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AURY LOPES JR. Fundamentos do Processo Penal Introducaio Critica / 42 edigao 2018 sara iva UNDAMENTOS D0 PRO! INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE Capitulo 1 O fundamento da existéncia do processo penal: instrumentalidade constitucional 1.1. Constituindo o processo penal desde a Constituico. A crise da teoria das fontes. A Constituicao como abertura do processo penal A primeira questo a ser enfrentada por quem se dispée a pensar o pro- cesso penal contemporaneo é exatamente (re)discutir qual é o fundamento da sua existéncia, por que existe e por que precisamos dele. A pergunta pode- tia ser sintetizada no seguinte questionamento: um Processo penal, para qué (quem)? Buscar a resposta a essa pergunta nos conduz A definicéio da légica do sistema, que vai orientar a interpretacao e a aplicacdo das normas processu- ais penais. Noutra dimensio, significa definir qual é o nosso paradigma de leitura do processo penal, buscar o ponto fundante do discurso. Nossa op¢a0 é pela leitura constitucional e, dessa perspectiva, visualizamos o processo penal como instrumento de efetivacio das garantias constitucionais. J.Goldschmidt?, a seu tempo, questionou: Por que supée a imposicao da pena a existéncia de um processo? Se o ius puniendi corresponde ao Estado, que tem o poder soberano sobre seus sti- ditos, que acusa e também julga por meio de distintos rgios, pergunta-se: por que necessita que prove seu direito em um processo? A resposta passa, necessariamente, por uma leitura constitucional do pro- cesso penal. Se, antigamente, o grande conflito era entre o direito positivo eo direito natural, atualmente, com a recepcio dos direitos naturais pelas modernas constituigdes democraticas, o desafio é outro: dar eficacia a esses direitos fundamentais. Como aponta J. Goldschmidt?, os principios de politica processual de uma nacdo nao sao outra coisa senao o segmento da sua politica estatal em geral; e 0 processo penal de uma nacdo nao é um termémetro dos elementos auto- ritdrios ou democrdticos da sua Constituicéo. A uma Constituicao autoritaria vai corresponder um processo penal autoritério, utilitarista. Contudo, a uma Constituicéo democratica, como a nossa, necessariamente deve correspon- der um processo penal democratico, visto como instrumento a servico da maxima eficdcia do sistema de garantias constitucionais do individuo. UNDAMENTOS D0 PRO! INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE Somente a partir da consciéncia de que a Constituicéo deve efetivamente constituir (logo, consciéncia de que ela constitui a aco), é que se pode com- preender que o fundamento legitimante da existéncia do processo penal de- mocratico se da por meio da sua instrumentalidade constitucional. Significa dizer que o processo penal contemporaneo somente se legitima 4 medida que se democratizar e for devidamente constituido a partir da Constituicao. Cremos que 0 constitucionalismo, exsurgente do Estado Democratico de Di- reito, pelo seu perfil compromissério, dirigente e vinculativo, constitui a acéo do Estado*! Com a precisao conceitual que Ihe caracteriza, Juarez Tavares? ensina que nessa questao entre liberdade individual e poder de intervencio do Estado no se pode esquecer de que a “garantia e o exercicio da liberdade individual no necessitam de qualquer legitimacdo, em face de sua evidéncia”. Parece, essa, uma afirmacao simples, despida de maior dimensio. Todo o oposto. A perigosa viragem discursiva que nos esta sendo (im)posta atual- mente pelos movimentos repressivistas e as ideologias decorrentes faz com que, cada vez mais, a “liberdade” seja “proviséria” (até o CPP consagra a liber- dade proviséria...) e a prisdo cautelar (ou mesmo definitiva) uma regra. Ou, ainda, aprofundam-se a discussio e os questionamentos sobre a legitimidade da propria liberdade individual, principalmente no ambito processual penal, subvertendo a ldgica do sistema juridico-constitucional. Essa perigosa inversao de sinais exige um choque A luz da legitimacao a priori da liberdade individual, e a discussao deve voltar a centrar-se no ponto correto, muito bem circunscrito por Tavares®: “o que necessita de legitimacao 60 poder de punir do Estado, e esta legitimacdo nao pode resultar de que ao Estado se lhe reserve o direito de intervenca Destaque-se: o que necessita ser legitimado e justificado 6 0 poder de punir, a intervencao estatal e nao a liberdade individual. Mais, essa legitimacao no poderia resultar de uma autoatribuicao do Estado (uma autolegitimacio, que conduza a uma situacdo autopoiética, portanto). Mas essa ja seria outra discussio em torno da propria legitimidade da pena, que extravasa os limites deste trabalho. A liberdade individual, por decorrer necessariamente do direito a vida e da propria dignidade da pessoa humana, esta amplamente consagrada no texto constitucional e tratados internacionais, sendo mesmo um pressuposto para 0 Estado Democratico de Direito em que vivemos. Essa é uma premissa basica que norteia toda a obra: questionar a legitimi- dade do poder de intervencao, por conceber a liberdade como valor primevo do processo penal. UNDAMENTOS DO PROCESS PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE Nem mesmo 0 conceito de bem juridico pode continuar sendo tratado como se estivesse imune aos valores do Estado Democratico. Como adverte Tava- res’, “a questo da criminalizacao de condutas nao pode ser confundida com as finalidades politicas de seguranca publica, porque se insere como uma condic&’o do Estado Democratico, baseado no respeito dos direitos funda- mentais e na protegao da pessoa humana”. E segue o autor apontando que, em um Estado Democratico, 0 bem juridico deve constituir um limite ao exercicio da politica de segu- ranca publica, reforcado pela atuaciio do judicidrio, como érgio fiscalizador e controlador e no como agéncia seletiva de agentes merecedores de pena, em face da respectiva atuacao do Legislativo ou do Executivo’. Atualmente, existe uma inegavel crise da teoria das fontes, em que uma lei ordindria acaba valendo mais do que a propria Constituicdo, nao sendo raro aqueles que negam a Constituicdo como fonte, recusando sua eficacia imedi- ata e executividade. Essa recusa é que deve ser combatida. A luta é pela superacéo do preconceito em relacéo & eficdcia da Constituigéo no processo penal. Mais do que isso, é necessdrio fazer-se um controle judicial da convencionalidade das leis penais e processuais penais, na medida em que a Convencéo Americana de Direitos Humanos (CADH) goza de cardter supralegal, ou seja, estd abaixo da Constituigéo, mas acima das leis ordindrias (como 0 CP e 0 CPP). Portanto, é uma dupla conformidade que devem guardar as leis ordind- rias: com a Constituigao e com a CADH. Esse é 0 desafio. © processo nao pode mais ser visto como um simples instrumento a servico do poder punitivo (direito penal), sendo que desempenha o papel de limitador do poder e garantidor do individuo a ele submetido. Ha que se com- preender que o respeito as garantias fundamentais ndo se confunde com impu- nidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessario para chegar-se, legitimamente, A pena. Dai por que somente se admite sua existéncia quando ao longo desse caminho forem rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal). Assim, existe uma necessaria simultaneidade e coexisténcia entre repres- sao ao delito e respeito as garantias constitucionais, sendo essa a dificil missdo do processo penal, como se veré ao longo da obra. No processo penal, a Constituicdo e a CADH ainda representam uma abertura, um algo a ser bus- cado como ideal. E avanco em termos de fortalecimento da dignidade da pes- soa humana, de abertura democratica rumo ao fortalecimento do individuo. Nesse sentido, nossa preocupacio com a instrumentalidade constitucional e ocarater “constituidor” da Carta e da CADH. Geraldo Prado? destaca a importancia da Constituicao na perspectiva de fixar “com clareza as regras do jogo politico e de circulacio do poder e as- UNDAMENTOS D0 PRO! PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE sinala, indelevelmente, o pacto que é a representacio da soberania popular, e portanto de cada um dos cidadios”. E a Constitui¢&o um locus, prossegue Geraldo, de onde sao vislumbrados os direitos fundamentais, estabelecendo um “nexo indissoltivel entre garantia dos direitos fundamentais, divisio dos poderes e democracia, de sorte a influir na formulacdo das linhas gerais da politica criminal de determinado Estado”. Finalizando, lembra 0 autor que o espaco comum democratico é construido pela afirmagdo do respeito & dignidade humana e pela primazia do Direito como instrumento das politicas sociais, inclu- sive a politica criminal. Partimos da mesma premissa de Prado?®: a Constitui¢ao da Republica es- colheu a estrutura democratica sobre a qual ha que existir e se desenvolver 0 processo penal, forcado que esta ~ pois modelo pré-constituicdo de 1988 -a adaptar-se e conformar-se a esse paradigma. Ento, ndo basta qualquer processo, ou a mera legalidade, seno que so- mente um proceso penal que esteja conforme as regras constitucionais do jogo (devido processo) na dimensio formal, mas, principalmente, substan- cial, resiste a filtragem constitucional imposta. Feito isso, ¢ imprescindivel marcar esse referencial de leitura: 0 proceso penal deve ser lido a luz da Constituigéo e da CADH e nao ao contrario. Os dispo- sitivos do Cédigo de Processo Penal é que devem ser objeto de uma releitura mais acorde aos postulados democraticos e garantistas na nossa atual Carta, sem que os direitos fundamentais nela insculpidos sejam interpretados de forma restritiva para se encaixar nos limites autoritarios do Codigo de Pro- cesso Penal de 1941. 1.2. Superando o maniqueismo entre “interesse piiblico” versus “interesse individual”. Inadequada invocacio do principio da proporcionalidade Argumento recorrente em matéria penal é 0 de que os direitos individuais devem ceder (e, portanto, ser sacrificados) frente a “supremacia” do interesse publico. E uma manipulagao discursiva que faz um maniqueismo grosseiro (senao interesseiro) para legitimar e pretender justificar 0 abuso de poder. Inicialmente, ha que se compreender que tal reducionismo (puiblico ~ pri- vado) esta completamente superado pela complexidade das relacées sociais, que nao comportam mais essa dualidade cartesiana. Ademais, em matéria penal, todos os interesses em jogo - principalmente os do réu — superam muito a esfera do “privado”, situando-se na dimensio de direitos e garantias fundamentais (portanto, “publico”, se preferirem). Na verdade, so verdadei- ros direitos de todos e de cada um de nés, em relacio ao (ab)uso de poder estatal. UNDAMENTOS D0 PRO! INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE Ja em 1882, Manuel Alonso Martinez afirmava na Exposicién de Motivos de la Ley de Enjuiciamiento Criminal que “sagrada es sin duda la causa de la soci- edad, pero no lo son menos los derechos individuales”. W. Goldschmidt" explica que os direitos fundamentais, como tais, dirigem- se contra 0 Estado, e pertencem, por conseguinte, 4 se¢do que trata do am- paro do individuo contra o Estado. O proceso penal constitui um ramo do direito publico, e, como tal, implica autolimitacao do Estado, uma soberania mitigada. Ademais, existe ainda o fundamento histérico-politico para sustentar a dupla funcdo do moderno processo penal, que foi bem abordado por Bet- tiol!2, A protecio do individuo também resulta de uma imposiciio do Estado Democratico, pois a democracia trouxe a exigéncia de que o homem tenha uma dimensao juridica que o Estado ow a coletividade no pode sacrificar ad nutum. O Estado de Direito, mesmo em sua origem, jd representava uma re- levante superacao das estruturas do Estado de Policia, que negava ao cidadao toda garantia de liberdade, e isso surgiu na Europa depois de uma época de ar- bitrariedades que antecedeu a Declaracao dos Direitos do Homem, de 1789. A democracia, enquanto sistema politico-cultural que valoriza o individuo frente ao Estado, manifesta-se em todas as esferas da relagao Estado-indivi- duo. Inegavelmente, leva a uma democratizactio do processo penal, refletindo essa valorizacao do individuo no fortalecimento do sujeito passivo do pro- cesso penal. Pode-se afirmar, com toda énfase, que o principio que primeiro impera no processo penal é 0 da protecio dos inocentes (débil), ou seja, 0 processo penal como direito protetor dos inocentes (e todos a ele submetidos 0 sao, pois sd perdem esse status apés a sentenga condenatoria transitar em julgado), pois esse é o dever que emerge da presuncio constitucional de inocéncia prevista no art. 5, LVI, da Constituiciio. objeto primordial da tutela no processo penal é a liberdade processual do imputado, o respeito a sua dignidade como pessoa, como efetivo sujeito no proceso. O significado da democracia é a revalorizacao do homem, en toda la complicada red de las instituciones procesales que solo tienen un significado si se entienden por su naturaleza y por su finalidad politica y juri- dica de garantia de aquel supremo valor que no puede nunca venir sacrificado por razones de utilidad: el hombre. Nao se pode esquecer, como explica Sarlet', de que a dignidade da pessoa humanaéum valor-guia nao apenas dos direitos fundamentais, mas de toda a ordem juridica (constitucional e infraconstitucional), razdo pela qual para muitos se justifica plenamente sua caracterizacio como principio constitucional de maior hierarquia axiolégica-valorativa. UNDAMENTOS DO PROCESS PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE Inclusive, na hipétese de conflito entre principios e direitos constitucio- nalmente assegurados, destaca Sarlet!, “o principio da dignidade da pessoa humana acaba por justificar (e até mesmo exigir) a imposicao de restricdes a outros bens constitucionalmente protegidos”. Isso porque, como explica o autor, existe uma inegavel primazia da dignidade da pessoa humana no dm- bito da arquitetura constitucional. Algumas ligées, por sua relevancia, merecem ser repetidas nesta obra. E melhor pecar pela repetigao do que correr o risco de perdé-la por uma leitura pontual que nossos leitores eventualmente facam. Assim, nunca é excesso re- petir uma li¢o magistral de Juarez Tavares’, que nos ensina que nessa ques- tao entre liberdade individual e poder de intervengao do Estado nao se pode esquecer que a “garantia e 0 exercicio da liberdade individual nao necessitam de qualquer legitimacdo, em face de sua evidéncia”. Destaque-se: 0 que necessita ser legitimado e justificado 6 0 poder de punir, € a intervencao estatal e nao a liberdade individual. A liberdade individual, por decorrer necessariamente do direito A vida e da propria dignidade da pes- soa humana, esté amplamente consagrada no texto constitucional e tratados internacionais, sendo mesmo um pressuposto para o Estado Democratico de Direito em que vivemos. Nao ha que se pactuar mais com a manipulacio discursiva feita por alguns autores (e julgadores), que acabam por transformar a “liberdade” em “provi- séria” (até o CPP consagra a liberdade proviséria...), como se ela fosse preca: ria, e, entretanto, a prisdo cautelar (ou mesmo definitiva), uma regra. Essa perigosa inversdo de sinais exige um choque A luz da legitimacao a priori da liberdade individual e a discussao deve voltar a centrar-se no ponto correto, muito bem circunscrito por Tavares?”: “o que necessita de legitima- cao é o poder de punir do Estado”. Essa é uma premissa basica que norteia toda a obra: questionar a legitimi- dade do poder de intervencdo, por conceber a liberdade como valor primevo do processo penal. Entendemos que sociedade - base do discurso de prevaléncia do “ptiblico’ — deve ser compreendida dentro da fenomenologia da coexisténcia, e nao mais como um ente superior de que dependem os homens que o integram. Inadmissivel uma concepgao antropomérfica, na qual a sociedade é conce- bida como um ente gigantesco, onde os homens sao meras células, que lhe devem cega obediéncia. Nossa atual Constituicao e, antes dela, a Declaracio Universal dos Direitos Humanos consagram certas limitagdes necessarias para a coexisténcia e no toleram tal submissao do homem ao ente superior, essa visio antropomoérfica que corresponde a um sistema penal autoritario®®, UNDAMENTO: IntroDugao cri Na mesma linha, Bobbio" explica que, atualmente, impée-se uma postura mais liberal na relacéio Estado-individuo, de modo que primeiro vem o indi- viduo e, depois, o Estado, que nao é um fim em si mesmo. O Estado sé se justifica enquanto meio que tem como fim a tutela do homem e dos seus di- reitos fundamentais, porque busca o bem comum, que nada mais é do que o beneficio de todos e de cada um dos individuos. Por isso, Ferrajoli fala da ley del mds débil?°. No momento do crime, a vitima 0 hipossuficiente e, por isso, recebe a tutela penal. Contudo, no processo penal, opera-se uma importante modificac4o: o mais fraco passa a ser 0 acu- sado, que frente ao poder de acusar do Estado sofre a violéncia instituciona- lizada do proceso e, posteriormente, da pena. O sujeito passivo do processo, aponta Guarnieri*!, passa a ser o protagonista, porque ele é 0 eixo em torno do qual giram todos os atos do proceso. Amilton B, de Carvalho”, questionando para qué(m) serve alei, aponta que a “alei éo limite ao poder desmesurado - leia-se, limite 4 dominagao. Entao, a lei - eticamente considerada - é protecio ao débil. Sempre e sempre, é a lei do mais fraco: aquele que sofre a dominacao”. Nessa democratizagao do processo penal, o sujeito passivo deixa de ser visto como um mero objeto, passando a ocupar uma posicéo de destaque enquanto parte,?? com verdadeiros direitos e deveres®*, E uma relevante mudanga decorrente da constitucionalizacao e democratizagao do proceso penal. Muito preocupante, por fim, é quando esse discurso da “prevaléncia do in- teresse ptiblico” vem atrelado ao Principio da Proporcionalidade, fazendo uma viragem discursiva para aplicd-lo onde nao tem legitimo cabimento. Nesse tema, é lticida a andlise do Ministro Eros Grau, cuja citacao, ainda que longa, deve ser objeto de reflexdo. Diz 0 ilustre Ministro do Supremo Tribunal Fede- ral no voto proferido no HC 95.009-4/SP (p. 44 ess.): Tenho criticado aqui —e o fiz ainda recentemente (ADPF 144) — a “banali- zacao dos ‘princ{pios’ (entre aspas) da proporcionalidade e da razoabilidade, em especial do primeiro, concebido como um ‘principio’ superior, aplicavel a todo e qualquer caso concreto, o que conferiria ao Poder Judiciario a fa- culdade de ‘corrigir’ o legislador, invadindo a competéncia deste. O fato, no entanto, é que proporcionalidade e razoabilidade nem ao menos sao prin- cipios — porque nao reproduzem as suas caracteristicas - porém postulados normativos, regras de interpretacao/aplicacao do direito”. No caso de que ora cogitamos esse falso principio estaria sendo vertido na maxima segundo a qual “néo ha direitos absolutos”. E, tal como tem sido em nosso tempo pronun- ciada, dessa maxima se faz gazua apta a arrombar toda e qualquer garantia constitucional. Deveras, a cada direito que se alega o juiz responderd que esse direito existe, sim, mas ndo é absoluto, porquanto ndo se aplica ao caso. E assim se dé 0 esvaziamento do quanto construimos ao longo dos séculos para UNDAMENTOS DO F PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE fazer, de stiditos, cidaddos. Diante do inquisidor néo temos qualquer direito. Ou melhor, temos sim, varios, mas como nenhum deles é absoluto, nenhum é reconhectvel na oportunidade em que deveria acudir-nos. Primeiro essa gazua, em seguida despencando sobre todos, a pretexto da “necessaria atividade persecutéria do Estado”, a “supremacia do interesse putblico sobre o individual’. Essa premissa que se pretende prevaleca no Direito Administrativo — nao obstante mesmo la sujeita a debate, aqui im- pertinente — ndo tem lugar em material penal e processual penal. Esta Corte ensina (HC 80.263, relator Ministro Ilmar Galvio) que a interpretacio sis- tematica da Constituicdo “leva a conclusao de que a Lei Maior impée a pre- valéncia do direito a liberdade em detrimento do direito de acusar”. Essaéa proporcionalidade que se impée em sede processual penal: em caso de conflito de preceitos, prevalece o garantidor da liberdade sobre o que fundamenta sua supressdo. A nos afastarmos disso retornaremos a barbarie (grifos nossos). Em suma: nesse contexto politico-processual, esto superadas as conside- racées do estilo “a supremacia do interesse puiblico sobre o privado”. As regras do devido processo penal sao verdadeiras garantias democraticas (e, obvi- amente, constitucionais), muito além dessa dimensao reducionista de pt- blico/privado. Trata-se de direitos fundamentais - obviamente de natureza publica, se quisermos utilizar essa categoria - limitadores da intervencao estatal. 1.3. Direito e dromolo: lando as garantias uando o processo penal se pée a correr, atrope- Vivemos numa sociedade acelerada. A dinamica contemporanea ¢ impres- sionante e — como 0 risco?> — também esta regendo toda nossa vida. Nao sé nosso emprego é temporario, pois se acabaram os empregos vitalicios, como também cada vez é mais comum os empregos em jornada parcial. Da mesma forma nossas “aceleradas” relacées afetivas, com a consagracio do ficar e do no future. Que dizer entdo da velocidade da informacio? Agora passada em tempo real, via internet, sepultando o espaco temporal entre o fato e a noticia. O fato, ocorrido no outro lado do mundo, pode ser presenciado virtualmente em tempo real. A aceleragdo do tempo nos leva préximo ao instantaneo, com profundas consequéncias na questo tempo/velocidade. Também encurta ou mesmo elimina distancias. Por isso, Virilio?® - tedrico da Dromologia (do grego dromos = velocidade) - afirma que “a velocidade é a alavanca do mundo moderno”. O mundo, aponta Virilio?”, tornou-se o da presenca virtual, da telepre- senga. Nao sé telecomunicacdo, mas também teleacdo (trabalho e compra a distancia) e até em telessensacao (sentir e tocar a distancia). Essa hipermo- bilidade virtual nos leva a inércia, além de contrair espacos e intervalos tem- UNDAMENTOS DO PROCESSO PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE porais. Até mesmo a guerra nas sociedades contempordneas séo confrontos breves, instantaneos e virtuais, como se fossem wargames de computador, em que toda carga de expectativa esta lancada no presente. Sob 0 enfoque econémico, o “cassino planetario” é formado pelas bolsas de valores que funcionam 24 horas por dia, em tempo real, com uma imensa velocidade de circulacao de capital especulativo, gerando uma economia vir- tual, transnacional e imprevisivel - liberta do presente e do concreto. Isso fulmina com o elo social, pois aqueles que investem na economia real nao tém como antecipar a ac4o, desencorajando investimentos, destruindo empresas e empregos?®. Nessa lgica de mercado, para conseguir lucros, é preciso acelerar a circula- go dos recursos, abreviando 0 tempo de cada operacdio. Como consequéncia, acontratacao de mAo de obra também navega nesse ritmo: ao menor sinal de diminuic&o das encomendas, dispensa-se a mao de obra. E a hiperaceleracao levando o risco ao extremo. Ost29 fala nos contratos de emprego temporarios apontando para uma heterogeneizacao do tempo social, manifestada em ritmos sempre mais diversificados. Tempo conjugal e tempo parental dissociam-se°, ao passo que a organizacio fordista do trabalho dé lugar a uma flexibilidade das prestacdes, mas também a uma nova precariedade dos empregos. A dura- cao prometeica dos Cédigos e a promessa das instituicées dao entdo lugar a um tempo em migalhas que tem de ser reconquistado a cada instante. Direito de visita negociado, estagio conseguido com dificuldade, emprego interino, tudo se passa como se reaparecesse o antiquissimo imperativo imposto aos pobres: viver o dia a dia. Sob outro enfoque, a aceleracdo obtida a partir do referencial luz éimpressi- onante e afeta diretamente nossa percepcdo de tempo. Como aponta Virilio®!, a tecnologia do final dos anos 1980 permitiu que os satélites transmitissem a imagem & velocidade da luz e isso representou um avanco da midia televisiva com relevante mudanca de paradigma. A imagem passa a ter visibilidade instantanea com o novo referencial luz. O fascinio da imagem conduz a que “o que nao é visivel e no tem imagem nao é televisavel, portanto, nao existe midiaticamente”. O choque emocional provocado pelas imagens da TV - sobretudo as de aflic&io, de sofrimento e morte - nao tem comparacao com o sentimento que qualquer outro meio possa provocar. Suplanta assim a fotografia e os relatos, a ponto de que, quando nfo ha imagens, cria-se. A “reconstituicao” das ima- gens nao captadas passa a ser fundamental para vender a emocio nao apre- endida no seu devido tempo. Exemplos tipicos sio os programas policiais sensacionalistas que proliferam nas televisées brasileiras, fazendo, inclusive, UNDAMENTOS D0 PRO! INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE reconstituicées ainda mais dramaticas dos crimes ocorridos para “captura psiquica” dos telespectadores. Mas a velocidade da noticia e a propria dinamica de uma sociedade espan- tosamente acelerada sio completamente diferentes da velocidade do processo, ou seja, existe um tempo do direito que esta completamente desvinculado do tempo da sociedade. E 0 direito jamais sera capaz de dar solucées a velocidade da luz. Estabelece-se um grande paradoxo: a sociedade acostumada com a velo- cidade da virtualidade nao quer esperar pelo processo, dai a paixdo pelas prises cautelares e a visibilidade de uma imediata punicao. Assim querem 0 mercado (que nao pode esperar, pois tempo é dinheiro) e a sociedade (que no quer esperar, pois esté acostumada ao instantaneo). Isso, ao mesmo tempo em que desliga do passado, mata o devir, ex- pandindo o presente. Desse presenteismo/imediatismo brota o Estado de Urgéncia, uma consequéncia natural da incerteza epistemolégica, da indeter- minag&o democratica, do desmoronamento do Estado social e da correlativa subida da sociedade de risco, da aceleragio e do tempo efémero da moda. A urgéncia surge como forma de correr atrds do tempo perdido. Como explica Ost, isso significa que passamos dos “relégios as nuvens”, no sentido de que nao estamos mais vivendo um modelo mecainico (reldgio), li- near e previsivel de uma legislacao piramidal, sendo o modelo das “nuvens”, interativo, recursivo e incerto de uma regulacdo em rede. O direito em rede é flexivel e evolutivo. Um conjunto indefinido de dados em busca de um equi- librio pelo menos provisério. £ a normatividade flexibilizada, propria de um direito “mole, vago, no estado gasoso”22. Aurgéncia - ou Estado correndo atras - deixa de ser uma categoria extraor- dinaria para generalizar-se, com uma tendéncia de alimentar-se de si mesmo, como se de alguma forma uma das suas intervengGes pedisse a seguinte. Ao nao tratar do problema com a devida maturaciio e profundidade, nao ha re- sultados duraveis. As intervencées de urgéncia parecem sempre chegar ao mesmo tempo demasiado cedo e demasiado tarde: demasiado cedo porque o tratamento aplicado é sempre superficial; demasiado tarde porque, sem uma inversao de légica, o mal nao parou de se propagar??. Os planos urgentes e milagrosos para “conter” a violéncia urbana sio exemplos tipicos disso: ao mesmo tempo demasiadamente cedo (tratamento superficial) e demasiadamente tarde (diante da gravidade ja assumida). Nesse cenério, juizes sdo pressionados para decidirem “rapido” e as co- missées de reforma, para criarem procedimentos mais “acelerados”>4, esque- cendo-se de que o tempo do direito sempre sera outro, por uma questao de UNDAMENTOS DO PROCESS INTRODUGAO cRITICA (PC garantia. A aceleracdo deve ocorrer, mas em outras esferas. Nao podemos sacrificar a necessdria maturacio, reflexdo e tranquilidade do ato de julgar, tao importante na esfera penal. Tampouco acelerar a ponto de atropelar os direitos e as garantias do acusado. Em tiltima andlise, o processo nasce para demorar (racionalmente, é claro), como garantia contra julgamentos imedia- tos, precipitados e no calor da emogo. Dizer que 0 processo é dindmico significa reconhecer seu movimento. Logo, como todo movimento, esté inscrito no tempo de maneira irreversivel, sem pos- sibilidade de voltar atrds?5. O que ja foi feito nao pode voltar a acontecer, até porque o tempo é irreversivel, ao menos por ora. Se 0 processo, como a vida, é movimento, 0 equilibrio necessario s6 pode ser dindmico e, como tal, extre- mamente dificil e eivado de riscos. £ o que Raux? define como 0 “equilibrio de ciclista fundado sobre o movimento”. O processo penal também é acelerado em resposta ao desejo de uma reacao imediata. Surgem os procedimentos sumérios e até sumarifssimos (como previsto na Lei n. 9.099/95); proliferam os casos de guilty plea nos Estados Unidos, de pattegiamento na Italia ou transacao penal no Brasil, até porque as chamadas zonas de consenso sao icones de eficiéncia (utilitarista) e celeridade (leiam-se: atropelo de direitos e garantias individuais). Retornando A situacdo do ciclista, o dificil é encontrar 0 equilibrio, pois, se é verdade que um processo que se arrasta assemelha-se a uma negacao da justica, nao se devera esquecer, inversamente, que 0 prazo razodvel em que a justica deve ser feita entende-se igualmente como recusa de um processo demasiado expedito?’, O processo tem o seu tempo, pois deve dar oportuni- dade para as partes mostrarem e usarem suas armas, deve ter tempo para oportunizar a diivida, fomentar o debate e a prudéncia de quem julga. Nesse terreno, parece-nos evidente que a aceleracdo deve vir mediante insercaio de tecnologia na administracdo da justica e, jamais, com a mera aceleracio pro- cedimental, atropelando direitos e garantias individuais. Infelizmente, na atualidade, assistimos a um velho direito tentando correr no ritmo da moderna urgéncia. Para tanto, em vez de modernizar-se com a tecnologia, prefere os planos milagrosos ¢ o terror da legislago simbélica. A inflagdo legislativa brasileira em matéria penal é exemplo tfpico desse fené- meno. Nesse complexo contexto, o direito é diretamente atingido, na medida em que é chamado a (re)instituir o elo social e garantir a seguranca juridica. Mul- tiplicam-se os direitos subjetivos e implementam-se uma série de novos ins- trumentos juridicos. O sistema penal é utilizado como sedante por meio do simbélico da panpenalizacio, do utilitarismo processual e do endurecimento UNDAMENTOS DO PROCESS PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PC geral do sistema. E a ilusdo de resgatar um pouco da seguranca perdida por meio do direito penal, o erro de pretender obrigar o futuro sobre a forma de ameaga. Nao se edifica uma ordem social apenas com base na repressiio. Acompanhando a sintese de Ost, 0 endurecimento da norma penal é reflexo da urgéncia, que descuida do passado e fracassa na pretensao de obri- gar o futuro. Os programas urgentes, contudo, permitem resultados rapidos, visiveis e midiaticamente rentaveis, mas com certeza nao se institui nada du- ravel em uma sociedade a partir, unicamente, da ameaca de repressao. Mas as condicées para que se atue com a necessaria reflexiio e maturacdo desaparecem, uma vez que os discursos da seguranca e do urgente (imediato) invadiram o imaginario social. Quando o direito se pée a correr no ritmo da urgéncia, opera-se uma importante mudanca de paradigma, em que “o transitério tornou-se o habi- tual, a urgéncia tornou-se permanente”?*. 0 transitério era antes visto como um elo entre dois periodos de estabilidade normativa, um articulador entre duas sequéncias histéricas. Hoje isso tudo mudou, a duractio desapareceu, tornando intiteis os rearranjos do direito transitério. Todo o direito se pés em movimento e 0 transitério é o estado normal, com o direito em cons- tante transito, impondo-se a urgéncia como tempo normal. Ao generalizar a excecao, o sistema entra em colapso. Antes, a urgéncia era admitida no direito com extrema reserva e era sempre situacional, revogando-se tao logo cessasse o estado de urgéncia. Hoje ela esté em todo lugar e surge indepen- dentemente de qualquer crise. Isso também se manifesta no processo legislativo. A.urgéncia implica nao sé aceleragéo, mas também inversao, pois permite “go imperium (a forca) preceder a jurisdictio (0 enunciado da regra), imuni- zando o facto consumado relativamente a um requestionamento juridico ul- terior”29. E 0 que ocorre, v.g., com o chamado “contraditério diferido”, em que primeiro se decide (poder), para depois submeter ao contraditério (ilusério) de onde deve(ria) brotar o saber. Outro exemplo seria a banalizac&o das medidas in limine litis, especial- mente com a antecipacio de tutela do CPC, e também das prisdes cautelares no processo penal, em que a prisio preventiva - tipica medida de urgéncia - foi generalizada, como um efeito sedante da opiniao publica. A priso cautelar transformou-se em pena antecipada, com uma fungiio de imediata retribuigdo/prevencao. A “urgéncia” também autoriza(?) a adminis- tracdo a tomar medidas excepcionais, restringindo direitos fundamentais, diante da ameaga & “ordem publica’, vista como um perigo sempre urgente. UNDAMENTOS DO F INTRODUGAO cRITICA (PC Leva, igualmente, a simplificar os procedimentos, abreviar prazos e con- tornar as formas, gerando um gravissimo problema, pois, no processo penal, a forma é garantia, enquanto limite ao poder punitivo estatal. Sao inimeros os inconvenientes da tirania da urgéncia. As medidas de urgéncia deveriam limitar-se a um carater “conservatério” ou “de preservacao” até que regressasse & normalidade, quando entio seria tomada a decisao de fundo. Contudo, isso hoje foi abandonado e as medidas verdadeiramente “cautelares” e “provisionais” (ou situacionais e tempora- rias) esto sendo substitufdas por antecipatérias da tutela (dando-se o que deveria ser concedido amanhi, sob o manto da artificial reversdo dos efeitos, como se o direito pudesse avangar e retroagir com 0 tempo) com a natural de- finitividade dos efeitos. Na esfera penal, considerando-se que estamos lidando com a liberdade e a dignidade de alguém, os efeitos dessas alquimias juridicas em torno do tempo so devastadores. A urgéncia conduz a uma inversao do eixo légico do proceso, pois, agora, primeiro prende-se para depois pensar. Antecipa-se um grave e doloroso efeito do processo (que somente poderia decorrer de uma sentenca, apés decorrido 0 tempo de reflexdo que Ihe é inerente), que jamais podera ser revertido, nao sé porque o tempo nao volta, mas também porque nao voltam a dignidade e a intimidade violentadas no carcere. Inequivocamente, a urgéncia é um grave atentado contra a liberdade indi- vidual, levando a uma erosio da ordem constitucional e ao rompimento de uma regra basica: 0 processo nasceu para retardar, para demorar (dentro do razoavel, é claro), para que todos possam expressar seus pontos de vista e de- monstrar suas versées e, principalmente, para que o calor do acontecimento e das paixdes arrefeca, permitindo uma racional cogni¢do. Em ultima andlise, para que possamos racionalizar o acontecimento e aproximar 0 julgamentoa um critério minimo de justica. ataque da urgéncia é duplo, pois, ao mesmo tempo em que impede a plena juridicidade (e jurisdicionalidade), ela impede a realizacio de qualquer reforma séria, de modo que, “nao contente em destruir a ordem juridica, a ur- géncia impede a sua reconstrucao"#°. Surge um novo" risco: o risco endégeno ao sistema juridico em decorréncia da aceleracao e da (banalizacdo) da urgéncia. Essa é uma nova inseguranga ju- ridica que deve ser combatida, pois perfeitamente contornavel. Nao hé como abolir completamente a legislacao de urgéncia, mas tampouco se pode admi- tir a generalizacio desmedida da técnica. Entendemos que a esse novo risco deve-se opor uma (renovada) seguranca juridica, enquanto instrumento de protecao do individuo. Trata-se de recor- rer a uma clara definicao das regras do jogo para evitar uso desmedido do UNDAMENTOS DO PROCESS INTRODUGAO cRITICA (PC poder, enquanto redutor do arbitrio, impondo ao Estado o dever de obedi- éncia. No processo penal, é 0 que convencionamos chamar de instrumenta- lidade constitucional, ou seja, o processo enquanto instrumento a servico da maxima eficdcia dos direitos e das garantias do débil a ele submetido. Afinal, o Estado é uma reserva ética e de legalidade, jamais podendo descumprir as regras do jogo democratico de espacos de poder. Interessante é 0 exemplo trazido por Ost#2, de que o Tribunal de Justica Europeu decidiu pela “obrigacdo de nao impor aos individuos uma mudanca normativa demasiado brutal: por essa razdo, a regra nova deve ao menos comportar medidas transitérias em beneficio de destinatarios que possam alegar uma expectativa legitima”. Seria uma espécie de “direito a medidas transitérias”. Importante limite a mudancas radicais de atitude é a necessi- dade de justificacao objetiva e razoavel (motivacao). Por meio de protecées e contrapesos, a jurisprudéncia deve tentar assegu- rar ao direito um papel garantidor e emancipador. Assim, deve ser repensado oconceito de seguranca juridica, enquanto freio a ditadura (estatal) da urgén- cia. A nogao de “seguranca” no processo (e no direito) deve ser repensada, partindo-se da premissa de que ela esta na forma do instrumento juridico e que, no processo penal, adquire contornos de limitacao ao poder punitivo estatal e emancipador do débil submetido ao processo. O processo, enquanto ritual de reconstruc¢io do fato histérico, é unica maneira de obter uma versio aproximada do que ocorreu. Nunca ser o fato, mas apenas uma aproximacio ritualizada deste. £ fundamental definir as regras desse jogo, mas sem esquecer que mais importante do que a definic&o esta em (des)velar 0 contetido axiolégico das regras. A servico do que ou de quem elas estao? Voltamos sempre a pergunta: Um processo penal para qué (quem)? Nessa linha, evidencia-se o cendrio de risco e aceleracdo que conduz a ti- rania da urgéncia no processo penal. Essa nova carga ideoldgica do processo exige especial atengdo diante da banalizacdo da excepcionalidade. O con- traste entre a dindmica social e a processual exige uma gradativa mudanga a partir de uma séria reflexao, obviamente incompativel com 0 epidérmico e simbdlico tratamento de urgéncia. O processo nasceu para retardar a decisdio, na medida em que exige tempo para que 0 jogo ou a guerra se desenvolvam segundo as regras estabelecidas pelo proprio espago democratico*?. Logo, jamais alcangar4 a hiperaceleracio, oimediatismo caracteristico da virtualidade. Ademais, o juiz interpée-se no processo numa dimensio espacial, mas principalmente temporal, situando-se entre o passado-crime e o futuro-pena, UNDAMENTOS D0 PRO! INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE incumbindo-se a ele (e ao processo) a importante missao de romper com 0 binémio acdo-reacio“*. O processo nasceu para dilatar o tempo da reacio, nasceu para retardar. Contudo, alguma melhora na dinamica no sé é possivel, como também fecessaria, Obviamente que nao pela mera aceleracéo procedimental (e consequente supressao de garantias fundamentais), mas sim por meio da insergdo de um pouco da ampla tecnologia a disposicdo, especialmente na fase pré-processual. Também devemos considerar 0 referencial “luz”, a visi- bilidade. Nesse (des)velar, a luz é fundamental, ainda que indireta, como en- sina Paul Virillo. Tal questao nos leva — também — a repensar a publicidade e a visibilidade dos atos. A transparéncia do processo, mas sem cair no bizarro espetaculo televisivo. Esse é um ponto de dificilimo equilibrio. No que tange & duracao razodvel do proceso, entendemos que a aceleracdo deve produzir-se nao a partir da visdo utilitarista, da iluséo de uma justica imediata, destinada a imediata satisfacdo dos desejos de vinganca. O pro- cesso deve durar um prazo razodvel para a necessdria maturacio e cognicio, mas sem excessos, pois o grande prejudicado é 0 réu, aquele submetido ao ritual degradante e a angustia prolongada da situacdo de pendéncia. O pro- cesso deve ser mais célere para evitar o sofrimento desnecessdrio de quem a ele esta submetido. E uma inversao na tica da aceleragao: acelerar para abre- viar o sofrimento do réu. Também chegou o momento de aprofundar o estudo de um novo direito: o direito de ser julgado num processo sem dilacées indevidas. Trata-se de decor- réncia natural de uma série de outros direitos fundamentais, como 0 respeito & dignidade da pessoa humana e 4 propria garantia da jurisdicdo. Na medida em que a jurisdigao é um poder, mas também um direito, pode-se falar em verdadeira mora jurisdicional quando o Estado abusar do tempo necessério para prestar a tutela. Entendemos adequado falar-se em uma nova pena processual, decorrente desse atraso, na qual o tempo desempenha uma fungdo punitiva no pro- cesso. E a demora excessiva que pune pelo sofrimento decorrente da angtistia prolongada, do desgaste psicolégico (0 processo como gerador de depressio ex6gena), do empobrecimento do réu, enfim, por toda estigmatizacao social e juridica gerada pelo simples fato de estar sendo processado. O processo é uma ceriménia degradante e, como tal, o carater estigmati- zante esta diretamente relacionado com a duracdo desse ritual punitivo. Assumido o carater punitivo do tempo, ndo resta outra coisa ao juiz que (além da elementar detracao em caso de prisio cautelar) compensar a demora reduzindo a pena aplicada, pois parte da punicao jé foi efetivada pelo tempo. UNDAMENTOS D0 PRO! INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE Para tanto, formalmente, poderd lancar mao da atenuante genérica do art. 66 do Cédigo Penal. O proprio tempo do carcere deve ser pensado a partir da disting4o objetivo/ subjetivo, partindo-se do classico exemplo de Einstein*s, a fim de explicar a relatividade: “quando um homem se senta ao lado de uma moga bonita, du- rante uma hora, tem a impressio de que passou apenas um minuto. Deixe- o sentar-se sobre um fogao quente durante um minuto somente - e esse minuto Ihe parecera mais comprido que uma hora. ~ Isso é relatividade”. tempo na priséio* deve ser repensado, pois est mumificado pela instituicao e gera grave defasagem enquanto tempo de involucdo. Em suma, uma infinidade de novas questdes que envolvem o binémio tempo/direito esta posta e exige profunda reflexao. 1.4. Principio da necessidade do processo penal em relacao & pena A titularidade exclusiva por parte do Estado do poder de punir (ou penar, se considerarmos a pena como esséncia do poder punitivo) surge no momento em que é suprimida a vinganga privada e sio implantados os critérios de jus- tiga. O Estado, como ente juridico e politico, avoca para sio direito (e o dever) de proteger a comunidade e também o préprio réu, como meio de cumprir sua fungio de procurar o bem comum, que se veria afetado pela transgressio da ordem juridico-penal, por causa de uma conduta delitiva‘”. A medida que o Estado se fortalece, consciente dos perigos que encerra a autodefesa, assume o monopélio da justica, ocorrendo nao sé a revisio da natureza contratual do processo, sendo a proibiciio expressa para os particu- lares de tomar a justica por suas préprias ios. Frente & violagao de um bem juridicamente protegido, nao cabe outra atividade** que ndo a invocacao da devida tutela jurisdicional. Impée-se a necessaria utilizacio da estrutura pre- estabelecida pelo Estado ~ o processo penal - em que, mediante a atuacao de um terceiro imparcial, cuja designacio nao corresponde a vontade das partes e resulta da imposi¢do da estrutura institucional, serd apurada a existéncia do delito e sancionado o autor. O processo, como instituicio estatal, éa tinica estrutura que se reconhece como legitima para a imposicao da pena. Néo ha uma atividade propriamente substitutiva, pois a pena publica nunca per- tenceu aos particulares para que houvesse a “substituicio”. Por isso, é uma avocagiio para o Estado do poder de punir, afastando as formas de vinganca privada. Isso porque 0 direito penal é despido de coer¢io direta e, a0 contrario do direito privado, nao tem atuacdo nem realidade concreta fora do processo correspondente. UNDAMENTOS DO F INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE No direito privado, as normas possuem uma eficécia direta, imediata, pois os particulares detém o poder de praticar atos juridicos e negécios juridi- cos, de modo que a incidéncia das normas de direito material - sejam civis, comerciais etc. - é direta. As partes materiais, em sua vida didria, aplicam 0 direito privado sem qualquer intervengao dos érgaos jurisdicionais, que, em regra, sio chamados apenas para solucionar eventuais conflitos surgidos pelo incumprimento do acordado. Em resumo, nao existe o monopdlio dos tribunais na aplicacdo do direito privado e “ni siquiera puede decirse que es- tatisticamente sean sus aplicadores mas importantes”#?. Noentanto, totalmente distinto é o tratamento do direito penal, pois, ainda que os tipos penais tenham uma funcao de prevencio geral e também de protecio (nio sé de bens juridicos, mas também do particular em relacao aos atos abusivos do Estado), sua verdadeira esséncia esta na pena e essa nao pode prescindir do processo penal. Existe um monopélio da aplicacao por parte dos érgios jurisdicionais e isso representa um enorme avanco da humanidade. Para que possa ser aplicada uma pena, nao sé é necessario que exista um in- justo culpavel, mas também que exista previamente o devido proceso penal. Apena nao sé é efeito juridico do delito5®, senao que é um efeito do processo; mas 0 processo nao é efeito do delito, senao da necessidade de impor a pena ao delito por meio do processo. A pena depende da existéncia do delito e da existéncia efetiva e total do processo penal, posto que, se o processo termina antes de desenvolver-se comple- tamente (arquivamento, suspensiio condicional etc.) ou se ndo se desenvolve de forma valida (nulidade), néo pode ser imposta uma pena. Existe uma intima e imprescindivel relagdo entre delito, pena e proceso, de modo que sio complementares. Nao existe delito sem pena, nem pena sem delito e proceso, nem processo penal sendo para determinar o delito e impor uma pena. Assim, fica estabelecido o cardter instrumental do processo penal com rela- Ao ao direito penal e a pena, pois o processo penal é 0 caminho necessdrio para pena. E o que Gémez Orbaneja5! denomina principio de la necesidad del proceso penal, amparado no art. 1° da LECrim®?, pois nao existe delito sem pena, nem pena sem delito e processo, nem proceso penal sendo para determinar 0 delito e atuar a pena. O principio apontado pelo autor resulta da efetiva aplicacao no campo penal do adagio latino nulla poena et nulla culpa sine iudicio, expres- sando 0 monopélio da jurisdicdo penal por parte do Estado e também a ins- trumentalidade do processo penal. Sao trés5? os monopélios estatais: UNDAMENTOS DO PROCESS PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE a) exclusividade do direito penal; b) exclusividade pelos tribunais; e c) exclusividade processual. Como explicamos, atualmente, a pena é estatal (publica), no sentido de que 0 Estado substituiu a vinganca privada e, com isso, estabeleceu que a pena é uma reacao do Estado contra a vontade individual. Estao proibidas a autotu- tela e a “justia pelas préprias maos”. A pena deve estar prevista em um tipo penal e cumpre ao Estado definir os tipos penais e suas consequentes penas, ficando o tema completamente fora da disposicao dos particulares (vedada, assim, a “justica negociada”)54, Rogério Lauria Tucci5> aponta para a imposicéio de uma autolimitacio do interesse punitivo do Estado-administracdo, que somente poderd realizar o di- reito penal mediante a agéio judicidria dos juizes e tribunais. Entendemos que a exclusividade dos tribunais em matéria penal deve ser analisada em conjunto com a exclusividade processual, pois, ao mesmo tempo em que o Estado prevé que sé os tribunais podem declarar o delito e impor a pena, também prevé a imprescindibilidade de que essa pena venha por meio do devido processo penal. Ou seja, cumpre aos juizes e tribunais declararem 0 delito e determinar a pena proporcional aplicavel, e essa operacao deve neces- sariamente percorrer 0 leito do processo penal valido com todas as garantias constitucionalmente estabelecidas para 0 acusado. Aos demais Poderes do Estado ~ Legislativo e Executivo ~ esta vedada essa atividade. Nao obstante, como destaca Montero Aroca’*, absurdamente “ se constata dia a dia que las leyes van permitiendo a los érganos adminis- trativos imponer sanciones pecuniarias de tal magnitud, muchas veces, que ni siquiera pueden ser impuestas por los tribunales como penas”. Da mesma forma, na execucio penal, constata-se uma excessiva e perigosa administra- tivizacdo, em que faltas graves - apuradas em procedimentos administrati- vos inquisitivos — geram gravissimas consequéncias%”. 1.5. Instrumentalidade constitucional do processo penal Estabelecido o monopoélio da justica estatal e do processo, trataremos agora da instrumentalidade. Desde logo, nao devem existir pudores em afirmar que © processo é um instrumento (0 problema é definir o contetido dessa instru- mentalidade, owa servico de que(m) ela esta) e que essa é a razo basica de sua existéncia. Ademais, o direito penal careceria por completo de eficécia sem a pena, e a pena sem processo é inconcebivel, um verdadeiro retrocesso, de modo que a relacdo e interacdo entre direito e processo é patente. A strumentalita5® do processo penal reside no fato de que a norma penal apresenta, quando comparada com outras normas juridicas, a caracteristica UNDAMENTOS DO PROCESS INTRODUGAO cRITICA (PC de que o preceito tem por contetido um determinado comportamento proi- Dido ou imperativo e a sanc&o tem por destinatdrio aquele poder do Estado, que é chamado a aplicar a pena. Nao é possivel a aplicacdo da reprovacdo sem © prévio processo, nem mesmo no caso de consentimento do acusado, pois ele nao pode se submeter voluntariamente A pena, sendo por meio de um ato judicial (nulla poena sine iudicio). Essa particularidade do processo penal demonstra que seu cardter instrumental é mais destacado que o do processo civil. £ fundamental compreender que a instrumentalidade do processo no sig- nifica que ele seja um instrumento a servico de uma tinica finalidade, qual seja, a satisfacdo de uma pretensio (acusatéria). Ao lado dela esta a fungao constitucional do processo, como instrumento a servico da realizacdo do projeto democrético, como muito bem adverte Geraldo Prado®°. Nesse viés, insere-se a finalidade constitucional-garantidora da ma- xima eficdcia dos direitos e garantias fundamentais, em especial da liberdade individual. Ademais, a Constituicao constitui, logo, necessariamente, orienta a instrumentalidade do processo penal. termo “instrumentalidade”, que sempre remeteu a algumas licdes par- ciais de Dinamarco®, deve ser revisitado. Claro que nunca pactuamos com qualquer visio “eficientista” ou de que o processo pudesse ser usado como instru- ‘mento politico de seguranca publica ou defesa social. Resulta imprescindivel visualizar o processo desde seu exterior, para cons- tatar que o sistema nao tem valor em si mesmo, sendo pelos objetivos que é chamado a cumprir (projeto democratico-constitucional). Sem embargo, devemos ter cuidado na definig&o do alcance de suas metas, pois o processo penal nao pode ser transformado em instrumento de “seguranga ptiblica”. Nesse contexto, por exemplo, insere-se a critica ao uso abusivo das medi- das cautelares pessoais, especialmente a prisdo preventiva para “garantia da ordem ptiblica”. Trata-se de buscar um fim alheio ao processo e, portanto, estranho a natureza cautelar da medida. Trataremos novamente desse tema quando analisarmos a presungdo de inocéncia e as prisées cautelares. Nesse sentido, importante é a andlise de Morais da Rosa®! quando sublinha o perigo de ~ a transmitir-se mecanicamente para o processo penal as licdes de Dinamarco - pautar a instrumentalidade pela conjuntura social e poli- tica, demandando um “aspecto ético do processo, sua conotacao deontoldgi- ca” (expressio de Dinamarco). Explica Morais da Rosa que “esse chamado exige que 0 juiz tenha os pre- dicados de um homem do seu tempo, imbuido em reduzir as desigualdades sociais”®?, baseando-se nas modificagdes do Estado Liberal rumo ao Estado Social, mas UNDAMENTOS DO PROCESSO PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE vinculada a uma posic&o especial do juiz no contexto democratico, dando- Ihe poderes sobre-humanos, na linha de realizacio dos escopos processuais, com forte influéncia da superada filosofia da consciéncia, deslizando no Imagindrio e facilitando o surgimento de Juizes Justiceiros da Sociedade. E concluio autor afirmando que a pretenstio de Dinamarco de que o juiz deve aspirar aos anseios sociais ou mesmo ao espirito das leis, tendo em vista uma vinculacio axiolégica, mo- ralizante do juridico, com o objetivo de realizar o sentimento de justica do seu tempo, nao mais pode ser acolhida democraticamente®. Nenhuma diivida temos do enorme acerto e valor dessas licées, e de que esse perigo denunciado por Morais da Rosa é concreto e encontra em movi- mentos repressivos, como lei e ordem, tolerancia zero e direito penal do ini- migo, um terreno fértil para suas nefastas construcées. Ainda mais danosas sao as viragens linguisticas, os giros discursivos, pre- gados por lobos, que em pele de cordeiro (e alguns ainda dizem falar em nome da Constituico...) seduzem e mantém em crenga uma multidao de ingénuos, cuja fragil base tedrica faz com que sejam presas faceis, iludidos pelo discurso pseudoerudito desses ilusionistas. Cuidado leitor, mais perigosos do que os inimigos assumidos (e, por essa assuncio, até mereceriam algum respeito) s&o os que, falando em nome da Constituicdo, operam num mundo de ilusdo, de aparéncia, para seduzir os incautos. Como diz Jacinto Coutinho%, “pare- cem pavées, com belas plumas multicoloridas, mas com os pés cheios de craca”, Em suma, nossa nogéo de instrumentalidade tem por contetido a maxima eficdcia dos direitos e garantias fundamentais da Constituigéo, pautando-se pelo valor dignidade da pessoa humana submetida 4 violéncia do ritual judicidrio. Voltando ao binémio direito penal-processual, a independéncia conceitual e metodolégica do direito processual em relacio ao direito material foi uma conquista fundamental. Direito e processo constituem dois planos verdadei- ramente distintos no sistema juridico, mas esto relacionados pela unidade de objetivos sociais e politicos, o que conduz a uma relatividade do binémio direito-processo (substance-procedure). Respeitando sua separacio institucional e a autonomia de seu tratamento cientifico, o processo penal est a servico do direito penal, ou, para ser mais exato, da aplicacdo dessa parcela do direito objetivo®. Por esse motivo, ndo pode descuidar do fiel cumprimento dos objetivos tracados por aquele, entre os quais est o de protecdo do individuo. A autonomia extrema do processo com relacao ao direito material foi importante no seu momento, e, sem ela, os processualistas nao haveriam po- dido chegar tao longe na construgio do sistema processual. Mas isso ja cum- priucom a sua fungao. A acentuada visao auténoma esta em vias de extingdo UNDAMENTOS DO PROCESSO PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE ea instrumentalidade esta servindo para relativizar o binémio direito-pro- cesso, para a liberacdo de velhos conceitos e superar os limites que impedem 0 processo de alcancar outros objetivos, além do limitado campo processual. A ciéncia do processo ja chegou a um ponto de evolugio que lhe permite deixar para tras todos os medos e preocupacées de ser absorvida pelo direito material, assumindo sua funco instrumental sem qualquer menosprezo. O direito penal nao pode prescindir do processo, pois a pena sem processo perde sua aplicabilidade. Com isso, concluimos que a instrumentalidade do processo penal é o fundamento de sua existéncia, mas com uma especial caracteristica: é um instrumento de protecdo dos direitos e garantias individuais. E uma especial conotaciio do carater instrumental e que s6 se manifesta no processo penal, pois se trata de instrumentalidade relacionada ao direito penal e a pena, mas, principalmente, um instrumento a servico da maxima eficdcia das garantias constitucionais. Esta legitimado enquanto instrumento a servico do projeto constitucional. Trata-se de limitacéio do poder e tutela do débil a ele submetido (réu, por evidente), cuja debilidade é estrutural (e estruturante do seu lugar). Essa de- bilidade sempre existira e nao tem absolutamente nenhuma relagao com as condicées econémicas ou sociopoliticas do imputado, sendo que decorre do lugar em que ele é chamado a ocupar nas relacdes de poder estabelecidas no ritual judicidrio (pois é ele o sujeito passivo, ou seja, aquele sobre quem recaem os diferentes constrangimentos e limitacées impostos pelo poder es- tatal). Essa é a instrumentalidade constitucional que a nosso juizo funda sua existéncia. 1.6. A necessaria recusa a teoria geral do processo. Respeitando as categorias préprias do processo penal. Quando Cinderela tera suas préprias roupas? Era uma vez trés irmis, que tinham em comum, pelo menos, um dos proge- nitores: chamavam-se a Ciéncia do Direito Penal, a Ciéncia do Processo Penal ea Ciéncia do Processo Civil. E ocorreu que a segunda, em comparagao com as demais, que eram belas e prdsperas, teve uma infancia e uma adolescéncia desleixada, abandonada. Durante muito tempo, dividiu com a primeira o mesmo quarto. A terceira, bela e sedutora, ganhou o mundo e despertou todas as atengées. Assim comeca Carnelutti, que com sua genialidade escreveu em 1946 um breve, mas brilhante, artigo (infelizmente pouco lido no Brasil), intitulado “Cenerentola”®6 (a Cinderela, da conhecida fabula infantil). O processo penal segue sendo a irma preterida, que sempre teve de se con- tentar com as sobras das outras duas. Durante muito tempo, foi visto como UNDAMENTOS DO PROCESSO PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE um mero apéndice do direito penal. Evolui um pouco rumo a autonomia, é verdade, mas continua sendo preterido. Basta ver que nao se tem noticia, na historia académica, de que o proceso penal tivesse sido ministrado ao longo de dois anos, como costumeiramente o é o direito penal. Se compararmos com o processo civil ento, a distancia é ainda maior. Mas, em relacao ao direito penal, a autonomia obtida é suficiente, até por- que, como define Carnelutti, delito e pena sao como cara e coroa da mesma moeda. Como o sao direito penal e processual penal. Recorde-se o que falamos sobre o principio da necessidade. problema maior est na relacdio com o proceso civil. 0 processo penal, como a Cinderela, sempre foi preterido, tendo de se contentar em utilizar as roupas velhas de sua irma. Mais do que vestimentas usadas, eram vestes pro- duzidas para sua irmé (nao para ela). A irmé favorita aqui, corporificada pelo processo civil, tem uma superioridade cientifica e dogmatica inegavel. Tinha raz4o Bettiol, como reconhece Carneluttis’, de que assistimos iner- tes a um pancivilismo. E isso nasce na academia, com as famigeradas discipli- nas de “Teoria Geral do Processo”, tradicionalmente ministradas por proces- sualistas civis que pouco sabem e pouco falam do processo penal e, quando o fazem, é com um olhar e discurso completamente viciado. Nessa linha, no Brasil, entre os pioneiros criticos esta Tucci, que principia o desvelamento do fracasso da Teoria Geral do Processo a partir da descons- trucdo do conceito de lide (e sua consequente irrelevancia) para o processo penal, passando pela demonstracdo da necessidade de se conceber 0 conceito de jurisdicéo penal (para além das categorias de jurisdicao voluntaria e litigi- 08a) e o proprio repensar a aco (aco judiciaria e agao da parte). Aponta o autor, ainda criticando a Teoria Geral do Processo, que esse, alids, foi um dos (poucos, raros) aspectos negativos da grandiosa obra de José Frederico Marques, ao transplantar (sem, ou, as vezes, com modes- tos, avaros, retoques) institutos de processo civil para o processo penal, numa nitida adaptacdo dos Elementos de direito processual penal as Institui- g6es de direito processual civil [...] incorporando-se numa prolixa e confusa concepcao, que poderia ser denominada teoria civil do processo penal [...]®°. Como adverte Coutinho®, outro antigo critico da Teoria Unitaria, “teoria geral do processo é engodo; teoria geral é a do proceso civile, a partir dela, as demais”. Ou seja, pensam tudo desde o lugar do processo civil, com um olhar viciado, que conduz a um engessamento do proceso penal nas estruturas do processo civil Todo um erro de pensar, que podem ser transmitidas e aplicadas no pro- cesso penal as categorias do processo civil, como se fossem as roupas da irma mais velha, cujas mangas se dobram, para caber na irma preterida. £ a velha UNDAMENTOS D0 PRO! PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE falta de respeito, a que se referia Goldschmidt, as categorias juridicas pré- prias do processo penal. Contudo, ha chegado o momento (e se vao mais de 60 anos do trabalho de Carnelutti) de desvelar a diversidade fenomenoldgica (e metodoldgica) das duas irmds processuais? e compreender que o processo penal possui suas ca- tegorias juridicas proprias, sua diversidade inerente, e que nao mais se con- tenta em usar as vestes da irma. Como explica Carnelutti, o processo civil é, nove de cada dez vezes, um processo de sujeitos que “tém”, e, quando um dos dois nao tem, aspira muito “ter”. E 0 processo do “meu” e do “teu”, o que esta em jogo é a propriedade, é uma relacao coisificada, diria Simmel’! (muito antes e muito além dos juristas). O processo civil é 0 cendrio da riqueza (de quem possui), ao passo que no processo penal, cada vez mais, é 0 processo de quem nao tem, do excluido. Isso contribui para o estigma da gata borralheira, mas nAo justifica. No processo penal, em (radical) cambio, do que estamos tratando? Nao é do ter, mas sim da liberdade. No lugar da coisa, pensa-se na liberdade, de quem, tendo, esta na iminéncia de perder, ou que ja nao tendo pode recuperé-la ou perdé-la ainda mais. Trata-se de voltar para casa ou ser encarcerado. Como adverte Carnelutti, é com a liberdade o que verdadeiramente se joga no pro- cesso penal. “Al juez penal se le pide, como al juez civil, algo que nos falta y de lo cual no podemos prescindir; y es mucho mas grave el defecto de libertad que el defecto de propiedad””2. Significa dizer que ao juiz penal no se pede, como ao juiz civil, algo que nos falta, o tal “bem da vida” como se referem os civilistas. £ a propria vida que esta em jogo. Para Carnelutti, tanto ao juiz penal como ao juiz civil, compete dar a cada um 0 seu. A (imensa) diferenga esta em que no penal é dispor do préprio “ser”, ao passo que no civil é 0 “ter”. Nao se pode esquecer, ainda, como adverte certeiramente Juarez Cirino dos Santos’, de que © processo penal nao se constitui processo de partes livres e iguais - como 0 processo civil, por exemplo, dominado pela liberdade de partes, em situ- acao de igualdade processual -, mas uma relacao de poder instituida pelo Estado com a finalidade de descobrir a verdade de fatos criminosos e punir os autores considerados culpados. Sao a auséncia de liberdade e a relacdo de poder instituida (em contraste com a liberdade e a igualdade) os elementos fundantes de uma diferenga in- superdvel entre o processo civil e o penal. Em relacdo ao direito penal, a autonomia obtida é suficiente, até porque, como define Carnelutti, delito e pena sao como cara e coroa da mesma moeda. UNDAMENTOS DO PROCESS PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE Como o sao direito penal e processual penal, unidos pelo “principio da ne- cessidade” — nulla poena sine iudicio — tao bem definido por Gomez Orbaneja. O direito civil se realiza todo dia sem processo civil (negécios juridicos etc.), pois é autoexecutavel, tem realidade concreta. O direito civil s6 chama o pro- cesso civil quando houver uma lide, carneluttianamente pensada como um conflito de interesses qualificado por uma pretensio resistida. J4 no campo penal tudo é diferente. O direito penal nao é autoexecutavel e nao tem reali- dade concreta fora do processo. E castrado. Se alguém for vitima de um crime, a pena no cai direta e imediatamente na cabeca do agressor. O direito penal no tem eficdcia imediata e precisa, necessariamente, do processo penal para se efetivar, pois o processo é um caminho necessario e inafastavel para che- gar na pena. Por isso, o principio da necessidade demarca uma diferenca insuperdvel entre penal e civil, j4 cobrando sua diferenca nas condicées da agdo, como veremos. Vejamos alguns rapidos exemplos (teria muito mais...) da (dis)tor¢o con- ceitual e absurdos processuais realizados em nome da Teoria Geral do Pro- cesso: a) No processo penal, forma é garantia e limite de poder, pois aqui se exerce 0 poder de punir em detrimento da liberdade. E um poder limitado e condi- cionado, que precisa se legitimar pelo respeito as regras do jogo. Logo, nao se deve importar a tal “instrumentalidade das formas” e “informalismo processual”, pois aqui o fendmeno é completamente diferente. b) Precisamos abandonar as teorias da aco, pois tudo 0 que se escreveu desde a polémica Windscheid - Muther, passando pelas teorias da acéo como direito abstrato (Plosz), como direito concreto (Wach) ou direito po- testativo (Chiovenda) nao pode ser aplicado ao processo penal sem muito ajuste, muita costura, quase uma roupa nova. Como afirmar que aco é um direito publico, abstrato e auténomo? Se for assim, uma pessoa pode processar outra diretamente, sem nada de provas, de forma totalmente auténoma e abstrata? No processo civil, sim. No processo penal, nem pensar, pois é preciso desde logo demonstrar um minimo de concretude, de indicios razoaveis de autoria e materialidade. E 0 juizo de mérito, ainda que superficialmente, é feito desde logo. Portanto, os conceitos de auto- nomia e abstracao tém de ser repensados, senao completamente redese- nhados. Mais do que isso, precisamos elaborar uma “teoria da acusacao”, adequada a realidade do processo penal. c) Dizer que as condi¢ées da acdo no processo penal sao interesse e possi- bilidade juridica do pedido é um erro, repetido sem maior reflexo por grande parte da doutrina. Como falar em “interesse” se aqui a regra é a necessidade? Discutir “interesse de agir” e outros civilismos é desconhe- cer o que é processo penal. Pior é tentar salvar o “interesse” por meio do entulhamento conceitual, atribuindo um contetido a essa categoria que ela nao comporta. Esse é o erro mais comum: para tentar salvar uma inadequada categoria do proceso civil, vio metendo definicdes que ex- INDAMEN Rot trapolam os limites semanticos e de sentidos possiveis. Para salvar uma categoria inadequada nfo fazem outra coisa que matd-la, mas mantendo © mesmo “nome”, para fazer jus a “teoria geral”. E a tal “possibilidade ju- ridica do pedido”? O que é isso? Outra categoria inadequada, até porque, no processo penal, o pedido é sempre o mesmo... Mas e o que fazer para salvar um conceito erroneamente transplantado? Entulho-o de coisas que nao Ihe pertencem. Falam em suporte probatério minimo, em indicios razodveis de autoria e materialidade etc., ou seja, de outras coisas que nada tém a ver com possibilidade juridica do pedido. Enfim, temos de levar as condicées da aco a sério, para evitar essa enxurrada de acusacées infundadas que presenciamos, servindo apenas para estigmatizar e punir jlegitimamente. Juizes que operam na légica civilista nao fazem a impres- cindivel “filtragem” para evitar acusacées infundadas. A Teoria Geral do Processo (TGP) estimula o acusar infundado (afinal, é direito “auténomo e abstrato”) e o recebimento burocratico, deixando a analise do “mérito” para o final, quando, no processo penal, ab initio precisamos demonstrar 0 fumus commissi delicti (abstrato, mas conexo instrumentalmente ao caso penal, diria Jacinto Coutinho). d) Lide penal? Outro conceito imprestavel e que nao faz qualquer sentido aqui. Inclusive, é um erro falar em “pretensao punitiva”, na medida em que 0 Ministério Publico nao atua no processo penal como “credor” (civel) que pede a adjudicacao de um direito proprio. Ao MP nao compete o poder de punir, mas de promover a punicao. Por isso, no processo penal nao existe lide, até porque nao existe “exigéncia punitiva” que possa ser satis- feita fora do processo (de novo o principio da necessidade). O MP exerce uma “pretensao acusatéria” e o juiz o pode condicionado de punir. Sobre o objeto do processo, trataremos adiante. e) E 0 conceito de jurisdicéo? Tem outra dimensio no processo penal, para além do poder-dever, é uma garantia fundamental, é limite de poder, é fator de legitimacdo, sendo que o papel do juiz no processo penal é distinto daquele exercido no processo civil. Por isso, a garantia do juiz natural é¢ mais sensivel aqui, até porque o juiz é o guardiao da eficdcia do sistema de garantias da constituicdo e que ld estA para limitar poder e garantir 0 débil submetido ao processo. Dessarte, grave problema existe na matriz da TGP e suas nocées de competéncia relativa e absoluta, desconsiderando que no processo penal nao ha espaco para a (in)competéncia relativa. E por isso que esto manipulando a competéncia no processo penal, esque- cendo que o direito de ser julgado pelo “meu juiz”, competente em razo de matéria, pessoa e (principalmente) lugar, é fundamental. A dimensao do julgamento penal é completamente diferente do julgamento civil, pois nao podemos esquecer que o “caso penal” é uma lesao a um bem juridico tutelado em um determinado lugar. Ou alguém vai dizer que o fato de um juri ser na cidade “A” ou na cidade “B” é irrelevante? Obvio que nao. Mas 0 ‘que sabe a TGP de crime e jtiri? £) Juiz natural e imparcial. A estrutura acusatéria ou inquisitéria do pro- cesso penal (como veremos adiante) é um dos temas mais relevantes e di- retamente ligado ao principio supremo do processo: a imparcialidade do julgador. A posic&o do juiz é fundante no processo penal, desde sua pers- INDAMEN Rot pectiva sistémica (e, como tal, complexa) para garantia da imparcialidade. Como ensinam os mais de 30 anos de jurisprudéncia do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, juiz que vai atrés da prova estA contaminado e nao pode julgar. Trata-se de uma preocupacdo especifica do processo penal e desconhecida pelo processo civil e pela TGP. g) Juiz natural e imparcial II. A prova da alegacao incumbe a quem alega? Claro que nao! No Processo Penal nao existe “distribuigdo de carga proba- toria’, sendo “atribuic&o” integral ao acusador, pois operamos desde algo que os civilistas ndo conhecem e tampouco compreendem: presuncao de inocéncia. h) Juiz natural e imparcial III. Julgar em divida razoavel é um dilema, especialmente quando os adeptos da TGP resolvem “distribuir” cargas probatorias e, em duvida, resolvem “ir atras da prova”. Pronto, esta criado © problema. O ativismo judicial mata o Processo Penal. Juiz ator, que vai atras da prova, desequilibra a balanca, mata o contraditério e fulmina a imparcialidade. Sim, aqui a situacdo é bem complexa...Ent&o o que fazer? Compreender que no processo penal muita gente queimou na fogueira (a TGP nao conhece Eymerich e o Directorum Inquisitorum) para chegarmos no in dubio pro reo. Sem compreender esse complexo “caldo cultural” e os valores em jogo, especialmente o in dubio pro reo, como regra de julga- mento, e a presuncao de inocéncia, como regra de tratamento, é impossi- vel analisar a questao. ; i) Fumus boni iuris e periculum in mora? £ impactante ver um juiz (de)formado pela TGP decretar uma prisio preventiva porque presentes 0 fumus boni iuris e 0 periculum in mora. Ora, quando alguém é cautelar- mente preso é porque praticou um fato aparentemente criminoso. Desde quando isso é “fumaga de bom direito”? Crime é bom direito? Reparem no absurdo da transmissao de categorias! E qual é o fundamento da prisao? Perigo da demora? O réu vai “perecer”? Claro que nao... Mas nao faltard al- guém para — incorrendo em grave reducionismo — dizer que é apenas “pa- Iavra”. Mais um erro. Para nés, no direito penal e processual penal, palavra é limite, palavra é legalidade, as palavras “dizem coisas” e trabalhamos de lupa em cima do que diz a palavra e do que o intérprete diz que a palavra diz. Logo, nunca se diga que é “apenas” palavra, pois a palavra é tudo. j) Poder geral de cautela? De vez em quando, algum juiz “cria” medidas restritivas de direitos fundamentais invocando o CPC (!!) e o “poder geral de cautela” (ilustre desconhecido para o CPP). Mais um absurdo de quem desconhece que o sistema penal se funda no principio da legalidade, na reserva de lei certa, taxativa e estrita. Nao se admite criar “punicao” por analogia! Sim, mas é isso que fazem os que operam na légica da TGP. k) Vou decretar a revelia do réu! Nao raras vezes ouvimos isso em uma audiéncia. Gostariamos de perguntar: vai inverter a carga da prova tam- bém, Exceléncia? Elementar que no. A categoria “revelia” é absoluta- mente inadequada e inexistente no processo penal, sendo figura tipica do processo civil, carregada de sentido negativo, impondo ainda a “presun- ‘cdo de veracidade” sobre os fatos nao contestados e outras consequéncias inadequadas ao processo penal. A inatividade processual (incluindo a omissao e a auséncia) nao encontra qualquer tipo de reprovacdo juridica. INDAMEN PROCESSO PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE Nao conduz a nenhuma presuncio, exceto a de inocéncia, que continua inabalavel. O nao agir probatério do réu nao conduz a nenhum tipo de pu- nic&o processual ou presuncdo de culpa. Nao existe um dever de agir para o imputado para que se Ihe possa punir pela omissi0’4. 1) Esse recurso especial/extraordindrio ndo tem efeito suspensivo! Até recente- mente, por culpa da TGP, as pessoas eram “automaticamente” presas a0 ingressar com esses recursos, porque a Lei n. 8.038 (civilista...) diz que tais recursos nao tém efeito suspensivo. Mas desde quando prender alguém ou deixar em liberdade esta situado na dimensio de efeito recursal? Desde nunca! E um absurdo gerado pela cultura da TGP, que desconhece a pre- suncao de inocéncia! m) Nulidade relativa. Essa é a fatura mais alta que a TGP cobra do processo penal: acabaram com a teoria das nulidades pela importacéo do pom- poso pas nullité sans grief. Tao pomposo quanto inadequado e danoso. Iniciemos por um principio basico - desconhecido pela TGP, por elemen- tar: forma é garantia. O ritual judiciario esta constituido, essencialmente, por discursos e, no sistema acusatério, forma é garantia, pois processo penal é exercicio de poder e todo poder tende a ser autoritario. Violou a forma? Como regra, violou uma garantia do cidadio. E 0 tal “prejuizo”? E uma cldusula genérica, de contetido vago, impreciso e indeterminado, que vai encontrar referencial naquilo que quiser o juiz (autoritarismo- decisionismo-espacos improprios de discricionariedade, conforme Lenio Streck). Como dito, no processo penal existe exercicio condicionado e li- mitado de poder, sob pena de autoritarismo. E esse limite ver dado pela “forma”. Portanto, flexibilizar a forma é abrir a porta para que os agentes estatais exercam o poder sem limite, em franco detrimento dos espacos de liberdade. E rasgar o principio da legalidade e toda a teoria da tipicidade dos atos processuais. E rasgar a Constituicao. Por culpa da TGP, esté chan- celado o vale-tudo processual. O decisionismo se legitima na TGP. Eu- tribunal anulo o que eu quiser, quando eu quiser. E viva a teoria geral do processo! Portanto, em rapidas pinceladas esta demonstrada (e desenhada) a neces- sidade de se recusar a Teoria Geral do Processo e assimilar o necessario res- peito as categorias juridicas proprias do processo penal. Voltando ao inicio carneluttiano, Cinderela é uma boa irma e nao aspira uma superioridade em relacio as outras, sendo, unicamente, uma afirmacio de paridade. O processo civil, ao contrario do que sempre se fez, no serve para compreender o que é o processo penal: serve para compreender o que néo é. Daf por que, com todo o respeito, basta de Teoria Geral do Processo. UNDAMENTOS DO PROCESS PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE 1.7. Inserindo o processo penal na epistemologia da incerteza e do risco: lu- tando por um sistema de garantias minimas Como jé apontamos, vivernos em uma sociedade complexa, em que o risco esta em todos os lugares, em todas as atividades e atinge a todos de forma in- discriminada. Concomitantemente, é uma sociedade regida pela velocidade e dominada pela légica do tempo curto. Toda essa aceleracao potencializa o risco. Alheio a tudo isso, o direito opera com construgées técnicas artificiais, recorrendo a mitos como “seguranca juridica”’S, “verdade real”, “reversibili dade de medidas” etc. Em outros momentos, parece correr atrés do tempo perdido, numa desesperada tentativa de acompanhar 0 “tempo da sociedade”. Surgem entao alquimias do estilo “antecipacao de tutela”, “aceleragdo proce- dimental” etc. O conflito entre a dinamica social e a juridica é inevitavel, evidenciando uma vez mais a faléncia do monélogo cientifico diante da complexidade im- posta pela sociedade contempordnea. Nossa abordagem ¢ introdutéria, um convite a reflexao pelo viés interdisciplinar, com todos os perigos que encerra uma incurso para além de um saber compartimentado. Sem esquecer que, em meio a tudo isso, esta alguém sendo punido pelo processo e, se conde- nado, sofrendo uma pena, concreta, efetiva e dolorosa. 1.7.1. Risco exogeno Nao ha como iniciar uma abordagem sobre risco sem falar na risk society de Beck”6, Obviamente que a andlise perpassa essa visio, que serve apenas como ponto inicial. A doutrina de Beck desempenha uma importante misséo na superacdo da compreensio de que o sofrimento e a miséria eram apenas para © outro, pois haviam paredes e fronteiras reais e simbélicas para nos escon- dermos. Isso desapareceu com Chernobil. Acabaram-se as zonas protegidas da modernidade, “ha Ilegado el final de los otros”””. O grande desafio passa a ser viver com essa descoberta do perigo. Caiu o manto de proteciio, deixando descoberto esse desolador cenario. A sociologia do risco é firmada e definida pela emergéncia dos perigos ecoldgicos, caracteristicamente novos e problematicos. Mas a dimensio desse risco transcende a esfera ecolégica e também afeta o processo, pois alcanca a sociedade como um todo, eo processo penal nao fica imune aos riscos. Como aponta Beck, as sociedades humanas sempre correram riscos, mas eram riscos e azares conhecidos, cuja ocorréncia podia ser prevista e sua pro- babilidade, calculada. Os riscos das sociedades industriais eram importan- tes numa dimensio local e frequentemente devastadores na esfera pessoal, UNDAMENTOS DO PROCESS INTRODUGAO cRITICA (PC mas seus efeitos eram limitados em termos espaciais, pois nao ameacavam sociedades inteiras’®, Atualmente, as novas ameacas ultrapassam limites es- paciais e sociais e também excedem limites temporais, pois sao irreversiveis e seus efeitos (toxinas) no corpo humano e no ecossistema vio se acumulando. Os perigos ecoldgicos de um acidente nuclear em grande escala, pela libera- do de quimicos ou pela alteracao e manipulagao da composicao genética da flora e fauna (transgénicos), colocam em risco o proprio planeta. Existe um risco real de autodestruicao. Outro problema é que nos riscos ecolégicos modernos, segundo Beck’, 0 ponto de impacto pode nao estar obviamente ligado ao seu ponto de origem e sua transmissao e movimentos podem ser muitas vezes invisiveis e insonda- veis para a percepcio quotidiana. £ um gravissimo problema que dificulta ou impossibilita a identificagao do nexo causal, como ocorreu, v.g., com as conta- minacées pelo Antraz. Se, na sociedade pré-industrial, o risco revestia a forma natural (tremores, secas, enchentes etc.), néo dependendo da vontade do homem e, sendo por isso, inevitavel, 0 risco na sociedade industrial classica passou a depender de agdes dos individuos ou de forcas sociais (ex.: perigo no trabalho em razdo da utilizagdo de mquinas e venenos; no ambito social, o perigo do desemprego eda pentiria, ocasionado pelas incertezas da dinamica econémica etc.). Nesse momento, nasce a ilusao do Estado Seguranca. Em que pese o fato de certos perigos e azares constantemente ameacarem determinados grupos, tais riscos eram conhecidos, cuja ocorréncia poderia ser prevista e cuja probabilidade poderia ser (ou sera?) calculada. Mas os ris- cos contemporaneos sao qualitativa e quantitativamente distintos, pois assu- mem consequéncias transgeracionais (pois sobrevivem aos seus causadores) e marcados pelo que Beck chama de glocalidade (globais e locais ao mesmo tempo). ‘Ademais, é patente a desconstrucao dos parametros culturais tradicionais as estruturas institucionais da sociedade industrial (classe, consciéncia de classe, estrutura familiar e demarcagao de fungGes por sexo). Nao ha estratifi- cacéio econémica rigida, funcdes demarcadas por sexo enticleo familiar. Todo © oposto. O mito do Estado Seguranca cai por terra quando se verifica a fragilidade de seus postulados. Beck®® justifica o estado de inseguranca sustentando que a dimensiao dos riscos que enfrentamos ¢ tal, e os meios pelos quais tenta- mos lutar contra eles, a nivel politico e institucional, sao tao deploraveis, que a fina capa de tranquilidade e normalidade é constantemente quebrada pela realidade bem dura de perigos e ameacas inevitaveis. UNDAMENTOS DO PROCESS INTRODUGAO cRITICA (PC Por conseguinte, as atuais formas de degradacdo do ambiente atingem a todos indistintamente, ou seja, nao ha que se considerar qualquer tipo de bar- reira social ou geogrdfica como meio de protecdo contra tais perigos. Os gases poluentes emitidos pelos automéveis que circulam nas grandes cidades atin- gem da mesma forma ricos e pobres, causando-Ihes os mesmos problemas respiratorios, assim como o fato de morar na periferia de uma grande cidade ou em um bairro nobre nao protege ninguém de uma catastrofe. O risco também esta no trabalho e manifesta-se pelo desemprego estrutu- ral em larga escala e a longo prazo. Nao ha mais estrutura de trabalho por sexo; hé uma queda do trabalho por tempo integral e o aumento das jornadas parciais; operou-se um rompimento da estrutura tradicional do emprego re- gular (vitalicio); flexibilidade geral das relacées. Tudo isso gera uma grande inseguranca econémica que se vai alastrar em todo feixe de relacdes dos individuos. Também na esfera das relacées afetivas e na propria estrutura familiar, 0 risco esta mais presente do que nunca. No nucleo familiar, nao ha mais a distingao entre trabalho doméstico (nao remunerado e educagao dos filhos) e trabalho assalariado (privativo do homem). Esta consagrada a decadéncia do patriarcado. Intensificou-se a individualizacdo com o rompimento das fun- g6es tradicionais (homem e mulher) e das forcas ideolgicas que ajudavam a “prender” as pessoas. A inseguranca multiplicou-se em relac&o ao nticleo familiar com o divércio, paternidade ou maternidade unilateral e também implica uma nova dinamica das relacées interpessoais, em que 0 casar-se passa a um segundo plano, valorizando-se mais a realizacdo profissional e 0 individualismo (logo, relacionamentos afetivos superficiais). A dinamica do tempo curto e a ditadura do instantaneo potencializam esse risco das relacées afetivas, pois nao existem mais os longos namoros, seguidos de noivado e casamento para toda a vida. As pessoas “ficam”, o que significa a mais completa falta de compromisso com o passado e de compro- metimento com 0 futuro. E o presenteismo em grau maximo. Que dizer do “futuro”? E totalmente contingente, pois - explica Ost®? — se opera uma ruptura com a experiéncia vulgar do tempo - enquanto simples reconducao do passado - pois tudo se torna possivel. O futuro é verdadeiramente contingente, indeterminado; 0 instante é verdadeiramente instantaneo, suspenso, sem sequéncia previsivel ou prescrita. Projetos e pro- messas (impulso prometeico) perdem toda pertinéncia. £ a incerteza elevada ao quadrado. Mais radical, Comte-Sponville®? chama de nadificacéio. Mais do que isso, éa nadificagao do nada, pois o passado nao existe, uma vez que jé nao é, nem o futuro, j que ainda nao é. E 0 presente se divide num passado e num futuro UNDAMENTOS DO PROCESS PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE que nao existem. Logo, é 0 nada, pois, entre dois nada: o tempo seria essa nadi- ficagéio perpétua de tudo. Sob outro aspecto, indo além nessa andlise, é importante considerar que vivemos numa sociedade em busca de valores (parafraseando a obra®? de Prigo- gine e Morin). Nessa busca de valores, devemos considerar que estamos numa sociedade pds-moralista®*, que, liberta da ética de sacrificios, é dominada pela felici- dade, pelos desejos, pelo ego e pelos direitos subjetivos, sem qualquer ideal de abnegacio. E mais, tais beneficios devem ser obtidos a curto prazo, pois igual- mente inseridos na légica da aceleracio, na qual qualquer demora é vista como um sofrimento insuportavel. Sao fatores que conduzem a um individualismo sem regras, sem limites, desestruturado e sem futuro. Esta é apenas (mais) uma das faces das nossas sociedades, que nao sepultou a moral, sendo que a deseja no mesmo nivel de complexidade (uma moral & la carte diria Lipovetsky®, pois sentimen- tal, intermitente, epidérmica, uma ultima forma do consumo interativo de massa, eis que fortemente influenciada pelo discurso midiatico). Até mesmo em torno da moral reina a mais absoluta incerteza, pois evidente o estado de guerra entre “os varios tipos de moral Outra face importante das nossas sociedades contemporaneas é 0 infanti- lismo8S, externado pelo desejo e pelo consumismo, fazendo despertar a crianca que existe em cada um de nés. Aliado ao desejo infantil de tudo possuir, nao sabemos lidar com o tempo e a recusa. Uma vez mais estamos inseridos na urgéncia (da satisfagdo do desejo), na qual qualquer demora é um retardo do- loroso e insuportavel, nao queremos e nao precisamos esperar, pois lancamos mio do crédito, provocando um verdadeiro curto-circuito no tempo, como de- fine Bruckner®”. O crédito permite fazer desaparecer, como que por passe de magica, 0 intervalo entre desejo e satisfagao, inserindo-nos numa perspectiva (imediatista) tipicamente infantil, da crianca que nao conhece a renuncia. Como se nao bastasse isso, os jovens de 1968 (do histérico maio de 1968) cresceram, tornando-se, eles préprios, pais. E, quando isso ocorreu, nao en- sinaram outra coisa aos seus filhos do que a recusa a qualquer autoridade. E uma geracdio dominada pela ideologia de renunciar & reniincia. Isso, obvia- mente, acarreta graves problemas, na medida em que 0 conflito com o direito (limite e imposicao de rentincia) é inevitavel e doloroso. Isso gera, ao mesmo tempo, violéncia e inseguranca. Desnecessério seguir, pois o risco, a incerteza e a inseguranca esto em tudo. Nem sequer 0 sexo virtual, tido como seguro, ficou imune ao risco. Os virus da internet, cada vez mais sorrateiros e destrutivos, acabaram com qualquer esperanga de “seguranca”. UNDAMENTOS DO PROCESS INTRODUGAO CRITICA (PO) Vivemos inseridos na mais completa epistemologia da incerteza. Como consequéncia desse cendrio de risco total, buscamos no direito penal a segu- ranga perdida. Queremos seguranca em relacdo a algo que sempre existiu e sempre existira: violéncia e inseguranca. Aqui devemos fazer uma pausa e destacar que muito se tem manipulado o discurso para utilizar esses novos riscos como legitimante da intervengdo penal. Nao é essa nossa posicao. Estamos de acordo com Carvalho®, de que o direito penal (e também © processo penal), “ao assumir a responsabilidade de fornecer respostas as novas demandas (aos novos riscos), redimensiona, vez mais, sua estrutura” num “narcisismo infantil”*?. Surge do “delirio de grandeza (messianismo) decorrente da autoatribuigao do papel de protecao dos valores mais caros & humanidade, chegandoa assumir responsabilidade pelo futuro da civilizacéo (tutela penal das geracées futuras); estabelece uma relacio consigo mesma que a transforma em objeto amoroso”. Esse cenério conduz a onipoténcia que incapacita o direito penal a perce- ber seus préprios limites, inviabilizando uma relacdo madura com os outros campos do saber (interdisciplinaridade). Ao nao dialogar, o direito penal nao percebe a faléncia do mondlogo cientifico, o que conduz ao agravamento da crise e do préprio autismo juridico. Nossa abordagem situa-se nessa dimensao: reconhecer o risco para legiti- mar um sistema de garantias minimas. E fazer um recorte garantidor e nao penalizador na sociedade do risco. Para concluir, recordemos a licao de Gauer? de que violéncia é um elemento estrutural, intrinseco ao fato social e nao o resto anacrénico de uma ordem barbara em vias de extingao. Esse fendmeno aparece em todas as sociedades; faz parte, portanto, de qualquer civilizacéo ou grupo humano: basta atentar para a questao da violéncia no mundo atual, tanto nas grandes cidades como também nos recantos mais isolados. 1.7.2. Epistemologia da incerteza Aliado a tudo isso, a epistemologia da incerteza e a relatividade sepultam as “verdades reais”?! e os “juizos de certeza ou seguranca” (categorias que direito processual tanto utiliza), potencializando a inseguranca. Com Einstein e a relatividade, sepultou-se de vez qualquer resquicio dos juizos de certeza ou verdades absolutas: a mesma paisagem podia ser uma coisa para o pedestre, outra coisa total- mente diversa para o motorista, e ainda outra coisa diferente para o avi- ador. A verdade absoluta somente poderia ser determinada pela soma de todas observacées relativas??. INDAMENTOS DO P Hawking?? explica que Einstein derrubou os paradigmas da época: o re- pouso absoluto, conforme as experiéncias com o éter, e o tempo absoluto ou universal que todos relégios mediriam. Tudo era relativo’4, nao havendo, portanto, um padrao a ser seguido. Partindo da premissa de que todo saber é datado, Einstein distingue uma teoria verdadeira de uma falsa a partir do seu prazo de validade: maior tempo para a primeira, tal como décadas ou anos; ja para a desmistificaciio da se- gunda, bastam apenas dias ou instantes®>. Nesse interim, “somente ha uma verdade cientifica até que outra venha a ser descoberta para contradizer a anterior”®*. Caso contrario, a vida se re- sumiria em reproduzir o conhecimento cientifico dos antepassados, assim como nao haveria motivo para a ciéncia buscar novas fronteiras. Em sintese, a ciéncia estrutura-se a partir do principio da incerteza. E por causa dele nao haverd apenas uma histéria do universo contendo vida inteligente. Ao contrario: as histérias no tempo imaginario serao toda uma familia de esfe- ras ligeiramente deformadas, cada uma correspondendo a uma histéria no tempo real na qual o universo infla por um longo tempo, mas nao indefini- damente. Podemos entio perguntar qual dessas histérias possiveis é a mais provavel)?, Essa incerteza também esta intimamente relacionada com a nocao de futuro contingente, em que se opera uma ruptura com a experiéncia vulgar do tempo - enquanto simples reconducao do passado -, pois tudo se torna possivel. O futuro é verdadeiramente contingente, indeterminado, o instante 6 verdadeiramente instantaneo, suspenso, sem sequéncia previsivel ou pres- crita®’. Projetos e promessas (impulso prometeico) perdem toda pertinéncia. Ba incerteza elevada ao quadrado. Como aponta Ost, “toda ciéncia comeca por uma recusa [...] 0 espirito cientifico mede-se pela sua capacidade de requestionar as certezas do sentido comum - tudo aquilo que Bachelard designava pelo nome de obstdculo epis- temolégico”, pois “uma teoria nunca pode ser provada positivamente, nem definitivamente: 14 pelo facto de termos contado milhares de cisnes bran- cos, como poderiamos ter a certeza de nao existir pelo menos um que fosse preto?” A ciéncia esta sempre em suspenso. Nessa perspectiva de incerteza, a ordem 6, pois, excepcional: é 0 caos que é regra. A propria democracia é uma “politica de indeterminacio”, pois torna o poder infiguravel. Ao contrério do totalitarismo, explica Ost!, na democra- cia ninguém tem o direito natural de deter o poder. Ninguém pode aspirar exercé-lo de forma duravel. Nenhuma forca ou partido poderd apropriar- se do poder, sendo por meio do abuso. Enquanto o totalitarismo erradica UNDAMENTOS DO PROCESS PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE © conflito e reduz toda espécie de oposigao, a democracia esta baseada no pluralismo de opiniées e na sua oposi¢ao conflitual (é uma viséo de caos como regra). A democracia nao elimina o conflito, apenas tenta garantir um desfecho negociavel (por meio de procedimentos aceitos). Nunca ha uma conclusio, mas apenas uma decisio que gera um acordo apenas parcial, uma verdade aproximada. Inserida na epistemologia da incerteza, a democracia esta centrada num conflito interminavel, pois ela é essencialmente transgressiva e desprovida de base estdvel. Recordemos que, etimologicamente, politico nao se refere apenas a polis, mas também a polemos, isto é, guerra, de forma que 0 espaco politico nao é apenas aquele reconciliado e harménico, da ordem consensual, mas também do conflito. A arte consiste em transformar o antagonismo po- tencialmente destruidor em agonismo democratico1. 1.7.3. Risco endégeno: processo como guerra ou jogo? Mas orisco ea incerteza nao estao apenas fora ou em torno do processo. Sao inerentes ao préprio processo, seja ele civil ou penal. ‘A nogao de processo como relagdo juridica, estruturada na obra de Bit- low, foi fundante de equivocadas nogées de seguranca e igualdade que brotaram da chamada relacao de direitos e deveres estabelecidos entre as par- tes e entre as partes e 0 juiz. O erro foi o de crer que no processo penal hou- vesse uma efetiva relacao juridica, com um auténtico processo de partes. A teoria do processo como uma relacio juridica (a seguir analisada no Ca- pitulo “Teorias acerca da natureza juridica do processo (penal)”) é um marco relevante para o estudo do conceito de partes, principalmente porque repre- sentou uma evolucio de contetido democratico-liberal do processo em um momento em que o proceso penal era visto como uma simples intervencao estatal com fins de “desinfec¢ao social” ou “defesa social”!°3. Com certeza, foi muito sedutora a tese de que no processo haveria um sujeito que exercitasse nele direitos subjetivos e, principalmente, que poderia exigir do juiz que efeti- vamente prestasse a tutela jurisdicional solicitada sob a forma de resisténcia (defesa). Apaixonante, ainda, a ideia de que existiria uma relacio juridica, obrigatéria, do juiz com relacdo As partes, que teriam o direito de lograr por meio do ato final um verdadeiro clima de legalidade e restabelecimento da “paz social!” Tal relacdo deveria instaurar-se entre as partes (MP e réu) e 0 juiz, dando origem a uma reciprocidade de direitos e obrigacées processuais. Ademais, a existéncia de partes constitui uma exigéncia légica da instituicao, da propria estrutura dialética do processo, pois, dogmaticamente, o processo nao pode ser concebido sem a existéncia de partes contrapostas, ao menos in poten- tigi04, UNDAMENTOS DO F INTRODUGAO cRITICA (PC Mas a tese de Biilow gerou diversas criticas e, sem dtivida, a mais apropri- ada veio de James Goldschmidt e sua teoria do processo como situacéo juri- dica, tratada na sua célebre obra Prozess als Rechtslage, publicada em Berlim em 1925 e posteriormente difundida em diversos outros trabalhos do autor. Goldschmidt ataca, primeiramente, os pressupostos da relacio juridica, em seguida, nega a existéncia de direitos e obrigacées processuais, ou seja, 0 proprio contetido da relacao e, por fim, reputa definitivamente como estatica ou metafisica a doutrina vigente nos sistemas processuais contemporaneos. Nesse sentido, os pressupostos processuais nao representam pressupostos do processo, deixando, por sua vez, de condicionar o nascimento da relacao juridica processual para ser concebidos como pressupostos da decisao sobre 0 mérito. Interessa-nos, pois, a critica pelo viés da inércia e da falsa nocao de seguranca que traz insita a teoria do processo enquanto relacdo juridica. Foi Goldschmidt quem evidenciou o carater dinamico do processo ao transfor- mar a certeza propria do direito material na incerteza caracteristica da ativi- dade processual. Na sintese do autor, durante a paz, a relacdio de um Estado com seus territérios de suditos é estatica, constitui um império intangivel. Sem embargo, ensina Goldschmidt, quando a guerra estoura, tudo se encontra na ponta da espada; os direitos mais intangiveis se convertem em expectativas, possibilidades e obriga- ces, e todo direito pode se aniquilar como consequéncia de nao ter apro- veitado uma ocasiao ou descuidado de uma obrigacio; como, pelo contra- rio, a guerra pode proporcionar ao vencedor o desfrute de um direito que nio Ihe corresponde!°>. Ficamos apenas nessa introdugao, pois a Teoria de James Goldschmidt sera analisada com profundidade no préximo capitulo, quando trataremos da “natureza juridica do processo penal”. Essa rapida exposicao do pensamento de Goldschmidt serve para mostrar que 0 processo — assim como a guerra — esta envolto por uma nuvem de incerteza. A expectativa de uma sentenga favoravel ou a perspectiva de uma sentenca desfavoravel esta sempre pendente do aproveitamento das chances e da libe- taco de cargas. Em nenhum momento, tem-se a certeza de que a sentenga serd procedente. A acusacio e a defesa podem ser verdadeiras ou nao; uma testemunha pode ou nao dizer a verdade, assim como a decisao pode ser acertada ou nao (justa ou injusta), o que evidencia sobremaneira 0 risco no processo. O mundo do processo é o mundo da instabilidade, de modo que nao ha que se falar em juizos de seguranga, certeza e estabilidade quando se est tra- tando com 0 mundo da realidade, o qual possui riscos que Ihes s4o inerentes. E evidente que nao existe certeza (seguranca), nem mesmo apés 0 transito em julgado, pois a coisa julgada é uma construgao técnica do direito, que UNDAMENTOS DO PROCESS INTRODUGAO CRITICA (PO) nem sempre encontra abrigo na realidade, algo assim como a matematica, na visdo de Einstein1°°. E necessario destacar que o direito material é um mundo de entes irreais, vez que construido 4 semelhanga da matematica pura, en- quanto o mundo do processo, como anteriormente mencionado, identifica-se com o mundo das realidades (concretizacdo), pelo qual ha um enfrentamento da ordem judicial com a ordem legal. Por derradeiro, tanto no jogo (Calamandrei) como na guerra (Goldsch- midt), importam a estratégia e o bom manuseio das armas disponiveis. Mas, acima de tudo, sao atividades de alto risco, envoltos na nuvem de incerteza. Nao ha como prever com seguranca quem saira vitorioso. Assim, deve ser visto 0 processo, uma situagio juridica dinamica inserida na lgica do risco e do giuoco. Reina a incerteza até o final. A consciéncia dessa realidade proces- sual é fundamental para definirmos um sistema de garantias minimas e também demarcar o melhor possivel 0 espaco decisdrio. Importante compreender que a assun¢do da incerteza e da inseguranca diz respeito & dindmica do processo endo significa, em hipétese alguma, que estejamos avalizando 0 “decisionismo” 1°’, 1.7.4, Assumindo os riscos e lutando por um sistema de garantias minimas Em que pese o risco inerente ao jogo ou & guerra, em qualquer dos dois casos é necessério definir um sistema (ainda que minimo) de regras (limites). Diante desse cenario de risco total em que o processo penal se insere, mais do que nunca devemos lutar por um sistema de garantias minimas. Nao é querer resgatar a ilusdo de seguranca, mas sim assumir os riscos e definir uma pauta de garantias formais das quais néo podemos abrir mdo. £ partir da premissa de que a garantia esta na forma do instrumento juridico e que, no processo penal, adquire contornos de limitacdo ao poder punitivo estatal e emancipador do débil submetido ao processo. Nessa linha, pensamos que se deve maximizar a eficdcia das garantias do devido processo penal!®®: a) jurisdicionalidade: especialmente no que tange ao juiz natural e & impar- Cialidade; b) principio acusatério (ou dispositivo): fundando o sistema acusatério em conformidade com a Constituicao; ¢) presungdo de inocéncia: enquanto pré-ocupacdo de espacos mentais (do julgador) e, portanto, no viés de “dever de tratamento” e “regra de julga- mento”; 4) ampla defesa e contraditério: ainda que distintas, sio duas garantias que mantém intima relacdo e interacdo, necessitando ser maximizadas no processo penal; e) motivacdo das decisdes: especialmente no viés de legitimacao do poder jurisdicional exercido e instrumento de controle contra o “decisionismo” eoarbitrio. UNDAMENTOS DO PROCESS INTRODUGAO cRITICA (PC Nao se trata de mero apego incondicional a forma, sendo de considera-la uma garantia do cidadao e fator legitimante da pena ao final aplicada. Mas - é importante destacar - nao basta apenas definir as regras do jogo. Nao é qualquer regra que nos serve, pois, como sintetiza Jacinto Coutinho", devemos ir para além delas (regras do jogo), definindo contra quem se estd jo- gando e qual 0 contetido ético e axioldgico do proprio jogo. Nossa andlise situa-se nesse desvelar do contetido ético e axiolégico do jogo e de suas regras, indo muito além do mero (paleo)positivismo. Estamos com Bueno de Carvalho??® ao defender a positividade combativa, segundo a qual devemos lutar pela maxima eficacia dos direitos e das garantias fundamen- tais, fazendo com que tenham vida real. Como define o autor: Eo reconhecimento de que 0 direito positivado, por muitas vezes, resume conquistas democraticas (embora outras tantas vezes nao seja aplicado). E, em tal acontecendo, ha que se o fazer viger!1. Tampouco podemos confundir garantias com impunidade, como insistem alguns defensores do terrorismo penal, subvertendo 0 eixo do discurso. As garantias processuais defendidas aqui nio sao geradoras de impunidade, seno legitimantes do proprio poder punitivo, que, fora desses limites, é abu- sivo e perigoso. A discussao, como muito, pode situar-se no campo da relacao 6nus-bénus. Que preco estamos dispostos a pagar por uma “seguranca” que, como apon- tado, sempre sera mais simbdlica e sedante do que efetiva e que, obviamente, sempre tera uma grande margem de falha (auséncia de controle)? De que parcela da esfera de liberdade individual estamos dispostos a abrir mao em nome do controle estatal? E aceitavel que - em situacées extremas e observadas as garantias legais — tenhamos de nos sujeitar a uma interceptacdo telefénica judicialmente au- torizada, por exemplo. Contudo, sera que estamos dispostos a permitir que essas conversas sejam reproduzidas e exploradas pelos meios de comunica- fo? Em definitivo, é importante compreender que repressdo e garantias proces- Suais no se excluem, seno que coexistem. Radicalismos 4 parte, devemos incluir nessa tematica a nogao de simultaneidade, em que o sistema penal tenha poder persecutério-punitivo e, ao mesmo tempo, esteja limitado por uma esfera de garantias processuais (e individuais). Considerando que risco, violéncia e inseguranga sempre existiréio, é sem- pre melhor risco com garantias processuais do que risco com autoritarismo. Em ultima andlise, pensamos desde uma perspectiva de redugdo de danos, em que os principios constitucionais nao significam “protecao total” (até por- que a falta, ensina Lacan, é constitutiva e sempre 14 estara), sob pena de in- UNDAMENTOS DO PROCESSO PENAL - INTRODUGAO CRITICA (PORTUGUESE cidirmos na errénea crenga na seguranga (e sermos vitimas de nossa propria critica). Trata-se, assim, de reduzir os espacos autoritarios e diminuir o dano decorrente do exercicio (abusivo ou nao) do poder. Uma verdadeira politica processual de reducdo de danos, pois, repita-se, o dano, como a falta, sempre ldestard. Ademais, é preferivel um sistema que falhe em alguns casos por falta de controle (ou de limitacdo da esfera de liberdade individual) do que um Estado policialesco e prepotente, pois a falha existiré sempre. O problema é que, nesse Ultimo caso, 0 risco de inocentes pagarem pelo erro é infinitamente maior e este é um custo que nao podemos tolerar sem resistir. 1.8. A crise do processo penal: crise existencial; crise identitaria da jurisdicao; ea crise de (in)eficacia do regime de liberdade no processo penal O processo penal brasileiro vive hoje uma grave crise, especialmente pela ineficdcia da base principiolégica da Constituicéo e da Convencao Americana de Direitos Humanos. A premissa “goldschmidtiana” de que o processo penal éum termémetro dos elementos democraticos ou autoritarios da respectiva Constituicéio nao est sendo posta em pratica. O processo penal brasileiro de- veria se constitucionalizar e democratizar, abrindo-se para a esfera protetiva ali estabelecida, bem como se convencionalizando. Sem embargo, a pratica forense, fruto de uma forte cultura inquisitéria arraigada, opera em sentido inverso: comprime a esfera de protec&o constitucional e convencional para entrar na forma autoritaria do cédigo. Por conta disso, enfrentamos uma grave crise no processo penal, que pre- cisa ser analisada a partir de trés dimensées: 14 Crise existencial do processo penal 22 Crise identitdria da jurisdicao penal 38 Crise de (in)eficdcia do regime de liberdade no processo penal Somente a partir da compreensao desses trés pontos de estrangulamento é que poderemos buscar medidas de reducdo de danos que permitirao a evolu- ao do processo penal brasileiro e sua melhor conformagao constitucional e convencional. 1.8.1. A crise existencial do proceso penal: é (ainda) 0 processo 0 caminho necessario para chegar & pena? Como visto no inicio deste capitulo, o processo penal tem sua existéncia justificada a partir da compreensao do “principio da necessidade” ~ nullum crime sine iudicio, isto é, na impossibilidade de que se tenha a imposicao de uma pena sem prévio processo penal. Essa concep¢io de processo como caminho necessdrio para se chegar & pena é fundante da propria existéncia

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