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‘Obras de Antonio Gramsci Editor: Carlos Nelson Coutinho Co-editores: Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira Cadernos do carcere (6 vols.) 1. Introducdo a0 estudo da filosofia. A filosofia de Benedetto Croce 2. Os intelectuais. O prinefpio educativo. Jornalismo 3. Maquiavel. Notas sobre o Estado e a politica 4, Temas de cultura. Acio catélica. Americanismo e fordismo 5. O Risorgimento italiano. Notas sobre a hist6ria da Italia 6. Literatura, Folclore. Gramitica, Apéndices: variantes e indices Escritos politicos (2 vols.) 1. Escritos politicos 1910-1920 2. Escritos politicos 1921-1926 Cartas do cércere (2 vols.) Antonio Gramsci Cadernos do carcere Volume 2: Os intelecuais. © prinefpio educativo. Jornalismo. TRADUCAO DE Carlos Nelsom Coutinho CIVILIZACAO BRASILELE — Rio de Janciro 2004 COPYRIGHT @ Cacios Nelion Coors, Luis Sérgio Hesriguet € ‘Marco Auli Nopuska, 1999 capa, Evelys Gramach oseTo Grinico Evelyn Grmach e Joio de Souza Leite FREMARACAODEORIGINAS Carlos Nelson Coutinho EDITONAGADELETRONICA Art Line ‘CIPBRASIL, CATALOGAGKO NA FONTE. SINDICATO NACIONAL DOSEDITORES DELIVROS.RJ G458e Gramsci, Antonio, 1891-1937, v2 Cadeenos do edtezce, volume 2 Antonio Gramsciyetigfo Bed. tuadugio, Carlos Nelson Coutinho; co-edigto, Luiz Sérgio Henriques ¢ Marco Aurélio Nogueira. ~ 3 ed. ~ Rio de Janciro: Civilizagio Brasileira, 2004. ‘Tradugio de: Quaderni del eascere Contaido: ¥. 2, Os inteleccuais; © prinetpio educativos Jornalismo. ISBN 85-200-0512-8 1. Gramsci, Antonio, 1891-1997. ~ Visio politica e social. 2. Invlectuais, 3. Educagio. 4. Jornalismo. 1 Tieulo, 99-1682 cpp ~ 33542 (cpu ~ 330342.15 “Todos o& diceitos reservados. Proibida a reprodugio, armazenariento 8 ransiieado de partes deste lio, através de quaisquer meios, sem prévia| aurorizagio por escrito. Dircitos desta edigfo adguiridos pela EDITORA CIVILIZAGAO BRASILEIRA sum selo da DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIGOS DE IMPRENSA 8.4. Rus Argentina 171, Sio Cristovio, Rio de Janeiro, RJ, Bras, 20921-380 “Telefone (21) 2585-2000 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL, Caixa Postal 23.052, Rio de Janeiro, RJ ~ 20922-970 Impresso no Brasil 2004 Sumario woraprevia 07 ‘CADERNOS DO CARCERE. VOLUME 2 09 LOS INTELECTUAIS.O PRINCIPIO EDUCATIVO 17 1. Caderno 12 (1932): Apontamentos e notas dispersas para tum grupo de ensaios sobre a hist6ria dos intelectuais 13 2. Dos cadernos miscelaneos 55 CADERNO 1 (1929-1930) 57 caDERNO 2 (199.1933) 64 cavenwo 31990) 70 ‘CADERNO 4 (1930-1932) 97 CADERNO 5 (1930-1932) 102 caoento 6190-1932) 137 caverno 7 (1930-1931) 152 cavernos gaati9 159 caveswo 9 i920 170 caperwo 1615821895) 181 ‘caperno 15 (1933) 188 (7 ON OH 191 : Jornalismo 195 . Caderno 12 (1932) Apontamentos e notas dispersas para um grupo de ensaios sobre a historia dos intelectuais § 1. Os intelectuais so um grupo auténomo e independente, ou cada grupo social tem uma sua propria categoria especializada de intelec- tuais? © problema € complexo por causa das varias formas que assu- miu até agora 0 processo histérico real de formacio das diversas cate- gorias intclectuais, As mais importantes dessas formas so duas: 1) Todo grupo social, nascendo no terreno originario de uma fun- io essencial no mundo da produgdo econdmica, ctia para si, ao mes- mo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que Ihe dio homogeneidade e consciéncia da prépria fungio, no apenas no campo econémico, mas também no social ¢ politico: 0 empresirio capitalista ctia consigo o técnico da indiistria, o cientista da economia politica, 0 organizador de uma nova cultura, de um novo ditcito, ete., ‘etc, Deve-se observar 0 fato de que o empresdrio representa uma ela- boragao social superior, ja caracterizada por uma certa capacidade dirigente e técnica (isto é, intelectual): ele deve possuir uma certa capacidade técnica, nao somente na esfera restrita de sua atividade e de sua iniciativa, mas também em outras esferas, pelo menos nas mais prdximas da produgo econémica (deve ser um organizador de massa de homens, deve ser um organizador da “confianga” dos que investem em sua empresa, dos compradores de sua mercadoria, etc.). Se néo todos 0s empresirios, pelo menos uma elite deles deve possuir a capa- cidade de organizar a sociedade em geral, em todo 0 seu complexo organismo de servigos, até o organismo estatal, tendo em vista a necessidade de criat as condig6es mais favordveis & expansio da pr6- pria classes ou, pelo menos, deve possuir a capacidade de escolher 08 “prepostos” (empregados especializados) a quem confiar esta ativida- 15 CADERNOS DO cARCERE de organizativa das relagdes gerais exteriores & empresa. Pode-se observar que os intelectuais “organicos” que cada nova classe cria consigo e elabora em seu desenvolvimento progressivo so, na maio- tia dos casos, “especializagées” de aspectos parciais da atividade pri- :itiva do tipo social novo que a nova classe deu a luz. (Também os senhores feudais eram detentores de uma particular capacidade técni ca, a militar, ¢ é precisamente a partir do momento em que a aristo- cracia perde 0 monopélio desta capacidade técnico-militar que se ini- cia a crise do feudalismo. Mas a formacio dos intelectuais no mundo feudal e no mundo classico precedente & uma questio que deve ser examinada & parte: esta formagio ¢ elaboragdo seguem caminhos ¢ ‘modos que é preciso estudar concretamente. Assim, cabe observar que ‘@ massa dos camponeses, ainda que desenvolva uma funcao essencial ‘no mundo da produgio, ndo elabora seus pr6prios intelectuais “orga- nicos” e néo “assimila” nenhuma camada de intelectuais “tradicio- nis”, embora outros grupos sociais extraiam dé massa dos campone- ses muitos de seus intelectuais e grande parte dos intelectuais tradicio- nais seja de origem camponesa.) 2) Todo grupo social “essencial”, contudo, emergindo na histéria a partir da estrutura econdmica anterior e como expresso do desen- volvimento desta esteutura, encontrou — pelo menos na historia que se desenrolou até nossos dias — categorias intelectuais Preexistentes, as quais apareciam, aliés, como representantes de uma continuidade historica que nao foi interrompida nem mesmo pelas mais complica- das e radicais modificacdes das formas sociais e politicas. A mais tipi ca destas categorias intelectuais é a dos eclesidsticos, que monopoliza- ram durante muito tempo (numa inteira fase historica, que é parcial- mente caracterizada, aliés, por este monopélio) alguns servicos importantes: a ideologia religiosa, isto é, a filosoliae a cigncia da épo- ca, com a escola, a instrugio, a moral, a justiga, a beneficéacia, a assisténcia, etc. A categoria dos eclesidsticos pode ser considerada ‘como a categoria intelectual organicamente ligada & aristocracia fun- didria: era juridicamente equiparada & aristocracia, com a qual dividia © exercicio da propriedade feudal da terra e 0 uso dos privilégios esta- 16 cAaDeRNo 12 tais ligados a propriedade. Mas 0 monopélio das superestruturas por parte dos eclesidsticos (disso nasceu a acepgio geral de “intelectual”, on de “especialista”, da palavra “clérigo”, em muitas linguas de ori- gem neolatina ou fortemente influenciadas, através do latim eclesiés- tico, pelas linguas neolatinas, com seu corzelativo de “laico” no senti- do de profano, de ndo-especialista) no foi exercido sem luta e sem Timitagdes; ¢, por isso, nasceram, sob varias formas (que devem ser ‘pesquisadas e estudadas concretamente}, outras categorias, favoreci- das e ampliadas pelo fortalecimento do poder central do monarca, até © absolutismo. Assim, foi-se formando a aristocracia togada, com seus préprios privilégios, bem como uma camada de administradores, etc. cientistas, tebricos, filésofos ndo eclesidsticos, etc. Dado que estas varias categorias de intelectuais tradicionais sen- tem com “espirito de grupo” sua ininterrupta continuidade hist6rica sua “qualificagdo”, eles se poem a si mesmos como auténomos € independentes do grupo social dominante. Esta autoposicao no dei- xa de ter conseqiiéncias de grande importncia no campo ideolégico e politico (roda a filosofia idealista pode ser facilmente relacionada com ‘esta posigio assumida pelo conjunto social dos intelectuais e pode ser definida como a expresso desta utopia social segundo a qual os inte- lectuais acreditam ser “independentes”, auténomos, dotados de ccaracteristicas proprias, ete. Deve-se notar, porém, que se 0 papa ea alta hierarquia da Igreja se exem mais ligados a Cristo e aos apésto- los do que aos senadores Agnelli e Benni, 0 mesmo nao ocorre com Gentile e Croce, por exemplo; Croce, sobretudo, sente-se fortemente ligado a Arist6teles e a Plato, mas ndo esconde, ao contrario, que esteja ligado aos senadores Agnelli e Beni e nisto, precisamente, deve ser procurada a caracteristica mais marcante da filosofia de Croce.) (Essa pesquisa sobre a histéria dos intelectuais no serd de card ter “sociolégico”, mas dard lugar a uma série de ensaios de “historia da cultura” (Kulturgeschichte) e de historia da ciéncia politica. Todavia, serd dificil evitar algumas formas esqueméticas e abstratas, ‘que recordem as da “sociologia”: ser preciso, portanto, encontrar a forma literdria mais adequada para que a exposicio seja “no socio- a CADERNOS DO CARCERE l6gica”. A primeira parte da pesquisa poderia ser uma critica metodo- logica das obras ja existentes sobre os intelectuais, que sfo quase todas de carter sociolégico. Portanto, coletar a bibliografia sobre 0 assunto € indispensdvel.) Quais so 0s limites “méximos” da acepyio de “intelectual”? E ossivel encontrar um critério unitério para caracterizar igualmente todas as diversas ¢ variadas atividades intelectuais e para distingui-las, ‘a0 mesmo tempo e de modo essencial, das atividades dos outros agru- Pamentos sociais? O erro metodolégico mais difundido, ao que me parece, é ter buscado este critério de distingdo no que é intrinseco a8 atividades intelectuais, em vez de buscé-lo no conjunto do sistema de elagdes no qual estas atividades (e, portanto, es grupos que as perso- nificam) se encontram no conjunto geral das relagdes sociais. Na ver= dade, 0 operario ou proletirio, por exemplo, no se caracteriza espe- cificamente pelo trabalho manual ou instrumental, mas por este tra- balho em determinadas condigdes e em determinadas relagdes sociais (sem falar no fato de que no existe trabalho puramente fisico, e de que mesmo a expresso de Taylor, do “gorila amestrado”, € uma metéfora para indicat um limite numa certa diregao: em qualquer tra~ balho fisico, mesmo no mais meciinico e degradado, existe um mini- ‘mo de qualificacio técnica, isto 6, um minimo de atividade intelectual ctiadora). Ejé se observou que o empresirio, pela sua propria funcio, deve possuir em certa medida algumas qualificagées de cardter inte. lectual, embora sua figura social seja detezminada néo por elas, mas pelas relagGes sociais gerais que caracterizam efetivamente a posigo do empresario na indiistria. Por isso, seria possivel dizer que todos os homens sao intelectuais, mas nem todos os homens tém na sociedade a fungao de intelectuais (assim, o fato de que alguém possa, em determinado momento, fritar dois ovos ou costurar um rasgao no paleté nao significa que todos sejam cozinheiros ou alfaiates). Formam-se assim, historicamente, categorias especializadas para o exercicio da funcao intelectual; formamse em conexao com todos os grupos sociais, mas sobretudo {em conextio com os grupos sociais mais importantes, e sofrem elabo- 8 cADERNO 12 races mais amplas complexas em ligagao com o grupo social domi- nante, Uma das caracteristicas mais marcantes de todo grupo que se desenvolve no sentido do dominio é sua Iuta pela assimilagao e pela ta “ideolégica” dos intelectuais tradicionais, assimilagao conquista que sio to mais rapids e eficazes quanto mais o grupo em questo for capaz de elaborar simultaneamente seus pr6prios intelec- orginicos. O enorme desenvolvimento obtido pela atividade ¢ pela organizagdo escolar (em sentido lato) nas sociedades que emergi- ram do mundo medieval indica a importéncia assumida no mundo moderno pelas categorias e fungdes intelectuais: assim como se bus- cou aprofundar e ampliar a “intelectualidade” de cada individuo, buscou-se igualmente multiplicar as especializagdes e aperfeigoé-las. Isso resulta das instituig6es escolares de graus diversos, até os organis- mos que visam a promover a chamada “alta cultura”, em todos os campos da ciéncia e da técnica. (A escola € o instrumento para elabo rar os intelectuais de diversos niveis. A complexidade da fung3o inte- lectual nos varios Estados pode ser objetivamente medida pela quan- tidade das escolas especializadas e pela sua mais extensa for a “Area” escolar e quanto mais numerosos forem os “graus” “verticais” da escola, tio mais complexo ser4 o mundo cul- tural, a civilizagZo, de um determinado Estado. Pode-se ter um termo de comparagio na esfera da técnica industrial: a industrializagao de ‘um pais se mede pela sua capacidade de consteuir maquinas que cons- ‘ruam méquinas e pela fabricago de instrumentos cada vez mais pre- cisos para construir m4quinas e instrumentos que construam méqui- nas, etc. O pais que possuir a melhor capacitagio para construir ins- ‘rumentos destinados aos laborat6rios dos cientistas e para construir instrumentos que verifiquem estes instrumentos, este pais pode ser considerado 0 mais complexo no campo técnico-industrial, 0 mais ivilizado, ete. O mesmo ocorre na preparagio dos intelectuais ¢ has escolas destinadas 4 tal preparacdo: escolas e instituigdes de alta cul- tura so similares.) (Também nesse campo a quantidade nao pode ser destacada da qualidade. A mais refinada especializagdo técnico- cultural, nao pode deixar de corresponder a maior ampliacao possivel 9 cADERNOS Do céRcenE a difusdo da instrusio primdria e 0 maior empenho no favorecimen- fo do acesso aos graus intermediarios do maior niimero. Natural- mente, esta necessidade de criar a mais ampla base possivel para a selegio ¢ elaboracdo das mais altas qualificagSes intelectuais — ou ejay de dar @ alta cultura e & técnica superior uma estrutura democré- tica — no deixa de ter inconvenientes: cria-se assim a possibilidade de amplas crises de desemprego nas camadas médias intelectuais, como ocorre efetivamente em todas as sociedades modernas.) Deve-se notar que a elaboragéo das camadas intelectuais na reali= dade concreta néo ocorre num terreno democratico abstrato, mas segundo processos histéricos tradicionais muito concretos. Formaram-se camadas que, tradicionalmente, “produzem” intelec- tuais; e clas so as mesmas que, com freqiiéncia, especializaram-se na “poupanga”, isto 6 a pequena e média burguesia fundiria e alguns estratos da pequena e média burguesia urbana. A diferente disttibui- $0 dos diversos tipos de escola (cléssicas e profissionais) no territ6rio “econdmico” ¢ as diferentes aspiragdes das vatias categorias destas camadas determinam, ou dao forma, a produgao dos diferentes ramos de especializacdo intelectual, Assim, na Ilia, a burguesia rural pro- uz sobretudo funcionétios estataise profissionais liberais, enquanto 4 burguesia urbana produz técnicos para a indiistria: por isso, a Itélia setentrional produz sobretudo técnicos e a Italia meridional sobretu- do funcionarios ¢ profissionais. A relagio entre os intelectuais e 0 mundo da produgdo nao é ime- diata, como ocorre no caso dos grupos sociais fundamentais, mas é “mediatizada”, em diversos graus, por todo o tecido social, pelo con- junto das superestruturas, do qual os intelectuais sio precisamente os “funcionérios”. Seria possivel medir a “organicidade” dos diversos estratos intelectuais, sua conexio mais ou menos estreita com um gru- po social fundamental, fixando uma gradagao das fungdes e das supe- sestruturas de baixo para cima (da base estrutural para o alto). Por enquanto, podem-se fixar dois grandes “planos” superestruturais: 0 que pode ser chamado de “sociedade civil” (isto é 0 conjunto de organismos designades vulgarmente como “privados”) ¢ 0 da “socie- 20 CADERNO 12 dade politica ou Estado”, planos que correspondem, respectivamente, a fungio de “hegemonia” que o grupo dominante exerce em toda a sociedade ¢ aquela de “dominio direto” ou de comando, que se expressa no Estado e no governo “juridico”. Estas fungOes sao preci- samente organizativas e conectivas. Os intelectuais so os “prepos- tos” do grupo dominante para o exercicio das fungdes subalternas da hegemonia social e do governo politico, isto é: 1) do consenso “espon- neo” dado pelas grandes massas da populacao A orientacdo impres- sa pelo grupo fundamental dominante a vida social, consenso. que nasce “historicamente” do prestigio (e, portanto, da confianga) obti- do pelo grupo dominante por causa de sua posicao e de sua funcio no mundo da produsios 2) do aparelho de coergao estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que ndo “consentem”, nem ati va nem passivamente, mas que é constituido para toda a sociedade na previsdo dos momentos de crise no comando e na direso, nos quais desaparece o consenso espontineo. Esta colocagao do problema tem como resultado uma ampliagio muito grande do conceito de intelec- tual, mas $6 assim se torna possivel chegar a uma aproximagio con- ereta & realidade. Este modo de colocar a questio entra em choque com preconceitos de casta: é verdade que a propria funco organiza- tiva da hegemonia social e do dominio estatal dé lugar a uma certa Aivisio do trabalho e, portanto, a toda uma gradagio de qualifica- 8es, em algumas das quais nfo mais aparece nenhuma atribuigio iretiva ¢ organizativa: no aparelho da dirego social e estatal existe toda uma série de empregos de carter manual e instrumental (de ordem ¢ nao de conceito, de agente e nao de oficial ou funcionatio, etc.), mas, evidentemente, é preciso fazer esta distingo, como & preci- so fazer também algumas outras. De fato, a atividade intelectual deve ser diferenciada em graus também do ponto de vista intrinseco, graus que, nos momentos de extrema oposigao, dio lugar a uma auténtica diferenga qualitativa: no mais alto grau, devem ser postos os criado- res das varias ciéncias, da filosofia, da arte, ete,; no mais baixo, os mais modestos “administradores” e divulgadores da riqueza intelec- tual jd existente, tradicional, acumulada, O organismo militar, tam- 21 CADERNOS DO CARCERE bbém neste caso, oferece um modelo destas complexas gradagées: off Ciais subalternos, oficiais superiores, Estado-Maior; e ndo se devem ésquecer os cabos ¢ sargentos, cuja importancia real é superior 20 que habitualmente se cré. E interessante notar que todas estas partes se sentem solidétias, ou, melhor, que os estratos inferiores manifestam lum “espftito de grupo” mais evidente, do qual recolhem uma “vaida- de® que freqiientemente os expe aos gracejos.e as trocas, No mundo moderno, a categoria dos intelectuais, assim entendi- a, ampliou-se enormemente, Foram elaboradas, pelo sistema social democratico-burocratico, imponentes massas, nem todas justficadas Pelas necessidades sociais da produgio, ainda que justificadas pelas necessidades politicas do grupo fundamental dominante. Daf a con. cepeio loriana do “trabalhador” improdutive (1) (mas improdutivo em relagio a quem ea que modo de producdo?), que poderia ser ‘par clalmentejustficada se e levasse em conta que estas massas exploram Sua posigdo a fim de obter grandes somas retiradas a renda nacional, A formacio em massa estandardizou os individuos, na qualificagao intelectual e na psicologia, determinando os mesmos fendmenos que Ocorrem em todas as outras massas estandardizadas: concorréncia (que coloca a necessidade da organizacao profissional de defesa), desemprego, superproducao escolar, emigracao, etc. Posigdo diversa dos intelectuais de tipo urbano e de tipo rural. 2} Os intelectuais de tipo urbano cresceram junto com a indtstria e sio 'igados as suas vicissitudes. A sua funco pode ser comparada a dos Oficiais subalternos no exército: néo possuem nenkuma iniciativa autGnoma na elaboracio dos planos de construso; colocam em rela. S40, articulando-a, a massa instrumental com o empresacio, elaboram 4 execugio imediata do plano de produgao estabelecido pelo estado- major da inchistria, controlando suas fases executivas elementares. Na média geral, os intelectuais urbanos sio bastante estandardizados; os altos intelectuais urbanos confundemse cada ver mais com o estado ‘maior industrial propriamente dito, Os inteleccuais de tipo rural sao, em grande part, “tradicionais”, {sto 6, ligados & massa social do campo e pequeno-burguesa, de cida. 22 CADERNO 12 des (notadamente dos centros menores), ainda nao elaborada e posta em movimento pelo sitema capitalist: ete ipo de inlet pe em contato a massa camponesa com a administragio estatal ou local (advogados, tabelides, etc.) e, por esta mesma funglo, Posi uma grande Fungo poltco-social,jé que a mediacio profissional dif mente se separa da mediaso politica. Além disso: no campo, o inte- lectual (padre, advogado, professor, tabelido, médico, ce posal um padtio de vida médio superior, ou, pelo menos, diverso daquele do amponts médio e representa, por isso, paa ete camponés, um modelo social na aspiragio de sair de sua condigdo e de mel orl ‘camponés acredita sempre que pelo menos um de seus filhos Bo tomar intl (sbretdo padre}, ito tomar um senor, de van o nivel sci da fant acizndo sua vids ceondmice plas ligagSes que no poder deixar de estabeleer com os outros senhores. ‘atu do campons dante dontlestual ple e pares conta ele admira a posigio social do intelectual e, em geral, do fun- sioniio pico, mas fing s ves desprct isto ua admiapo mistura-se instntivamente com elementos de inveja¢ de raiva apaixo- nada, Nao te compreende nada da via coletiva dos campoese, nem dos germes e fermentos de desenvolvimento nela existentes, se nio s leva em considera, se nfo se estudaconeretamente ns apr funda esta subordinagdo efetiva aos intelectuas: todo desenvo! Wiens t0 organico das massas camponesas, até um certo ponto, esté ligado aos movimentos dos intelectuais e deles depende, 7 O caso é diverso para os intelectuais urbanos: 0s técnicos de fabri- ca no exercem nenhuma funcio politica sobre suas massas instru- mentais, ou, pelo menos, é esta uma fase jé superada; por vezes, oxor ze precisamente 0 contrario, ou seja, que as massas instrumen as pelo menos através de seus préprios intclectuais orginicos, exerg incia politica sobre os técnicos. ; vm pon cetal da que contin sr iting enc ite letuais como categoria oginice de cada grupo socal frdamentl¢ inclectsis como categoria tradicional, distngfo da qual decore toda uma série de problemas e de possiveis pesquisas hist6ricas. 23 CADERNOS 00 CAncERE problema mais interessante & 0 que diz respeito, se considerado deste onto de vista, ao partido politico moderno, as suas origens reais, aos seus desenvolvimentos, as suas formas. O que se torna o partido poli- tico em relago ao problema dos inteleccuais? E necessdtio fazer algu- ‘mas distingSes: 1) para alguns grupos sociais, 0 partido politico & nada mais do que © modo préprio de claborar sua categoria de inte- lectuais orgénicos, que se formam assim, e nio podem deixar de formar-se, dadas as caracteristicas gerais e as condigbes de formasao, de vida e de desenvolvimento do grupo social dado, diretamente no ‘campo politico ¢ filoséfico, e nfo no campo da técnica produtiva (no campo da técnica produtiva, formam-se os estratos que correspon- dem, pode-se dizer, aos cabos e sargentos no exército, isto & os ope- ririos qualificados e especializados na cidade e, de modo mais com- pplexo, os parceiras ¢ colonos no campo, pois 0 parceiro e 0 colono correspondem geralmente ao tipo artesiio, que & 0 operario qualifica~ do de uma economia medieval); 2) 0 partido politico, para todos os ‘grupos, é precisamente 0 mecanismo que realiza na sociedade civil a mesma fungio desempenhada pelo Estado, de modo mais vasto e mais sintético, na sociedade politica, ou seja, proporciona a soldagem entre intelectuais organicos de um dado grupo, o dominante, ¢ intelectuais tradicionais; e esta fungao é desempenhada pelo partido precisamente nna dependéncia de sua fungGo fundamental, que é a de elaborar os proprios componentes, elementos de um grupo social nascido e desen- volvido como “econémico”, até transformé-los em intelectuais polit cos qualificados, dirigentes, organizadores de todas as atividades e fungdes inerentes ao desenvolvimento orginico de uma sociedade integea, civil e politica, Aliés, pode-se dizer que, no seu ambito, o par- tido politico desempenka sua funco muito mais completa e organica- mente do que, num Ambito mais vasto, © Estado desempenha a sua: ‘um intelectual que passa 2 fazer parte do partido politico de um deter- minado grupo social confunde-se com os inte‘ectuais orginicos do proprio grupo, liga-se estreitamente ao grupo, 0 que, através da par- ticipasio na vida estatal, ocorre apenas mediocremente ou mesmo snunca. Alids, ocorre que muitos intelectuais pensam ser 0 Estado, 24 CADERNO 12 cerenga que, dado imenso niimero de componentes da categoria, tem or vezes notaveis conseqiiéncias ¢ leva a desagradaveis complicagdes para o grupo fundamental econdmico que realmente é o Estado. Que todos os membros de um partido politico devam ser conside- rados como intelectuais é uma afirmacio que pode se prestar & ironia € caricatura; contudo, se refletirmos bem, nada é mais exato. Secd preciso fazer uma distingio de graus; um partido poderd ter uma maior ou menor composigao do grau mais alto ou do mais baixo, mas no € isto que importa: importa a funcao, que é diretiva e organizati- va, isto é, educativa, isto 6 intelectual. Um comerciante no ingressa ‘num partido politico para comerciar, nem um industrial para produ- zir mais e com custos reduzidos, nem um camponés para aprender novos métodos de cultivar a terra, ainda que alguns aspectos destas, exigéncias do comerciante, do industrial, do camponés possam ser satisfeitos no partido politico. (A opiniao geral contradiz esta afirma- 40, ao dizer que o comerciante, o industrial, o camponés “politiquei- ros” perdem ao invés de ganhar, ¢ que sio os piores de sua categoria, (que pode ser questionado.) Para estas finalidades, dentro de certos limites, existe o sindicato profissional, no qual a atividade econémico- corporativa do comerciante, do industrial, do camponés encontra seu quadro mais adequado, No partido politico, os elementos de um gru- po social econémico superam este momento de seu desenvolvimento historico e se tornam agentes de atividades gerais, de carter nacional e internacional. Esta fungao do partido politico apareceria com muito maior clareza mediante uma andlise histérica concreta do modo pelo qual se desenvolveram as categorias orgiinicas e as categorias tradicio- nais dos intelectuais, tanto no terreno das vdrias histérias nacionais quanto no do desenvolvimento dos vérios grupos sociais mais impor- tantes no quadro das diversas nagSes, sobretudo daqueles grupos cuja atividade econ6mica foi predominantemente instrumental. A formagio dos intelectuais tradicionais 6 o problema hist6rico ‘mais interessante. Ele se liga certamente & escravidio do mundo clas- sico © A posigao dos libertos de origem grega e oriental na organizacéo, social do Império Romano. Esta separagio nao apenas social, mas 25 CADERNOS DO CARCERE nacional, racial, entre grandes massas de intelectuais ¢ a classe dor nante do Império Romano se reproduz, apés a queda do Império, entre guerreiros germiinicos ¢ intelectuais origindrios romanizados, continuadores da categoria dos libertos. Articula-se com estes fend- ‘menos o nascimento e desenvolvimento do catolicismo e da organiza- do eclesidstica que, por muitos séculos, absorveu a maior parte das atividades intelectuais e exerceu 0 monopélio da direcao cultural, com sangGes penais para quem quisesse se ogor, ou mesmo ignorar, tal monopélio. Na Itélia, verifica-se 0 fendmeno, mais ou menos in- tenso segundo a época, da fungo cosmopolita dos intelectuais penin- sulares. Farei referéncia as diferencas que saltam imediatamente a vis~ ta no desenvolvimento dos intelectuais em toda uma série de paises, pelo menos nos mais importantes, com a advertencia de que estas ob- servagGes deverdo ser verificadas e aprofundadas (de resto, todas estas notas devem ser consideradas simplesmente como indicagBes e moti- vos para ajudar a meméria, devendo ser verificados e aprofundados). No que diz respeito a Itdlia, o fato central é precisamente a fun- s40 internacional ou cosmopolita de seus intelectuais, que é causa e efeito do estado de desagregacio em que pe:maneceu a peninsula, desde a queda do Império Romano até 1870, A Franga fornece um tipo completo de desenvolvimento harméni- co de todas as energias nacionais e, particularmente, das categorias telectuais. Quando, em 1789, um novo agrupamento social aflora politicamente a hist6ria, ele est4 completamente aparelhado para todas as suas fungdes sociais e, por isso, Iuta pelo dominio total da nagao, sem estabelecer compromissos essenciais com as velhas classes, mas, ao contrério, subordinando-as &s préprias finalidades. As pri- meiras células intelectuais do novo tipo nascem com as primeiras célu- las econémicas: a propria organizagdo cclesidsti (Galicanismo, luras muito precoces entre Igreja ¢ Estado). Esta macica construgéo intelectual explica a fungio da cultura francesa nos sécu- los XVIII e XIX, funcio de irradiaca6 internacional e cosmopolita e de expanso de cardter imperialista e hegeménico de modo organico, portanto muito diversa da italiana, de cardter imigratério pessoal a sofre sua influéncia 26 CADERNO 12 desagregado, que néo reflui sobre a base nacional para potencié-la, ‘mas, 20 contrério, concorre para impossibilitar a constituigéo de uma s6lida base nacional. Na Riissia, diversas tematicas: a organizagao politica e econémi- co-comercial foi criada pelos normandos (varegos); a religiosa, pelos ‘gregos bizantinos. Num segundo momento, os alemies e franceses le- ‘vam a experiéncia européia & Riissia e emprestam um primeiro esque- leto consistente a gelatina histérica russa, As forgas nacionais so inertes, passivas ¢ receptivas, mas — talvez precisamente por isto — assimilam completamente as influéncias estrangeiras e os préprios estrangeiros, russificando-os. No periodo histérico mais recente, ‘ocorre 0 fendmeno inverso: uma elite dentre as pessoas mais ativas, enérgicas, empreendedoras e disciplinadas vai para o exterior, assimi- laa cultura e as experiéncias hist6ricas dos paises mais desenvolvidos do Ocidente, sem com isso perder as caracteristicas mais essenciais da propria nacionalidade, isto é, sem romper as ligagdes sentimentais € hist6ricas com o proprio povos feito assim seu aprendizado intelec- tual, retornam 2o pais, obrigando o povo a um despertar forcado, a uma marcha acelerada para a frente, queimando as etapas. A diferen- ‘ga entre esta elite e aquela alema importada (por Pedro o Grande, por exemplo) consiste em seu caréter essencial nacional-popular: nto pode ser assimilada pela passividade inerte do povo russo, ja que ela ‘mesma é uma enérgica reaco russa a propria inércia histérica. ‘Num outro terreno e em condigdes bem diversas de tempo lugar, este fendmeno russo pode ser comparado ao nascimento da ago americana (Estados Unidos): os imigrantes anglo-saxdes so também uma elite intelectual, mas sobretudo moral. Refiro-me, natu- ralmente, 20s primeiros imigrantes, 20s pioneiros, protagonistas das lutas religiusas ¢ politicas inglesas, derrotados, mas nem humilhados nem rebaixados em sua patria de origem. Eles trazem para a América, ‘em suas préprias pessoas, além da energia moral ¢ volitiva, um certo grau de civilizacio, uma certa fase da evolugio historica européia que, transplantada no solo virgem americano por tais agentes, continua a desenvolver as forgas implicitas em sua natureza, mas com um ritmo 27 CADERNOS DO CARCERE incomparavelmente mais tépido do que na velha Europa, onde existe toda uma série de freios (morais, intelectuais, politicos, econémicos, incorporados em determinados grupos da populagao, reliquias dos regimes passados que ndo querem desaparccer) que se opdem a um processo rapido e equilibram na mediocridade qualquer iniciativa, diluindo-a no tempo e no espago. Na Inglaterra, 0 desenvolvimento € muito diferente daquele da Franga. O novo agrupamento social nascido sobre a base do indus- trialismo moderno tem um surpreendente desenvolvimento econd- ‘mico-corporativo, mas engatinha no campo intelectual-politico. & ‘muito ampla a categoria dos intelectuais organicos, isto 6, dos intelec- tuais nascidos no mesmo terreno industrial do grupo econ6micos pporém, na esfera mais clevada, encontramos conservada a posigio de ‘quase monopélio da velha classe agrdiria, que perde a supremacia eco- némica mas conserva por muito tempo uma supremacia politico intelectual, sendo assimilada como “intelectuais tradicionais” € como strato dirigente pelo novo grupo que ocupa o poder. A velha aristo- cracia fundiéria se une aos industriais através de um tipo de sutura que, em outros paises, é precisamente aquele que une os intelectuais tradicionais as novas classes dominantes. fendmeno inglés manifestou-se também aa Alemanha, compli- cado aqui por outros elementos histéricos e tradicionais. A Alema~ nha, como a Itdlia, foi a sede de uma instituicio e de uma ideologia uuniversalista, suptanacional (Sacro Império Romano da Nagéo ‘Alema), e forneceu uma certa quantidade de quadros a cosmépole medieval, depauperando as préprias energias internas e provocando Tutas que desviavam dos problemas da organizagaio nacional e manti- rnham a desagregacio territorial da Idade Média. O desenvolvimento industrial ocorreu sob um invélucro semifendal, que durow até novembro de 1918, ¢ os junker mantiveram urea supremacia politico- intelectual bem maior do que a mantida pelo mesmo grupo inglés. les foram os intelectuais tradicionais dos industriais alemaes, mas ‘com privilégios especiais e com uma forte consciéncia de ser um gru- ppo social independente, baseada no fato de que detinham um notavel 28 cAaoeano 12 poder econémico sobre a terra, mais “produtiva” do que na Inglaterra. Os junker prussianos assemelham-se a uma casta sacerdotal-militar, que possui um quase monopélio das fungdes diretivo-organizativas na sociedade politica, mas que dispde ao mes- mo tempo de uma base econémica prépria e no depende exclusiva- mente da liberalidade do grupo econdmico dominante. Além disso, diferentemente dos nobres agrérios ingleses, os junker constitufam a oficialidade de um grande exército permanente, 0 que lhes fornecia sélidos quadros organizativos, favoraveis & conservagio do espirito de grupo e do monopélio politico. (No livro Parlamento e governo na nova ordem da Alemanha, de Max Weber [3], podem-se encontrar ‘muitos elementos que permitem observar como © monopélio politico dos nobres impediu a elaboragio de um pessoal politico burgués numeroso ¢ experimentado ¢ constituiu a base das continuas crises parlamentares e da desagregacao dos partidos liberais e democréticos; dai a importancia do Centro Catdlico e da Social-Democracia, que conseguiram, durante 0 periodo imperial, elaborar um esteato parla- mentar ¢ diretivo préprio bastante numeroso.) ‘Nos Estados Unidos, deve-se notar a auséncia, em certa medida, dos intelectuais tcadicionais e, portanto, 0 diverso equilibrio dos inte- lectuais em geral. Ocorreu uma formagao maciga de todas as superes- truturas modetnas com base na indstria. A necessidade de um equi- Ifbrio nao é dada pelo fato de que seja necessério fundir os intelectuais organicos com os tradicionais, que n&o existem como categoria crista- lizada e misonefsta, mas pelo fato de que seja necessério fundir, num ‘inico cadinho nacional de cultura unitéria, diversos tipos de cultura trazidos pelos imigrantes de origens nacionais variadas. A auséncia de uma vasta sedimentacio de intelectuais tradicionais, como ocozseu nos patses de civilizagao antiga, explica parcialmente seja a exictncia de apenas dois grandes partidos politicos, que poderiam na realidade ser facilmente reduzidos a um s6 (comparar com a Franga, ¢ nao somente a do pés-guerra, quando a multiplicagio dos partidos se tor- ‘nou um fendmeno geral), seja, a0 inverso, a multiplicagao ilimitada de seitas religiosas (ao que parece, foram catalogadas mais de duzentas; 29 CADERNOS DO CARCERE comparar com a Franca e com as encarnigadas lutas empreendidas para que se mantivesse a unidade religiosa e moral do povo francés), ‘Uma manifestacdo interessante deve ainda ser estudada nos Estados Unidos, qual seja a da formacZo de um ntimero surpreenden- te de intelectuais negros, que absorvem a cultura e a técnica america- nas, Pode-se pensar na influéncia indireta que estes intelectuais negros podem exercer sobre as massas atrasadas da Africa, bem como na influéncia direta que se verificaria caso ocorresse uma destas hipéte- ‘es: 1) se o expansionismo americano se servisse dos negros nacion. como seus agentes na conquista dos mercados africanos e na extensdo aeles do proprio tipo de culeara (algo similar jé ocorreu, mas ignoro ‘em que proporgées); 2) se as lutas pela unificagio do povo americano ‘se agucassem a tal ponto que determinassem 0 éxodo dos negros € 0 retorno & Africa dos elementos intelectuais mais independentes ¢ enér~ gicos ¢, portanto, menos propensos a sujeitar-se a uma possivel legis- aco ainda mais humilhante do que o costume atualmente difundido. Nasceriam duas questées fundamentais: 1) da lingua, isto é, o inglés podetia se rornar a lingua culta da Africa, unificadora da atual poeira de dialetos? 2) se esta camada intelectual poderia ter a capacidade assimiladora ¢ organizadora na medida necessiria para converter em “nacional” o atual sentimento primitivo de raga desprezada, elevando ‘0 continente africano 2o mito ea fungao de patria comum de todos os negros. Parece-me que, por enquanto, os negros da América devem ter um espirito racial ¢ nacional mais negativo do que positive, isto é provocado pela luta que os brancos empreendem no sentido de isold~ lose rebaixa-los: mas nao foi este 0 caso dos judeus até todo 0 século XVII? A Libéria, jé americanizada e com o inglés como lingua oficial, poderia tornar-se a Sido dos negros americanos, com a tendéncia a converter-se no Piemonte africano. [4] Na América do Sul e Central, a questo dos intelectuais, ao que ‘me parece, deve ser examinada levando-se em conta as seguintes con- digdes fundamentais: também na América do Sul ¢ Central inexiste uma ampla categoria de intelectuais tradicionais, mas 0 problema nao se apresenta nos mesmos termos que nos Estados Unidos. De fato, 30 caverno 12 encontramos na base do desenvolvimento desses paises os quadros da civilizagao espanhola e portuguesa dos séculos XVI e XVI, caracteri zada pela Contra-Reforma e pelo militarismo parasitacio. As cristal zagbes ainda hoje resistentes nesses paises so 0 clero € uma casta militar, duas categorias de intelectuais tradicionais fossilizadas na for- ma da metrpole européia. A base industrial é muito restrita e nao desenvolveu ‘superestruturas complexas: a maior parte dos intelec- tuais é de tipo rural ¢, jé que domina o latifiindio, com extensas pro- priedades eclesisticas, estes intelectuais so ligados ao clero e aos grandes proprietdrios, A composigéo nacional é muito desequilibrada mesmo entre os brancos, mas complica-se ainda mais pela imensa quantidade de indios, que em alguns paises formam a maioria da populagao. Pode-se dizer que, no geral, existe ainda nessas regides americanas uma situaco tipo Kulturkampf [5] e tipo proceso Dreyfus, isto é, uma situagdo na qual o elemento laico e burgués ain- da nao alcancou o estégio da subordinacao dos interesses e da influén- cia clerical e militarista a politica laica do Estado moderno. Ocorre assim que, por oposigao ao jesuitismo, tenham ainda grande influén- cia a Magonaria e o tipo de organizacio cultural como a “Igreja posi- tivista”. Os eventos dos tilimos tempos (novembro de 1930) — do Kulturkampf de Calles, no México, 3s insurreig6es militar-populares ‘na Argentina, no Brasil, no Peru, no Chile, na Bolivia — demonstram precisamente a exatidao destas observagées. _ Outros tipos de formagio da categoria dos intclectuais ¢ de suas re ages com as forcas nacionais podem ser encontrados na {ndia, na Chi na, no Japao. No Japio, temos uma formagio do tipo inglés e aleméo, isto é, uma civilizagio industrial que se desenvolve dentro de um invo- lucro feudal-burocrético, com inconfundiveis caracteristicas préprias. Na China, hé o fendmeno da escrita, expressio da vompleta sepa- aco entre os intelectuais ¢ o povo. Na india e na China, a enorme distancia entre os intelectuais e 0 povo manifesta-se, ademais, no cam- Po religioso. O problema das diversas crencas e do diverso modo de conceber ¢ praticar a mesma religido entre os diversos estratos da sociedade, mas sobretudo entre clero e intelectuais e povo, deveria ser 31 CADERNOS 00 CARCERE estudado em geral, ja que se manifesta em certa medida por toda par- te, embora nos paises da Asia Oriental tenha suas manifestagées mai extremas. Nos paises protestantes, a diferenga é relativamente peque- na (a multiplicacdo das seitas ¢ ligada & exigéncia de uma sutura com- pleta entre intelectuais ¢ povo, 0 que reproduz na esfera da organiza- ‘¢io superior todas as formas escabrosas da concepsao real das massas populares). Nos paises catdlicos, a referida diferenga € muito grande, ‘mas com diversos graus: menor na Alemanha catolica ¢ na Franga, maior na Itélia, sobretudo no Sul e nas ilhas; imensa na Peninsula Ibérica e nos paises da América Latina. O fenémeno cresce de impor- incia nos pafses ortodoxos, onde é preciso falar de trés graus da mes~ ma religiio: 0 do alto clero e dos monges, 0 do clero secular ¢ 0 do povo. Toma-se absurda na Asia Oriental, ondea religiéo do povo fre- (qiientemente nada tem em comum com a dos livros, embora as duas tenham o mesmo nome. “Aspectos diversos da questio dos intelectuais, além daqueles acima mencionados. E preciso elaborar sobre isso um projeto organico, siste- mético e argumentado, Registro das atividades de carter predominan- temente intelectual. Instituigdes ligadas & atividade cultural. Método problemas de método do trabalho intelectual e cultural, sei ctiativo ou divulgativo. Escola, academia, cftculos de diferentes tipos, tais como instituigdes de elaboracao colegiada da vida cultural, Revistas e jornais como meios para organizar e difundir determinados tipos de cultura. Pode-se observar, em geral, que na civilizagdo moderna todas as atividades préticas se tornaram tio complexas, ¢ as ciéncias se mescla- ram de tal modo a vida, que cada atividade prética tende a criar uma escola para os proprios dirigentes e especialistes e, conseqiientemente, tende a criar um grupo de intelectusis especialistas de nivel mais cleva~ ddo; que ensinem nestas escola. Assim, a0 lado do tipo de escola que poderfamos chamar de “humanista” (e que é 0 tipo tradicional mais ‘ntigo), destinado a desenvolver em cada individuo humano a cultura ¢geral ainda indiferenciada, o poder fundamental de pensar e de saber rientar-se na vida, foi-se criando paulatinamente todo um sistema de 32 CADERNO 12 ‘escolas particulares de diferentes niveis, para inteiros ramos profissio~ nais ou para profiss6es jé especializadas e indicadas mediante uma precisa especificagio, Pode-se dizer, alids, que a crise escolar que hoje se difunde liga-se precisamente ao fato de que este processo de diferen- ciago e particularizagao ocorre de modo caético, sem principios cla- 10s ¢ precisos, sem um plano bem-estudado e conscientemente estabe~ lecido: a crise do programa ¢ da organizagao escolar, isto é, da orien- taco geral de uma politica de formagao dos modernos quadros inte- lectuais, é em grande parte um aspecto e uma complexificagao da cri- se organica mais ampla e geral. A divisio fundamental da escola em classica e profissional era um esquema racional: a escola profissional destinava-se as classes instrumentais, enquanto a cléssica destinava-se as classes dominantes ¢ aos intelectuais. O desenvolvimento da base industtial, tanto na cidade como no campo, gerava a crescente neces- sidade do novo tipo de intelectual urbano: desenvolveu-se, ao lado da escola classica, a escola técnica (profissional mas nao manual), o que 1pés em discussao 0 préprio principio da orientagio conereta de cultu- 1a geral, da orientagio humanista da cultura geral fundada na tradi- ‘so greco-romana. Esta orientagao, uma vez posta em discussio, foi afastada, pode-se dizer, j4 que sua capacidade formativa era em gran- de parte baseada no prestigio geral e tradicionalmente indiscutido de uma determinada forma de civilizacio. A tendéncia atual é a de abolir qualquer tipo de escola “desinte- ressada” (ndo imediatamente interessada) e “formativa”, ou de con- servar apenas um seu reduzido exemplar, destinado a uma pequena elite de senhores e de mulheres que nao devem pensar em preparar-se para um futuro profissional, bem como a de difundir cada vez mais as cscolas profissionais especializadas, nas quais 0 destino do aluno e sua futura atividade so predeterminados. A crise tera uma solucio que, racionalmente, deveria seguir esta linha: escola tinica inicial de culeu- +2 geral, humanista, formativa, que equilibre de modo justo 0 desen- volvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) ¢ o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual. Deste tipo de escola tinica, através de repetidas experién- 33 CADERNOS DO CARCERE cias de orientago profissional, passar-se~é a uma das escolas especia- Tizadas ou ao trabalho produtivo. Deve-se ter presente a tendéncia em desenvolvimento, segundo a qual cada atividade prética tende a criar para si uma escola especiali- zada propria, do mesmo modo como cada atividade intelectual tende acriar cfrculos préprios de cultura, que assumem a fungio de institu {gbes p6s-escolares especializadas em organizar as condigoes nas quais, seja possivel manter-se informado dos progressos que ocorrem no amo cientifico préprio. Pode-se observar, também, que 03 érgéos, deliberativos tendem cada vez mais a diferenciar sua atividade em dois aspectos “orginicos”: o deliberativo, que Ihes é essencial, e 0 técnico-cultural, onde as questdes sobre as quais € preciso tomar deci s6es sio inicialmente examinadas por especialistas e analisadas cient ficamente. Esta atividade jé criou todo um corpo burocrético de nova estrutura, pois — além dos escrit6rios especializados de pessoas com- petentes, que preparam o material técnico pata os corpos deliberati- vos — cria-se um segundo corpo de funcionérios, mais ou menos “yoluntérios” e desinteressados, escolhidos, em cada oportunidade, na indistria, nos bancos, nas finangas, Este é um dos mecanismos através dos quais a burocracia de carreira terminou por controlar os regimes democraticos e os parlamentos; atualmente, o mecanismo vai se ampliando organicamente e absorve em seu circulo os grandes especialistas da atividade prética privada, que controla assim os regi- mes e a burocracia. Jé que se trata de um desenvolvimento organico necessério, que tende a integrar 0 pessoal especializado na técnica politica com 0 pessoal especializado nas quest6es concretas de admi- nistragio das atividades préticas essenciais das grandes e complexas, sociedades nacionais modernas, toda tentativa de exorcizar a partir de fora estas tendéncias no produa como resultado mais do que prega- ‘ges moralistas e gemidos retéricos. Pde-se a questio de modificar a preparagio do pessoal téenico politico, complementando sua cultura de acordo com as novas necessidades, ¢ de elaborar novos tipos de funciondtios especializados, que integrem de forma colegiada a ativi- dade deliberativa. O tipo tradicional do “dirigente” politico, prepara- 34 CADERNO 12 do apenas para as atividades juridico-formais, torna-se anacrénico e representa um perigo para a vida estatal: o diigente deve ter aquele minimo de cultura geral que Ihe permita, se no “criar” autonoma- mente a solugo justa, pelo menos saber julgar entre as solugdes pro- jetadas pelos especialistas e, conseqiientemente, escolher a que seja justa do ponto de vista “sintético” da técnica politica. Um tipo de colegiado deliberativo, que busca incorporar a competéncia técnica necesséria para operar de um modo realista, foi descrito em outro local [6], onde se fala do que ocorre em certas redagdes de revistas, que funcionam 20 mesmo tempo como redacio e como circulos de cultura, O citculo critica de modo colegiado ¢ contribui assim para elaborar 0s trabalhos dos redatores individuais, cuja operosidade é organizada segundo um plano uma divisio do trabalho racional- mente preestabelecidos. Através da discussio e da critica colegiada (feita através de sugestdes, conselhos, indicagdes metodolégicas, eriti- ca construtiva ¢ voltada para a educagio recfproca), mediante as uais cada um funciona como especialista em sua matéria a fim de complementar a qualificacao coletiva, consegue-se efetivamente cle var 0 nivel médio dos redatores individuais, alcancar o nivel ou a capacidade do mais preparado, assegurando a revista uma colabora- so cada vez mais selecionada e organica; e ndo apenas isso, mas ccriam-se também as condigées para o surgimento de um grupo homo- géneo de intelectuais, preparados para a produgao de uma atividade “editorial” regular e metédica (nfo apenas de publicagées de ocasiio ‘ede ensaios parciais, mas de trabalhos orgdnicos de conjunto). Indu- bitavelmente, nesta espécie de atividade coletiva, cada trabalho pro- duz novas capacidades e possibilidades de trabalho, jé que cria con- digdes de trabalho cada vez mais organicas: ficharios, elencos bi- bliogréficos, coletnea de obras fundamentais especializadas, etc. Exige-se uma luta rigorosa contra os habitos do diletantismo, da improvisacZo, das solugdes “oratérias” e declamatérias. © trabalho deve ser feito sobretudo por escrito, assim como por escrito devem ser as criticas, em notas resumidas e sucintas, 0 que pode ser obtido mediante a distribuigio a tempo do material, ete. escrever as notas € a5 CADERNOS 00 CARCERE as criticas é prinefpio didético que se tornou necessario gracas & obri- gacdo de combater os hébitos da prolixidade, da declamagdo ¢ do paralogismo criados pela oratéria. Este tipo ce trabalho intelectual é nnecessitio a fim de fazer com que os autodidatas adquiram a discipl- na dos estudos proporcionada por uma carreira escolar regular, a fim de taylorizar o trabalho intelectual. Assim, é util o principio dos “ancides de Santa Zita”, dos quais fala De Sanctis em suas recorda- ‘ges sobre a escola napolitana de Basilio Puoti [7], ou seja, é «til uma certa “estratificagao” das capacidades e habitos, bem como a forma- ao de grupos de trabalho sob a direcéo dos mais aptos e evoluidos, que acelerem a preparacio dos mais atrasados ¢ toscos. Um ponto importante, no estudo da organizagao pratica da esco- la unitéria, é 0 que diz respeito ao curriculo escolar em seus varios niveis, de acordo com a idade e com 0 deservolvimento intelectual- moral dos alunos e com os fins que a prépria escola pretende alcan- ar. A escola unitéria ou de formacao humanista (entendido este ter- mo, “humanismo”, em sentido amplo e nao apenas em sentido tradi- ional}, ou de cultura geral, deveria assumir a tarefa de inserir os jovens na atividade social, depois de té-los elevado a um certo grau de maturidade ¢ capacidade para a criagZo intelectual e prética e a uma ‘certa autonomia na orientacio e na iniciativa, A fixagio da idade escolar obrigatéria depende das condigdes econdmicas gerais, j4 que estas podem obrigar os jovens a uma certa prestagio produtiva ime- diata. A escola unitéria requer que 0 Estado possa assumir as despe- sas que hoje esto a cargo da familia no que toca & manutengao dos escolares, isto é, requer que seja completamente transformado 0 orga~ mento do ministério da educacao nacional, ampliando-o enormemen- tee tornando-o mais complexo: a inteira funcio de educagao e forma do das novas geragdes deixa de ser privada e torna-se piiblica, pois somente assim ela pode abarcar todas as geragdes, sem divisdes de grupos ou castas, Mas esta transformagio da atividade escolar requer uma enorme ampliagao da organizagao pritica da escola, isto é dos prédios, do material cientifico, do corpo docente, etc. O corpo docen- te, em particular, deveria ser ampliado, pois a eficiéncia da escola € 36 cADERNO 12 muito maior ¢ intensa quando a relacao entre professor e aluno é menor, o que coloca outros problemas de solusio dificil e demorada, Também a questio dos prédios nao é simples, pois este tipo de escola, deveria ser uma escola em tempo integral, com dormitérios, refeité- rios, bibliotecas especializadas, salas adequadas para o trabalho de seminario, etc. Por isso, inicialmente, o novo tipo de escola deverd ser —€ no poderé deixar de sé-lo — prépria de grupos restritos, de jovens escolhidos por concurso ou indicados sob a responsabilidade de instituigdes idOneas. A escola unitéria deveria corresponder ao periodo representado hoje pelas escolas primarias e médies, reorgani- zadas néo somente no que diz respeito ao método de ensino, mas tam- bém no que toca & disposicao dos varios graus da carreira escolar. O nivel inicial da escola elementar no deveria ultrapassar trés-quatro anos ¢, ao lado do ensino das primeiras nogdes “instrumentais” da instrugao (ler, escrever, fazer contas, geografia, histdria), deveria desenvolver sobretudo a parte relativa aos “direitos e deveres”, atual- mente negligenciada, isto 6, as primeiras nocées do Estado e da socie- dade, enquanto elementos primordiais de uma nova concepgio do mundo que entra em luta contra as concepedes determinadas pelos diversos ambientes sociais tradicionais, ou seja, contra as concepgSes, que poderiamos chamar de folcl6ricas. O problema didético a resol- ver é 0 de abrandar e fecundar a orientagio dogmética que nfo pode deixar de existir nestes primeiros anos, O resto do curso néo deveria durar mais de seis anos, de modo que, aos quinze ou dezesseis anos, jé deveriam estar concluidos todos os graus da escola unitaria, Pode-se objetar que um tal curso é muito cansativo por causa de sua rapidez, se se pretende efetivamente atingir os resultados propostos pela atual organizagao da escola cléssica, mas que nao sao atingidos. Pode-se dizer, porém, que a conjunta da nova arganizagio deverd conter os elementos gerais que fazem com que, hoje, pelo menos para uma par- te dos alunos, o curso seja muito lento. Quais sio estes elementos? Numa série de familias, particularmente das camadas intelectuais, os jovens encontram na vida familiar uma preparacdo, um prolonga- mento e uma complementagao da vida escolar, absorvendo no “ar”, 37 CADERNOS 00 CARCERE ‘como se diz, uma grande quantidade de nogées e de aptid&es que faci- Jitam a carreira escolar propriamente dita: eles jf conhecem, e desen- volvem ainda mais, o dominio da lingua literitia, isto é do meio de expressio e de conhecimento, tecnicamente superior aos meios de que dispde a média da populacao escolar dos seis aos doze anos. Assim, os alunos urbanos, pelo simples fato de viverem na cidade, jé absorve- ram — antes dos seis anos — muitas nodes € aptidées que tornam mais fécil, mais proveitosa e mais répida a carreira escolar. Na orga- nizagéo interna da escola unitéria, devem ser criadas, pelo menos, as mais importantes destas condigdes, além do fato, que se deve dar por suposto, de que se desenvolverd — paralelamente a escola unitéria — uma rede de creches e outras instituigdes nas quais, mesmo antes da idade escolar, as criangas se habituem a uma certa disciplina coletiva ce adquiram nogbes e aptiddes pré-escolares, De fato, a escola unitéria deveria ser organizada como escola em tempo integral, com vida cole- tiva diurna e noturna, liberta das atuais formes de disciplina hipécri- tae mecénica, e 0 estudo deveria ser feito coletivamente, com a assis- téncia dos professores e dos melhores alunos, mesmo nas horas do estudo dito individual, etc. problema fundamental se pde para a fase da atual carreira escolar hoje representada pelo liceu [8], que em nada se diferencia, atualmente, como tipo de ensino, das fases escolares anteriores, a no ser pela abstrata suposigo de uma maior maturidade intelectual ¢ moral do aluno, devida & maior idade e & experiéncia anteriormente acumulada, De fato, ente liceu e universidade, isto é, entre a escola propriamente dita e a vida, existe um salto, uma verdadeira solugao de continuidade, nao uma passagem racional da quantidade (idade) & qualidade (maturidade intelectual e moral). Do ensino quase pura- mente dogmético, no qual a meméria desemrenha um grande papel, ppassa-se a fase criadora ou de trabalho autonomo ¢ independentes da escola com disciplina de estudo imposta e controlada autoritariamen- te, passa-se a uma fase de estudo oude trabalho profissional na qual 4 autodisciplina intelectual ¢ a autonomia moral sao teoricamente mitadas. E isto ocorre imediatamente apés a crise da puberdade, 38 quando o impeto das paixdes instintivas e elementares no terminou ainda de hitar contra os freios do carater e da consciéncia moral em formagio. Na Italia, de resto, onde nao é difundido nas universidades © prinefpio do trabalho de “seminério”, a passagem é ainda mais brusca e mecnica. Por isso, na escola unitéria, a tltima fase deve ser concebida organizada como a fase decisiva, na qual se tende a criar os valores fundamentais do “humanismo”, a antodisciplina intelectual e a auto- nomia moral necessdrias a uma posterior especializagao, seja ela de cardter cientifico (estudos universitarios), seja de carter imediatamen- te pritico-produtivo (indistria, burocracia, comércio, etc.). O estudo e 0 aprendizado dos métodos criativos na ciéncia e na vida devem come~ sar nesta tiltima fase da escola, no devendo mais ser um monopélio da universidade ou ser deixado ao acaso da vida pratica: esta fase esco- lar jé deve contribuir para desenvolver o elemento da responsabilidade auténoma nos individuos, deve ser uma escola criadora. (Deve-se dis- tinguir entre escola criadora e escola ativa, mesmo na forma dada pelo método Dalton [9]. Toda a escola unitéria & escola ativa, embora seja nocessdrio limitar as ideologias libertérias neste campo e reivindicar com certa energia o dever das geracdes adultas, isto & do Estado, de “conformar” as novas geragées. Ainda se esté na fase romantica da escola ativa, na qual os elementos da uta contra a escola mecinica ¢ jesuitica se dilataram morbidamente por razdes de contraste e de polé- mica: é necessétio entrar na fase “cldssica”, racional, encontrando nos fins a atingir a fonte natural para claborar os métodos ¢ as formas. A escola criadora é 0 coroamento da escola ativa: na primeira fase, tende-se a disciplinar e, portanto, também a nivelar, a obter uma certa espécie de “conformismo” que pode ser chamado de “dindmico”; na fase criadora, sobre a base ja atingida de “coletivizacéo” do tipo social, tende-se a expandir a personalidade, tornada auténoma € res- ponsével, mas com uma consciéncia moral ¢ social sdlida e homogé- nica. Assim, escola criadora ndo significa escola de “inventores e desco- bridores” indica-se uma fase e um método de investigagio e de conhe- cimento, e no um “programa” predeterminado que obrigue & inova- 39 CADERNOS 00 CARCERE fo € & originalidade a todo custo. Indica que a aprendizagem ocorre sobretudo gracas a um esforgo espontaneo e autdnomo do discente, € no qual o professor exerce apenas uma funcdo de guia amigavel, como ocorre ou deveria ocorrer na universidade. Descobrir por si mesmo: uma verdade, sem sugestdes e ajudas exteriores, écriagio, mesmo que a verdade seja velha, e demonstra a posse do método; indica que, de qualquer modo, entrou-se na fase da maturidade intelectual, na qual se podem descobrir verdades novas. Por isso, nesta fase, a atividade esco- lar fundamental se desenvolveré nos semindrios, nas bibliotecas, nos laborat6rios experimentais; 6 nela que serdo recolhidas as indicagoes organicas para a orientago profissional.) © advento da escola unitiria significa o inicio de novas relagoes entre trabalho intelectual e trabalho industrial no apenas na escola, ‘mas em toda a vida social. O principio unitario, por isso, ird se refle- tir em todos os organismos de cultura, transformando-os e empres- tando-lhes um novo contetido, Problemas da nova fungio que pode- ro assumir as universidades e as academias. Estas duas instituigGes so, atualmente, independentes uma da outra; as academias sio 0 simbolo, ridicularizado freqiientemente com razio, da separagdo exis- tente entre a alta cultura e a vida, entre os intelectuais eo povo (por isso, € explicavel certa influéncia obtida pelos futuristas em seu meiro periodo de Sturm und Drang antiacadémico, antitradicionalis- ta, etc, [10]). Num novo contexto de relages entre vida e cultura, entre trabalho intelectual e trabalho industrial, as academias deve- ram se tomar a organizagio cultural (de sistematizagio, expansio ¢ ccriagio intelectual) daqueles elementos que, apés a escola unitaria, passatiio para o trabalho profissional, bem como um terreno de ‘encontro entre estes ¢ os universitarios. Os elementos sociais empre- gados no trabalho profissional nao devem cair na passividade intelec- tual, mas devem ter a sua disposicZo (por iniciativa coletiva ¢ ndo de individuos, como fungio social orgnica reconhecida como de utilida- dee necessidade piiblicas) institutos especializados em todos os ramos de pesquisa e de trabalho cientifico, para os quzis poderao colaborar ‘nos quais encontrario todos os subsidios necessdrios para qualquer 49 caverno 12 forma de atividade cultural que pretendam empreender. A organiza- fo académica deverd ser reorganizada e vivificada de alto a baixo. Territorialmente, ter uma centralizacao de competéncias ¢ de espe- cializagdes: centros nacionais que agregario a si as grandes institui Ges existentes, segdes regionais e provinciais ¢ circulos locais urbanos e rurais. Serio divididos por especializagées cientifico-culturais, representadas em sua totalidade nos centros superiores, mas s6 par- cialmente nos ef¢culos locais. Unificar os varios tipos de organizacéo cultural existentes: academias, institutos de cultura, circulos filolégi- cos, etc, integrando o trabalho académico tradicional — que se ‘expressa sobretudo na sistematizagéo do saber passado ou na busca da fixagio de uma média do pensamento nacional como guia da ati- vidade intelectual — com atividades ligadas & vida coletiva, a0 mun- do da producio e do trabalho. Serdo controladas as conferéncias industriais, a atividade da organizagio cientifica do trabalho, os labo- rat6rios experimentais das fabricas, etc. Serd construido um mecanis- ‘mo para selecionar e desenvolver as capacidades individuais da massa popular, que sio hoje sacrificadas ¢ definham em erros e tentativas sem perspectiva, Cada circulo local deveria possuir necessariamente a segio de ciéncias morais e politicas, que organizard paulatinamente as ‘outras sees especiais para discutir os aspectos técnicos dos proble- mas industriais, agrécios, de organizagio e de racionalizagio do tra- balho industrial, ageicola, burocrético, etc. Congressos periddicos de diversos niveis fariam com que os mais capazes fossem conhecidos. Seria stil possuir 0 elenco completo das academias e das outras organizacées culturais hoje existentes, bem como dos assuntos trata- dos em seus trabalhos ¢ publicados em suas atas: em grande parte, trata-se de cemitérios da cultura, embora desempenhem uma fungdo na psicologia da classe dominante. ‘A colaboracdo entre estes organismos e as universidades deveria ser esteeita, bem como com todas as escolas superiores especializadas de qualquer tipo (militares, navais, etc.). A finalidade é obter uma centralizaco e um impulso da cultura nacional que fossem superiores aos da Igeeja Catdlica. a CADERNOS 00 CARCERE (Este esquema de organizagio do trabalho cultural segundo os principios gerais da escola unitéria deveria ser desenvolvido, cuidado- samente, em todas as suas partes e servir de guia na constitui¢ao mes- mo do mais elementar e primitive centro de cultura, que deveria ser concebido como um embrido ¢ uma molécula de toda a estrutura mais macica. Mesmo as iniciativas que se sabem transitérias ¢ experimen- tais deveriam ser concebidas como capazes de ser absorvidas no esquema geral e, a0 mesmo tempo, como elementos vitais que tendem a criar todo o esquema. Estudar atentamente a organizagao ¢ 0 desen- volvimento do Rotary Club.) § 2. Observagées sobre a escola: para a investigagaio do principio educativo. A fratura determinada pela reforma Gentile entre a escola priméria e média, por um lado, e a escola superior, por outro. [11] Antes da reforma, uma fratura desse tipo existia, de modo marcado, somente entre a escola profissional, por um lado, e as escolas médias fe superiores, por outro: a escola priméria era colocada numa espécie de limbo, por algumas de suas caracteriticas particulares. ‘Nas escolas primarias, dois elementos se prestavam a educago e formagao das criangas: as primeiras nogées de ciéncias naturais e as nogdes dos direitos e deveres do cidadao. As nodes cientificas deviam setvir para introduzir a crianga na societas rervon; 0s direitos e deve- res,na vida estatal ena sociedade civil. As nogdes cientificas entravam. em luta com a concepgio magica do mundo e da natureza, que a crianga absorve do ambiente impregnado de folclore, enquanto as nogées de direitos ¢ deveres entram em luta com as tendéncias & bar- baric individualista ¢ localista, que é também um aspecto do folclore. Com seu ensino, a escola luta contra o folclore, contra todas as sedi- mentagSes tradicionais de concepgdes do mundo, a fim de difundir uma concepgao mais moderna, cujos elementos primitivos e funda- mentais sio dados pela aprendizagem da exist@ncia de leis naturais como algo objetivo e rebelde, as quais é preciso adaptar-se para dominé-las, e de leis civis e estatais, produto de uma atividade huma- nna, que so estabelecidas pelo homem e podem ser por ele modifica 2 CADERNO 12 das tendo em vista seu desenvolvimento coletivos a lei civil e estatal organiza os homens do modo historicamente mais adequado a domi- rar as leis da natureza, isto é, a tornar mais facil 0 seu trabalho, que é a forma prépria através da qual o homem participa ativamente na ‘vida da natureza, visando a transformé-la e socializé-la cada vez mais profunda e extensamente, Pode-se dizer, por isso, que o principio edu- cativo no qual se baseavam as escolas primérias era 0 conceito de tra- balho, que no pode se realizar em todo seu poder de expansio e de produtividade sem um conhecimento exato e realista das leis naturais e sem uma ordem legal que regule organicamente a vida dos homens centre si, ordem que deve ser respeitada por convicgao espontinea e ndo apenas por imposig&io externa, por necessidade reconhecida proposta a si mesmos como liberdade e nao por simples coercio. O ‘conceito ¢ 0 fato do trabalho (da atividade tedrico-pratica) é 0 princi- pio educativo imanente a escola priméria, jé que a ordem social eesta- tal (direitos e deveres) é introduzida e identificada na ordem natural pelo trabalho. O conceito do equilibrio entre ordem social e ordem natural com base no trabalho, na atividade teérico-pritica do homem, cria os primeiros elementos de uma intuigo do mundo liber- ta de toda magia ou bruxaria, e fornece o ponto de partida para 0 pos- terior desenvolvimento de uma concepgdo hist6rica, dialética, do ‘mundo, para a compreensio do movimento e do devir, para a avalia- fo da soma de esforgos e de sactificios que o presente custou a0 pas- sado e que o futuro custa ao presente, para a concepcéo da atualida- de como sintese do passado, de todas as geragies passadas, que se projeta no futuro. £ este o fundamento da escola primdria; que ele tenha dado todos os seus frutos, que no corpo de professores tenha existido a consciéncia de seu dever ¢ do conteiido filos6fico deste ever, & um outro problema, ligado critica do grau de consciéncia civil de toda a nagio, da qual o corpo docente era apenas uma expres- sao, ainda que amesquinhada, e nfo certamente uma vanguarda, Nao € completamente exato que a instrugdo néo seja também educacio: a insisténcia exagerada nesta distingéo foi um grave erro da pedagogia idealista, cujos efeitos j4 se véem na escola reorganizada aa CADERNOS DO CARCERE por esta pedagogia. Para que a instrugo niio fosse igualmente educa- ‘sao, seria preciso que o discente fosse uma mera passividade, um jente mecénico” de nodes abstratas, o que é absurdo, além de ser “abstratamente” negado pelos defensores da pura educatividade precisamente contra a mera instru¢do mecanicistz. O “certo” se torna “verdadeito” na consciéncia da crianga. Mas a consciéncia da crianga no é algo “individual” (e muito menos individualizado}: é 0 reflexo da fragio de sociedade civil da qual a crianca participa, das relages sociais tais como se aninam na familia, na vizinhanga, na aldeia, etc. A consciéncia individual da esmagadora maioria das criangas reflete relagbes civis ¢ culturais diversas e antagOnicas as que sao refletidas pelos programas escolares: 0 “certo” de uma cultura evoluida torna- se “verdadciro” nos quadros de uma cultura fossiizada ¢ anacrénica, no existe unidade entre escola e vida ¢, por isso, no existe unidade entre instrugo e educagio. Por isso, pode-se dizer que, na escola, 0 nexo instrugdo-educagao somente pode ser representado pelo traba- Iho vive do professor, na medida em que o professor & consciente dos contrastes entre 0 tipo de sociedade e de cultura que ele representa €0 tipo de sociedade e de cultura representado pelos alunos; e é também consciente de sua tarefa, que consiste em acelerar e disciplinar a for- magao da crianca conforme o tipo superior em luta com 0 tipo infe- rior. Se 0 corpo docente é deficiente eo nexo instrugio-educacdo é abandonado, visando a resolver a questo do ersino de acordo com ‘esquemas abstratos nos quais se exalta a educatividade, a obra do professor se tornard ainda mais deficiente: terse uma escola ret6ri- ca, sem seriedade, pois faltaré a corposidade material do certo eo ver- dadeiro sera verdadeiro s6 verbalmente, ou sejz, de modo retérico. Esta degenerescéncia pode ser ainda melhor vistana escola média, nos cursos de literatura ¢ filosofia. Antes, pelo menos, os alunos forma- vam uma certa “bagagem” ou “proviso” (de acordo com os gostos) de nogées concretas; agora, quando 0 professor deve ser sobretudo tum fildsofo ¢ um esteta, o aluno negligencia as nogdes concretas € “enche a cabeca” com férmulas e palavras que nig tém para ele, na maioria dos casos, nenhum sentido, e que s4o logo esquecidas. A luta 44 cADeRNo 12 contra a velha escola era justa, mas a reforms no era uma coisa tio simples como parecia; nao se tratava de esquemas programaticos, mas de homens, ¢ no imediatamente dos homens que sio professores, mas de todo 0 complexo social do qual os homens so expressio. Na realidade, um professor mediocre pode conseguir que 0s alunos se tor- nem mais énstrufdos, mas nao conseguird que sejam mais cultos; ele desenvolverd, com escriipulo ¢ consciéncia burocrética, a parte mec&- nica da escola, ¢ 0 aluno, se for um cérebro ativo, organizaré por sua conta, e com a ajuda de seu ambiente social, a “bagagem” acumula- da. Com novos programas, que coincidem com uma queda geral do nivel do corpo docente, simplesmente nao existira mais nenhuma “bagagem” a organizar. Os novos programas deveriam ter abolido completamente os examess prestar um exame, hoje, deve ser muito mais um “jogo de azar” do que antigamente. Uma data é sempre uma data, qualquer que seja 0 professor examinador, e uma “definigéo” é sempre uma definigio; mas ¢ um julgamento, uma andlise estética ou filos6fica? ‘A cficécia educativa da velha escola média italiana, como a anti- ga lei Casati a havia organizado, no devia ser buscada (ou negada) nna vontade expressa de ser ou no escola educativa, mas no fato de que sua organizagao e seus programas eram a expresso de um modo tradicional de vida intelectual e moral, de um clima cultural difundi- do em toda a sociedade italiana por uma antiqlifssima tradigao. O fato de que um tal clima e um tal modo de vida tenham entrado em agonia e que a escola se tenha separado da vida determinou a crise da escola, Criticar os programas ¢ a organizacio disciplinar da escola significa menos do que nada, se nio se levam em conta estas condi- Ges. Assim, retorna-se a participagao realmente ativa do aluno na escola, que s6 pode existir se a escola for ligada a vida. Os novos pro- ‘gramas, quanto mais afirmam e teorizam sobre a atividade do discen- te e sobre sua operosa colaborago com o trabalho do docente, tanto mais sio claborados como se o discente fosse uma mera passividade. ‘Na velha escola, o estudo gramatical das linguas latina e grega, unido a0 estudo das literaturas e hist6rias politicas respectivas, eta um prin- 45 CADERNOS DO CARCERE cipio educativo na medida em que o ideal humanista, que se personi- fica em Atenas ¢ Roma, era difundido em toda a sociedade, era um elemento essencial da vida e da cultura nacionais. Até mesmo a meca- nicidade do estudo gramatical era encaminhada a partir dessa pers- pectiva cultural. As nogSes singulares nfo eram aprendidas com vistas uma imediata finalidade prético-profissional: tratava-se de algo desinteressado, pois 0 que contava era o desenvolvimento interior da personalidade, a formagao do cardter através da absorgio e da assimi- ago de todo o passado cultural da civilizacio européia moderna, Nido se aprendia o latim ¢ 0 grego para falé-los, para trabalhar como ‘garcom, intérprete ou correspondente comercial’. Aprendia-se para conhecer diretamente a civilizagdo dos dois povos, pressuposto neces- sério da civilizacéo moderna, isto é, para ser e conhecer consciente- mente a si mesmo. As linguas latina e grega eram aprendidas segundo a gramética, mecanicamente; mas existe muita injustiga ¢ improprie- dade na acusa¢ao de mecanicidade e de aridez. Lida-se com adoles- centes, aos quais é preciso fazer com que adquiram certos habitos de dliligéncia, de exatidao, de compostura até mesmo fisica, de concen- tragio psiquica em determinados assuntos, que sé se podem adquirie ‘mediante uma repetigao mecanica de atos disciplinados e metédicos. Um estudioso de quarenta anos seria capaz de passar dezesseis horas seguidas numa mesa de trabalho se, desde menino, nao tivesse assimi- lado, por meio da coacdo mecanica, os habitos psicofisicos apropria- dos? Se se quer selecionar grandes cientistas, ainda € preciso partir deste ponto e deve-se pressionar toda a drea escolar para conseguir fazer com que surjam os milhares ou centenas, ou mesmo apenas dezenas, de estudiosos de grande valor, necessérios a toda civilizagao (nfo obstante, podem-se obter grandes melhorias neste terreno com a ajuda dos subsidios cientificos adequados, sem retornar wus inétodos pedagégicos dos jesuitas). Aprende-se o latim (ou melhor, estuda-se o latim), esta lingua é analisada mesmo em suas particulas mais elementares, é analisada ‘como uma coisa morta, é verdade, mas toda anélise feita por uma ccrianga s6 pode sé-lo sobre coisas mortas: ademais, & preciso néo 46 \ cADERNO 12 esquecer que, no lugar onde este estudo é feito sob tais formas, a vida dos somanos € um mito que, numa certa medida, ja interessou a crian- a € ainda Ihe interessa, de modo que est sempre presente no morto um grande vivo. E, além disso, a lingua € morta, é analisada como uma coisa inerte, como um cadaver na mesa anatémica, mas revive continuamente nos exemplos, nas narragGes. Seria possivel estudar do ‘mesmo modo 0 italiano? Impossivel: nenhuma lingua viva poderia ser estudada como o latim: seria ¢ pareceria absurdo. Nenhuma das ceriangas conhece o latim quando inicia seu estudo com aquele méto- do analitico. Uma lingua viva poderia ser conhecida, ¢ bastaria que uma $6 crianga a conhecesse para que 0 encanto se quebrasse: todos iriam imediatamente a escola Berlitz. O latim (bem como o grego) apresenta-se & fantasia como um mito, inclusive para o professor. O latim nao é estudado para aprender o latim; o latim, hd muito tempo, gragas a uma tradigdo cultural-escolar da qual se poderia pesquisar a otigem € 0 desenvolvimento, € estudado como elemento de um pro- sgrama escolar ideal, elemento que resume e satisfaz toda uma série de cexigencias pedagogicas e psicolégicass é estudado para que as criangas se habituem a estudar de determinada maneira, a analisar um corpo histérico que pode ser tratado como um cadaver que continuamente volta a vida, para habitué-las a raciocinar, a abstrair esquematica- ‘mente (mesmo que sejam capazes de voltar da abstragdo a vida real imediata), a ver em cada fato ou dado o que ha nele de geral e de par- ticular, 0 conceito ¢ 0 individuo. B, do ponto de vista educativo, o que no significara a constante comparagdo entre o latim e a lingua que se fala? A distingio e a identificago das palavras ¢ dos conceitos, toda a légica formal, com a contradigao dos opostos ea analise dos distintos, com 0 movimento hist6rico do conjunto lingiifstico, que se modifica no tempo, que tem um devir endo é somente estaticidade. Nos oito anos de gindsio-liceu, estuda-se toda a lingua historicamente real, ‘apés té-la visto fotografada num instante abstrato, sob a forma de gramética: estuda-se desde Enio (ou, melhor, desde as palavras dos fragmentos das doze tébuas) até Fedro e os cristos-latinos: um pro- cesso hist6rico é analisado desde seu surgimento até sua morte no 4a CADERNOS DO CARCERE tempo, morte aparente, jé que se sabe que 0 italiano, com 0 qual 0 latim é continuamente comparado, é latim modemo. Estuda-se a gra- mética de uma certa época, uma abstraco, 0 vocabulario de um periodo determinado, mas se estuda (por comparagio) a gramatica'e ‘© vocabulério de cada autor determinado, bem como o significado de cada temo em cada “periodo” (estilistico) determinados descobre-se, assim, que a gramética e 0 vocabulério de Fedro no so os de Cicero, nem os de Plauto, ou de Latancio e Tertuliano, que uma mesma cone xo de sons no tem 0 mesmo significado em épocas diversas, em escritores diversos, Compara-se continuamente 0 latim e 0 italianos mas cada palavra é um conceito, uma imagem, que assume matizes dliversos nas diferentes épocas, nas pessoas, em cada uma das duas lin- gues comperadas. Estuda-se a histéria literdria, dos livros eseritos naquela lingua, a histéria politica, a gesta dos homens que falaram aquela lingua. A educagio do jovem é determinada por todo este com- plexo organico, pelo fato de que, ainda que s6 materialmente, ele per~ correu todo aquele itinersrio, com suas etapas, etc. Ele mergulhou na hist6ria, adquiriu uma intuigdo historicista do mundo e da vida, que se toma uma segunda natureza, quase uma espontaneidade, jé que no pedantemente inculcada pela “vontade” exteriormente educativa, Este estudo educava sem que tivesse a vontade expressamente decla- ada de fazé-lo, com uma minima intervengio “educativa” do profes- sor: educava porque instrufa. Experiéncias l6gicas, artisticas, psicol6- gicas eram feitas sem que “se refletsse sobre”, sem olhar-se continua- mente no espelho, ¢ era feita principalmente uma grande experiéncia sintética”, filosotica, de desenvolvimento hist6rico-real. Isto nao significa (e seria uma tolice pensé-lo} que o latim ¢ 0 gre- 0, enquanto tais, tenham qualidades intsinsecamente taumatiirgicas no campo educativo. E toda a tradigio cultural, que vive também e sobretudo fora da escola, que produz — num ambiente determinado — estas conseqiiéncias. Vé-se, de resto, como, modificada a tradicio- nal intuigdo da cultura, tenha a escola entrado em crise e tenha o estu- do do latim e do grego entrado igualmente em crise. Serd necessario substituir o latim c 0 grego como fulero da escola 48 CADERNO 12 formativa ¢ esta substituigdo serd feita; mas nao seré fécil dispor a nova matéria ou a nova série de matérias numa ordem didética que dé resultados equivalentes no que toca a educagdo e a formacao geral da personalidade, partindo da crianga até chegar aos umbrais da escolha profissional. De fato, nesse periodo, o estudo ou a maior parte dele deve ser (ou assim aparecer aos discentes) desinteressado, ou seja, nao deve ter finalidades préticas imediatas ou muito imediatas, deve ser formativo ainda que “instrutivo”, isto é rico de nogdes concretas. Na escola atual, em fungio da erise profunda da tradigao cultural da concepcao da vida e do homem, verifica-se um processo de pro- sgressiva degenerescéncia: as escolas de tipo profissional, isto é, preo- cupadas em satisfazer interesses préticos imediatos, predominam sobre a escola formativa, imediatamente desinteressada. © aspecto mais paradoxal reside em que este novo tipo de escola aparece e é lou- vado como democritico, quando, na realidade, nao s6 é destinado a perpetuar as diferengas sociais, como ainda a cristalizé-las em formas chinesas, ‘A escola tradicional era oligdérquica jé que destinada A nova gera~ <0 dos grupos dicigentes, destinada por sua vez a tornar-se dirigente: mas nao era oligrquica pelo seu modo de ensino. Nao é a aquisigio de capacidades de diregdo, nao é a tendéncia a formar homens supe~ riores que d4 a marca social de um tipo de escola. A marca social é dada pelo fato de que cada grupo social tem um tipo de escola pré- prio, destinado a perpetuar nestes estratos uma determinada funcio tradicional, dirigente ou instrumental. Se se quer destruir esta trama, portanto, deve-se ndo multiplicar e hierarquizar os tipos de escola nal, mas criar um tipo nico de escola preparatéria {primédria-média) que conduza 0 jovem até os umbrais da escolha pro- fissional, formando-o, durante este meio tempo, como pessoa capaz de pensar, de estudar, de ditigir ou de controlar quem dirige. ‘A multiplicagao de tipos de escola profissional, portanto, tende a cternizar as diferengas tradicionais; mas, dado que tende, nestas dife- rengas, a criar estratificagies internas, faz nascer a impressao de ter uma tendéncia democrética. Por exemplo: operdrio manual e qualifi- 49 CADERNOS DO CARCERE cado, camponés e agrimensor ou pequeno agrénomo, etc. Mas a ten- déncia democritica, intrinsecamente, nao pode significar apenas que um operdrio manual se torne qualificado, mas que cada “cidadio” ppossa tornar-se “governante” e que a sociedade 0 ponha, ainda que “abstratamente”, nas condigées gerais de poder fazé-lo: a democracia politica tende a fazer coincidir governantes ¢ governados (no sentido de governo com 0 consentimento dos governados), assegurando a cada governado o aprendizado gratuito das capzcidades e da prepara- gio técnica geral necessdrias a essa finalidade. Mas 0 tipo de escola que se desenvolve como escola para 0 povo nao tende mais nem sequer a conservar a ilusio, jé que ela cada vex mais se organiza de modo a restringir a base da camada governante tecnicamente prepa- rada, num ambiente social politico que restringe ainda mais a “inicia- va privada”, no sentido de dar esta capacidadee preparagio técnico- politica, de modo que, na realidade, retorna-se as divisdes em “ordens” juridicamente fixadas e cristalizadas em vea de se superar as divisées em grupos: a multiplicagao das escolas profissionais, cada vez mais especializadas desde o inicio do curriculo escolar, é uma das mais evidentes manifestagies desta tendéncia Sobre o dogmatismo eo criticismo-historicismo nas escolas primé- ria emédia, deve-se observar que a nova pedagogia quis destruic o dog- matismo precisamente no campo da instrugdo, do aprendizado de nogdes concretas, isto é, precisamente no campo em que um certo dog ‘matismo é praticamente imprescindivel, podendo ser reabsorvido e solvido somente no inteiro ciclo do curriculo escolar (é impossivel en nar a gramética hist6rica na escola priméria e no gindsio); mas ela é depois obrigada a ver introduzido o dogmatismo por exceléncia no campo do pensamento religioso e, implicitamente, a ver descrita toda a histéria da filosofia como uma sucessio de loucuras ¢ de delirios, No ensino da filosofia, o novo curriculo pedagégico (pelo menos para aqueles alunos, a esmagadora maioria, que no recebem ajuda intelectual fora da escola, na familia ou pio ambiente familiar, e deve formar-se apenas com as indicagdes que recebem nas aulas) empobre- ce 0 ensino, rebaixando-he praticamente o nivel, ainda que racional- 50 street emma reer anabolic ete omega eon aoe CADERNO 12 ‘mente pareca belissimo, de um belissimo utopismo. A filosofia descri- tiva tradicional, reforgada por um curso de hist6ria da filosofiae pela leitura de um certo niimero de filésofos, parece ser praticamente a melhor coisa. A filosofia descritiva e definidora pode ser uma abstra- ‘gio dogmatica, como a gramética e a matemética, mas é uma necessi- dade pedagégica e didética. 1 = 1 é uma abstracio, mas ninguém é levado por isso a pensar que 1 mosca é igual a 1 elefante. Também as regras da logica formal sio abstragdes do mesmo género, so como a ‘gramética do pensar normal; e, nfo obstante, é necessario estudé-las, pois nio sao algo inato, devendo ser adquiridas mediante o trabalho ea reflexio. O novo curriculo pressupde que a légica formal seja algo ue jé se possui quando se pensa, mas ndo explica como ela deva ser adquirida; praticamente, portanto, ela é suposta como sendo inata. A logica formal é como a gramética: € assimilada de um modo “vivo”, mesmo que o aprendizado tena sido necessariamente esquemitico ¢ abstrato, jé que o discente néo é um disco de vitrola, no é um reci- piente passivamente meciinico, ainda que a convencionalidade litirgi- cca dos exames assim o faca parecer por vezes. A relacao de tais esque- ‘mas educativos com o espirito infantil é sempre ativa ¢criadora, como ativa e criadora é a relacio entre o operario e seus utensilios de traba- tho; também um sistema de medigao é um conjunto de abstragoes, mas é impossfvel produzie objetos reais sem a medico, objetos reais, ‘que so relagdes sociais e que contém idéias implicitas. A crianga’que quebra a cabeca com os barbara e baralipton (12} certamente se can- sa, e deve-se procurar fazer com que ela sé se canse o indispensavel e ndo mais; mas é igualmente certo que sera sempre necessario que ela se canse a fim de aprender a se auto-impor privagdes ¢ limitagdes de movimento fisico, isto é, a se submeter a um tirocfnio psicofisico. Deve-se convencer muita gente de que o estudo é também um traba- Iho, e muito cansativo, com um tirocinio particular préprio, nao sé intelectual, mas também muscular-nervoso: € um processo de adapta- fo, € um hébito adquirido com esforgo, aborrecimento e até mesmo sofrimento. A participagdo de massas mais amplas na escola média traz consigo a tendéncia a afrouxar a disciplina do estudo, a provocar 51 CADERNOS 00 CARCERE “facilidades”. Muitos pensam mesmo que as dificuldades so artfi- Ciais, f& que esto habituados a s6 considerar como trabalho e fadiga o trabalho manual. A questo é complexa. Decerto, a crianga de uma familia tradicional de intelectuais supera mais facilmente o processo de adaptagao psicofisico; quando entra na sala de aula pela primeita vez, ja tem varios pontos de vantagem sobre seus colegas, possui uma orientagio j4 adquirida por habitos familiares: concentra a atensdo com mais facilidade, pois tem 0 habito da contengao fisica, etc. Do mesmo modo, o filho de um operdrio urbano sofre menos quando ‘entra na fibrica do que um filo de camponeses ou do que um jovem camponés jé desenvolvido para a vida rural. Também o regime ali- mentar tem importancia, ete., ete. Eis por que muitas pessoas do povo pensam que, nas dificuldades do estudo, exista um “truque” contra elas (quando nao pensam que sio estipidos por natureza): veem o senhor (e para muitos, especialmente no campo, senhor quer dizer intelectual) realizar com desenvoltura e aparente facilidade o trabalho que custa aos seus filhos ldgrimas e sangue, e pensam que exista algum “truque”. Numa nova situacdo, estas questées podem tornar- se muito dsperas e serd preciso resistir & tendéneia a facilitar o que nao pode sé-lo sob pena de ser desnaturado. Se se quiser criar uma nova ‘camada de intelectuais, chegando As mais altas especializacées, a par- tir de um grupo social que tradicionalmente nao desenvolveu as apti does adequadas, ser& preciso superar enormes dificuldades, $3. Quando se distingue entre intelectuais e nfo-intelectuais, faz- se referéncia, na realidade, somente & imediata fungio social da cate- goria profissional dos intelectuais, isto 6, leva-se em conta a dirego sobre a qual incide 0 peso maior da atividade profissional especifica, se na elaboracio intelectual ou se no esforgo muscular-nervoso, Isto significa que, se se pode falar de intelectuais, é impossivel falar de nfio-intelectuais, porque nao existem ndo-intelectuais. Mas a propria relacio entre o esforco de elaboragio jntelectual-cerebral e 0 esforco _muscular-neryoso nao é sempre igual; por isso, existem graus diversos de atividade especificamente intelectual, Nao hé atividade humana da 52 caDeRno 12 qual se possa excluir toda intervengio intelectual, nfo se pode separar © homo faber do homo sapiens. Em suma, todo homem, fora de sua profissio, desenvolve uma atividade intelectual qualquer, ou seja, tum “fildsofo”, um artista, um homem de gosto, participa de uma con- cepgao do mundo, possui uma linha consciente de conduta moral, contribui assim para manter ou para modificar uma concepgao do ‘mundo, isto é, para suscitar novas maneiras de pensar. © problema da criagio de uma nova camada intelectual, portanto, consiste em elabo- rar criticamente a atividade intelectual que cada um possui em deter- minado grau de desenvolvimento, modificando sua relagdo com 0 esforgo muscular-nervoso no sentido de um novo equilibrio e fazendo com que o proprio esforgo muscular-nervoso, enquanto elemento de uma atividade pritica geral, que inova perpetuamente o mundo fisico € social, torne-se 0 fundamento de uma nova e integral concep¢ao do mundo. O tipo tradicional e vulgarizado do intelectual é dado pelo literato, pelo fildsofo, pelo artista. Por isso, os jornalistas — que acre- ditam ser literatos,fildsofos, artistas — créem também ser os “verda- deiros” intelectuais. No mundo moderno, a educagio técnica, ests tamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo e des- qualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual. Neste sentido trabalhou 0 semanério L’Ordine Nuovo, visando a desenvol- ver certas formas de novo intelectualismo e a determinar seus novos conceitos; e essa ndo foi uma das razbes menores de seu éxito, pois uma tal colocagdo correspondia a aspiragdes latentes e era adequada a0 desenvolvimento das formas reais de vida. [13] O modo de ser do novo intelectual nao pode mais consistir na elogtiéncia, motor exte- rior e momentiineo dos afetos e das paixes, mas numa insergao ativa na vida prética, como constrator, organizador, “persuasor permanen- temente”, ja que nao apenas orador puro — mas superior ao espirito ico abstrato; da técnica-trabalho, chega & técnica-ciéncia € & concepgao humanista hist6rica, sem a qual permanece “especialista” eno se torna “dirigente” (especialista + politico). 33 esti 1.05 INTELECTUAIS. 0 PRINCIPIO EDUCATIVO 4. CADERNO 12 1, Sobre Achille Loria, cf. infra, caderno 28. 2. Cf., sobre este mesmo assunto, “Alguns temas da questo meri- dional”, in A. Gramsci, A questio meridional, Rio de Janeiro-Sio Paulo, Paz ¢ Terra, 1987, p. 154 ss. 3. Max Weber, Parlamento ¢ governo na Alemanha reordenada [1917], Petrépolis, Vozes, 1993. £ muito provavel que Gramsci conhe- ccesse a tradugao italiana deste livro de Weber (Laterza, Béri, 1919). 4, Gramsci alude aqui a posicdo dos “sionistas”, que defendiam a criagdo de uma pétria territorial judaica, para onde todos os judeus deveriam emigrar. Essa proposta materializou-se apés a Segunda ‘Guerra Mundial, com a criagao do Estado de Istael, Por sua vez, a men- io & possivel transformagio da Libéria — um Estado formalmente independente, criado sob direta influéncia dos Estados Unidos, logo apés a Guerra de Secessio — num “Piemonte africano” significaria ‘transformé-la no ponto de partida de uma possivel unificacao da A: ‘ca negra, entio ainda sob dominagio colonial, desempenhando assim a mesma fungdo que teve o Reino do Piemonte no Risorgimento, ou seja, ‘nos movimentos que levaram a unificacao da Irdlia, em meados do sécu- Jo XIX. Essa “previsio” de Gramsci, evidentemente, nao se realizou, 201 CADERNOS 00 CARCERE 5. Com Kulturkampf, Gramsci refere-se provavelmente ao movi- mento empreendido por Otto von Bismarck, entre 1872 e 1875, ‘quando —em seu empenho pela constituicio da unidade estatal ale- ma — 0 chanceler do Reich se opds duramente ao Centro, partido cat6lico de massa de tipo confessional. Plutarco Calles, referido em seguida, ao ser eleito presidente do México em 1924, levou a cabo programas de reforma agraria e de nacionalizacao das minas, enfren- tando a oposigao da Inglaterra e dos Estados Unidos, bem como da hierarquia eclesiastica mexicana e do préprio Vaticano. Gramsci fala da América Latina também no caderno 1, § 107, e no caderno 3, § 5, ambos no vol. 4 da presente edigao. 6. CE, infra, caderno 24, § 5, 7, Num de seus ensaios, o critico Francesco de Sanctis (1817- 1883) chama de “ancides de Santa Zita” (Dante, Inferno, XXI, 39) 08 jovens mais experientes reunidos em torno de Basilio Puotis “O mat- qués [Puoti] era querido e respeitado por todos porque amava seus jovens — assim os chamava, iio de estudantes ou discipulos —e era seu protetor, seu pai. Havia em torno dele um grupo de veteranos, jovens que ali jé estavam hd cinco ou seis anos, e que o marques, brin- calhonamente, chamava de ‘anciées de Santa Zita’. O juizo deles era ‘muito respeitado ¢, quando um falava, fazia-se siléncio, a comecar pelo irrequieto marqués, e ouvia-se de boca aberta” (De Sanctis “ultimo dei puristi” in Saggi critici, Milo, 1924, p. 152). 8. O liceu, na Itélia, corresponde ao nosso segundo grau ou “escola média”, . Sobre 0 método Dalton, cf., infra, caderno 9, § 119. 10. A expresso Sturm tind Drang |Tempestade e impulso}, toma- da de uma tragédia de Friedrich Klinger (1752-1831), indica 0 movi mento aleméo pré-romantico, surgido por volta de 1770, que se ca- 292 NOTAS AO TEXTO. wa pelo radicalismo de sua oposigfo a arte estabelecidas no inicio de suas carreiras, Goethe e Schiller participaram do movimen- to. Ao falar de um “Sturm und Drang” do fututismo, Grainsci alude a sua fase inicial fortemente iconoclasta; mais tarde, os principais futuristas italianos aderiram ao fascismo. Sobre os futuristas, cf, infra, caderno 1, § 124. 11. Entre 1922 e 1924, o filésofo Giovanni Gentile ocupou 0 cargo. de ministro da Instrucao Pablica no governo fascista e empreendeu, em 1923, uma reforma do sistema educacional italiano, Ainda neste paré- grafo, Gramsci menciona a Lei Casati, que tem o nome de um ministro de Vitor Emanuel Il, Gabrio Casati. Aprovada em 1859, ainda antes da unificagio italiana, a Lei Casati estabelece pela primeira vez um sistema de educagio piiblica abrangente e centralizado no Piemonte e na Lombardia. Depois da unificacdo, seus dispositivos e regulamentagbes se aplicaram a todo o pais e, apesar de algumas alteracées, permanece- ram como base do sistema educacional até a Reforma Gentile, 12, Trata-se de duas figuras de silogismo, nomeadas assim pelos escolisticos a partir das formulagies de Arist6teles. 13. A primeira série de L’Ordine Nuovo, semanério dirigido por Gramsci, sai em 1919 ¢ 1920. Gramsci, portanto, refere-se aqui 20 chamado “bignio vermelho”, ou seja, a0 periodo de intensa agitagao social na Itélia, em especial em Turim, com a ocupacdo de fabricas ¢ a formagio de conselhas operirios. 2. DOS CADERNOS MISCELANEOS 1, Em francés no original. 2. Sobre Rizzi, cf,, infra, cademno 5, § 91. 293

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