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MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES aa 3°) Paz e Terra % aa! f 2) a ei PRE a FD a - =", | Be a OF wat | GSE MMO AUI MAM (MRE i ae aa Ot SJ ~— = SONIA RAMON 1@ Maria Victoria de —_—— i Mesquita Benevides A 0 GOVERNO KUBITSCHEK DESENVOLVIMENTO ECONOMICO E ESTABILIDADE POLITICA 1956 — 1961 Prefacio de Celso Lafer | Paz e Terra 1. INTRODUGAO Este capitulo trata da terceira varigvel proposta no esquema inicial de pesquisa — a politica econémico-admi- nistrativa do Governo Kubitschek —, vista néo como um deus ex-machina, mas efetivamente como o fator mais sig- nificativo para a convergéncia dos interesses da alianca PSD/PTB e dos militares, justificando aquele modelo de eompensagao ja discutide. Segundo T, Skidmore, que a qualifica como “a econo- ila da_sonfianga, “o sucesso da politica econdmica de ubitschek foi o resultado direto de seu sucesso no sen- tido de manter a estabilidade politica... O segredo residia em encontrar alguma coisa para cada um, enquanto evita- va qualquer conflito direto com seus inimigos”'. Ja para B. Aratijo a estabilidade politica é que foi o resultado di- reto da polftica econémica: “...a estabilidade politica do Governo Kubitschek resulta sbbretudo de uma politica eco- noémica favordvel ao bloco do poder... todos podem inves- tir e acumular capital” ?. Como varidvel dependente ou independente considera- mos a politica econémico-administrativa do Governo Kubi- tschek fundamental para a compreensao do periodo, seja qual for a abordagem, e mais ainda em se tratando de questées de estabilidade ou instabilidade, Nos capitulos precedentes pretendemos demonstrar o papel da alianca PSD/PTE e dos militares para a manu- tenc&o da relativa estabilidade politica do periodo. Nota-se, porém, que esses dois temas até agora nao tinham sido consistentemente tratados, a que propicia uma certa tran- qullidade na abordagem do material, praticamente “vir- Thomas SKIDMORE — citada, p. 207. + Bras José de ARAGJO — citada, p, 438. 199 gem", ou ainda nao devidamente pesquisado, pelo menos para o Governo Kubitschek. Neste capitulo, no entanto, nossa posi¢do ja é bastante diversa, com a consciéncia de enfrentar uma questao po- lémica, De fato, o tema tem sido traiado de maneira enfa- tica, nao sendo exagero afirmar que praticamente todas as referéncias ao Governo Kubitschek — em artigos, ensaios ou estudos mais consistentes — dizem respeito as questées de politica econémico-administrativa '. Podemos classificar tais autores, de um modo geral, de acordo com dois tipos Principais de abordagem: um, que procura categorias ex- Plicativas em termos de racionalidade ¢ eficiéncia do de- senvolvimento (0 éxito do Programa de Metas e da admi- nistragdo paralela, por exemplo); outro, bastante polémico, que levanta as mesmas questées, mas em termos de inte- resses classistas, como, pot exemplo, a exploracao da classe Operdria que “paga o preco” do desenvolvimento, ou o pa- tadoxo de um governo apoiado em forcas politicas de tra- dicio varguista-nacionalista e que abre as portas ao capital estrangeiro. Parece evidente que cada tipo pressupde uma determi- nada postura ideolégica nao apenas ao nivel dos valores basicos, como do préprio instrumental analitico — e nao Pretendemos “tomar partido”, mas sim aproveitar os argu- .mentos e dados mais pertinentes para o desenvolvimento de nossa hipdtese mais geral, aqui retomada: a estabilida- de do Governo Kubitschek foi fruto de uma conjuntura. es- Pecial, na qual militares e Congresso atuaram de maneira convergente, no sentido de permitir e apoiar a politica eco- némica do governo. Cabe ressaltar igualmente que, de acordo com a pro- posi¢ao inicial sobre o significado de “estabilidade politica”, eficdcia e legitimidade sao os componentes basicos do con- ceito. Se eficdcia pressupde uma perspectiva proxima a primeira abordagem, legitimidade ndo exclui algum tipo de * Alias, € 0 proprio Juscelino Kubitschek quem nos afirma ser diariamente procurado por estudiosos (brasileiros e estrangeiras) preocupados com sua politica econdmico-administrativa, nunca tendo sido levantadas questées sobre 0 significado politico mais amplo de seu governo. Entrevista citeda. 200 argumento do segundo tipo, pois diz respeito 4 posigio das forgas politicas (classes sociais que sejam) que sustenta- vam © governo. Nossa perspectiva se insere na proposta inicial de abordar o problema da estabilidade do ponto de vista do sistema politico ¢ seu desempenho. Para conduzir a questao, organizando o material numa seqiiéncia coerente, partimos do enfoque da andlise de po- Liticas governamentais (“public policy”), que englobara to- das as variaveis essenciais da politica econémico-adminis- trativa do periodo. Em que consiste este tipo de andlise e de que modo serve aos propésitos deste estudo sera visto adiante *. 2. CONSIDERACGES PRELIMINARES SOBRE A POLITICA ECONOMICA DO PERTODO A caracteristica principal da ecohomia brasileira no periodo em foco consiste na consolidactio da _industrializa- ee po i te a automobilistica, ao mesmo ipo ém que a inddstria- Allds, a prolongada crise provocada pela diseussio em torno da viabilidade do PEM reviveu, de certa forma, a par- i dos partidos no processo decisério. © PEM foi. apresentado pelo Ministro ao Congresso, mas foi debatido em comissées e nfio em plendrio, ou seja, o debate foi tra-_ vado na “Camara em Comissiio’’*, entre deputados e o Ministro e seus assessores. Os debates eram extremamente “politicos”, isto é, fugiam dos problemas puramente econd- micos, envolvendo questdes correlatas, como por exemplo a construcéo de Brasilia. As leis propostas foram aprova- das com emendas longamente barganhadas, principalmen- te pela acdo dos grupos ligados as classes produtoras, como a FIESP, Associacdes Comerciais etc., representados pelos partidos ®. . Mas parece evidente que, se os partidos tinham inte- Tesses €m apoiar o Programa de Metas (mesmo elementos da UDN o apoiavam, em termos do fortalecimento do capi- talismo nacional e manutencgdo dos padrdes de dominacao no campo, nos moldes do apoio pessedista), @ mesmo nao acontecia em relacao ao PEM. O PEM envolvia providéncias nos quatro setores: — moeda e crédito, com limitacdo de crédito e controle operacional sobre bancos particulares; — finangas publicas, com equilibrio orgamentério acarretando aumento nos impostos de renda e de consumo; ‘ — saldrios, com revisio do salirio minimo ¢ restrigfo aos au- mentos; — balanco de pagamentos, com controle cambial ¢ monetario para impedir grande ampliacdo da importacio de bens e servicos” estrangeiros, desburocratizagio do setor exportador, eliminaglo gradual de subsidios cambiais para evitar estimulo ao consumo de bens importados e investimento de equipamentos importados, ™ Comissiio de Finangas, Comissio de Economia ¢ Comissio de Orgamento. 3% Lucas LOPES, entrevista citada. O ex-Ministro da Fazenda as- sinala que “para discutir as questées mais espinhosas convidava Os deputados para reunides particularts, como no caso de Herbert Levy (UDN-SP) sobre politica cambial”. fa” 3 if “ 2 As conseqtiéncias mais coneretas dessas medidas seriam altamente desfavoraveis a todos os grupos representadcs pelos partidos: restrigéo do crédito em geral, vital para a industria tradicional (dificultaria todas as transacces co- merciais também e restringiria o ritmo de expansdo); alta no eusto de vida, como um plano inflaciondrio, o que afe- taria diretamente as massas representadas pelo PTB e ou- tros partidos de “esquerda” (Ferrari, entao lider do PTB, e Sérgio Magalhaes, do PSB, dirigem, na Cimara, viclentos ataques contra o Plano); e, finalmente, 0 PEM represen- taria efetivamente um freio ao desenvolvimento econémico. O PEM contrariaria fatalmente o ritmo das obras e impedi- ria a construcdéo de Brasilia. Kubitschek desmentiria a razao mesma de seu governo — 0 comprometimento priori- tario — se aceitasse o PEM, o que significaria abandonar as metas € renunciar, concretamente, as proposicées desenvol- vimentistas de “50 anos em cinco” “. Nessa mesma linha de interesses se compreende o éxito conseguido por Kubitschek ao capitalizar apoio de todos os partidos (e grupos de pressfo, como a Federacao das In- dustrias} por ocasido de seu rompimento com o Fundo Mo- netario Internacional em junho de 1959. A decisdo nao tinha uma conotacdo ideol6gica, como alguns setores de ‘‘esquer- da” assim a transformaram, mas decorria basicamente das exigéncias “irrealistas’’ do Fundo, que propunha um pro- grama antlinflaciondrio de choque (o que levaria ao im- pedimento “organico”’ do ritmo de obras) e da recusa dos Estados Unidos em responder as solicitacdes da OPA (Or- ganizacéo Pan-Americana) *'. Kubitschek acaba rompendo * Uma boa discussio sobre o PEM encontra-se em Mario PE- DROSA: 4 Opedo Brasileira, Rio, Civilizagio Brasileira, 1966, pp. 170-199. ‘\ A propdésito, lembramos a declaragio de Horacio LAFER, entio Ministro. das RelagGes Exteriores, pronunciando-se em nome de presidente da Republica, ao condicionar o entendimento com © FMI a nossa condigio de “soberania nacional": “Estive no FMI, ende presidi conferéncias. Uma de suas finalidades é garantir a estabilidade das nagdes associadas. Quando a Sr. Kubitschek defende medidas que visam & nossa establilidade, ele ¢ quem esta realizando @ verdadeira politica do Fundo” (citada por Paulo Motta Lima, in Revista Brasiliense, n? 24, 1959, p. 51). 222 também com o PEM, quando substitui Lucas Lopes por Paes de Almeida no Ministério da Fazenda e Roberto Campos por Lucio Meira no BNDE (em junho de 1959 Lucas Lopes sofreu um enfarte em Caxambu, sendo substituido interina- mente e depois efetivamente por Paes de Almeida). Sobre o “irrealismo” das exigéncias do Fundo Moneta- rio Internacional lembramos a posigao do economista Celso Furtado: “Podemos, portanto, afirmar que os economistas do FMI sao plenamente objetivos quando pensam em eco- nomia altamente desenvolvida (...). Transplantadas para um pais como 0 nosso, as deducdes do Fundo Monetario re- sultam ser muito menos objetivas; na@o sendo possivel pen- Sar em termos de pleno emprego da mao-de-obra, a estabi- lidade passa a ser um problema estritamente de nivel de precos. Ora, tidas em conta as flutuacdes da procura externa € a precaria orientacao dos investimentos, manter estavel o nivel de preeos, sem outras medidas, pode custar desem- prego permanente de parte da capacidade produtiva. Dessa forma, a estabilidade poderia ter um custo mais alta que a prépria inflacao” *. No se pode esquecer que o Programa de Metas, apesar do apoio da maioria parlamentar PSD/PTB, nao conseguin unir a classe politica, como aponta Nelson de Mello e Souza, “obrigando o governo a uma série de expedientes margina- lizados do Congresso. O fenGmeno repercutiu de maneira grave, chegando a ser apresentado um projeto de lei, o de n? 330/1959, em que a Camara dos Deputados pretendia recuperar 0 direito de participar do processo de formulacao da politica econémica. Em sua justifieativa apresenta-se a chamada usurpagéo do poder politico do Congresso, ale- gando que a soma de poderes investidos em certos érgaos de administracéo publica os transformava em formulado- res, de fato, da politica econémica. Entre eles apontava-se a SUMOC e 0 seu papel no comande da politica cambial, a CACEX em suas decisées sobre similares que afetam a posigao da industria estabelecida no pais em maos de em- presdrios nacionais, o Conselho de Politica Aduaneira (CPA) ¢ o Banco Nacional de Desenvolvimento” *. O de- #2 Celso FURTADO — A Pré-Revlugdo Brasileira, Rio, Fundo de Cultura, 1962, p. 83. 4 Nelson de MELLO e SOUZA, citada, pp. 88-50. 223 bate prosseguiu, dentro e fora do ‘Congresso, setn sucesso Para os deputados. Mas se aquele projeto fosse aprovado e © poder politico do Congresso fosse “restaurado”, a exe- do Programa de Metas esiaria fatalmente compro- metida. Essa questiio nos remete diretamente & discussio do fortalecimento do Executivo na formulacio da politica eco- némica e a criacdo da “administracao paralela’. 6. A ADMINISTRACAO PARALELA Na linha de andlise de politicas governamentais con- jos a adm para as “repercussées verticais” dos Processas que cesrrem no interior do Estado. Isso Porque nao somente o esquema de administrecao paralela ilustra muito bem a atribuicao de Kecursos € responsabilidades a unidades formalmente de- Pendentes da unidade geradora da politica (os novos rgilos Gependentes diretamente do Executivo), ¢ ) produ: “eristalizacdo ins i ”, que seria todo o aparato buro- cratico criado especificamente para a implementacdo do Programa desenvolvimentista. Quanto ao enfoque estraté- gico lembramos que todos os itens por éle englobados dizem respeito 4 administracao paralela — os recursos e¢ meios, a Percepeao dos problemas e as escolhas efetivamente feitas. Em que consistia, afinal, essa administragao paralela? Nos termos anteriormente Propostos — 0 desempenho do sistema politico e, principalmente, a eficdcia de seu output —, a administragdo paralela fol a melhor resposta do Go- verno Kubitschek, numa combinacéio adequada entre a percepciio dos problemas e as escolhas efetivamente feitas, dados 0s recursos e os meios disponiveis ¢ a relacéo de far- gas politicas atuantes que exigia um estilo conciliatério. Em A administracdo paralela era, portanto, um esquema racional, da ldgica do sistema — evitando o imobi- x lismo do es sem ter que contesta-lo radicalmente —, 224 uma vez que os novos érgaos funcionavam como centros de assessoria € execucaéo, enquanto que os antigos continua- vam a corresponder aos interesses da politica de clientela ainda vigente “. Se o papel do Executivo foi importante, cabe ressaltar a atuagao preponderante do presidente. Essa atuacac se ex- primia, no campo dos valores, pelo comprometimento prio- ritdric do presidente com o desenvolvimentismo, e, no cam- po das praticas, correspondia & sua participacio direta na eriacao (por decreto) dos grupos executivos e outros érgaos administrativos, aproveitando sua experiéncia no governo estadual de Minas Gerais e nomeando uma equipe de técni- cos ja testados nos trabalhos da Comissdo Mista Brasil-Es- tados Unidos e no grupo CEPAL/BNDE ¢ nos quadros da Fundacao Getilio ited ey os quais deram origem & elabo- tagao do Programa Metas. Esta constitu. Kubitschek criou instrumentos extra S nais, ima forma sub-repticia de obter delegacdo de pade- Tes para a realizacdo do Programa de Metas, que jamais teria sido possivel se tivesse que passar pelos tradicionais Quanto a esse approach conciliatério, caro 48 analises de C. LAFER, lembramos a proposicdo critica de C. Lessa de que “as solugdes adotadas para a execucSo do Plano seguiram sempre as linhas de menor resisténcla politica... nao houve, neste periodo, salvo Taras excecGes, preocupacio com a reformulacio instrumen- tal © redefinic&o do papel Go Estado, Mobilizou-se e utilizou-se in- tensivamente o velho apareiho, nele apenas introduzindo ajustes parcials. sem qualquer definicao global da tarefa” (in Quinte ano de politica econémica no Brasil, CEPAL/BNDE, Rio, 1964, mimeo, p. 85). % evidente que niio foi essa a intencfio do autor, mas sua proposi¢&o reforea 0 estilo conciliatério ¢ nossa hipdtese sobre or meios para manter 2 estabilidade politica. 225 processos de tramitacao legislativa, caracterizados pelas longas negociagGes, entraves oposicionistas etc. E verdade, portanto, que os grupos de trabalho e os érgaos executivos criados pelo presidente ¢ a ele diretamente subordinados, vistos sob o angulo de um estrito legalismo, constituiam uma ofensa 4 néo-delegacao de poderes ditada pela Consti- tuigdo. Uma excelente tatica de Kubitschek consistia em apresentar ao Congresso o programa orgamentario em for- ma de verbas globais (e nao muito especificas, o que pode- ria dar margem a propostas de “emendas” etc.) que sem- pre eram aprovados pela maioria parlamentar. Assim, os Grupos Executivos, os Grupos de Trabalho, as sociedades de economia mista, as empresas publicas, recebiam as ver- bas globais, que aplicavam de acordo com sua conveniéncia, independentemente de um apoio especifico do Congresso*. O esquema era racional ¢ eficiente, mas ao manter as forgas politicas sustentadoras do governo alheias ao pro- cesso decisério na politica econédmica, aumentava gradati- vamente a preponderancia do Estado sobre a sociedade civil. Apesar do cartorialismo ainda vigente em certas areas — diluigao do sistema de mérito mais manutengdo da ‘po- litica de clientela —, a importancia e a preponderancia do Estado sobre a sociedade civil cresceram & medida que ele se tornava cada vez mais “eficiente” para controlar a econo- Inia através do esquema da administracio paralela. Segun- do C. Lafer, “os bolsdes de eficiéncia do Estado tiveram condic¢ées de controlar 2 economia, através do esquema da administracao paralela, precisamente porque, no processo de substituicao de importagées, puderam controlar as zonas de incerteza, vitais para o sistema”. , Em outro estudo este autor vincula a questdo da admi- nistracao paralela a vigéncia do populismo, salientando que “a inovacao trazida pelo Programa de Metas foi a de am- pliar a racionalidade do sistema administrative brasileiro, ao propiciar uma visdo integradora do conjunto da econo- mia, planejando, pela primeira vez, de forma consistente, * Tancredo NEVES, enfrevista citada. = ns LAFER — Sistema Poliftco Brastieiro: estruiura e proces. 8, bp. 87 226 ‘Ceprogenao wie subs enc ec,.de Jinuortacce: pare atender 4 pulismo” *7, dindmica do po) _Concordando com a afirmacio acima, nos termos da eficacia e, principalmente, da “forma consistente” com que foi implementada a administracdo paralela, ressalvamos uma duvida quanto 4 sua inteira “originalidade” ou “ino- vacao”. Como lembrou Afonso Arinos, “a administragdo pa- ralela do Governo Kubitschek foi altamente importante, mas estruturas administrativas paralelas ja existiam desde os tempos de Getulio Vargas, que implementava varias po- liticas sem dar satisfagées ag Congresso, ao Tribunal de Contas etc.” *_ Inteiramente “original” ou nao, o que importa neste estudo é salientar que a administragao paralela corresp deu ao maximo aquelas virtualidades do sistema politico, concorrendo para a manutengéo da relativa estabilidade politica. Vejamos em seguida o que foram os principals ér- gaos paralelos: os Grupos Executivos ¢ os Grupos de Tra- balho. OS GRUPOS DE TRABALHO Os Grupos de Trabalho foram formados a partir de grupos de estudo ja existentes, dentro do Conselho de De- 4” Celso LAFER — “Estado ¢ Sociedade — problemas de planeja- mento”, in Argumento, vol. I, n® 2, 1973, p. 38. Numa linha de and- lise diversa, pois parte de nogdes de “crise de hegemonia” ¢ “crise organica”, F. WEFFORT vincula a vigéncia do populisma com as estrutura duais, propondo uma perspectiva para o cxame das pos- siveis solugdes politicas ¢ ideoldgicas encontradas pelas forgas po- liticas do periodo. Citames: “Val no mesmo sentido de indicar o campo das solugdes a caracterizagllo do populismo como “politi- ea’ ou ‘regime’ através do qual o sistema politico trata de resol- ‘ver, embora com éxito duvidoso, a crise de hegemonia, bem como a caracterlzngao das ‘estruturas duais’ de representacho de in- teresses econémicos, os quails passam por dentro ¢ por fora das instituig6es previstas pelo Estado, e mesmo a dualidade institucio- nal da propria administracdo estatal dividida entre os organismos centrais ¢ os ‘organismos paralelos' submetidos diretamente 4 Presidéncia da Republica’. In Partidos, Sindicatos e Democracia — algumas quesiées para o estudo da histéric do periodo 1945- 1964, citada, p. 94. * Afonso Arinos de MELO FRANCO, entrevista citada. 227 a ue | projetos de lei de ficlentes assessorias que preparavam ou regulamentagao sobre um determinado projeto em vista —e simples relatérios — visando, principalmente, maior eficiéncia na padronizagéo da oferta e manipulacdo dos incentivos. Tais projetos podiam ser eventualmente aproveitados como: — exposigio de motivos do Presidente ao Congresso; -— proposta ao Presidente da Repiblica para expedicio de um futuro decreto; — proposta legislativa para debate parlamentar; — régulamentaedo dos drgios a serem criados. Assim, os projetos dos Grupos de Trabalho constituiam eficientes propostas teoricamente apoliticas e apartidarias (vinham de grupos de técnicos) mas que serviam como ponte entre Executivo e Legislativo e como meio possivel Para o presidente carrear apoio especifico para a implemen- tagao de suas metas. A composigao dos membros dos Grupos de Trabalho era cuidadosamente feita levando-se em conta os interesses de cada meta em estudo. O secretario executivo era sempre um funcionario do Conselho do Desenvolvimento; cada grupo contava com um certo nlmero de representantes dos Grgdos chaves da administracdo do setor interessado, como, por exempio, da CACEX, da SUMOC, da Carteira de CAm- bia do Banco do Brasil, do BNDE, da Confederacdo Nacional da Industria, dos Ministérios ete. Logo, as Grupos de Tra- batho podiam elaborar os projetos ja contando com a possi- bilidade de solucao dos problemas cruciais: o financiamento e verbas orcamentarias. Isso porque os Grupos de Trabalho 34 contavam com a concorddncia dos Grupos Executivos, que deveriam se manifestar oficialmente sobre os projetos, uma vez que representantes desses grupos faziam parte, também, dos Grupos de Trabalho. £ nesse sentido que o Programa de Metas teve sucesso nos setores nos quais os Grupos de Trabalho tiveram resul tados positives. A eficiéncia do Programa de Metas pode ser considerada, portanto, como funcéc da eficiéncia dos Gru- 228 pos de Trabalho, os quais, no entanto, foram “obscurecidos” pela atuacao mais visivel dos Grupos Executivos*, Os Gru- pos de Trabalho foram da maior importancia para a simpli- fieagao e especializagdo dos instrumentos de controle, permi- tindo ao governo maior capacidade para manipular a area de incerteza externa. Entre os Grupos de Trabalho destacam-se: 0 GT n9 1, que estudou o problema da revisdo da legislacao de energia eletrica e onde, pela primeira vez, foi tratada de forma Sistematica a questao da correcéo monetaria; 0 GT n® 5, sobre a meta do aco; o da mecanizacao da agricultura; oda borracha; o da frota aérea civil; o de papel ¢ celulose; o de exportacao de ferro; o de fertilizantes; o de aluminio e o do desenvolvimento do Nordeste *. Cada grupo estava, por- tanto, comprometido com o estudo de viabilidade de im- plementacao de uma meta especifica e foram sendo grada- tivamente criados, do inicio do governo até meados de 1958. OS GRUPOS EXECUTIVOS Os Grupos Executives foram criados por decreto, o que alijava a intervencdo do Congresso *, e podem ser vistos como uma tentativa inovadora, um esforco de coordenacao do processo decisério, em termos de um esquema ligando setores piblicos e setores privados. Neles participavam, ao lado de administradores publicos, industriais do setor pri- vado, sendo que em caso de conflito o governo tinha a ultima palavra. Os industriais participavam nao apenas como representantes de interesses particulares, mas como * Lucas LOPES, entrevista citada, “ A relacdo encontra-se em C. LAFER: The Planning Process ete, p. 141, 1 Nesse ponto, e lembrando a “cristalizagéo institucional” pre- vista na andlise de politicas governamentais, eompreendemos afirmagdo de C. LAFER de que a delegagao de facto de poderes do Legislativo a0 Executivo era uma institueionallzacko — dentro das varidveis operacionais do sistema — do método de aproxima- gbes succesivas, um dos pressupostos da técnica do Programa de Metas. Idem, p. 145. 229 individuos, geralmente engenheiros, familiarizados com as condicoes da industria nacional %, Concretamente, os Grupos Executivos eram_ Bae as ‘Orgdos responsaveis pela concessio e manipulacao - centivos necessdrios 4 impiementacao do Programa de Me- tas — oferta de tecnologia e/ou oferta de recursos: finan- ceiros, em sua maior parte de origem externa. Donde a im- porténcia dos GE centralizando a acéo administrativa — em termos de licencas de importacao, cambio, financia- mento, avais e garantias etc. —, ao mesmo tempo em que descentralizava a execugao de suas decisdes. Na ética da estabilidade politica a vantagem principal dos Grupos Executives consistia em sua autonomia orca- mentaria e de recrutamento de pessoal (fora do controle do Ministério da Fazenda e da “politica empreguista”), o que Ihes garantia uma grande margem de flexibilidade ‘eperacional, o que seria impossivel se os interesses clien- telisticos — partiddrios ou néio — fossem levados em con- Sideracao. Um exemplo dessa impossibilidade em com- binar eficdcia de desenvolvimento acelerado planejado com atendimento de interesses particulares se evidencia no insu- cesso da CEPA (Comissio de Estudos e Programas Adminis- trativos), eriada em agosto de 1956, porém bloqueada no Congresso, onde, mesmo com inumeras emendas, nao con- Seguiu ser aprovada. Os Ministérios — em perfeita sintonia com 0 “estilo conciliatério" do presidente e suas promessas (todas cumpridas) durante os acordos pré-eleitorais — se Preocupavam muito mais em atender as necessidades poli- ticas dos grupos ou partidos a que se vinculavam do que a seguir politicas mais amplas de desenvolvimento nacional. A mudanca ministerial, por exemplo, devia-se muito mais as pressGes ligadas a interesses politico-partidarios do que a eritérios de adequaco ou eficiéncia ™, © Nathaniel LEFF — Economic Policy — Making and Develop- ment in Brazil (1947-1964) — N, Y., John Wiley & Sons, 1968, pp. 56-57. © Nessa mesma linha de argumentagio Nelson de MELLO e SOUZA assinals. que o Conselho da SUMOC, a CACEX, 9 Banco do Brasil através de suas cartelras especializadas, O Ministério da Fazenda eom o dominio do orgamento, o do Trabalho euidando da politica salarial ¢ as principais autarquias ¢ empresas do Esta- 230 Entre os Grupos Executivos destacam-se o GEIA (ju- nho de 1956), encarregado da implementagio da meta de industria de veiculos motorizados; 0 GEICON (1958), en- carregado da implementacao da indtstria de construgao naval e que funcionou gracas a criacado do Pundo da Mari- nha Mercante pelo governo; o GEIMAPE (1959), encarre- gado da aprovacado e recomendacdo de projetos e seus res- pectivos incentivos para a industria de bens de capital, ou de maquinaria pesada. Assim, as metas que, diretamente, propunham substituicao de importacao da industria de bens de capital tinham Grupos Executives; as outras me- tas dependiam mais da CACEX (para licencas de importe- goes) e da SUMOC (para facilidades de comércio externo) “. Além dos Grupos de Trabalho e dos Grupos Executi- vos, outros orgacos administratives também foram impor- tantes, no esquema da administracao paralela, embora ndo todos “originais” ao Governo Kubitschek. O CONSELHO DO DESENVOLVIMENTO © Conselho do Desenvolvimento foi criado por Ku- bitschek como uma primeira tentativa de centraliazr o pro- cesso de formulacao da politica econémica, dando-lhe coe- réncia © condicGes institucionais de comando e coordena- ¢ao executivas, funcionando entéo como érgdo central de planejamento, ao nivel de assessoria da presidéncia. Dele faziam parte todos os Ministros de Estado, membros do Estado-Maior das Forgas Armadas ¢ consultores especiais Mas o Conselho subdividiu-se em varios grupos, visando ‘apenas o controle das politicas setoriais, ou seja, cada qual seguindo seus préprios fins; conseqiientemente, o Conselho nunca chegou a cumprir a fungao para a qual foi eriado *. Como afirma Lucas Lopes, “na realidade o Conselho do Desenvolvimento ‘nunca existiu’, ou seja, nunca foi operacional, até mesmo devido a extrema dificuldade de se do stguiram atuando de forma tradicional,.. preenchendo cargos nao em funcdo das necessidades técnicas de coordenagao do Pla- no, mas para manter, pela Idgica do cOmpromisso ¢ da concilia- edo, 0 esquema politico do qual dependia o governo. Citada, p. 83. ~ Dados de C, LAFER — The Planning Process ete., citada, p. 136. * Nelson MELLO ¢ SOUZA, clitada, p. 87. 231 reunir; se ‘funcionou’ de alguma maneira, pelo menos formalmente, deve-se ao fato de que eu acumulei a fungao de Secretario Exeeutivo do Conselho com a de Presidente do BNDE e a maior parte do Programa de Metas dependia dos recursos levantados pela BNDE” “. O BANCO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO ECONOMICO — BNDE © BNDE foi criado no segundo governo de Gettlic Vargas (lei de 20/6/1952) como resultado dos estudos feitos pela Comissio Mista Brasil-Estados Unidos, visando a exe- cugao de um programa de reaparelhamenta e fomento econémico na esfera federal. © Programa de Metas incorporou projetos da Comissao Mista ainda nao implementados. Essa incorporacéo decor- tia de uma estratégia fixada: aproveitar os projetos jé pu- bdlicados, com estudo de viabilidade J4 definido etc., que terilam, portanto, maiores chances de conseguir financia- mento externo, Por exempla, 0 primeiro empréstimo finan- ciado pelo BNDE foi do Eximbank (151 milhoes de déla- res), destinado exclusivamente &queles projetos ainda nao implementados pela Comissio Mista, mas j4 devidamente estudadas 7. Se os Grupos Executivos resultavam na viabilidade administrativa para a execucdo do Frozrama de Metas em télacdo ao setor privado, 9 BNDE representou a principal fonte de controle sobre os mecanismos de financiamento do setor pitblico * ligados as metas de infra-estrutura. Esses recursos eram, principalmente, avais e garantias indispen- sdveis para a obtencao de financiamento externo. A eficién- eia do BNDE deveu-se, em grande parte, ao respeito pelo sistema. de mérito e ao uso de “pessoal emprestade em car- gos em comissao”. O uso de pessoal emprestado foi a prin- cipal solugdo encontrada por Kubitschek para superar a fragmentacao de competéncia e expertise na burocracia, “* Lucas LOPES, entrevista citada. * Idem. * Segundo N. LEFF (citada, p. 53), entre 1952 © 1964 aproxima- damente 64% das financas do BNDE se destinaram ao Progresso, dO sttor publico. 232 pois eram requisitados os melhores membros do funciona- lismo piblico. Essa requisigéo foi relevante em termos de estabilidade politica, pois nado ameacava os interesses da politica de clientela (os requisitados j4 eram funcionarios) € congregava num érgio de importancia crucial os melho- res técnicos, sem prejudicar o funcionamento dos Orgaos de onde sairam *?. OUTROS ORGAOS: O CPA E A CRIACAO DA SUDENE © CPA (Conselho de Politica Aduaneira), criado por lei em 1957, tinha poderes para aplicar tarifas de uma ma- neira flexivel, de acordo com as necessidades do pais no processo de substituigdo de importacdes. O Conselho tor- nou-se um orgao de controle das zonas de incerteza exter- na, podendo reduzir em até 50% os impostos sobre maqui- naria importada, se nao houvesse similar nacional, de ma- neira a estimular a importacdo de bens visando o desen- volvimento industrial. © CPA foi um importante érgao de administracao pa- ralela (com delegacéo de facto de poderes do Legislativo para o Executive), estando formal e informalmente vin- culado aos outros 6rgdos executivos. Informalmente porque a diregao incluia membros de outros érgios (BNDE, CACEX, SUMOC, também estreitamente ligados ao con- trole das zonas de incerteza externa) e formalmente atra- vés dos vinculos com o setor privado: representantes do comércio, indtstria, agricultura, trabalhadores, que pro- viam a necesséria informacdo, garantia da continua revi- sao dos resultados do Programa “. A Sudene, um novo 6rgao que se superpde aos ja exis- fentes (DNOCS — Departamento Nacional de Obras Contra as Secas — e DNER) também é incluida na administracao paralela. Cabe ressaltar, no entanto, o cardter eminente- mente politico da criacao de um érgdo de planejamento regional no Nordeste, subordinado diretamente ao governo central. Isso significava, como aponta Amélia Cohn, “a ne- %° Os dados sio de C. LAFER, The Planning Process etc., p. 152 @ ©. LAFER, citada, p. 144, 233 cessidade de centralizacao do poder para retomar o controle politico de uma regiao que, além de apresentar graves ten- Sées sociais e politicas, ao nivel da representacdo politica {resultado das eleigGes de 1958) Ihe havia escapado das maos” "', Nos dois casos acima houve um fortalecimento real do Poder Executivo, sendo, no entanto, atendidos interesses de diferentes grupos entre as forcas politicas que sustentavam 0 governo: no CPA eram os interesses da burguesia indus- trial ligada ao grande capital; na Sudene, os interesses politicos e econémicos das oligarquias rurais. Essa era, afi- nal, a grande eficacia da administracéo paralela: manti- nha as prerrogativas do Poder Executivo e removia os abs- tdculos para a implementacao do Programa de Metas, num esquema que combinava eficacia com adequacdo e concilia- a0 politica, pois nao enfrentava diretamente os interesses dos setores vinculados a cada area especifica. Em seguida a esta visdo geral sobre o que foi a adminis- tracao paralela no Governo Kubitschek torma-se necessario abordar, embora brevemente, duas questées de politica eco- némica que foram cruciais no periodo: a inflacao e o capital estrangeiro. Tais problemas sao percebidos do ponto de vista do “enfoque estratégico”, isto é, em termos de percepeao dos dilemas, recursos disponiveis e meios pata aumentar a efi- cacia e a racionalidade das escolhas efetivamente feitas. No periodo em foco essa “eficacia” quanto a tais problemas se confunde com a capacidade do governo para promover o desenvolvimento econémico sem antagonizar os grupos po- liticos diversos que o sustentavam, Em resumo, o recurso a inflacao e ao capital estrangeiro foram alternativas “efica- zes" para a promocao do desenvolvimento com estabilidade politica, 7. INFLAGAO A inflacao fei a principal fonte de oposicaio A politica econémica da governo, principalmente por parte da “di- reita”, tornando-se também um dos elementos da propa- | A. COHN, citada, p. 98. 234

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