V - Medidas de Aristarchos das distGncias relativas do Sol e da Lua @ Terra, onde a, Angulo formado jun- to & Lua, @ um Angulo reto. (40) Samos, Aristarchos, On the zes and Distances of the Sun and Moon, trans. T.L. Heath, apud Cohen, M. and Deabkin, I.E., A Source Book in Greek Science, p. 109. 42 Além destas hipéteses, Aristarchos faz mais trés, duas das quais sdo necessfrias para o cflculo das distancias comparativas do Sol, Lua em relacdo 4 Terra. A primeira corresponde a uma estimativa do dngulo otomia da fi, aquele formado junto a Terra no momento da dic: Ina, como sendo "menor do que um quadrante, por 1/30 de um quadrante" (hipdtese 4), isto 6 87°C"), A outra, é a hipéte se 5, de acordo com a qual "a largura da sombra (da Terra) é de duas Luas" isto 6 a largura da sombra da Terra quando” a Lua a atravessa é de duas Luas. A sexta e Giltima hipdtese é: “que a Lua subentende 1/15 de um signo do zodiaco"'*”) ou seja 1/15 de 30°, portan to o didmetro angular aparente da Lua seria de 2°. pado que Aristarchos supde que os diametros angula res do Sol e da Lua junto ao centro da Terra sfo iguais, se © didmetro angular da Lua é igual a 2°, o do Sol também se~ ra. (41) Arthur Berry, ao comentar em 1889 esta medida, afic ma que [o erro que Aristachos cometeu ao determinar este an- gulo) "é devido a dificuldade em determinar com precisdo su- ficiente o momento quando a Lua est4 meio cheia: o contorno divisdrio das partes clara e escura da face da Lua € na reaq lidade (devido as irregularidades da superficie da Lua) uma linha debil e mal definida, tal que a observagao na qual Aristarchos baseou seu trabalho nao poderia ter sido feita com qualquer precisao até mesmo com nossos modernos instru- mentos, muito menos com aqueles disponfveis no seu tempo” (Jerry, Arthur, A Short History of Astronomy, § 32, pp. 34-35. (42) Idem nota 40, p. 110. 43 PorGm Archimedes atribui a Aristarchos a descober- ta de que o didmetre angular aparente do Sol @ cerea de 1/720 ‘ — 4. 0.8% a = go cixculo do Yodfaco, isto &, 0,5°, determinagdo esta bastan ma do valor real. FIGIKA VI ~ Medida de Aristarchos do difmetro angular aparen te do Sol. Ou a descoberta que Archimedes atribui a Aristarchos foi feita depois da publicagao do tratado ‘Sobre os tamanhos ¢ distancias ...' ou, como sugere Heath, a hipédtese ne 6 nado deve ser entendida como um dado determinado pela ob servagao, pois “como a matemitica de seu tratado nao depende do real valor tomado, 2° pode ter sido suposto (por Aristarchos) me~ ramente como ilustragao; ou pode ter sido uma conjectura so- bre o didmetro aparente feita antes dele ter pensado na ten 44a tativa de medi-1o"(43) , A partir das cinco primciras hipéteses descritas aci Avistarchos se acha apto a demonstrar, por exemplo, a pro posigdo n? 7 do seu tratado, @ ela: "A distancia do Sol 4 Terra & mais do que dezoito vezes maior e menos do que vinte vezes, a distancia da Lua 4 (4h) Terra Embora esta estimativa das distancias relativas do Sol e da Lua em relagdo 4 Terra tenha representado um grande aperfeigoamento sobre todos os resultados obtidos até entao, ele ainda estava muito longe da real avaliagao, segundo a qual o Sol esta cerca de quatrocentas vezes mais longe da Terra do oue a Tua. © erro de Aristarchos se deve & enorme dificuldade em se determinar, com precisao, o Angulo junto a Terra no mo mento da dicotomia. Segundo a avaliagdo de Aristarchos este 9 50045) | Angulo é de 87°, quando na realidade é de 8! sta im precise levou Aristarchos a estimar, erradamente, © Angulo (43) Heath, T hist k Mathematics, vol. I, p. 4. Sir Themas Neath nota que nio @ conbecido come Aristar chos chegou ao valor de 0,5°, um valor tao preciso, para 0 diametro aparente do Sol. Mas como @ ereditada a cle a inven gdo de um relogio de Sol aperfeigoado, cle pode, segundo Heath, ter usado este instrumento para efetuar tal medida. (44) Samos, A-} On the Sizes... , apud. Cohen, M. and Drabkin, J.E., A Source book...» p+ 110. (45) Com respeito 4s dificuldades em se efetuar esta me dida ver nota 41 deste capitulo. 45 junto ao Sol como sendo 3°. A dificuldade em se determinar com precisio os an- gulos internos do triangulo fornado pela Terra, Sol ¢ Lua no momento da dicotomia, quando entdo o Angulo junto a Lua é de ° . . 90°, se deve A impossibilidade dv se saber, exatamente, quan do a metade do disco da Lua est& iluminado pela luz do Sol. imativa, de Ar Portanto a imprecisdo na es starchos, das distancias comparativas do Sol e da Lua em relagdo 4 Ter ra se deve exclusivamente a dificuldades préticas. "Aqui (na investigagdo de Aristarchos], nds encontramos (como afirma Heath) uma seaiiéncia légica de proposigdes e rigor absoluto 2 ‘ . 46 das demonstragées caracteristica da geometria grega"(*%), bevemos notar que a hipétese heliocéntrica de Aris tarchos teve pouco sucesso na anliguidade, Primeiro porque ela contrariava a doutrina filosGfica aristotélica, entao domi- nante, segundo a qual o lugar natural da Terra era no centro go Universo. Segundo porque, como notaram Cohen e Drabkin, ela também ia contra a “doutrina de um fogo central (dos pitagd yicos) que, em varias formas, tornou-se uma matéria de cren- ga religiosa (cf. Plutarch, De facie in orbe Lunae 922 FB - 923 A). Os astrdnomos, contudo, de um modo geral rejeitaram as hipéteses heliocéntricas sobre bases cientificas Se a Terra gira em uma Srbita ao redor do Sol, a posigde das es- trelas fixas tal como observada a partir de varias partes da Srbita da Terra deveria variar. Una vez que tal variagao néo cere aan 1, A History of Greek Mathematics, vol. IT, (46) Heath, 46 era observada na antiguidade (...) Aristarchos foi mpelido a supor que a esfera das estrelas fi 6 era incomparavelmen- te maior do que a esfera que continha a érbita da terran?) Assim Aristarchos explicou a auséncia de paralaxe estrelar e salvou as hipéteses heliocéntricas (47) Cohen, M.R. e@ Drabkin, J.f ,» A Source book in Greek Science, p. 107. Cabe notar que o fendmeno da paralaxe estre lar sd foi detectado a partir de 1830, ¢ sua observagao req quer um telescopio e técnicas de observagao bastante apura- dos ja que a variagdo na posigao das estrelas @ extremanente pequena. Segundo Koyré, “Aristarchos nao teve sucesso, @ nao se sabe porqué, Por vezes se disse que a idé@ia do movi- mento da Terra contradizia demasiadamente as concepgoes re~ Ligiesas dos gregos. Penso que, antes, foram outras as ra~ zoes que determinaram o insuce o de Aristarchos, certamente as mesmas que, desde Aristételes e Ptolomeu até Copérnico, se opuseram a toda hipétese ndo-geocéntrica: foi a invencibili ) ora, para a fisica antiga, o movimento cireular (de rotagao) dade das objegoes fisicas contra o movimento da Terra, bs da Terra, no espago se afigura — e devia afigurar-se — co mo oposto a fatos incontestaveis e em contradigao com a expe riéncia quotidiana; em suma, como uma impossibilidade fisi ca, Ainda outra coisa constituia obstdculo & aceitagao da teoria de Aristarchos, a saber, a grandeza desmesurada de seu Universo, pois se os gregos admitiam que o Universo era bastante grande em relagao a Terra (.+-)5 ainda assim as di- mensSes postuladas pela hipétese de Aristarehos Ihes pareciam excessivamente inconcebiveis (...). Também se dizia (...) que, se ndo se vorifica nenhuma paralaxe, @ que a Terra nao gira, Admitir que a abdbada celeste @ tao grande que as para Laxes das fixas nao sao observaveis parecia contrario ao bom senso ¢ ao espirito cientifico" (Koyré, A., Etudes d'histoire de la pense... , P+ a7 Além do problema da paralaxe, as hipdteses he liocéntricas de Aristarchos nao tiveram sucesso em expli- car alguns outros fendmenos, como a desigualdade das es~ tagdes. Esta &, como salientam Cohen e Drabkin, a provavel razao porque Hipparchos e (mais tarde Ptolomeu) adotaram as hipdteses geocéntricas, que juntamente com os exccntricos, epiciclos © deferentes, tornaram-se o sistema astrondmi- co dominante nao sé na antiguidade como também na [dade dia. Este novo mecanismo matemitico, cujo objetivo era unicamente explicar o movimento planet4rio com respcito aes fera das estrelas, @ composto, na sua forma mais simplifica~ da, de um pequeno circulo (0 epiciclo) que gira uniformemen- te ao redor de um ponto situado sobre a circunferéncia de um segundo circulo em rotagao (o deferente). Cada planeta per- correria a circunferéncia do cpiciclo, cujo centro se movi menta ao longo da circunferéncia do deferente, que por sua vez estA centrada, segundo a versao mais simplificada, na Terra (ver Figura VIL). FIGURA VII - Esquema basico da hipdtese do epiciclo-deferen te. Onde o planeta P gira ao Longo de um epick clo cujo o centro P descreve um deferente cen- trado na Terra. © movimento do epiciclo quando visto a partir do centro do deferente ora aparece como acelerado ora como retardado. Além disso em alguns momentos, como mos- tra a Figura VIII, ele aparece como um movimento retré- grado. PIGURA VITT 49 - (extrafda do Cohen H.R., © Drabkin J. +, A Source book of Greek ience, p. 129). Onde Pn corres ponde 4s diversas posigoes do planeta P que @ carregado sobre o epiciclo cujo centro D desere ve um deferente, ocupando as posigoes Da, ao re dor de um centro onde encontra-se um observador. "Um deslocamento de 50° pelo planeta sobre o epici clo, como mostra a Figura VIII, corresponde a um deslocamen- to de 15° por D. A partir do centro, P parecerd mover-se ra~ pidamente ou lentamente, para tras e para frente, dependendo de sua posigio sobre 0 epicicio"‘"*), (48) Cohen, M.R. e Drabkin, J.E., A Source book of Greek Science, Py 130. Porém o sistema de um s6 cpiciclo associado a um sé doeferente nao deu conta de todos movimentos observados dos lanetas. A concepgao inicial do sistema em questao, propos~ ta por Apollonios, resolvia as irregularidades planetarias mais importantes — movimento retrégrado, variagao de brilho, Gesigualdade entre os perfodos de tempo requeridos para as sucessivas trajetérias ao longo da ecliptica. Algumas outras irregularidades secundérias foram explicadas pelo sistema de Hipparchos, que introduziu no sistema de Appollonios epici- clos secundérios e excéntricos com centro fixol'??. — Porén ainda restavam alguns resultados observacionais que ndo se ajustavam 4 teoria. Tornou-se entdo necessdéria a introdugio de novas assem o esguema de um epi modificagdes geonétricas que ajus ciclo — um deferente aos movimentos observados. Varias ten- tativas, neste sentido foram feitas na antiguidade, entre elas Gestaca-se aquela feita por Ptolomeu no século II D.C. (49) 0s epiciclos secundarios sao cireulos complementa~ res cuja finalidade @ oferecer pequenos ajustes quantitatives entre a teoria e a observagao (ver apéndice técnico). Outro secundarias dispositive utilizado para corrigir diserepanct Za introdugio de excSntricos que corresponde a um deferente cujo centro se encontra deslocado com respeito 4 Terra. Este sistema @ geometricamente equivalente ao sistema de epiciclo e deferente. 0 movimente do Sol pode ser explicado tanto por meio de um epiciclo secundario (epiciclo menor) associado a um deferente, quanto por meio de excintricos como 0 fizeram Hipparchos ¢ Ptolomeu, desde que sejam escolhides — pera 0 deferente, o epiciclo e 0 circulo excéntrico — raios, dite- gdes e velocidades apropriadas. 1.6- Astronomia _Ptolomaica "arts nSlago da antijuiduite, @ veu quase cinvo eteulos mat ited mo grande astvdnomo. A obra domi nou o pensanento ovidental nos campos da antrononia e casmologtia até depots da mor te de Copérnieo, veorrida em 1543, Copérnt py seu herdetro direto". co parece a: T. Kuhn, (The Copernican cap. IV) © sistema astronémico de PLolomeu, exposto na sua principal obra Hé ynt = a compilagdo matema tica - (mais tarde chamada, pelos gregos, de #0 Megiebe Cyn- rabes traduziram sob - a maior compilagio - © que os © titulo 47 Majiett, ewja contragao deu Aimagesto, que corres ponde 4 forma como esta obra tornou-se conhecida até hoje), foi a base do pensamento astrondmico dominante até o comego do século XVII, sendo 0 mais exato e o mis amplamente accito entre aqueles conhecidos na antiguidade classica e no mundo arabe. Nos seus conceitos fisicos o sistema ptolomico era, basicamente, aristotélico. Quanto aos aspectos matemiticos Ptolomeu os derivou a partir de principios atribuidos a Pla- tio, tentando mostrar todos os fenémenos celestes como produ tos de movimentos regulares e circulares. Além dessas duas influéncias, o trabalho de Ptolomeu est baseado, em grande medida sobre o trabalho de ipparchos, (50) cujo importente tratado astronédmico nao exi fe mai Pregiientemente se tem interpretado 0 sistema astro ndmico de Ptolomeu, exposto no Almagesto(>!), como apenas um algoritmo geonétrico bem elaborado por meio do qual preten- dia-se dar conta dos fenémenos observados, ou “salvar as apa réncias". InterpretagSes deste tipo foram defendidas por exem plo por Heath ¢ puhen'5?), ‘Thomas Kuhn, comentando a astronomia matematica de senvolvida por astrénomos, como Hipparchos e Ptolomeu, per~ (50) Apenas um livro sem importancia de Hipparchos foi preservado, ¢ nosso conhecimento do seu trabalho @ derivado quase que intciramente dos escritos de seu grande admirador © disefpulo, Ptolomeu. A maior de todas as descobertas de Hipparchos, talvez, seja a da precessao dos equindcios (ver nota 18). (51) Segundo T. Kuhn o Almagesto foi o "primeiro trata~ do matematico sistematico que dava uma explicagao completa, detalhada e quantitativa a todos os movimentos celestes". (The Copernican Revolution, cap. Il, p+ 72. (52) Duhem comentando a filosofia dos drabes, afirma que eles “quando tentaram examinar essas hipdteses [excéntricos e epiciclos), quando tentaram descobrir sua verdadeira natu~ reza (++); quiseram transformar em realidade, em esferas so lidas rolando em meio aos Céus, os excéntricos e os epiciclos que Ptolomeu e seus sucessores declaravam ser artificios de cAleculo" (buhem, P., Essai sur la notion de théoric physique ophie Chrétienne (ser de Platon 4 Galilée, Annales de Philos 4) 79/156 (1908). Traduzido por Koberto Martins, sob o titulo tgalvar os fendmenos, Ensaio sobre a nogao de teoria fisica de Platao a Galileo’, Cadernos de Histéria e Filosofia da Cigncia, Suplemento 3/1984, CLE, Unicamp, p- 23. Para outros detalhes ver o ensaio acima citado. 53 tencentes 4 tradigao helenistica'®}), afirma que "os cienti tas helenisticos aceitavam sem nenhum inal-estar aparente uma ta e@ parcial separagdo entre astronomia ¢ cosmolo- znan giat 4), embora encontremos alguns tratados cosmolégicos de autores helenisticos, como 6 0 caso do Hypoth 5 ton de Ptolomeu, segundo Kuhn, este e todos o» outros ast Snomos helenisticos quando elaboravam scus sistemas mate m&ticos para predizer as posigdes planctarias, nao @ preocu, pavam com a realidade fisica de seus artificios gcométricos. NOs, por outro lado, acreditamos que nado se pode dizer que o préprio Ptolomeu pretendesse apenas construir um artificio geomBtrico, isto pode ser evidenciado nas palavras de Ptolomeu, no livro I, cap. 2 — Sobre a Orden dos Teoremas — de seu livro Almagesto quando ele apresenta os seus ob jetivos ao compor tal livros (53) "A civilizagao helenfstica, surgida depois das con quistas guerreiras de Alexandre Nagno, centrou-se ea metropo » onde a con- Les comerciais e cosmopolitas, como Alexandri fludncia de sabios de diferentes paises e ragas e o confron— to de suas diversas culturas deu como produto uma ciéncia me matematica e mais numérica que sua pre- nos filosdfica, ma decessora, a ciéncia helénica" (Kuhn, The Copernican Revolution, ia conti- cap. 4). Esta Gltima, por sua vez, nascida na Gre nental durante a poca em que esta dominou o vale mediterra- noo, tinha um nétodo essencialmente qualitativo e sua orien- tagdo era cosmolégica; sendo Aristételes seu maior c¢ Gltimo representante. (54) Kuhn, T., The Copernican Revolution, cap. 4, p. 104, 54 "Uma visdo da relagdo yeral entre toda a Terra e o todo dos Céus dard inicio a esta composigao". ... @ pretendemos encontrar aquilo que @ evidente e aquilo que @ aparente, a partir das ohservagées feitas pe- los antigos e por nés préprios, e aplicar as conseqiiéncias tes conceitos por meio de demonstragdes geométricas". al nds temos que afir- assim, de uma mancira ger mat gue o Céu é esférico e se move esfericamente; que a Ter~ ra, em forma, @ sensivelmente esférica; em posigao, esta exa tamente no meio do Universo tal como um centro geométrico; an magnitude e distancia, se comporta como um ponto em relagio A esfera das estrelas fixas, nado tendo qualquer movimento lo- ca" (55) . A posigdo de A.C. Crombie com respeito ao trabalho de Ptolomen 6 bastante similar Aquela por nés defendida aqui. Ele afirma: “a suposigao com a qual ele (Ptolomeu) comega (o Almagesto] de que o Céu é esférico na forma e gira como uma es~ fera, de que a Terra 60 centro desta esfera e @ imével, de que os corpos celestes movem-se em circulos, nado 6 certamente uma uposiga&o arbitraria, pois sem tentar prova-la absolutamen~ te, ele tentou tornd-lao mais plausivel possivel. De fato, na sua escolha de suposigdes e hipSteses, Ptolomeu foi guia~ do,, parece, nao por um critério arbitrdrio, mas antes por con ae (55) Peolomeu, C., Almagesto, Livro I, cap. 2, trad. R. Catesby Taliaferro, Chicago: Encyclopaedia Britannica, 1952. (Great books of the Western World, XVI). Doravante as citaq coes do Almagesto serao feitas a partir desta tradugao. 55 sideragées fisicas e metafisicas as quais ele via como empi- ricamente testadas" (°°) , Por: mM, conelui Crombie, admitir que na sua teoria planetdria Ptolomeu usou artificios geométricos que subordinavam quest6es das reais trajetérias fisica: dos pla- netas © os 5 principios aceitos da fisica aristotélica A preci sao dos calculos. Esta é a fonte da sua reputagdo de um cien a convencionalista" ©”) , um exemplo desta postura de Ptolomeu € 0 fato de que embora seu sistema astronémico fosse basicamente aristo- télico, o artificio do epiciclo e deferente nao se adaptava, muito bem, As esferas cristalinas da cosmologia aristotéli- ce ter sido porém esta incompatibilidade nao pare um grande problema para os astrénomos helenisticos, para os quais a realidade fisica das esferas cristalinas ¢ dos meca~ nismos que asseguravam o movimento dos planetas era um pro- blema secundirio. De um modo geral as cascas esfér nhan, para eles, uma realidade no minimo metaférica'>®) , ee Ptolomeu to, segundo Kuhn, ndo indica claramente s (56) Crombie, A.C., Augustine to Galileo, (Cambridge, Mass: Harvard University Press, 1974, 4rd ed.), vol. Ty ps 96. (57) idem, p. 97. (58) Maiores detalhes sobre a postura dos astrénomos pto. lomaicos, diante das cascas esféricas de Aristételes ver Kuhn, T.S., The Copernican Revolution, cap. III ¢ IV e Duhem, p., Salvar os Fendmenos, citado nota 52). 56 acreditava ou nao em alguma forma de esferas cristalinas. Seja como for, os astrénomos de um modo geral, ahé os tempos de Copérnico, acreditavam numa ve sio adaptada da cosmologia aristotélica, supondo 4 existéncia de uma casca esférica para as estrelas e uma para cada planeta, as quais estaxiam engrenadas entre sie teriam uma espessura tal que fo © capaz de conter no seu interior o conjunto de epiciclos © outros circulos atribuidos a cada planeta. Do ponto de vista matemitico os sistemas quantita~ tivos desenvolvides por Hipparchos, Ptolomeu e seus sucesso- res sio demasiado complexos para serem abordados aqui® , porém alguns pontos destes sistemas devem ser notados, a que como afizma Kuhn, “as dificuldades que levaram Copérnico a bus lar um novo enfoque para o problema dos planetas e a su perioridade que atribuia a seu novo sistema se encontram nes By 6 te abstruso corpus tedrico quantitativo" 6), pmbora as irregularidades dos movimentos do Sol e da Ima ja tivessem sido avaliadas quantitativamente por Ilippar chos, no século III A.C., por meio de uma combinagao de epi— ciclos secundarios e excéntricos com centro fixo (ver nota 49), as regularidades e irregularidades quantitativas obser- yadas nos movimentos aparentes dos sete planctas, tais como — (59) Grande parte dos 13 livros que compoem o Almagesto constam de tabelas trigonométricas, diagramas, formulas, de- monstragoes, extensos calculos ilustrativos e longas Listas de observagoess (60) Kuhn, T.S., The Copernican Revolution, cap. II, p. 72. 57 vistas a partir da Terra, s6 foram reproduzidas por Ptolomeu que acrescentando exctntricos méveis (que jA eram conhecidos . TIT A.C.) © Oo equante cary ag sistema Pn per Apollonil no si de epiciclos e deferentes, explicou, além do movimento dos planetas, os movimentos do Sol e da Lua (ver Figura IX). © movimento diario de todos os planetas @ produzi- do, segundo o sistema ptolomaico, pela rotagdo da esfera es- trelar de leste para oeste, que @ compartilhada por todo 0 sistema. Ao introduzir os equantes, Ptolomeu afastou-se da ndxima de Plataéo - segundo a qual somente movimentos circu- ares uniformes poderiam ser usados para explicar os movimen tos celestes; fazendo os planctas moverem-se com velocidades nado uniformes com respeito a scu centro e de mancira excén- (61) 0 artificio dos excéntricos moveis supoe que cada um dos planetas move~se em um circulo, cujo centro nao @ a Terra, mas sim um ponto situado entre a Terra ¢ o Sol, e que, por sua vez, se move ao longo de um outro circule ao redor da Terra. 0 equante, foi outro dispositivo utilizado por Ptolomeu para tentar reconciliar a teoria dos epiciclos com os resul- tados observacionais. Segundo ele, cada um dos planctas se desloca ao longo de um epiciclo cujo centre desloca~se a0 longo de um outro circulo (o deferente) com velocidade varia. vel determinada pela condigao de que a linha que vai do pon- to equante ao centro do epiciclo em questio percorre Jngulos iguais em tempos iguais. Assim se a tal linha percorre 30° em 30 dias entdo ela deverd percorrer sempre 30° a cada 30 dias. 0 ponto equante & escolhido precisamente para reprodu~ gir a velocidade, aparentemente nao uniforme dos planctas. A utilizag3o dos equantes para explicar os movimentos solares @ apresentada no apéndice técnico deste capitulo. 58 FIGURA IX - Dispositivo geométrico do sistema de epiciclos de Ptolomeu para o movimento de um planeta P, (extraido de Crombie, A.C. Augustine to Galileo, vol. I, p+ 98), segundo © qual o movimento diario de P @ produzido pela rotagao de leste para oeste que ele compartilha com a esfera estrelar. 0 movimento aparentemente irregular de P € produzido, de acor do com o sistema ptolomaico, pelo movimento de P atraves do epiciclo centrado em C, que por sua vez gira ao longo do deferente cujo centro D nao coincide com o centro da Terra (£ ; @ € nfo se move uniformemente nem em relagdo a D nem em relagao a mas em relagao a um terceiro ponto, © equante Qa que CQ percorre Gngulos iguais em tempos iguais. redor do qual ¢ tem velocidade angular uniforme, tal 59 trica. Embora, ao fazer o ponto cquante girar com velocida~ de angular uniforme, de alguma forma, Ptolomeu tentasse pre- servar o principio basico de Platao. Copérnico, porém, nao aceitou tal violacae por par te dos ptolomaicos. Suas objegées estéticas aos equantes fo- ram um dos pontos essenciais da critica copernicana a Ptolo~ meu, como podemos sentir num pequeno resumo escrito por Co- pérnico, por volta de 1514: "... as teorias planctdrias de Ptolomeu e de muitos outros astrGnomos, embora consistentes com os dados numéricos, apresentam igualmente dificuldades que nio sido peguenas. Isto porque estas teorias nao séo ade- quadas, a nado ser que se conccbam determinados equantes; pa- rece entdo que um planeta ndo se move com velocidade unifor- sentro de seu me nem no seu deferente, nem relativamente ao epiciclo. Conseqiientemente, um sistema deste tipo nao parece ser nem ficientemente absolute, nem suficientemente agrada vel ao espirito". Apesar de seu nao-platonismo, de algumas pequenas, porém reconhecidas inexatiddes, e de sua excessiva complexi- dade (contrastando com a simplicidade do Universo das duas esferas) o sistema de Ptolomeu gozou de grande eredibilidade por quase quinze séculos, dominando o pensamento astrondmico europeu até o comego do século XVII. Entre os treze séculos que separam a morte de Pto- lomeu e o nascimento de Copérnico nao foi produzida nenhuma mudanca fundamental no sistema ptolomaico; alguns dos suces~ sores de Ptolomeu tentaram apenas aumentar a precisao nas pre digdes das posigdes dos planctas, introduzindo novos epici 60 clos © excéntrico aos excéntricos, porém com isto aumentaram a complexidade do seu sistema. Também o pensamento cosmolégico associado ao siste ma de Ptolomeu, a saber a teoria aristotélica do Universo das duas esferas, constituiu parte fundamental do pensamento cosmolé gico dominante até as primeiras décadas do século XVII. Muitos historiadores concluem, a partir desta tatagdo, que a ciéncia foi alyo inexistente durante os los que separam as vidas de Ptolomeu e Copérnico. Kuhn, por a atividade cientifica, embora in- outro lado, afirma qu termitente, foi muito intensa durante esta época e desempe nhou um papel essencial na preparagao do terreno para o nas~ . -} (62 cimento e posterior triunfo da revolugdo copernicana"‘*?), (62) Kuhn, T.S. The Copernican Revolution, cap. IV, p. 99. 61 CAPITULO 2 COPERNICO E SUA REVOLUCAO "Devenos antes compreender a cabedo~ vta da natureza que, assim eomo fot partt- eularmente eutdadova em nada produxir de supérfluo, também muitas vesec, dotou uma coisa com muitas propriedades". * Nicolau Copérnico Diziamos no capftulo anterior, que entre os treze séculos que separam Copérnico de Ptolomeu a astronomia plane taria progrediu muito pouco, nao surgindo nenhuma teoria que Copernici, Ni colai, Opus De Revolutionibus Cael a und Manu Propria, Anno MDXLIII, Faksimile-Wiedergabe (M Berlin: Verlag R. Oldenbourg, 1944), ou De Revolutionibus Orbium Caelestium, Libri sex, 1543 (Miinchen: Verlag R. Olden bourg, 1949); Cap X, Livro Primeiro. Doravante as citagoes do De _Revolutionibus... serao feitas a partir da tradugio de Chales G, Wallis. On the revolutions of the heavenly sphores, Encyclopaedia Britannica, 1952 (Gre World, XVI). Chicag: books of the Western 62 apresentasse qualquer mudanga fundamental ne corpus tedrico dominante. Copérnico comega onde PLolomeu havia parado. Esta constatagio nos leva a pensar duas questées que, a nosso ver, sdo fundamentais: a) Porque tardou tanto tempo para ocorrer uma revolugdo na astronomia, enquanto que outras Areas do conhecimento, como a légica, fisica e metafi ica, em fins da Tdade Média j4 apresentavam um grande desen volvimento?; b) Quais foram as caracteristicas, deste perio- do da Idade Média, que influenciaram Copérnico a encetar uma revolugao na astronomia? Além de discutir 0 contexto da descoberta coperni- cana, creio que também é fundamental, para a compreensdo da insergdo da xevolugao galileana no pensamento cientifico e filoséfico dos séculos XVI e XVII, a discussdo das idéias cen Revolutiontbus trais do tratado astrondmico de Copérnico, De orbiu stium, @ oS argumentos e justificativas apresen- tadas por ele em favor do sistema cdsmico ai defendido. 63 2.2- Origemdo_copernicanismo _tenebrosa "aastm, (...1, comeced também eu a es peeular accrea da mobilidade da Terra, E cnbora a idéia purcevase absurda, ou cabta que a outros antvs de mim fora concedida a liberdade de imayinar os etreulos que qut- sessem para salvar os fendmenos celestes, penset, portanto, que também me ‘oese fa- eilmente permitido experin uma vez admitido algum movimento da Terra, po- devia encontrar denonstragdes mate seguras reopetto das revolugdes ae) N. Copérnico © pequeno desenvolvimento da astronomia na baixa Idade Média n@o & um fato isolado; a ciéncia como um todo sofreu uma estagnagao muito grande durante esse periodo"! , Isto se deveu, principalmente, ao fato de que a Igreja caté- lica, nestes primeiros séculos medievais, estava se organi- ® : : Copérnico, N., De Revolutionibus..., Ad Sanctissimum Dominum Paulum III Pontificem Maximum, Nicolai Copernici praefatio in libros Revolutionum. (1) Cabe lembrar que o declinio da atividade cientffica ji havia se iniciado durante o Império Romano, Raramente se encontra qualquer contribuigdo cientifica, exceto na Grea do Direito, feita pelos romanos. 64 zando a fim de consolidar a sua auloridade espiritual e inte lectual. "A ciéncia era para eles (os primeiros padres um saber profano; salvo quando cra necessaria para a vida coti- diana, era no melhor dos casos, iniitil, e, no pior, uma peri (2) gosa distragao Além disso, a crenga, que dominou os primeiros sé- culos da era crist4, de que todo saber necessario ao homem estava contido nas Escrituras, levou alguns a negarem as teo rias astronémico-cosmolégicas dos antigos por considera-las contrarias as Escrituras. © préprio Aristételes, durante os séculos IV A XII, recebeu severas criticas eclesiasticas pela aparente incompa tibilidade entre sua cosmologia e as Escrituras, sendo, em 1210, em Paris, proibido o ensino da fisicae da metafisica aristotélicas. Embora esta condenagdo tenha caido em letra morta e Arist@teles tenha continuado a ser estudado nas escolas e Universidades, ela foi seguida de outras condenagoes de arti gos e proposigées aristotélicas (entre os quais estavam a dou trina da eternidade do mundo e da unicidade do intelecto) culminando com a condenag&o em 1277, pelo Bispo de Paris ftienne Tempier, de 219 proposigdes e argumentos determinis~ tas extraidos da, ou baseados na, filosofia de Aristételes. Aristételes nega a possibilidade do vacuo (Phy IV, cap 6-9), do infinito real (Vhystea, III, cap 4-8), (2) Kubn, T.S., The Copernican Revolution, cap-IV, p. 106 65 de mundos plurais (De Caelo, 1, cap 8, 2767, 10-20). 1 ao fa zé-lo cle esta limitando os poderes de Deus, o que os fildse os cristios nie poderiam aceitar. Alguns pensadores, como Lactancio e Cosma Indico- pleustes, chegaram a propor cosmologias alternativas basea- das em princfpios biblicos, porém clas jamais foram adotadas oficialmente pela Igreja"), mesmo com a postur anti-aris totélica do clero, na baixa Tdade Média, a cosmologia do "Universo das duas esferas" nunca chegou a ser completamente nada ou substituida. A despeito desta postura de negligéncia, por parte da Igreja para com a ciéncia natural, a Idade Média ndo foi uma ‘longa e tenebrosa noite dos mil anos! onde a atividade ciontifica foi substitufda pelo dogma religioso™), os mon- ges om seus mosteiros preservaram muitas das obras da anti- guidade greco-romana, porém o acesso a tais obras na baixa Idade Média era exclusivo aos membros do clero. As Gnicas es (3) Copérnico se refere a Lactancio na carta-prefacio do seu De Revolutionibus ... nos seguintes termos: “be fato, nao @ desconhecido que Lactancio, célebre escritor, alias, mas frace matemdtico, fala da forma da Terra de mancira perfeita mente infantil quando zomba dos que proclamam que a Terra tem a forma de um globo. Portanto, nao deve parecer estranho aos estudiosos se alguns semelhantes zombarem de nos também". (4) Embora a Igreja tenha sido a autoridade intelectual parte da Renascenti dominante na Europa Medieval ta, 0 dogma religioso era menos rigoroso na Idade Média do que em Zpocas posteriores, principalmente depois da Reforma e¢ Con- tra-Reforma Religiosa. 66 colas existentes eram mantidas por mosteiros e destinadas a formagdo de monges, Uma das mais poderosas influéncias no pensamento cosmolégico medieval corresponde aos trabalhos de alguns pen sadores do fim da antiguidade, tais como Clemente de Alexan- dria (160-205) e seu discipulo Origenes (185-254), Basil (séc, IV) e Agostinho (354-430). F sses pensadores — os pri meiros na era crista a apresentarem um profundo conhecimento das fontes gregas - dedicaram-se a reconciliar a cosmologia dos antigos com as Escrituras. Porém, embora presente, o estudo das obras da anti, guidade greco-romana durante o fim da antiguidade e comego da Idade Média, estava mais voltado para a contemplagio de verdades previamente aleangadas pelos antigos do que para a busca de novas verdades. Praticamente todos os trabalhos pro duzidos correspondem a comentdrios e enciclopédias. Entre os trabalhos enciclopédicos destaca-se o tra tado sobre Histéria Natural de Plinius, o velho, (sé@culo T) pela sua influéncia em todo pensanento medieval. No que se refere ao conhecimento astronémico dos primeiros séculos crist&os, ele esta contido principalmente nos trabalhos enciclopédicos de Plinius, o velho; Martianus capella (século v), que preservou a teoria semi-heliocéntrica 6? de Hericleides de rontos©), © nos de Isidore de Sevilha (sé culo VII). Além destes trabalhc 540 importantes, enquanto fontes de conhecimento astrondémico medieval, os trabalhos de: Chalcidius (século Iv), que traduziu e comentou o Timavus de Platao; Proclus (s@éculo V), comentador de parte do fimaeus, da Tiea e do Parme ides de Platdo, e dos Flementoe de Euclides; Macrobius (sGéculo V), comentador do fragmento de Cicero, Somniun Seiptonis; Boetius (século VI), cujos traba- hos foram as principais fontes para o estudo de matematica (5) Copérnico, no cap. X do livro I do seu De Revolun tionibus ..., dedicado 4 ordem das esferas-celestes, questio na a necessidade da Terra ocupar o centro ao qual a ordem dos corpos celestes se refere. Ele considera que no se deve des prezar os argumentos de Martianus Capella e de outros eser tores latinos, os quais, segundo Copérnico, “efetivamente pen sam que Vénus e Mercirio fazem sua revolugdo 4 volta do Sol, situado no meio deles, e julgam que por isso nado se afastam dele mais do que a curvatura das suas esferas o permite, por que nao giram ao redor da Terra como os restantes, mas tGn as suas apsides voltadas em diregdo oposta. Que outra coisa que rem dizer senao que o centro das suas esferas esta préximo do Sol?" (copérnico, N., De Revolutionibus..., Livro I, cap X). Sobre a teoria semi-heliocéntrica de Meracleides de Pontos ver item 1.4 do cap I desta tese. 68 culo x11'®); © Simplicius (século V1), co- e légica até o mentador do De caclo, Phyetea, De anima e Categorias de Aris tételes. A partir do século VII todo o conhecimento cienti- fico, na Europa Ocidental, teve que se limitar a estas compi lagdes e comentarios, muitas vezes imprecisos e intelectual- mente adulterados, como fonte documental. Isso se deveu prin cipalmente A erupgdio dos invasores mugulmanos que confinaram os crist&os europeus ao norte, privando-os de todos os manus critos que preservavam a tradigao antiga e permitia sua trang missdo. Embora uma gradual destruigdo material do conhecimen to ocidental j& houvesse se iniciado coma penetragao dos barbaros a partir do século IV, no Império Romano Ocidental. “Neste isolamento intelectual da eristandade oci- dental dificilmente se poderia esperar qualquer contribuigao para o conhecimento humano do Universo material. Tudo o que © Ocidente foi capaz de fazer foi preservar as colegdes de fatos e interpretagées j4 feitas pelos enciclopedistas"‘7), A civilizagao mugulmana, por sua vez, nos séculos seguintes, tanto quanto se sabe, embora raramente introduzin (6) Boethius também traduziu, para o Latim, alguns tex- tos de légica elementar de Aristételes e fez compilagoes dos: Elementos de Euclides ¢ de alguns tratados como os de Nicoma chos e Ptolomeu. As composigoes citadas pode-se, talvez, adi cionar aquelas feitas por Bade (séeulo VI11), Alcuin de York (século VIII) e German Hrabanus Maurus (século IX). (7) Crombie, A.C., Augustine to Galileo, vol. I, p. 32. 69 do qualquer inovagaoe no dominio das teorias ientificas, con servou e traduziu muitos dos documentos da ciéncia grega, aperfeigoou instrumentos de observagéo e construiu tabelas bastante precisas‘®), Com a relativa estabilizagao politica da cristanda de curopéia por volta do século X e a reconquista de muitos dos seus territérios, incrementou-se o intercdmbio comercial entre a Europa e o mundo arabe. Isso teve como conseqiiéncia a gradual redescoberta do saber antigo que culminou, no sécu lo XII, com o que poderfamos chamar de o “Primeiro Renasci~ mento". © conhecimento que agora comegava a penetrar na Eu ropa Ocidental, embora baseado nos trabalhos da antiguidade grega, vinham através de manuscritos e tradugées drabes, fre qiientemente aconpanhados de observagées adicionais © comenta rios dos préprios arabes. uma das conseqiiéncias disso foi que, algumas das teorias de Aristételes, que j4 eram contrarias aos ensinamen (8) Cabe notar que nos estudos de Optica e Perspectiva os arabes introduziram algumas contribuigdes in portantes, en tre as quais destacam-se aquelas feitas pelo neo~platdnico Alkindi (século IX) e por Alhazen (7965-1039) que estudou es pelhos esféricos e parabdlicos, cdmara escura, lentes e a vi sa0, entre outras coisas, 0s arabes também introduziram im- portantes e originais contribuigoes nos campos da alquimia, magia e astrologia. Para eles nao havia uma distingao clara entre magia e ciéncia natural; as causas fisicas e ocultas eram consideradas como igualmente capazes de produzirem fend menos fisicos. 70 tos da Igreja (ver pp.03.4) tornaram-se duplamente suspeitas. Isto porque as tradugdes e comentdrios Grabes, atrav quais as id@ias de Aristdteles chegavam & Europa Ocidental, neste perfodo, como afirma Crombic, "davam énfase 4 suas ca~ racteristicas absolutamente deterministas, A interpretagao Arabe de Aristételes era fortemente colorida pela concepgao neo-platénica da cadeia do ser; indo da matéria primeira atra vés da natureza inanimada e animada, do homem, dos anjos e da inteligéncia (pura) até Deus como a origem de tudo. Quan- do comentadores como Alkindi, Alfarabi, Avicenna e, particu~ larmente, Averrées (1126-1198) introduziram a idéia mugulma- na da criagao no sistema aristotélico, eles interpretavam 18 0 de modo a negar o livre arbitrio nao apenas ao homem mas até mesmo ao proprio Deus. Segundo eles o mundo havia sido criado nao diretamente por Deus, mas por hierarquia de cau- sas necessarias comegando com Deus e descendo pelas varias inteligéncias que moviam as esferas celestes até que a inte- ligéncia movendo a esfera da Lua causasse a existéncia de um Intelecto Ativo separado que era comum a todos os homens @ a causa finica de seus conhecimentos. A forma do espirito huma~ no jA existia neste Intelecto Ativo antes da criagao do ho- mem, Depois da morte cada espirito humano unia-se novanente a ele. Junto ao centro do Universo dentro da esfera da Tua, is to @ na regiao sublunar, foi gerada uma matéria fundamental comum, matéria prima, e depois os quatro elementos. A partir dos quatro elementos foram produzidos, sob a influéncia das esferas celestes, plantas, animais e 0 préprio home, varios pontos deste sistema sdo inteiramente ina~ 7 coita ve. para os £ilésofos da cristandade ocidental do seu lo NIL. Ele negava a imortalidade do espfrito humano indivi- dual, negava o livre arbitrio ino e dava oportunidade pa~ ra a interpretagdo de todos os comportamentos humanos, em termos de astrologia. Era rigidamente determinista, negando que Deus pudesse ter agido de qualquer outra forma, exceto (9) | aquela indicada por Aristételes © trabalho de reconstrugao do pensamento antigo se viu seriamente prejudicado, visto que muitas vezes as tradu- gées Grabes nao reproduziam fielmente os textos gregos. Acres centa-se a isso que as tradugGes dos textos arabes e gregos para o latim foram bastante dificultadas devido: a) complext dade intrinsica dos textos técnicos e da terminologia técni- ca; b) dificuldade do dominio da linguagem envolvida. Freqiientemente as tradugdes eram feitas de forma eens (9) Crombie, A. Ag interpretagSes deterministas de Aristdteles asco ¢., Augustine to Galileo, vol. 1, p+ 72. ciadas a comentarios como os de Averrées,estavam incluidas en tre as proposigdes condenadas em 1277, Esta condenagao do de terminisme segundo alguns historiadores da ciéncia medieval sao da cidnei u como instrumento de liberta come Duhem, ag medieval do dominio das suposigoes © conclusoes metafisicas e cosmolégicas de Aristételes, abrindo caminho para a critica ga ci@ncia natural e metafisica aristotélicas. Em 14 de feve reiro de 1325 a condenagdo @ anulada (Para outros detalhes so. bre as condenagoes dos livros de Aristételes e a influéncia destas sobre o futuro desenvolvimento da ciéneia medieval ver: Grant, E., A Source Book in the Medieval Science, Cambridge: Harvard University Press, 1974, pp. 42-52). 72 jiteral e muitas palavras eram simplesmente transliteradas a partir de suas formas arfbicas. Isso ocorria porque 0 vocabu ldrio do latim medieval, no que se refere as matérias abstra tas e técnicas, era pobre; e o significado des: palavras nao era perfeitamente entendido. Mesmo as melhores tradugdes se viam, como nota Kuhn, "inevitavelmente deterioradas pelas sucessicas transerigdes efetuadas por homens que no com preendiam total e perfeitamente o contefdo do texto traduai- do" (10) A partir do fim do século XII e comego do sécu- lo XIII iniciou-se a redescoberta de muitos dos originais an tigos. Alguns deles, possivelmente, foram levados de Constan tinopla para a It@lia no final da quarta Cruzada, em 1204. Gradualmente, as tradugdes passaram a ser feitas diretamente — (10) Kuhn, T.S., The Copernican Revolution, cap. IV. Koyré, comentando as primeiras tradugses de obras filosSficas e cientificas gregas para o latim, afirma que elas nao foram feitas diretamente do grego-e sim através do frabe nao somente porque nao havia ninguém, no Ocidente que soubesse grego, "mas também e talvez principalmente porque nio havia ninguém capaz de compreender livros tao diffeeis como a Fisica ou a Metafisiea, de Aristdteles, ou o Almages- to, de Ptolomeu, e porque, sem a ajuda de Alfarabf, de Avi- cenna ou de Averrées, os Latinos nunca teriam tido acesso a tais obras. E que nao basta saber grego para compreender Aris. tételes ou Platao — eis af um erro freqiiente entre os £ild- sofos classicos — @ preciso, além disso, saber filosofia" (Koyré, A., Acistotelism et Platonism, Etudes athistoire de + Pe 26. la_pensée - 73 do grego. Embora no século XIV as tradugdes a partir do ara- be tivessem praticamente cessado, a maioria dos trabalhos as trondmicos, até o século XV, continuaram a ser feitos a par- tir de tradugGes e comentarios arabes do Alwagesto de Ptolo- meu'!!) como @ 0 caso do texto Sphaera Mundi, escrito em 1233 por John de Halifax (ou Holywood) ou, como era mais conheci- do, Johannis de Sacrobosco. Embora ndo introduzindo nenhum progresso, nem qual quer observagiio de importancia, esse foi o texto astronémico estudado nas escolas durante trés ou quatro séculos. A preocupagao dos astrénomos cm trabalhar direta- mente a partir das fontes gregas surge com Georg von Peurbach (1423-1461), astrénomo austriaco que juntamente com seu dis- (11) Heath comentando as tradugoes do Almagesto para o Latim afirma que "uma tradugao (diretamente) do grego foi fei ta por volta de 1160 por um escritor descomhecide para um certo Henricus Aristippus, arquidiacono de Catania, o qual tinha sido mandado por William I, Rei da Sicilia, para uma missao ao Imperador bizantino Manuel I. Comnenus em 1158, trouxe de volta consigo um manuscrito grego da Syntaxis com mo um presente" (lleath, T., A History of Greek Mathematics, vol. IL, p. 275. Koyré, em seu artigo sobre a contribuigao cientifiv “os grandes textos cient{ficos ca da renascencga, afirma que: gregos que eram desconhecidos ou mal conhecidos, na Spoca an terior (4 renascenga), sao traduzidos, editados ou retraduzi dos e reeditados. Assim, na realidade & somente no século XV que Ptolomeu @ verdadeiramente traduzido integralmente para © latim" (Koyré, A., L’ Apport scientifique de la renaissance, Etudee d' histoire de la 2 Ps 93) + 4 efpulo alem&o Johann Miller de Kénigsberg (1436-1476), tam- conhecido como Regionontanus, & o primeiro a intreduzir algun progresso na astronomia. Peurbach considera que muitas das imprecisdes do sistoma ptolomaico (por exemplo as inexatidécs das Tabuas Al fonsinas, que s40 baseadas em tal sistema) se deviam 4 ma nortanto fazia-se nec qualidade das tradugdes drab © estudo dos originais de Ptolomeu, Porém Peurbach morre an~ tes de completar o seu trabalho com as fontes gregas, © que & feito por Regiomontanus e publicado em 1496. 2.2.2- > fx Num primeiro momento os eruditos medievais dedica- ram-se 4 reconstrugao do pensamento dos antigos. A interpre- tagio e a critica, com algunas excessdes, $6 vieram anos nais tarde com os escolasticos. Entre estas excessdes destaca-se a critica 4 dinamica de Aristételes feita, no inicio da Ida- de Média, pelo cristGo neo-platénico Philoponus de Alexan- aria (século vt) ?), (12) Devemos notar que algumas partes da dinamica de Avistételes ja haviam sido criticadas na Grécia antiga, por exemplo, por Hipparchos (séc, 11 A.C.) © Plutarchos (50-125). Hipparchos, segundo Simplicius, opos-se a visao aristotélica do movimento de projéteis, declarande que no ca cima € a forga projetora so dos projéteis "arremessados para que @ a causa do movimento para cima, ja que a forga projeto ra domina a tendéncia para baixo dos projéteis, ¢ que na me~ Philoponus parece ter sido o primeiro medieval a sustentar que a causa do movimento violento (tal como o movi mento de projéteis) no pode ser o meio, como & previsto pe- tica aristotélica segundo a qual todo movimento lo- cal, natural ou violento, @ regido por uma mesma le de acordo com a qual a velocidade (v) de um corpo que se move em uma dada distAncia @ proporcional 4 razdo entre a forga motriz (F) em contato direto com o corpo mével, e a resistén cia ou densidade do meio (R) ou, numa notagdo moderna: continuagdo da nota (12) Gida em que esta forga projetora predomina, o objeto move-se mais rapidamente para cima; entao quando a forga diminui: 1) © movimento para cima continua mas nao na mesma proporgdo p prop . Se para baixo sob a influ@neia de seu impul- 2) 0 corpo move so interno, embora‘a forga original subsista em alguma medi- da, © 3) como esta forga continua a diminuir o objeto move-se para baixo mais rapidamente, e mais rapidamente quando esta forga estiver inteiramente perdida" (Simplicius, Commentary on totle De Caclo 264.20-267.6 (Heiberg), apud Cohen, 209). uma teoria similar @ utilizada por Wipparchos para teek. M.R. and Drabkin, I.E., A Soure ook i explicar 0 movimento dos corpos que caem "diz ele (continua Simplicius) a forga que os segura permanece com eles até um certo ponto, e este & o fator restringente que responde pelo movimento mais lento junto ao inicio da queda" (Simplicius, apud Cohen, M.R. and Drabkin, I.E., A Source Book..., p. 209). Simplicius, como vemos, parece indicar que em Hippar chos ja existia a idéia de que alguma coisa se mantém no objeto, ao longo de seu movimento, que € responsavel por este movimento. Sobre Plutarchos ver: Emile Meyerson, Identité et Réalité, 52 dition, Paris, J. Vrin, 1951, pp. 114-119 e pp. 326-529. 76 A forga motriz é, para a dindmica aristotélica, a causa de todos os movimentos. Cessada a agéo que ela exerce sobre 0 corpo em movimento, cessa o movimento, ja que "tudo gue & movido deve ser movido (segundo Aristételes) por algo" (arist., Physica, 241 24): ce sante causa cessat effectus. "... Todas as coisas (afirma Aristételes) cujo mo- vimento @ violento e ndo-natural sao movidas por algo, e al- go diferente delas préprias, e todas as coisas cujo movimen- to é natural sdo movidos por algo — tanto aquelas que sio movidas por si (por exemplo os animais) como aquelas gue nao sio movidas por si (por exemplo as coisas leves e pesadas, que sao movidas ou por aquilo que produziu a coisa como tal e a fez leve ou pesada, ou por aquilo que liberta o que esta va impedindo ou prendendo"“!?), assim, no caso do movimento natural dos objetos inanimados terrestres (movimento de que- da livre) a forga motriz 6 identificada com o peso (que mede a tendéncia interna de um corpo pesado a mover~se para o cen tro do Universo). Quanto ao movimento violento (tal como o langamento de uma flecha ou pedra horizontalmente ou verti- calmente para cima) no inicio a forga projetora € identifica da com F. Depois que os projéteis nao estaéo mais em contato direto com o motor que os langou, para que seu.movimento se mantenha, @ necessario uma forma continua em contato com (13) Aristdteles, Physica, livro VIII, 255°, 30-35. 17 cles, Aristétele postula que "o motor em tais casos move al go mais ao me: mo tempo, que os que langa..., isto move também © ar, © que este ao ser movido & tam um motor (ver Aristételes, Phystca, 266", 30). © movi ento violento 6 também discutido por Aristé teles no livro IV da Phystea onde ele afirma que: os proj teis sao movidos adiante mesmo depois que aquilo que deu a eles seu impulso nado esteja mais tocando-os, ou 1) pela ra- zao da substituigdo reci{proca, de acordo com a qual o ar em- purrado adiante pelo projétil, volta e toma o lugar do proj& til, e entdo empurra-o adiante como alguns sustentam; ou 2) pelo fato de que o ar, que foi empurrado, no instante em que © projétil 6 inicialmente disparado, move-se com um movimen- to mais rapido do que a locomogao natural, para baixo, do pro Stil, empurrando assim o projétil adiante (Aristdteles pare ce abragar esta segunda explicagdo para o movimento retili- neo violento, como & mencionado na Phystea, 266°.28 - 267° ‘55: e 2157.15). Este movimento violento se mantém até que a forga motriz originalmente impressa nesta porgado de ar se dissipe. Assim o meio, para Aristdteles, oferece tanto a forga motriz como a resisténcia. Segue-se que, dentro da dindmica aristotélica, ne- nhum movimento @ possivel no vacuo. Por um lado, sem o meio, um movimento violento nao teria causa, uma vez perdido o con tato entre o corpo mével e o motor que o langou. Por outro lado, a resisténcia sendo nula, as velocidades de todos os objetos em movimento, quer natural quer violento, no vacuo, 18 seriam iguais e infinitas, e portanto haveria movimentos ins tantaneos (ver: Arist., Phystea, IV, 8), 0 que é, para Aris~ (14) tételes, absurdo Philoponus ao rejeitar a idéia aristotélica com res peito a causa do movimento violento e¢ movimento contrario 4 natureza, afirma que os argumentos de Aristételes nao lhe pa recem convincentes. Pois, segundo Philoponus, realmente na- da, suficientemente satisfatério, é apresentado como prova de que o "movimento contrario 4 natureza ou movimento forgado & causado por um dos modos enumerados por Aristétele: spot aca aie "pois no caso da antipertstasic ha duas possibili dades 1) © ar que foi empurrado adiante pela flecha ou pe- dra projetada move-se de volta para a traseira e toma o lu- gar da flecha ou pedra, e estando entdo atras ele empurraca adiante, 0 processo continua até o impetus do projétil se exaurir, ou, 2) néo é@ 0 ar empurrado 4 frente mas o ar dos lados que toma o lugar do projétil ...". (14) Este € um dos argumentos usados por Aristételes contra a possibilidade do vacuo, pois "diz-se que o va- cuo % aquilo em que @ possivel mas nao existe a presenga de um corpo” (Arist., De Caelo, 1, 279° (12-16)) ¢ havendo um corpo e este recebendo uma forga motriz, por exemplo, para cima, seu movimento seria instantaneo (ver: Arist., Physica, 215-216). * a erd ve z 0 termo antiperistasis @ usado geralmente para desere- ver os processos através dos quais "P) empurra P) para o Lun gar de P3, P, empurra P, para o lugar de P, «+» Ply empur> ra P, para o lugar de P)" (Cohen, My and Drabkin, 1.E., 9 A Source Book...) P+ 221,)+ 79 "Dein nos supor (continua Philoponus) que a anti- af corre de acordo com o primeiro método indicado acima.... Sobre esta suposigto seria diffecil dizer o que é (uma vez que parece nao haver forga contraria) que faz o ar, uma vez empurrado adiante, mover-se de volta, isto @ ao lon go dos lados da flecha, e depois alcangar a traseira da fle- voltando uma vez mais e empurrando a flecha adiante. Pois, nesta teoria, o ar em questao deve realizar trés movi- mentos distintos: ele deve ser empurrado para frente pela fle cha, ent&o mover-se para atras, e finalmente voltar e conti- nuar para frente uma vez mais. Podavia o ar @ facilmente mo- vido, e uma vez colocado em movimento atravessa uma distan- cia consideravel. Como ent&o, pode o ar, empurrado pela fle~ cha, deixar de mover-se na diregdo do impulso impr so, mas em lugar disso, virar, como por alyum comando, e retragar seu curso? Além disso, como pode este ar, ao virar, evitar de ser disperso no espago, mas colidix precisamente sobre o en- talhe final da flecha e novamente empurrar a flecha adiante e presa a ele? Tal viséo @ inteiramente inacrecitavel e che- ga a ser fantastica"!), Além da explicagdo pela ant » Aristéte- les, como vimos, apresenta uma outra explicagdo para o movi- mento de projéteis, de acordo com a qual o ar tendo sido em- purrado, por exemplo, junto com a flecha langada, empurra-a (15) Philoponus, I., Commentary on Aristotle's Physics pp. 639.3-642.9 (Vitelli), apud. Cohen, M.R. and Drabkin, T.E., A Source Book in Greek Science, pp. 221-222. 80 adiante com um movimento mais pido do que © movimento natu ral da flecha para o seu lugar natural. "Esta explicagdo (argumenta Philoponus) embora apa rentemente mais plausivel, realmente ndo @ diferente da pri- meira explicagdo pela antiperictusis, e a seguinte refutagao aplicar-se-4 também A explicagdo pela antiperistasia"('®), Esta refutag%o de Philoponus est& baseada no fato de que se uma flecha langada pela forga move-se, em uma dire gao contraria & sua diregdo natural, empurrada pelo ar que ela tem atras de si. Entado "seria possivel sem o contato (da pedra com a mSo, ou da corda do arco com a flecha) colocar a flecha no topo de uma vara, como ela est& sobre uma linha fi na, e colocar a pedra em uma situagdo similar, e entao, com indneras maquinas, por uma grande quantidade de ar em movi- mento atraés destes corpos. Agora @ evidente que quanto maior for a quantidade de ar movido ¢ quanto maior for a forga com gue ele @ movido, mais este ar empurraria a flecha ou pedra, e mais longe ele as atiraria. Mas o fato 6 que ainda que vo- c& coleque a flecha ou pedra sobre uma linha ou ponto comple tamente destituido de espessura e ponha ei movimento todo 0 ar detras dos projéteis com toda for¢a possivel, o projétil (16) Philoponus, I., Commentary on Aristotle's Physics, pp. 639.3-642.9 (Vitelli), apud. Cohen, M.R. and Drabkin, I.E. A Source Book-.., p+ 222. Bl 17) ndo se moveria a uma distancia de um finico cévado" Uma vez que Philoponus nega a idGia aristotélica de que o meio produz tanto a forga motriz quanto a resisténcia do mento violento, fez~se necossario encontrar uma outra explicagdo para 0 movimento de projéteis. Philoponus fez is- so postulando uma forga motriz (ou impressora) incorpérea: "... & necessario supor que alguma forga motriz in corpérea seja cedida pelo propulsor ao projétil, e que o ar, se estiver presente no movimento, ou nao contribui de forma alguma ou entdo muito pouco para este movimento de projé- i118) | Essa forga motriz incorpdrea, segundo Philoponus, nao @ uma coisa de natureza permanente, mas desaparece gra - dualmente, até mesmo no vacuo, Esta diminuigao se da devido sté@ncia: uma primeira devido ao meio, e oun a uma dupla resis tra devido & tendéncia do corpo pesado para o seu lugar natu ral. Com isso Philoponus permanece. sustentando uma pos- tura anti-inercial j4 que nega a possibilidade do movimento de um corpo no vacuo continuar para sempre. Philoponus também desenvolve uma lei de movimento de acordo com a qual a velocidade do movimento natural (tal (17) Philoponus, I., Commentary on Aristotle's Physics, apud Cohen, M.R., and Drabkin, T-E., A Source Book..., p. 223. ‘s Physics, (18) Philoponus, I., Commentary on Aristotle apud Cohen, M.R., and Drabkin, I-E., A Source Book ..., p. 217. como o de queda livre) e do movimento violento & nal & forga motriz, enquanto que nas reduz tal velocidade. Assim a finica fungdo do meio & re- tardar o movimento, Numa linguagem moderna poderiamos repre- sentar a "lei do movimento" de Philoponus como: via (F-R) onde v & a velocidade cy o a forga motriz R é@ a resisténcia do meio & f4cil perceber que a tcoria de Philoponus torna plausivel o movimento no vacuo, no qual os corpos se movimen tariam sem resisténcia e com velocidade finita, proporcional 3 2D. 2 ‘ z & forga motriz . Este movimento, como vimos, & considera- do inconcebivel dentro da dinamica aristotélica. ae) esferas celestes como um exemplo de movimento sem resistén- Segundo Crombie, Philoponus cita o movimento das cia, e com velocidade finita. Isto também é feito pelo arabe espanhol Avempace (1106-1138) que (segundo Averres (1126-1198) em seu comentario a Physica de Aristételes) diz: "se nds su- pusermos que o movimento das pedras 80 ocorre (em um tempo fi nito] porque elas sao movidas em um meio (...) entdo os cor- pos celestes seriam movidos instantaneamente, ja que nao ha um meio resistindo a eles”. Averrdes, apud Grant, E. (ed-), dieval Science, (Cambridge: Harvard Uni- A Source Book in versity Press, 1974), p. 256. 83 A teoria de Philoponus 6 posteriormente desenvolvi da pelo pensador drabe Avicena (980-1037). Sua lei de movi- cue slo mento © a tese da possibilidade do movimento nov advogadas, no século XII, pelo Grabe espanhol Avempace (1106-1138). “philoponus e Avempace seguiram Plat&o ao procura~ rem as naturezas e causas reais dos fenémenos nao na expe- yiéncia imediata, mas em fatores abstraidos pela ra 0 a par- tir da experiancia"(? , Os principais pontos em questo entre a teoria do movimento de Aristételes e a teoria nco-platénica defendida por Philoponus e Avempace, como nota Crombie, foram levanta- dos por Averrées (1126-1198) ao determinar as principais li- nhas do debate presente no inicio do século XIII na Puropa Ocidental. Averrées se opde 4 teoria do movimento de Avempa~ ce e a toda a concepgio de "natureza" na qual ela esta ba~ seada. Contudo, a visdo de Avempace foi defendida por va- rios escolasticos, sendo Santo Tomis de Aquino (1225-1274) o (20) Crombie, A.C., August p. 68. lileo, vol. IL, ; uma vez que a concepgao de movimento no vacuo tor- nou-se plausfvel, “comegou-se a pensar em termos ideais, mais em movimentos hipoteticamente desobstruidos (embora njo observaveis) do que em movimentos diretamente observa veis, porém complicados, retardados e obstruidos pelo meio" vritan, R.A., Medieval Science, the Copernican revolution and physics teaching, American Journal of Physics, 42(10)+ 812, oct., 1974. 84 (21 primeiro e mais importante ) seguido de Royer Bacon e Peter Olivi (a esse respeito ver: Crombic, A.C., Augustine to Galileo II, p. 71-72). A partir do final do século XiII e do comego do sé culo XIV, varios comentaristas unem-se a Aristételes e Averrées contra . de Aquino e Avempace; iniciando-se aquele que foi um dos. depates mais importantes neste perfodo, a sa- ber: a discussdo em torno do movimento. “A teoria de Philoponus (afirma Crombie) foi apon- tada por alguns eruditos, notadamente por Duhen, como a orim gem de certas concepgées medievais que foram admitidas, por sua vez, como tendo dado origem 4 moderna concepgao de inér~ cia, que foi a base da revolugdo na dindmica do sécu- ro xvii" (22), — (21) £ importante notar que Tomas de Aquino aceitava os principios essenciais da fisica de Aristételes e sua cosmolo gia. 0 principal ponto de oposigao de Aquino Aristételes @ o determinismo absoluto deste iltimo. (22) Crombie, A.C., Augustine to Galileo, vol. Tl, Px 66. Para uma discussao detalhada da influéncia da teoria de Phileponus ¢ Avempace no futuro desenvolvimento da visio inet cial de slileo, que se opoe & yvisao anti-inereial de Aristo eles; © de algumas das idéias deste item, particularmente aquelas presentes do debate Aristoteles ¢ Averrées contra T. de Aquine e Avempace ver: além dos textos de Crombie e Uritan ja citados: Alain Franklin, The Principle of Inertia in the Middle Age, (Colorado: Colorado Associated University Press, 1976); Ernest, A. Moody, Galileo and Avempace, Journal of the wistory of Ideas, 12 (1951), pp. 163-1935 © Edvard Grant, Motion in the Void and The Principle of Inertia in the Middle Ages, Isis, 55 (1964) pp. 265-292. Porém existe uma certa controversia sobre a in- fluéncia da "teoria da forga motriz incorpérea" de Philopo~ sobre a "teoria da forga motriz" gue tornou-se amplamen- te aceita no século XIV e que foi posteriormente elaborada por Jean Buridan (13007-1358) sob o nome de “teoria do impe~ us", Isso por que os escritos de Philoponus sobre este tema sé si > tornaram conhecidos em 1535, numa verso grega, e em 1542, em latim — embora em 1217, Michel Scot tenha apresen tado no seu Liber Astronomiae uma tradugdo abreviada da teo- ria de Avicena, que contém sua teoria da "forga motriz". "piante da evidéncia disponivel, Dr Maier conclui (afirma Crombie) que a ‘teoria da forga motriz' e a do impe- que a sucedeu no século XIV, foram desenvolvidas indepen dentemente pelos escolasticos, principalmente através de suas discusses da causalidade instrumental na reprodugao ¢ nos 23 sacramentos" ‘?*) Seja como for as teses de Philoponus sobre a possi, bilidade do vacuo, sobre © movimento no vacuo, e sua oposi- gdo 4 maxima aristot@lica de que o ar @ causa ¢ resisténcia (23) Crombie, A.C., Augustine to Galileo, vol. TT, 74, Esta visio @ compartilhada por M. Clavelin, que afirma: "E quase certo que Buridan nao estava familiarizado com os argumentos de mentos de Philoponus. Contudo no comego do século XIV. Francisco de Marchie pe em evidincia uma tese que embora no se opusesse, completaq mente, a de Aristételes, era um pressagio da de Buridan". Clavelin, M., The Natural Philosophy of Gal leo, trans. A.J, Pomerans (Cam The bridge I. Press, 1974), p+ 91)- 86 movimento de projéteis eram bavtante conhecidas no fim da Idade Média. A “teoria da forga motriz incorpdrea", que possibi lita o movimento no vacuo, é revivida, no inicio de 1320, por Francisco de Marchia, um filésofo natural escolastico, Es. te trabalho pode, segundo Allan Franklin, ter influenciado Bu ridan no desenvolvimento da sua teoria do impetus, Nao en— contramos, no entanto, nenhuma referéncia de Buridan as te~ ses de Marchia. Buridan rejeita a explicagio aristotélica para o movimento de projéteis, afixmando que esta questdo no é bem resolvida nem na Phystea, nem no De Caelo, pois em ambos Aristdteles menciona duas opinides. A primeira delas, conhe- cida como antiperistasis, @ considerada por Buridan sem va- lor por muitas experiéncias (experientte), tais como a term coira experiéncia citada por Buridan no livro VEIL do seu cg mentario & Physica de Aristételes, 6 ela: "um navio arrasta~ do rapidamente sobre um rio, mesmo contra a corrente deste, depois que o impulso cessa, néo pode ser parado rapidamente, mas continua a mover-se por um longo tempo. E ainda um mari- nheiro sobre o convés nado sente qualquer ar atras dele empur rando-o. Ele sente somente o ar da frente resistindo (a ele). Além disso, supondo que o navio mencionado estivesse carrega do com gros ou madeira e um homem estivesse situado atras da carga, entdo, se o ar tem um tal impetus, capaz de empurrar fortemente o navio adiante, o homem seria empurrado muito violentamente entre aquela carga e o ar atras dela. A expen riéncia mostra que isso é falso". (...)

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