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Entre memorias de uma trajetéria de escolariza¢ao to://pensaraeducaceo.com.br/pensaraeducecaoempauta/por-entre-memoras-de-uma-trajetoria-de 13 de setembro de 2018 Alessandra Frota Martinez de Schueler* Foi vivendo a vida, na maior parte em bancos escolares, que, 20s poucos, as inquietagdes do presente me levaram a pensar sobre o tempo social ¢ histérico vivido nas escolas. ‘Uma experincia de vida na qual, é posstvel avaliar hoje, a escolarizac3o foi visceralmente formadora, constitutiva. Nascida na zona sul da cidade do Rio de Janeiro, no vero de 1972, em uma familia de classe média baixa, cujo chefe era um amavel enfermeiro, meu ‘ay6 materno, frequentel as escolas publicas desde o Jardim de infancia. Por muito tempo filha e neta nica, era na escola que encontrava espaco para conhecer outras criangas, aprender as primeiras letras, experimentar a vida para além da convivencia familiar Dela, nao esqueco 2s professoras, que deixaram poucas, mas significativas, imagens dos tempos de infancia ~ como é ainda claro o rosto da “tia” Marly, que me consolava do “trauma do primelro dia” em que me vi “abandonada” pelo meu avé naquele Jardim de Allah, nos idos de marco de 1976! Especialmente, as escolas de primeiro grau (ento conhecidas pelo senso comum tome primério e gindsio), me trazem lembrancas marcantes. Estas marcas so capazes de me fazer compreender os modos sutis por meio dos quals a cultura, as praticas ¢ os rituals cccolares operam, impregnando corpos e almas, constituindo subjetividades € identidades. No esqueco alguns dos primeiros colegas; 0 uniforme de saia azul plissada, blusa branca com emblemas escolares e estaduais, mela branca e ténis preto (que eu detestaval). AS salas de aula, as cartelras, 0 recreio no imenso patio, o refeitOrio, os pratos de aluminio e as colheres (as criangas sempre comiam usando colheres, nunc garfos e facas), a merenda em conjunto, a cantina, onde compravam refrigerantes e guloselmas apenas aqueles que eram presenteados com cruzeiros pelos familiares. As provas, os trabalhos, os boletins com notas azuis e vermelhas, atestando para os pals © pom ou o mau desempenho. Nas festividades, como as juninas, recordo a confecso das roupas caipiras, as “maria-chiquinhas”, as trangas no cabelo e as pintinhas pretas no rosto, a danca de quadrilha, a pescaria e os quitutes das barracas. O primeiro grau, atualmente parte do denominado Ensino Fundamental, conclui em Niterdi, cidade para onde mudamos quando eu tinha 11 anos, no inicio da década de 1980. Naqueles anos, tempos ditos de “abertura democratica” e de “anistia”, ainda setavem presentes nas escolas préticas de uma educaclo estética da “cultura nacional” para © povo, com seus ritos patridticos, festas, tradigdes _nacionais “inventadas”, celebradas pela escola republicane, reatualizadas e apropriadas pelas praticas pedagdgicas do periodo ditatorial (pds-1964). Ainda posso: fechar os olhos e me (re)ver: ‘a entrada da escola, ocupo meu lugar na fila, organizada pela professora, assisto a0. hastear da bandeira e celebro 0 hino nacional, entdo cantado respeitosamente e com T istoriadora de formacSo, é professora da Faculdade de Educacio da UFF. efusiva alegria por todos nés, alunos, professores, diretora, funciondrios presentes. Tudo surge, se mistura, se recria, se confunde em minhas lembrancas. Nao é sem emogo que reconstruo a meméria de escolarizago, numa trajetéria que, entre idas e vindas, dividas e percalcos, culminou com o ingresso, ento pouco provavel para uma menina oriunda das classes populares, no curso de Histéria, na Universidade Federal Fluminense, apés cursar 0 segundo grau no Liceu Nilo Peganha, instituicao centendria de Niterdi. O curso de Histéria, de 1990 a 1994, foi frequentado a noite, em meio a trabalhos diversos, bolsas de pesquisa e inimeras prestagées de servico as quais me dedicava para me manter na Universidade. Mas, essa é jd outra historia, que deixo para registrar, quem sabe, em outro momento. Por ora, para encerrar a escrita, ressalto a dimens&o da meméria como identidade e projeto, Como lembra Gilberto Velho, a meméria ndo se refere apenas Aquilo que memorével, ao passado, as lembrancas, esquecimentos e siléncios. A meméria é também produce de identidades, plurals, méveis, sempre provis6rias. A meméria € projeto, horizonte de expectativa e metamorfose. E espaco de desejo, implosao das fronteiras entre os sentidos possiveis que conferimos ao pasado, ao presente e ao futuro.

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