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Everton Luis ee ete O PERIGO VERDE O Principio da Sustentabilidade como Contraponto a Ecologia Radical Everton Luis Gurgel Soares Apresentacio de Fernando Alves Correia oS Ex-membro do Tribunal {OZ QO! 6d gO aS Constitucional Portugués mw" co" BOR eath eGo Ne ioc } we NeSe wv OPERIGO VERDE (¥ JHMIZUNO O PERIGO VERDE Ainda que sem descurar de seu indiscutivel dever — e também necessidade — de preservar 0 meio ambiente, a humanidade cumpre o protagonismo sobre a existéncia e sobre o valor da vida na Terra, ao revés do papel de vild que Ihe quer impingir a ecologia radical (ou profunda). Os perigos relacionados ao avanco de doutrinas ecoldgicas radicais e sua inerente ameaga a valores humanistas estao a exigir mais aten¢ao por parte dos autores nacionais. Aqui oleitor encontrar, portanto, tema ainda pouco desenvolvido no Pais, em que pese ja contar com significativa produgdo bibliografica no exterior. A escassez de andlises sobre o assunto pode ser creditada, em parte, ao fato de se tratar de tema um tanto drido; afinal, no é facil se insurgir contra ideias que professem amor anatureza, mesmo que esse amor venha acompanhado de uma nada disfarcada averséo 4 humanidade, como no episédio em que Dave Foreman —fundador do grupo ecologista Earth First e coautor de “Ecologia Profunda” —afirma que o Ocidente, em vez de ter prestado auxilio aos famintos da Etidpia, deveria té-los abandonado & morte, deixando que “a natureza busque seu préprio equilibrio” (vejano capitulo 4). Na visdo do autor, a expansao de movimentos ecoldgicos radicais e anti-humanistas. forja, em reagao, uma nova estrutura para o principio da sustentabilidade, a ser composto pelas dimensées natural (ou ecolégica) e metanatural (ou humana), no lugar da classica figura das vertentes ambiental, social e econdmica. Assim, ao assumir o papel de harmonizar valores que, de um lado, sejam imanentes a natureza (dimens3o ecoldgica) e, de outro, correspondam as caracteristicas que apartam 0 homem do mundo natural (dimenséo humana), 0 principio da sustentabilidade adota, entre outras, a funcdo de fiador da consideragdo dos elementos culturais na elaboracao de politicas publicas ambientais. £ esse o fio condutor do livro, que passeia por temas como o da ecologia antidemocratica, do direito dos animais, do ecocentrismo, do ecofascismo, da misantropia atrelada a ecologia, da falacia naturalist, do respeito pela natureza como um imperativo categérico kantiano, da incompatibilidade da ecologia radical com 0 mecanismo de compensagées entre as dimensées da sustentabilidade, da oposicdo da ecologia profunda ao mero ambientalismo ou reformismo ecoldgico, do “retorno a natureza” como perda da liberdade, dos fundamentos comuns entre ecologia radical e doutrinas totalitarias, da ameaga aos direitos fundamentais por parte da ecologia profunda, entre outros. 978-85-7789-216-1 PT tT Everton Luis Gurgel Soares Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceara, mestre em Direito do Ambiente ¢ do Urbanismo pela Universidade de Coimbra, advogado, procurador efetivo do municipio de Fortaleza, com a experiéncia da atuacao por mais de dez anos na Procuradoria de Urbanismo e Meio Ambiente e da participagao em cursos de extensao no Brasil e no mundo, como em Etica Ambiental, na Universidade de Oxford, e em Estudos Metropolitanos, na Universidade Humboldt de Berlim. O PERIGO VERDE O Principio da Sustentabilidade como Contraponto a Ecologia Radical JHMIZUNO EDITORA DISTRIBUIDORA Sumario INTRODUGAO... CAPITULO 1 Desenvolvimento Sustentavel: Um Conceito Vago (Indetermi- nagao e Eficacia) CAPITULO 2 Sustentabilidade como Contraponto 4 Ecologia Radical ou Profunda. 2.1. Aresponsabilidade intergeracional volta-se para os homens.. 2.2. "Desenvolver-se” é proprio da humanidade 2.3. Um novo papel para o principio do desenvolvimento susten- tavel: contraponto a ecologia radical CAPITULO 3 As Dimensées Natural e Metanatural da Sustentabilidade.. 3.1. A dimensao econé mica compée a vertente metanatural da sustentabilidade 3.2. 0 equilibrio entre as dimensées: auséncia de eseomha aprioristica. CAPITULO 4 Ecologia Radical: 0 Contraponto da Sustentabilidade.. 4.1. Uma nova moral? 4.2. Holismo e ecologia radical 4.3. Uma moral na natureza: totalitarism 4.4, A natureza cruel 4.5. A falacia naturalista 4.6. De volta ao misticismo... 13 21 oi 33 36 40 43, 48 54 59 65 72 78 85 87 91 CAPITULO 5 “O Homem 6, por Exceléncia, um ser Antinatura’ 5.1. A liberdade como caracter‘stica distintiva da humanidade.... 5.2. Universalismo kantiano e o respeito pela natureza como um imperativo categéric 5.3. A segunda natureza, por Bookchin, e a neutralidade social da ecologia profunda 5.4. Homens, animais e direitos. CAPITULO 6 Ecofascismo e Ecologia Nazista. CAPITULO 7 Nota Conclusiva CAPITULO 8 Excertos-Chave. 1.A forga do termo Sustentabilidade, uma “marca” estabelecida..... II. Aspectos positivos da indeterminagao do conceito de sustenta- bilidade. III. A incompatibilidade da ecologia radical ou profunda com 0 mecanismo de compensagées entre as dimensdes da susten- tabilidade. IV. 0 avanco das doutrinas ecoldgicas radicais leva a uma reagao da ordem jurfdica, que desloca o princfpio da sustentabi- lidade, dentro do quadro normativo, para uma posi¢ao de contraponto a ecologia profunda... V. As dimensées natural e metanatural da sustentabilidade. VI. A economia compée a vertente metanatural (ou humana) da sustentabilidade. VII. Desenvolver-se é proprio da humanidade.. VIII.A sustentabilidade nao demanda uma escolha aprioristica entre as vertentes ecoldgica e humana IX. 0 equilfbrio entre as vertentes se verifica somente até que 0 principio seja manejado para a solugao de um caso concreto... X. Aecologia profunda ou radical.. 95 96 102 105 111 ae2 133 137 Ta7 137 138 139 140 141 142 142 143 143 XI. Radicalismo ecol6gico: o louvor ao que é natural descortina-se concomitantemente a repulsa & humanidad XII. Oposigao ao ambientalismo ou reformismo ecolégico. XIII. Incompatibilidade do holismo ecoldgico com o principio da sustentabilidade. XIV. A falacia naturalista. XV. Neomisticismo e vontade ambiental minoritari: XVI. Liberdade, 0 coragao da vertente metanatural da sustenta- bilidade.. XVII. 0 retorno a natureza, pugnado pela ecologia radical, é a nao liberdad XVIIL 0 respeito pela natureza constitui um imperativo cate- gérico kantiano... XIX. A segunda natureza, por Bookchin XX. A neutralidade social da ecologia radical a torna palatavel para as esferas de poder XXI. O principio da sustentabilidade nao se coaduna com o igualitarismo entre as espécie: XXII. Animais nao sao sujeitos de direito. XXIIL Econazismo e pioneirismo ecolégico do regime nazista... XXIV. Fundamentos comuns entre ecologia radical e doutrinas totalitarias XXV. Da ameaca aos direitos fundamentais... REFERENCIAS. 144 144 145 145 146 146 147 148 148 149 149 149 150 151 152 153 Introduc¢ao A Terra esta em perigo. Ou seria a humanidade? Quiga ambas. Mas ha uma difereng¢a essencial entre uma e outra: a Terra nao deixara de girar, nao deixara tao cedo de ser Terra, apesar do homem, apesar de qualquer outro pesar. Estamos no ano dois mil e quinze. Foram dois mil e quinze giros ao redor da maior estrela a vista e, antes disso, tantas outras translagées foram necessarias até que o homem passasse a figurar na face deste planeta. E de quantas mais a humanidade podera gozar? A Terra nao esta em perigo. Talvez como a conhecemos, sim. Mas nao a conhecemos ha muito. A existéncia da humanidade compreende uma diminuta fracdo do tempo de existéncia do planeta. Tanto é assim que, num exercicio de abstragao, se atribuissemos ao universo a idade de um ano, a Terra teria se formado apenas em 14 de setembro; em 30 de dezembro apareceriam os primeiros mamiferos; e s6 as 22 horas do dia 31 de dezembro, os homens. E diversas mudangcas a Terra ja experimentou, sem e com os homens: do calor infernal que fazia lama das rochas ao intermitente frio glacial. Noventa e nove por cento de todas as espécies que ja habitaram um dia este planeta estado extintas. Delas o homem nao conheceu a maior parte, nao tendo con- tribuido, portanto, para sua extincgdo. Entao, tema-se pelo 14 O PERIGO VERDE fado da humanidade, pois a Terra lhe sobrevivera, ainda que impactada por esse ser que apareceu na ponta da evolucdo da vida. Mesmo com alguns sacos plasticos em suas entranhas, lembrangas daquela fugaz espécie de triste fortuna (a humanidade), a Terra sobrevivera ao homem, pelo menos até que o sol deixe de irradiar sua energia daqui a alguns bilhdes de anos. Se a tecnologia nao nos matar a todos até 14, quem sabe nao serado os homens, e sua tecnologia, chamados a salvar a Terra do destino que lhe reservou 0 universo? “Chamem os homens para reacender o sol!”, quem sabe? De vildes a herdis, um grand finale! Mas nao creio. 0 homem, digo o animal-homem e nao os vigorosos elementos culturais que o distinguem da natureza, é mais fragil ou mais insignificante do que se costuma pensar. Antes da oportunidade de nos tornarmos her6is, nossa existéncia ja se tera esvaido, num dia em que o universo nao mandara flores, pois nem percebera. Tudo isso para dizer que o lugar do homem nao é no banco dos réus da hist6ria universal. O homem pode errar aqui e ali. Por sinal, é-Ihe proprio o erro. Porém, numa perspectiva espago-tempo dilargada, seus erros nao alte- rarao substancialmente o curso das coisas. Nesse cenario em que se descortina a pequenez do homem, sobra espaco até para incentivar um certo grau de antropocentrismo, para enaltecer, o maximo possivel e enquanto ha tempo, nossa breve existéncia. Por outro lado, nao ha como negar a forca persuasiva e cativante de argumentos que relacionam proposi¢6es antropocéntricas com o sentimento de egoismo, com uma EVERTON LUIS GURGEL SOARES 15 sindrome de superioridade ou um destrutivo impulso dominador do homem. Farpas sobram até para produtos culturais como as religides, cujo antropocentrismo, inerente a muitas delas, é considerado responsavel por legitimar a degradagao do ambiente’. Trata-se de um discurso falho, mas, ao mesmo tempo, facil: combater todos os produtos fruto do engenho, da cultura e da razdo humana. Facil porque é imanente ao homem, e, por conseguinte, ao produto de suas ages, 0 erro. O mundo natural nao erra; o homem, sim (a religiao, so para citar o exemplo ja dado, porque é um produto cul- tural, reveste-se de erros), mas nao por isso ha de se sub- trair do homem seu direito de errar, o que, bem entendido, equivaleria a subtrair-lhe a humanidade. Ja a extingado desta (da humanidade), a reboque do fim da espécie humana, legaria ao universo o vazio de uma auséncia infinita. Ao falar em “humanidade” nao me refiro ao coletivo do animal-homem, mas Aas caracteristicas que lhe permitem ultrapassar os condicionamentos do meio natural, de sua programacao bioldgica, de seus instintos. Mas nao sé. Permitem-lhe também superar as condicio- nantes fruto de sua prépria produg¢ao cultural, nao obs- tante a mesma liberdade que lhe permite transcender essas condicionantes seja a caracteristica que torna possivel tal produgao cultural. Assim, o homem pode sobrepor-se também as praticas consuetudinarias de seus ancestrais, as tradi¢des arraigadas em sua comunidade, as suas origens 1 Sobre o papel do antropocentrismo religioso na crise ambiental, conferir 0 emblemitico ensaio de Lynn White Jr. intitulado The historical roots of our ecologic crisis na Revista Science, v. 155, n. 3767, edicdo de marco de 1967, p. 1203-1207. 16 O PERIGO VERDE nacionais. E tudo isso sé é possivel por forca da liberdade, que é, como se vera mais adiante, a principal caracteristica diferenciadora da humanidade. A extin¢do da espécie humana, se se quiser referir a essa como mais uma espécie animal, nao significaria uma perda maior do que a de cada uma das cento e cinquenta que se extinguem todos os dias. Ja 0 fim da liberdade e de tudo o que é préprio do homem, diferentemente, represen- taria a insuperavel perda de uma riqueza sem paralelo. Oretorno a natureza, uma ética a ser extraida do ecos- sistema e o conceito de localismo numa versdo extremada, tal como conclamados pelo movimento ecoldgico radical, significam nao sé a negacdo dessa liberdade, mas também a negacao da universalizacao do espirito humano, que re- monta a filosofia kantiana, com a sua concep¢ao do homem como legislador universal e com a ideia de uma moral valida incondicionalmente para todos os seres racionais. E por isso que, conforme Francois Ost, é propria do homem: A faculdade inaudita de se distanciar em relacao aquilo que se é, Aquilo que se faz ou aquilo que se diz; a faculda- de de se transportar para outro lado, de se projetar num espaco-tempo diferente, de recusar a sua condi¢ao. Esta faculdade tem um nome: é o dom da universalizagao. Distanciando-se em relacao as determinagées do hic et nunc, o homem é capaz de se universalizar: de se colocar no lugar do outro, nao importa qual.” 2 OST, Francois. A Natureza & Margem da Lei: ecologia & prova do direito. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 248. EVERTON LUIS GURGEL SOARES 17 Na mesma linha é a ligdo de Luc Ferry, que, de resto, relaciona a caracteristica da universalizag¢ao com 0 senso de altruismo: A existéncia ética mais fundamental entre os modernos, a do altruismo, é, no seu préprio principio, antinatural, uma vez que implica uma forma de desinteresse. Pressu- poe, com efeito, uma “boa vontade” e exprime-se, inevita- velmente, sob a forma de um imperativo. Mas é também a referéncia a universalidade, incompreensivel fora dos limites desta nova antropologia filosdéfica, que se torna necessaria [...] E por se mostrar capaz de se distanciar do ciclo da sua vida biolégica, mas também da sua lingua, da sua nagao, da sua cultura particulares, que ele pode entrar em comunica¢ao com outrem. A sua capacidade para 0 universal é fungao direta desse afastamento.> A vista disso tudo, coloca-se a questao: faz algum sentido adotar politicas ecolégicas com o pretensioso objetivo de salvar a Terra dos atos humanos danosos se tais politicas exigirem a mitigacdo da liberdade? Na tra- jetoria do universo, que se inicia com a grande explosao e segue com sua fase de expansao, a liberdade do homem pode ser vista como um brevissimo lampejo, mas que reluz forte como um clarao a partir daquele pequeno ponto azul, o planeta Terra. Na breve jornada da existéncia humana, mais vale aos homens velar pela liberdade, propulsora da producao cultural, que Ihes permite transcender a natureza e, vale dizer, os proprios condicionamentos culturais. Defini- tivamente, descabe-lhes concorrer para o desvanecimento desse lampejo, ainda que sob o pretexto de resguardar 0 ecossistema. Se para valorizar 0 que o homem possui de 3. FERRY, Luc. A Nova ordem Ecoldgica. Porto: Edigées Asa, 1993, p. 51. 18 O PERIGO VERDE peculiar em sua esséncia é pressuposto abracar o antropo- centrismo’, é nossa obriga¢ao fazé-lo entao. Desse modo, com alicerce em tais ideias, pugno por uma nova conformagao do principio da sustentabilidade, aveicular duas dimensées: a natural (ou ecoldgica) e a metanatural (ou humana). Esta ultima a envolver tudo o que é préprio do homem (ou, se se quiser colocar em uma s6 palavra, sua liberdade) e que lhe permite ultrapassar os condicionamentos bioldgicos e do meio natural em que se insira, mas também a cultura de seu povo, os condicio- namentos sociais, as tradi¢des. Nao é que o homem nao sofra influéncia desse estado de coisas. Todos esses fato- res agem sobre seu espirito, moldando-o. Mas, e isso é 0 que importa, nao o limitam. Repise-se: o homem nao deixa de ser ele e mais suas circunstancias, como quer Ortega y Gasset, contudo, ainda que apenas potencialmente, sempre lhe resta algo de liberdade para conferir-lhe a aptidao de ultrapassar tais condicionamentos. 4 Vale dizer que a pertinéncia de certo grau de antropocentrismo nao é refutada sequer por Klaus Bosselmann, um dos que defende ferrenhamente a priori- zacao da dimensao ecoldgica em face das demais dimensées da sustentabili- dade. Veja: “Sugere-se que um certo grau de antropocentrismo é necessario protegdo ambiental. Nao no sentido de a humanidade ser o centro da biosfera, mas porque a humanidade ¢ a tinica espécie, pelo menos que nés saibamos, que tem consciéncia necessaria para reconhecer e respeitar a moralidade dos direitos porque os seres humanos sao, eles mesmos, parte integrante da na- tureza. Em suma, os interesses e os deveres da humanidade sao inseparaveis da protec¢ao ambiental.” (BOSSELMANN, Klaus. Direitos Humanos, Ambiente e Sustentabilidade. Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento, do Urbanismo e do Ambiente - CEDOUA, n. 21, 2008a, p. 24). Particularmente sobre antropocentrismo e sustentabilidade, note que a Declaracao do Rio so- bre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, j4 em seu principio n. 1, consigna: “Os seres humanos constituem o centro das preocupacdes relacionadas com o desenvolvimento sustentavel. Tém direito a uma vida saudavel e produtiva, em harmonia com a natureza.” (ORGANIZACAO DAS NAGOES UNIDAS. Declaragao do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1992). EVERTON LUIS GURGEL SOARES 19 Assim, sob essa nova perspectiva, ao se langar mao do principio da sustentabilidade, ha que sempre se convocar a baila o que é proprio do homem, dado o contrabalance- amento de valores insito ao preceito (equilfbrio entre as dimensées ecolégica e humana). O principio da sustenta- bilidade é, nesse cenario, uma garantia de que tudo o que é proprio do homem - como a liberdade, a razao ea cultura - seja tomado em considera¢ao ao se encetarem, por exemplo, politicas publicas ambientais. O principio da sustentabilidade funciona, entao, como um limite as politicas ambientais® que tendam a relegar os valores humanos a segundo plano. Um limite especialmente as investidas misantr6picas da ecologia profunda ou radical. Nao obstante, como deixarei claro a frente, o principio da sustentabilidade nao impée uma escolha aprioristica entre suas dimensdées natural e metanatural. Ambas tém sua importancia reconhecida pelo principio. O que nao poderia ser diferente, j4 que formam suas dimensées ou vertentes. O principio exige, na verdade, que ambas as ver- tentes sejam levadas em consideracao e, com isso, impede o avanco de algumas proposi¢6es da ecologia profunda que resultariam no aniquilamento do que é proprio do homem, ou mesmo do préprio homem. Dessa forma, a norma evita que cedamos passo, por exemplo, aos preceitos que emba- sam as seguintes manifestacdes de ecologistas radicais: “preferiria matar um homem aatirar numa cobra’; “a pior coisa que poderiamos fazer na Etiépia é fornecer ajuda; a 5 Alocugio “politicas ambientais” foi aqui adotada num sentido bastante am- plo, englobando agées nao sé do Poder Piiblico no exercicio de sua fun¢ao executiva, como também as diretivas, preceitos e conjuntos de regras rela- cionados & interpretacio de normas ambientais, & producio legislativa e as agdes da sociedade organizada. 20 O PERIGO VERDE melhor, deixar a natureza buscar seu proprio equilibrio, deixando as pessoas de la passar fome’”; “se a epidemia de AIDS nao existisse, ecologistas radicais teriam de inventa-la”; “a humanidade tornou-se algo como uma praga de gafanho- tos no planeta”; “uma mortalidade humana macica seria uma coisa boa” (ver capitulo 4). Devo dizer, por fim, que o viés antropocéntrico da tese aqui defendida e 0 enfoque dado aos riscos a que a ecologia radical pode sujeitar o humanismo nao implicam que este autor desconsidere a importancia de se alterar a atual relagao do homem com 0 ecossistema. A humanidade éa protagonista 6bvia em problematicas como a da bio- diversidade, preservac¢ao ambiental e producao de residuos. Muito lhe compete fazer, ou deixar de fazer, para que sejam atingidos equilibrios razodveis em cada um desses campos, nao sé para proporcionar qualidade de vida, mas também para garantir as condi¢ées mesmas de sobrevivéncia para sie para os demais componentes da comunidade bioldgica. Entretanto, a despeito de sua crucial importancia, tais temas cedem passo nesta obra a outro igualmente relevante: a ameaga aos valores humanistas por parte de doutrinas ecoldgicas radicais. EVERTON LUIS GURGEL SOARES 61 (visdo holistica) ou em seus elementos individualizados; retorno a um estado natural de simbiose com a natureza que importaria, pelo menos como um modelo utépico, no regresso ao modo de vida rustico ou selvagem; ruptura filosdfica e politica com os preceitos do humanismo, por- quanto este seria responsavel pela fundamentag¢ao tedrica do dominio do homem sobre a natureza. Outro ponto de contato entre as escolas da ecologia profunda é o viés anti-humano, que reconhece, no homem e em tudo o que o distingue do natural, o mal que assolaa existéncia. Por isso a ecologia profunda assume um recorte claramente misantr6pico. O louvor ao que é natural descor- tina-se concomitantemente a repulsa a humanidade. A heuristica do medo promovida por alguns ecolo- gistas radicais suscita nado apenas o temor das catastrofes ambientais, mas tendo em vista suas declaragées de ddio aos homens, o temor deles préprios - dos ecologistas radicais - e do que pode emanar de sua doutrina. Sao muitos os exemplos de manifestagdes da ecologia radical que seguem essa trilha. Algumas vezes 0 ddio ao humano é expresso com uma evidéncia desconcertante; em outras dissimula-se em meio a exaltacado a eugenia, que nado é menos do que a mesma misantropia, mas vertida contra uma parcela nao eleita da humanidade. Alista é longa, mas merece transcri¢ao: Edward Abbey, autor de um dos livros inspiradores do grupo ambienta- lista Earth First, diz sem rodeios que “preferiria matar um 62 O PERIGO VERDE homem aatirar numa cobra”*!; David Ehrenfeld faz lembrar que o virus da variola é uma “espécie em extingao””, um recado que mais diz respeito ao homem do que ao agente infeccioso; Dave Foreman, um dos expoentes da ecologia radical, fundador do grupo ecologista Earth First e, junta- mente com George Sessions, autor do ja classico Ecologia Profunda, asseverou a revista Australiana Simply Living que “quando digo as pessoas que a pior coisa que poderi- amos fazer na Etidpia é fornecer ajuda - e a melhor, apenas deixar a natureza buscar seu préprio equilibrio, deixando as pessoas de 1a passar fome - acham isso monstruoso”** (Pelo menos ha algum alento na sentenga de Foreman, por deixar-nos saber que ainda ha quem a considera mons- truosa). Nao bastasse isso, o mesmo Foreman, tentando emendar sua declara¢do, disse tempos depois (numa emenda que saiu pior que o original, diga-se) que de nada adiantaria um auxilio humanitario de ultima hora aos etiopes se isso significasse a manutengao da vida de “pessoas permanentemente incapacitadas ou deficientes”. Pelo con- trario, a ajuda “redundaria em ainda mais pressdo sobre 41. Aassertiva de Edward Abbey foi citada por DESJARDINS, op cit, p. 219, e consta também na obra denominada “Desert Solitaire: a season in the wilderness’. 42 Transcrito em BOOKCHIN, Murray. Social Ecology versus Deep Ecology: a challenge for the ecology movement. Anarchy Archives, 1987. Disponivel em: . Acesso em: 20 ago. 2014. Aassertiva de Dave Foreman, originalmente publicada na revista Australiana Simply Living, foi citada por DESJARDINS, op. cit, por BOOKCHIN em Social Ecology {...], p. 6, € por BOOKCHIN e FOREMAN em Defending the Earth: a dialogue between Murray Bookchin and Dave Foreman, Montreal/Nova York: Black Rose Books, 1999, p. 102. Disponivel em: . Acesso em: 20 ago. 2014. 4 EVERTON LUIS GURGEL SOARES 63 o ambiente”; Christopher Manes, no artigo Populagdo e AIDS, escreve que a epidemia de AIDS é “uma solu¢ao necessaria” para o problema populacional e, parafraseando Voltaire, diz que “se a epidemia de AIDS nAo existisse, ecologistas radicais teriam de inventa-la’**; Paul Taylor, o celebrado autor de Respect for Nature, afirma, em outra obra, que o ultimo homem, mulher ou crianga poderiam desaparecer da face da Terra sem qualquer consequéncia significativa para o bem dos animais e plantas selvagens [..] Nossa presenca, em suma, nao é necessaria. Se fossemos perscrutar o ponto de vista da comunidade natural e dar voz ao seu verdadeiro interesse, a extincdo dos homens seria recebida com um caloroso “boa partida!”**; Gary Snyder, vencedor do prémio Pulitzer, cujo epiteto é nada menos que “o aclamado poeta da ecologia profunda’, diz que a “humanidade tornou-se algo como uma praga de gafanhotos no planeta’; um grupo ecologista denominado Gaia apareceu na televisdo francesa a dizer que a terra-Gaia tem a faculdade de eliminar os elementos que lhe sao mais prejudiciais, assim como um organismo rejeita uma subs- tancia que o envenena. Nao seria mau de todo se a terra se desembaracasse da espécie mais nociva que a habita: a humanidade*; Willian Aiken, em um texto veiculado em prestigiosa publicagado organizada por Tom Reagan - tam- bém um nome prestigioso da ecologia radical -, diz que 44 BOOKCHIN; FOREMAN, op. cit., p. 114. 45 BOOKCHIN; FOREMAN, op. cit., p. 17. 46 TAYLOR, Paul W. The ethics of respect for nature. Environmental Ethics, v. 3, p. 197-218, 1981, Disponivel em: . Acesso em: 20 ago. 2014. 47 DEVALL, Bill; SESSIONS, George. Deep Ecology: living as if nature mattered. Salt Lake City: Peregrine Smith, 1985, p. 171. 48 OST, op.cit., p.197. 64 O PERIGO VERDE responderia afirmativamente, uma vez questionado sobre e “uma mortalidade humana maci¢a seria uma coisa boa” e, o que é pior, se “seria nosso dever provoca-la”. Para Aiken, o eco-holismo implica o dever de “eliminarmos 90% dos nossos efetivos’*’; Garret Hardin, com sua ética do bote salva-vidas, referindo como exemplo a superpopu- losa India, entende que “a cada vida de um indiano salva mediante a assisténcia médica ou nutricional do exterior, diminui-se a qualidade de vida para aqueles que perma- necem, e para as gerac¢des subsequentes’™; Paul Ehrlich, partidario do crescimento populacional zero, pugnava pela criagao de uma agéncia governamental para controle populacional “com base numa triagem ética” que serviria para estabelecer “a concessdo ou a recusa de auxilio” aos assim chamados paises subdesenvolvidos™; ainda sobre controle populacional, Luc Ferry, em comentario acerca de dois importantes nomes da ecologia profunda, lembra que “se chega ao ponto de sustentar que o numero ideal de seres humanos, face as necessidades dos seres nao humanos, seria de 500 milhGes (James Lovelock), ou mesmo de 100 milhées (Arne Naess)”. Ferry roga para que lhe seja explicado, concretamente, “como se pensa atingir tao filan- trépico objetivo”2. E a heuristica do medo em seu estado natural. (Sobre o tema “populacdo mundial”, é também um 49 AIKEN, Willian. Ethical issues in agriculture. In: REGAN, Tom (Ed.). Earth- bound: new introductory essays in environmental ethics. Nova York: Random House, 1984, p. 269. Citado também em FERRY, op. cit., p. 122. 50 HARDIN, Garrett. Lifeboat ethics: the case against helping the poor. Revista Psychology Today, setembro de 1974. Disponivel em: . Acesso em: 20 ago. 2014. 51 BOOKCHIN, op. cit, p. 21. 52 FERRY, op. cit., p. 122. EVERTON LUIS GURGEL SOARES 65 sinal dos tempos o enredo de Inferno, ultimo livro de Dan Brown, o mesmo autor de O Cédigo Da Vinci. No final daquela ficcdo de aventura, a propagacao de um virus que deixara infértil um ter¢o da populagdo mundial encerra a trama como se significasse um final um tanto feliz.) Nao é nada bom constatar que declaragées como essas nao partem de pessoas ou grupos irrelevantes dentro do movimento ecologista profundo. Ainda pior é concluir que tais posicionamentos sao, de uma maneira ou de outra, resultados légicos dos fundamentos doutrinarios da eco- logia radical. 4.1 Uma nova moral? Aecologia radical ou profunda contrapée-se ao ambien- talismo ou ao reformismo ambiental, entre outras razGes, por negar que a soluc¢do para os problemas ecoldégicos envolva a mera reforma ou mudanga pontual das instituigdes sociais, politicas e econémicas. A ecologia profunda quer ir além e propor uma mudanga basilar de paradigmas que desga as raizes da ética e da estrutura social. Para a ecologia radical, a crise ecolégica é consequéncia de uma crise ético-filosofica. A origem dos males ambientais resultaria entaéo do fato de a sociedade moderna estar erigida sobre alguns “malfadados” alicerces, tais como: a légica cartesiana de uma natureza-objeto; fundamentos utilitaristas; ideias humanistas, que arrebatam 0 homem da natureza, por pretendé-lo diferente do que esta ao seu Capitulo 8 Excertos-Chave (Compilacao extraida do corpo do livro) I. A forga do termo Sustentabilidade, uma “marca” estabelecida O conceito de sustentabilidade, apesar da miriade de sentidos que carrega (o que implica certo grau de impre- ciséo), desempenha importantissimo papel, quando menos, pela forca persuasiva inerente a um conceito que ja vem de se arraigar generalizadamente no senso comum. Con- forme assinala a Unido Internacional para a Conservagao da Natureza (IUCN), “a sustentabilidade é uma ‘marca’ esta- belecida, que goza de amplo reconhecimento e consegue expressar valores essenciais para um grande ptblico”. Il. Aspectos positivos da indeterminagao do conceito de sustentabilidade A indefini¢gao sobre 0 conceito de sustentabilidade nado vem a ser necessariamente ma. Um conceito juridico indeterminado, como é 0 caso, possibilita a ampliagao do rol de sujeitos responsaveis por definir 0 contetido da norma - seja um governo, os 6rgaos judiciarios oua 138 O PERIGO VERDE propria sociedade - e também do campo temporal de defini- ¢ao desse contetido, conferindo uma perspectiva diacréni- ca a construgao do principio, que se pode renovar a luz das novas conjunturas. Ill. A incompatibilidade da ecologia radical ou profunda com o mecanismo de compensa¢ées entre as dimensées da sustentabilidade A ecologia radical nao compactua minimamente com um mecanismo de ponderag¢ao entre as dimensées que compéem o principio da sustentabilidade. Colocar, num prato de uma balan¢a, o homem ou 0 que é proprio dele, e, no outro, a natureza - uma imagem, portanto, ilustrativa da sustentabilidade - significaria adotar a premissa de que o homem compée uma valéncia propria a ser tomada em considerac¢do no mecanismo de pesos e contrapesos do desenvolvimento sustentavel. Tal se oporia a conceitos basilares da ecologia profunda, como oigualitarismo das espécies, o holismo e o ecocentrismo. Tanto mais porque importaria em riscos de hierarqui- zac¢ao de interesses em favor da humanidade. Para Arne Naess, um dos pontifices da ecologia profunda, a susten- tabilidade, tal como exposta no Relatério Brundtland, se- ria demasiadamente permissiva, pois, naqueles termos, a acao do homem encontraria limitagao apenas na satisfa- cdo das suas necessidades, quer fossem da gera¢ao pre- sente, quer fossem da geracdo futura. EVERTON LUIS GURGEL SOARES 139 IV. O avango das doutrinas ecoldgicas radicais leva a uma reagao da ordem juridica, que desloca o principio da sustentabilidade, dentro do quadro normativo, para uma posi¢ado de contraponto a ecologia profunda O principio da sustentabilidade coloca-se em con- traponto a ecologia radical ou profunda. Num cenario de avanco de doutrinas anti-humanistas, 0 mesmo contetido de antes preordena-se hoje a garantir, ao homem ea tudo o que o distingue da natureza, lugar de destaque no exercicio de ponderacées de valores das politicas ambientais. Nao se trata de estabelecer uma configura¢gao absolutamente nova ao principio, a ponto de negar seu contetido histéri- co. Na verdade, a nova complei¢do que se quer para a sus- tentabilidade nao destoa daquela ja prevista no Relatério Brundtland. Ocorre apenas que, com o avan¢o da ecologia profunda e de suas teses anti-humanas, o principio da sus- tentabilidade passa a submeter-se a novos parametros in- terpretativos. Parametros esses modelados pelos desafios impostos pelo radicalismo ecoldégico. Pode-se assim dizer que os preceitos e os fatos originados da ecologia radical produzem vetores de valor que, agindo sobre o principio da sustentabilidade, liberam, em reacdo, outros vetores, que conformam a morfologia atual do principio, com um dos nuicleos na dimensao humana e 0 outro na dimensao ecoldégica. Assim, 0 aprimoramento da dimensdo humana da sustentabilidade passa a significar o aperfeicoamento dos mecanismos que distinguem o homem da natureza, como a racionalidade, liberdade, universalidade, suas leis 140 O PERIGO VERDE morais, os valores insculpidos nas diversas declaragées de direitos fundamentais etc. Os efeitos, mais ou menos concretos, que podem advir da assunc4o do principio da sustentabilidade como um preceito normativo valido sao postos a servic¢o de um fim, que vem a ser a garantia de consideracao do homem e dos valores que lhe sao ine- rentes dentro da discussao sobre os rumos das politicas ambientais. O principio da sustentabilidade, na concep¢ao aqui defendida, passa a desafiar o paradigma erigido pela ecologia radical, e, com isso, tem sua importancia renova- da dentro do quadro de normas ambientais. Nao houve mudanga essencial nesse incessante processo histérico de construcao do contetido do principio. A mudanga diz res- peito, na verdade, aos fins a que se destina aquele mesmo contetido. V. As dimensées natural e metanatural da susten- tabilidade O equilfbrio a ser perseguido nao se coloca em termos de dimensao ambiental, econémica e social, mas do equi- librio entre o que é natural e o que é objeto da cultura humana, entre o que é fruto das leis da natureza e 0 que é préprio da humanidade, entre o que é consequéncia natural de uma a¢ao e reagao do sistema ecoldgico e o que é produzido pela razdo e liberdade. Em suma, entre as dimensées natural (ou ecolégica) e metanatural (ou humana) da sustentabilidade. De um lado, posiciona-se a natureza, do outro, o homem e tudo o que por ele é concebido no exercicio de sua humanidade. Luc Ferry teria preferido o EVERTON LUIS GURGEL SOARES 141 termo antinatural, ja que, em suas palavras, “o homem é, por exceléncia, o ser antinatura’, pois é por af que ele “escapa aos ciclos naturais, que acede a cultura, e até a esfera da moralidade que sup6e um ser-pela-lei e nado sé pela-natu- reza’. Em todo caso, preferi langar mao do afixo “meta” para fugir 4a imagem de uma humanidade em franca oposig¢ao a natureza. VI. A economia compée a vertente metanatural (ou humana) da sustentabilidade Ou se esta no campo do natural ou se esta no campo do metanatural. Nao ha espaco para um tertium genus. Nao obstante a similitude etimoldgica das palavras “ecologia” e “economia’, nada ha de mais diverso entre as duas figuras no que respeita a dualidade homem-natureza. A economia, em que pese a dificuldade de se Ihe dar uma defini¢ao unica e inequivoca, é parte do processo humano de trans- cendéncia da natureza, é elemento da cultura e, como tal, componente da dimensdo humana ou metanatural da sus- tentabilidade. E ja nado diziam Dillard, Dujon e King que “a vida econdmica deve ser adequadamente pensada como um elemento de sustentabilidade social, tendo em vista que a economia é claramente uma constru¢ao social e nao um fendmeno natural, como o é, por exemplo, o clima”? Isso nao significa desconsiderar a importancia da economia para a emancipacdo do homem e para que seja atingido um circulo virtuoso de desenvolvimento. Tanto que a correta alocacao de bens materiais pode concorrer para o incre- mento da dimensao humana da sustentabilidade. 142 O PERIGO VERDE VII. Desenvolver-se é proprio da humanidade Também porque inclui em seu contetido o desenvol- vimento, o principio da sustentabilidade cuida do que é préprio do homem. Ha uma diferenga substancial entre as dimens6es do principio: sé a vertente que diz respeito ao homem é sujeita ao desenvolvimento ou, se se preferir, a evoluir no tempo. Seria impréprio conceber o desen- volvimento do mundo natural, pelo menos no que toca ao contetido de um principio normativo. E certo que a natureza possui sua dindmica propria, seus cambios cli- maticos e metabolismos de toda sorte. O mundo natural experimenta suas mudangas constantes, mas, a despeito disso, nado ha nada ali que corresponda a capacidade do homem de se aperfeicoar, e sem aperfeicoamento tam- pouco é apropriado falar-se em desenvolvimento. O apri- moramento do homem ocorre no campo que transcende a natureza, é dizer, a revelia do estado de coisas ao seu redor, e 6 mesmo em razdo disso que esse actimulo é pos- sivel. 0 processo de desenvolvimento do homem, porque atrelado a nota essencial de sua liberdade, é-lhe igual- mente essencial. VIII. A sustentabilidade nao demanda uma escolha aprioristica entre as vertentes ecolégica e humana E da esséncia do principio da sustentabilidade o equilfbrio, o contrabalanceamento e as compensagées entre suas valéncias. Se, por um lado, a sustentabilidade tem por fun¢ao primordial a garantia de se tomar sempre em con- EVERTON LUIS GURGEL SOARES 143 sideracgdo o que é imanente ao homem, por outro, nao é menos certo que a dimensao natural também se abriga no mesmo principio. IX. O equilibrio entre as vertentes se verifica somente até que o principio seja manejado para a solucdo de um caso concreto Ha um embate axioldgico interno entre as dimensdes do principio da sustentabilidade do qual resulta a preva- léncia de uma ou de outra na mesma medida em que o caso concreto o exigir e a vista das demais normas aplicaveis a hipétese. Onde se apresentem preceitos da ecologia radical, por exemplo, a dimensdo metanatural ganha corpo para lhe fazer frente. X. A ecologia profunda ou radical Ecologia profunda ou radical é um conceito aglutinador de algumas correntes doutrinarias que abrigam, as vezes mais, As vezes menos, as seguintes ideias: biocentrismo ou ecocentrismo; igualdade de direitos entre as espécies ou entre os homens e o mundo natural (vivo ou ndo-vivo); valor intrinseco da natureza, em seu conjunto (visdo holistica) ou em seus elementos individualizados; retorno a um estado natural de simbiose com a natureza, que impor- taria, pelo menos como um modelo utdpico, no regresso ao modo de vida rtistico ou selvagem; ruptura filosdfica e 144 O PERIGO VERDE politica com os preceitos do humanismo, porquanto este seria responsavel pela fundamenta¢ao tedérica do dominio do homem sobre a natureza. XI. Radicalismo ecolégico: o louvor ao que é na- tural descortina-se concomitantemente 4 repulsa a humanidade Outro ponto de contato entre as escolas da ecologia profunda é o viés anti-humano, que reconhece, no homem e em tudo o que o distingue do natural, o mal que assola a existéncia. Por isso a ecologia radical assume um recorte claramente misantropico, além de promover com afinco a heuristica do medo. Sao muitos os exemplos de manifes- tacdes da ecologia profunda que seguem essa trilha (ver pags. 39-41). Algumas vezes 0 6dio ao humano é expresso com uma evidéncia desconcertante; em outras dissimula-se em meio a exaltagao a eugenia, que nado é menos do que a mesma misantropia, mas vertida contra uma parcela nao eleita da humanidade. XII. Oposi¢ao ao ambientalismo ou reformismo ecolégico A ecologia radical contrap6e-se ao ambientalismo ou ao reformismo ambiental, entre outras razées, por negar que a solucdo para os problemas ecoldgicos envolva a mera reforma ou mudanga pontual das instituigdes sociais, EVERTON LUIS GURGEL SOARES 145 politicas e econdémicas. A ecologia profunda quer ir além e propor uma mudanga basilar de paradigmas que desca as raizes da ética e da estrutura social. XIII. Incompatibilidade do holismo ecolégico com o principio da sustentabilidade O holismo ecoldégico, defendido pela ecologia radical, nao compactua com o principio da sustentabilidade porque seu traco totalizante incompatibiliza-se com a divisdo, pr6- pria da sustentabilidade, entre as diferentes dimensdes do principio. Na concepg¢ao holistica, descaberia falar em vertentes natural e humana como dois compartimentos estanques, ja que so 0 todo seria digno de consideracao e, por isso mesmo, haveria de sobressair as parcelas. O prin- cipio da sustentabilidade é, portanto, incompativel com a teoria holistica e constitui, por isso, um principio normativo que se lhe apresenta em contraponto. XIV. A falacia naturalista Ha forte oposi¢ao doutrinaria contra a possibilidade de se extrafrem, como quer a ecologia radical, disposigées normativas das coisas em si, é dizer, extrair, do ser, 0 dever-ser; ou, da natureza, a moral. O que se convencionou chamar de faldcia naturalista se constituiria em impedi- mento intransponivel a edificagao de um quadro ético que seja extraido do mundo natural. 146 O PERIGO VERDE XV. Neomisticismo e vontade ambiental minori- taria E tudo face da mesma moeda: a concep¢ao de uma moral como algo a ser extraido da natureza; uma vonta- de ambiental minoritaria impositiva e autoritaria, porque calcada na verdade absoluta encontrada na natureza; uma ética preordenada a construir um novo homem; a pre- dominancia dos sentimentos na delineacdo dos ditames morais; um neomisticismo que atribua a instancias me- taffsicas a disciplina da relacdo travada entre os homens, bem como entre estes e 0 mundo natural. E contra isso que se posiciona o principio da sustentabilidade, mediante o exercicio de ponderagao de valores que coloque em um mesmo patamar as vertentes natural e metanatural do desenvolvimento. XVI. Liberdade, o coragao da vertente metanatural da sustentabilidade A capacidade de romper com o que é natural rela- ciona-se primordialmente com uma caracteristica huma- na: a liberdade. O que se designa por liberdade nesse caso trata-se, em esséncia, da aptidao de esquivar-se dos compor- tamentos guiados pelo instinto. A possibilidade de esca- par de seus impulsos por meio da razao da ao homem a capacidade de transpor-se para além dos determinismos naturais, para um plano metanatural, por assim dizer. A EVERTON LUIS GURGEL SOARES 147 liberdade permite ao homem nao apenas se desvencilhar da natureza, como também desgarrar-se de suas origens culturais, nacionais, de suas praticas consuetudinarias. Desse modo, para além de decalcar-se dos designios naturais, o homem pode também renunciar a cultura na qual esta imerso, como o faz ao aprender uma nova lingua (para lanc¢ar mao do exemplo dado por Ferry), ou ao repu- diar os usos e costumes de sua terra. XVII. O retorno a natureza, pugnado pela ecologia radical, é a nao liberdade O retorno a natureza, como quer a ecologia radical, significa enraizar-se e submeter-se ao destino tracgado pelo corpo e pelo ambiente. E a nao liberdade. E 0 ato de desenraizar-se que permite ao homem “pér-se no lugar do outro” ou “entrar em comunica¢do com outrem”, para usar as express6es de Ost e Ferry. As expressdes sao distintas, mas empregadas pelos autores para designar a mesma coisa: a capacidade de universalizacao. Entao veja que a possibilidade de colocar-se no lugar do outro, de comunicar- -se com outrem ou de se transportar de um status cultural para outro remete a ideia de que o homem é um, mas poten- cialmente muitos. Por isso tanta rejei¢ao da ecologia radical ao universalismo refletido na economia de mercado e na globalizacao (ou na chamada americaniza¢ao). Sao rejeicdes, todas elas, ndo por mero acaso, compartilhadas com dou- trinas fascistas. 148 O PERIGO VERDE XVIII. O respeito pela natureza constitui um impe- rativo categérico kantiano Para Kant, em respeito as leis universais da natureza, ao lidarmos com os objetos, isto é, com o mundo natural, haveremos de respeitar as leis universais que regem a natureza, do mesmo modo que, ao lidarmos com outro homem, devemos nos guiar pela potencial universalizacao de nossos atos. Por isso, é correto dizer que, na filosofia kantiana, constitui um imperativo categérico o respeito pela natureza e pelos mecanismos que a mantém integra. O imperativo categorico expresso nesses termos nao impede, entretanto, que o homem, ao produzir cultura na condi¢gao de ser livre, ultrapasse a no¢ao formal de natureza. XIX. A segunda natureza, por Bookchin O conceito de segunda natureza elaborado por Murray Bookchin confere uma feicdo coletiva 4 capacidade do homem de se furtar ao determinismo natural. 0 ponto- -chave do conceito reside na peculiar caracteristica hu- mana de poder acumular cultura. Caracteristica que, para Bookchin, deflagrou o processo evolutivo que fez o homem superar a fase de sujei¢ao as leis naturais (0 que chama de primeira natureza) e ingressar em outra em que a humani- dade seguiu uma trilha propria de evolucao social e cultural. Essa trilha propria levou-a a formacdo de uma sociedade altamente institucionalizada, justamente 0 que Bookchin denomina segunda natureza. EVERTON LUIS GURGEL SOARES 149 XX. A neutralidade social da ecologia radical a torna palatavel para as esferas de poder A cisdo entre problemas sociais e ecoldgicos é uma das mais marcantes caracteristicas da ecologia profunda. Sua neutralidade social é justamente o que a torna tao pala- tavel para os grandes circulos de decisdo. Tal caracteristica faz do impeto anti-humanista da ecologia radical algo ainda mais perigoso e preocupante. XXI. O principio da sustentabilidade nao se coa- duna com o igualitarismo entre as espécies O papel do principio da sustentabilidade como fiador do que é proprio da humanidade ja n4o faria qualquer sentido se nao fosse admitida uma diferenga essencial entre o homem e o mundo natural. Uma vez que a igualdade entre as espécies (ou o combate ao especismo) é uma das pedras de toque da ecologia profunda, novamente aqui a sustentabilidade se lhe revela um obstaculo. XXII. Animais nao sao sujeitos de direito Ha uma clara diferenciacao qualitativa entre o homem, as demais espécies vivas e 0 restante do mundo natural. S60 homem é dotado de liberdade e razao. S6 0 homem é um ser moral, pelo arbitrio que a razdo e a liberdade lhe outorgam. Se sé ele - e nado um animal irracional qualquer - pode, por exemplo, vir a cometer crimes, isso se deve ao 150 0 PERIGO VERDE fato de que sé a humanidade é igualmente capaz de agir em conformidade com valores tais como o respeito a vida, Asatide ea liberdade. 0 homem é, assim, ao mesmo tempo, liberto e prisioneiro de sua propria racionalidade. Como ensina Soromenho-Marques, as nossas obrigagées para com os animais nao sao fruto de uma légica sinalagmatica entre direitos e deveres. Vale dizer, nado é porque temos deveres em face dos animais que estes gozardo também de direitos, haja vista a assimetria brutal existente entre animais e homens. XXIII. Econazismo e pioneirismo ecologico do regime nazista O nacional-socialismo alemdo editou, na década de trinta, o que veio asera mais moderna legislacao de prote¢ao animal e de conservagao da natureza ja vista até entdo. Dé-se especial realce a Lei do Bem-Estar Animal, de 1933, cujo pioneirismo no reconhecimento do valor intrinseco dos animais nao diverge do discurso atual da ecologia pro- funda. A Lei diz que deve ser reconhecido o “direito que os animais, enquanto tais, possuem de serem protegidos por si proprios”. Para nao deixar dtividas, acrescenta: “nao se fara, pois, nenhuma diferen¢a entre animais inferiores e superiores, ou ainda entre animais titeis e prejudiciais ao homem”. Além disso, Biehl e Staudenmaier chegam a fazer referéncia ao que seria uma “ala verde” do nazismo, que incluiria Todt, Seifert, Hess, Himmler, Rosemberg e Darré. Este ultimo, tendo merecido de um bidgrafo o epiteto de pai dos verdes, era o responsavel pela politica nazista do sangue e solo, que nao se distancia da associa¢ao entre EVERTON LUIS GURGEL SOARES 151 homem e natureza tao desejada pela ecologia radical. A po- litica do sangue e solo, do nacional-socialismo alemdo, antitese do homem livre e transcendente, demonstra como doutrinas fascistas se amoldam a ecologia radical, dela se apropriando para renovar antigos e odientos preceitos. Como assinala Luc Ferry, “o que é o racismo, no seu fundo filoséfico, senado a pretensao de encerrar uma categoria de humanos numa definicdo essencialista? (0 que é 0 mes- mo que vincular o homem a uma determinada natureza)”. Além disso, a inclinagdo ecoldgica do regime podia ser identificada na exploragado romantica, pela propaganda nazista, do retorno do povo a sua terra e a suas tradicées, com os germanicos apoderando-se do solo que, por desti- nacao natural, Ihes pertenceria. Referidos autores lembram, ademais, que o Estado nazista era prodigo no uso da agri- cultura organica, no planejamento paisagistico-ecolégico e na conserva¢ao da natureza. XXIV. Fundamentos comuns entre ecologia radical e doutrinas totalitarias Ha fundamentos comuns que alicergam igualmente a ecologia radical, o nazismo e outras doutrinas de premissas totalitarias, tais como os demais matizes de fascismo e mesmo o comunismo. Sendo veja que todas elas nutrem uma repulsa a sociedade de consumo; ao mercado; ao libe- ralismo; e, com excecdo do comunismo, a modernidade; a técnica; ao universalismo; 4 unidimensionalidade (que outorga aos homens a aptidao para desgarrar-se da natureza e de suas tradi¢6es, tornando-os ainda mais semelhantes uns com outros, estejam do lado daqui ou do lado de 1a 152 O PERIGO VERDE de qualquer fronteira politico-cultural). Nutrem também uma repulsa comum 4a heranga humanista, mensageira da liberdade e da universaliza¢ao do espirito humano. (Nao somos todos legisladores universais, como disse Kant?) Em correspondéncia coma repulsa a tudo isso, essas mes- mas correntes de pensamento, também em comum com a ecologia profunda, nutrem o anseio por uma mudanga messianica do mundo; por construir um novo homem; por erigir uma nova moral, que possa extrair dos homens seus vicios e males; por reformar a sociedade de acordo com a natureza; por exacerbar o patriotismo, por vezes o ultimo refuigio de tais doutrinas. XXV. Da ameaga aos direitos fundamentais A ecologia profunda ou radical insiste em se insurgir contra o estabelecimento dos direitos fundamentais. Nao se trata apenas de combater o que seria a expressdo de um antropocentrismo injustificavel, mas de opor-se a heran¢a das luzes em geral - da qual os direitos humanos provém =, que se contrapée claramente ao desejo da ecologia radical de mimetizar o homem na natureza. Para isso, s6 mesmo ferindo de morte o humanismo, mas ndo sem antes cobrir- -se com 0 manto da nobre causa ecolégica. A perda, ou, nem tanto, o abrandamento da eficacia dos direitos funda- mentais abriria terreno para a ado¢ao de medidas que teriam por efeito o constrangimento dos atributos humanos que transcendem a natureza. O principio da sustentabilidade, nos moldes aqui sugeridos, constitui um contraponto a tal constrangimento.

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