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ELEGIAD, verdade: agora eu estou s6. Com mais um q éa i a 4 da. ri a madrugas . . ae on ficarfio palidas, os sinos dobrarao em tug ier, nado iluminard teys : uando o sol vier, homenagem; € | ae algumas horas e nossos conhecidos te levarig para o Campo. Estarao um pouco tristes, mas. nado Podem imaginar que imensa perda eu softi. Dirao entre si; “Tinha de ser. Um deles havia que ir primeiro...” E acha- rao que j4 sou muito idoso, que minha capacidade de sofrer se extinguiu e que ndo tardarei a seguir-te. Nao thes ocorrerd talvez, que € justamente por ser velho que tua ida é mais triste. Se fora mogo, minha satide afastaria a dor. Mas eu estou velho, E muito s6, abandonado — Souuma crianga aflita, querida. Meus filhos acham agora realhen os Sao eles; que devem governar-me. Fazem . . 0, ndo me permitem comer o que dese- amar, nee ae um modo de mostrar que me afeto. Hé uma cera = 5 grande Profundidade nesse curam Preservarsine, a a na maneira como eles pro- ambém os netog rein. eu fosse meio tonto. a » S10, nO me querem como eu ‘maginei como ingénuas criangas, aS Digitalizado com CamScanner ais €U levaria pela mao a maravilhosas viagens e para em inventaria historias que Ouviriam com prazer. Mas ase nunca eu os levo a passeio; e quando o faco, nao consigo unir-me a eles, que trocam segredos, conversam em lingua codificada, sorriem. (Suponho, mesmo, que snuitas vezes trocam de mim.) E se tento contarhes uma historia, nfo me levam a sério. Mas me recebem com alegria quando os visito, pedem a béngio ao vové e Jevam meu chapéu para guardar. Observo, contudo, que nao se sentem A vontade quando me beijam a mio e queo jabilo deles se prende muito mais aos brinquedos que hes levo. E eu os olho sorrindo, com amargura, e penso nos anos que nos distanciam e no afeto que eles mal supdem existir. Quanto aos amigos, tu sabes muito bem que nao mais 0S possuo. Uns morreram; outros acharam na ve- lhice um agrad4vel pretexto para se tornarem brigdes ou dementes; € 0 resto me aborrece pela insisténcia em me fazer acreditar ser bem mais velho que eles. S6 tu me restavas. Junto a ti eu podia ser eu mesmo, sem temor de parecer ridiculo. Eras tu quem tinha a chave da meu cardter e o dom de encantar-me. (Mesmo a tua zombaria era uma forma de afeicao.) E agora, um duro siléncio te envolve e imobiliza. Vejo tuas mios cruzadas, o lengol que te cobre, tuas feigdes tranqiiilas. Sei que logo mais eles te levario. Talvez, entao, eu te beije a fronte. Nao ignoro, porém, que me doi tua frieza de morta e é mais provavel que beije teus cabelos. Sim, beijarei teus cabelos — que eu vi, de abundantes e ne- gfos, rarearem e encanecerem. Beijarei teus cabelos, querida; eles ndo mudaram com a morte. Tua fronte ficou mais limpida, o nariz mais fino, as faces se enco- varam, a carne esta rigida e as palpebras nao as fechaste com a suavidade de sempre. Teu cabelo, porém, conti- 57 Digitalizado com CamScanner nua intato; quando sopra © ane ainda esvoaca, esta vivo, € 0 mesmo que penteavas pe A manha e Soltavas 4 noite, antes de dormir. E agora, se bem ndio Os houves. ses despenteado, tu dormes. E eu Me sinto pesarosg ¢ grave, como tantas vezes me senti junto a nossos filhos, quando eles estavam doentes ° sono lhes chegava Pela madrugada, apés uma noite inquieta e eu ficava junto 4 eles, sentado, olhando-os, até que tu vinhas e Punhas a mao em meu ombro e fazias com que me fosse deitar, Agora, eu nao conhecerei mais a dogura desse gesto, Talvez, daqui a pouco, venha alguém — um filho ou vizi- nho — que me induza a afastar-me de ti e deitar-me, Mas, quem quer que seja, vira com palavras. Tu, nao: vinhas com 0 teu siléncio, com a tua tranqiilidade, e fazias com que eu dormisse: Mas quando despertava, eras tu quem estava ao lado do enfermo. Isto, eles nao saberdo. E intimo demais, exige um nivel de compreen- sao mitua demasiado grande para ser revelado. Nao lhes contarei. Também nfo falarei a ninguém de certas coisas que guardo com imensa ternura e que, se contasse, me julga- tiam tonto. Nao direi da emogdo com que te vi, muitas vezes, fazer as mais corriqueiras tarefas, Durante anos, quase todos os dias cuidavas da casa. Eu te via, sem nada de especial. Mas vinha um dia em que eu te desco- bria a intimidade nesse trabalho. Via 0 cuidado com que afastavas a poeira, a preciso com que punhas 0s jarros em seus lugares, com que mudavas as toalhas, os panos; Lembro- _Lembro-me mesmo que um dia havias trabalhado . Eu fiquei lendo, e, quando o Digitalizado com CamScanner FS io, fechei as portas. Havia um siléncio ta vei sono V Rare F ae 40 gran- oveis brilhavam, nao havia P6 no ch mi aio: de! Os" is . 40; tudo em ordem, limpo, cuidado. Detive-me um instante a sala de aantar, COMO SC pressentisse avizinhar-se UM Mistério, Contemplei 0 jarro de flores, na mesa. Tu mesma as havias colhido pela manha. Senti tua Presenca diligente na limpeza, nas flores, o carinho que depositavas em tudo. E percebi que havia algo me envolvendo: cingia- me um principio de angtistia. Na cozinha, olhei para o } fogo: apagara-se. Durante o dia, estivera ativo, quente. Agora, estava morto. Era cinza. O que aconteceu em seguida, foi tao ridiculo e sutil, tao dificil de expressar, que nunca te contei. Eu chorei, querida. Penso que sofri uma decep¢ao obscura e sibita, uma espécie de dor ante a pouca duracao da vida; da nossa vida — nao sei; é i possivel também que houvesse sentido, ante a simplici- ‘ dade com que vivias, algo semelhante 4 pena que as vezes nos aflige ante um folguedo de crianga. Mas é difi- cil explicar. Talvez o que eu houvesse sentido, fosse o pressdgio disto: de que virias a morrer, que nosso fogo nao mais seria aceso pelas tuas mos e que nunca volta- tias a colher flores para 0 nosso jarro. Seria? Que me dizes? Oh! mas eu estou delirando. Fitava-te tdo intensa- mente, com tanta saudade, que ja te supunha viva. Se eles soubessem disto, também sorririam de mim. Na minha idade, j4 ndo se pode ter pensamentos estranhos nem fazer confissdes. Fica-se ridiculo, querida. E eu tenho que aproveitar estes tltimos momentos em que ainda estamos juntos. £ a ultima oportunidade de falar- te, mesmo sem abrir os labios, e contar as tolices que ndo contarei a ninguém. Quero te dizer, por exemplo, uma coisa esquisita, uma coisa que nao compreendo: os fatos culminantes de nossas vidas, aqueles Cee Poderiamos chegar a esquecer, perderam hoje esse Pr- 59 Digitalizado com CamScanner vilégio. Nosso casamento nao é m . lembranca conservada; como por mil; , ue vi, pouco antes da ceriménia, em teu traje de noiys” te bem me lembro como teus olhos brilhavam e come riso era alegre! E no momento em que fecharam a tey para teu primeiro parto, que eu nao tive Coragem « assistir? Antes, isso era um fato importante! Ho, ; no, est no mesmo nivel de um gesto teu ou de tey Sortig, Hoje ele é tio importante como a tua alegrig _ esse Testo de infancia que nunca Perdeste — 4 tua alegra quando eu te Presenteava com uma caixa de bombong ou uma fruta. As vezes, eu te trazia biscoitos, Tu os guar. davas e eu te censurava, porque me parecias avara, pois * importany, gre, de g invento qualidades que nao tinhas. E agora, querida, com quem repartirei estas memé- tias? Tu te vais e 0 Peso do passado é muito grande para que eu o suporte sozinho, As palavras — todos sabem E agora, que ia ndo existes, com quem poderei falar como teu pesar, por teres UM presente que eu te dera re . * Perguntava quando deixarias de Srlanga. Mais tarde, lembrava-me do episédio e me Digitalizado com CamScanner yr jisfarcadamente, com medo que me vissem e disses- ia, «olha o velho rindo sem motivo...” sem Mas eu nio devia estar me lembrando dessas coisas. Iver alguem tenha visto meu sorriso e julgara que nao Ta a tua falta. “Ele nao chorou — pensara. E agora, am Esti maluco; ou entao nem sentiu.” Decerto, minha 80 é violenta. £ cansada. Mas € tao vasta, to desa- jentada e profunda... Eu vou ficar tao sozinho, querida...” 61 Digitalizado com CamScanner

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