Everton Luis ee ete
O PERIGO
VERDE
O Principio da Sustentabilidade como
Contraponto a Ecologia Radical
Everton Luis Gurgel Soares
Apresentacio de
Fernando Alves Correia
oS Ex-membro do Tribunal
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OPERIGO VERDE
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VERDE
Ainda que sem descurar de seu indiscutivel dever — e também necessidade — de
preservar 0 meio ambiente, a humanidade cumpre o protagonismo sobre a existéncia e
sobre o valor da vida na Terra, ao revés do papel de vild que Ihe quer impingir a ecologia
radical (ou profunda).
Os perigos relacionados ao avanco de doutrinas ecoldgicas radicais e sua inerente
ameaga a valores humanistas estao a exigir mais aten¢ao por parte dos autores nacionais.
Aqui oleitor encontrar, portanto, tema ainda pouco desenvolvido no Pais, em que pese ja
contar com significativa produgdo bibliografica no exterior. A escassez de andlises sobre o
assunto pode ser creditada, em parte, ao fato de se tratar de tema um tanto drido; afinal,
no é facil se insurgir contra ideias que professem amor anatureza, mesmo que esse amor
venha acompanhado de uma nada disfarcada averséo 4 humanidade, como no episédio
em que Dave Foreman —fundador do grupo ecologista Earth First e coautor de “Ecologia
Profunda” —afirma que o Ocidente, em vez de ter prestado auxilio aos famintos da Etidpia,
deveria té-los abandonado & morte, deixando que “a natureza busque seu préprio
equilibrio” (vejano capitulo 4).
Na visdo do autor, a expansao de movimentos ecoldgicos radicais e anti-humanistas.
forja, em reagao, uma nova estrutura para o principio da sustentabilidade, a ser composto
pelas dimensées natural (ou ecolégica) e metanatural (ou humana), no lugar da classica
figura das vertentes ambiental, social e econdmica. Assim, ao assumir o papel de
harmonizar valores que, de um lado, sejam imanentes a natureza (dimens3o ecoldgica) e,
de outro, correspondam as caracteristicas que apartam 0 homem do mundo natural
(dimenséo humana), 0 principio da sustentabilidade adota, entre outras, a funcdo de
fiador da consideragdo dos elementos culturais na elaboracao de politicas publicas
ambientais. £ esse o fio condutor do livro, que passeia por temas como o da ecologia
antidemocratica, do direito dos animais, do ecocentrismo, do ecofascismo, da
misantropia atrelada a ecologia, da falacia naturalist, do respeito pela natureza como um
imperativo categérico kantiano, da incompatibilidade da ecologia radical com 0
mecanismo de compensagées entre as dimensées da sustentabilidade, da oposicdo da
ecologia profunda ao mero ambientalismo ou reformismo ecoldgico, do “retorno a
natureza” como perda da liberdade, dos fundamentos comuns entre ecologia radical e
doutrinas totalitarias, da ameaga aos direitos fundamentais por parte da ecologia
profunda, entre outros.
978-85-7789-216-1
PT tTEverton Luis Gurgel Soares
Graduado em Direito pela Universidade Federal do Ceara, mestre em Direito do Ambiente ¢
do Urbanismo pela Universidade de Coimbra, advogado, procurador efetivo do municipio de
Fortaleza, com a experiéncia da atuacao por mais de dez anos na Procuradoria de Urbanismo
e Meio Ambiente e da participagao em cursos de extensao no Brasil e no mundo, como em
Etica Ambiental, na Universidade de Oxford, e em Estudos Metropolitanos, na Universidade
Humboldt de Berlim.
O PERIGO
VERDE
O Principio da Sustentabilidade como
Contraponto a Ecologia Radical
JHMIZUNO
EDITORA DISTRIBUIDORASumario
INTRODUGAO...
CAPITULO 1
Desenvolvimento Sustentavel: Um Conceito Vago (Indetermi-
nagao e Eficacia)
CAPITULO 2
Sustentabilidade como Contraponto 4 Ecologia Radical ou
Profunda.
2.1. Aresponsabilidade intergeracional volta-se para os homens..
2.2. "Desenvolver-se” é proprio da humanidade
2.3. Um novo papel para o principio do desenvolvimento susten-
tavel: contraponto a ecologia radical
CAPITULO 3
As Dimensées Natural e Metanatural da Sustentabilidade..
3.1. A dimensao econé mica compée a vertente metanatural da
sustentabilidade
3.2. 0 equilibrio entre as dimensées: auséncia de eseomha
aprioristica.
CAPITULO 4
Ecologia Radical: 0 Contraponto da Sustentabilidade..
4.1. Uma nova moral?
4.2. Holismo e ecologia radical
4.3. Uma moral na natureza: totalitarism
4.4, A natureza cruel
4.5. A falacia naturalista
4.6. De volta ao misticismo...
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91CAPITULO 5
“O Homem 6, por Exceléncia, um ser Antinatura’
5.1. A liberdade como caracter‘stica distintiva da humanidade....
5.2. Universalismo kantiano e o respeito pela natureza como
um imperativo categéric
5.3. A segunda natureza, por Bookchin, e a neutralidade social
da ecologia profunda
5.4. Homens, animais e direitos.
CAPITULO 6
Ecofascismo e Ecologia Nazista.
CAPITULO 7
Nota Conclusiva
CAPITULO 8
Excertos-Chave.
1.A forga do termo Sustentabilidade, uma “marca” estabelecida.....
II. Aspectos positivos da indeterminagao do conceito de sustenta-
bilidade.
III. A incompatibilidade da ecologia radical ou profunda com 0
mecanismo de compensagées entre as dimensdes da susten-
tabilidade.
IV. 0 avanco das doutrinas ecoldgicas radicais leva a uma reagao
da ordem jurfdica, que desloca o princfpio da sustentabi-
lidade, dentro do quadro normativo, para uma posi¢ao de
contraponto a ecologia profunda...
V. As dimensées natural e metanatural da sustentabilidade.
VI. A economia compée a vertente metanatural (ou humana)
da sustentabilidade.
VII. Desenvolver-se é proprio da humanidade..
VIII.A sustentabilidade nao demanda uma escolha aprioristica
entre as vertentes ecoldgica e humana
IX. 0 equilfbrio entre as vertentes se verifica somente até que 0
principio seja manejado para a solugao de um caso concreto...
X. Aecologia profunda ou radical..
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143XI. Radicalismo ecol6gico: o louvor ao que é natural descortina-se
concomitantemente a repulsa & humanidad
XII. Oposigao ao ambientalismo ou reformismo ecolégico.
XIII. Incompatibilidade do holismo ecoldgico com o principio
da sustentabilidade.
XIV. A falacia naturalista.
XV. Neomisticismo e vontade ambiental minoritari:
XVI. Liberdade, 0 coragao da vertente metanatural da sustenta-
bilidade..
XVII. 0 retorno a natureza, pugnado pela ecologia radical, é a
nao liberdad
XVIIL 0 respeito pela natureza constitui um imperativo cate-
gérico kantiano...
XIX. A segunda natureza, por Bookchin
XX. A neutralidade social da ecologia radical a torna palatavel
para as esferas de poder
XXI. O principio da sustentabilidade nao se coaduna com o
igualitarismo entre as espécie:
XXII. Animais nao sao sujeitos de direito.
XXIIL Econazismo e pioneirismo ecolégico do regime nazista...
XXIV. Fundamentos comuns entre ecologia radical e doutrinas
totalitarias
XXV. Da ameaca aos direitos fundamentais...
REFERENCIAS.
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153Introduc¢ao
A Terra esta em perigo. Ou seria a humanidade? Quiga
ambas. Mas ha uma difereng¢a essencial entre uma e outra:
a Terra nao deixara de girar, nao deixara tao cedo de ser
Terra, apesar do homem, apesar de qualquer outro pesar.
Estamos no ano dois mil e quinze. Foram dois mil e quinze
giros ao redor da maior estrela a vista e, antes disso, tantas
outras translagées foram necessarias até que o homem
passasse a figurar na face deste planeta. E de quantas mais
a humanidade podera gozar?
A Terra nao esta em perigo. Talvez como a conhecemos,
sim. Mas nao a conhecemos ha muito. A existéncia da
humanidade compreende uma diminuta fracdo do tempo
de existéncia do planeta. Tanto é assim que, num exercicio
de abstragao, se atribuissemos ao universo a idade de um
ano, a Terra teria se formado apenas em 14 de setembro;
em 30 de dezembro apareceriam os primeiros mamiferos; e
s6 as 22 horas do dia 31 de dezembro, os homens. E diversas
mudangcas a Terra ja experimentou, sem e com os homens:
do calor infernal que fazia lama das rochas ao intermitente
frio glacial. Noventa e nove por cento de todas as espécies
que ja habitaram um dia este planeta estado extintas. Delas
o homem nao conheceu a maior parte, nao tendo con-
tribuido, portanto, para sua extincgdo. Entao, tema-se pelo14 O PERIGO VERDE
fado da humanidade, pois a Terra lhe sobrevivera, ainda
que impactada por esse ser que apareceu na ponta da
evolucdo da vida. Mesmo com alguns sacos plasticos em
suas entranhas, lembrangas daquela fugaz espécie de triste
fortuna (a humanidade), a Terra sobrevivera ao homem,
pelo menos até que o sol deixe de irradiar sua energia daqui
a alguns bilhdes de anos. Se a tecnologia nao nos matar
a todos até 14, quem sabe nao serado os homens, e sua
tecnologia, chamados a salvar a Terra do destino que lhe
reservou 0 universo? “Chamem os homens para reacender
o sol!”, quem sabe? De vildes a herdis, um grand finale!
Mas nao creio. 0 homem, digo o animal-homem e
nao os vigorosos elementos culturais que o distinguem
da natureza, é mais fragil ou mais insignificante do que se
costuma pensar. Antes da oportunidade de nos tornarmos
her6is, nossa existéncia ja se tera esvaido, num dia em que
o universo nao mandara flores, pois nem percebera.
Tudo isso para dizer que o lugar do homem nao é no
banco dos réus da hist6ria universal. O homem pode errar
aqui e ali. Por sinal, é-Ihe proprio o erro. Porém, numa
perspectiva espago-tempo dilargada, seus erros nao alte-
rarao substancialmente o curso das coisas. Nesse cenario
em que se descortina a pequenez do homem, sobra espaco
até para incentivar um certo grau de antropocentrismo,
para enaltecer, o maximo possivel e enquanto ha tempo,
nossa breve existéncia.
Por outro lado, nao ha como negar a forca persuasiva
e cativante de argumentos que relacionam proposi¢6es
antropocéntricas com o sentimento de egoismo, com umaEVERTON LUIS GURGEL SOARES 15
sindrome de superioridade ou um destrutivo impulso
dominador do homem. Farpas sobram até para produtos
culturais como as religides, cujo antropocentrismo, inerente
a muitas delas, é considerado responsavel por legitimar a
degradagao do ambiente’. Trata-se de um discurso falho,
mas, ao mesmo tempo, facil: combater todos os produtos
fruto do engenho, da cultura e da razdo humana. Facil porque
é imanente ao homem, e, por conseguinte, ao produto de
suas ages, 0 erro.
O mundo natural nao erra; o homem, sim (a religiao,
so para citar o exemplo ja dado, porque é um produto cul-
tural, reveste-se de erros), mas nao por isso ha de se sub-
trair do homem seu direito de errar, o que, bem entendido,
equivaleria a subtrair-lhe a humanidade.
Ja a extingado desta (da humanidade), a reboque do
fim da espécie humana, legaria ao universo o vazio de uma
auséncia infinita. Ao falar em “humanidade” nao me refiro
ao coletivo do animal-homem, mas Aas caracteristicas que
lhe permitem ultrapassar os condicionamentos do meio
natural, de sua programacao bioldgica, de seus instintos.
Mas nao sé. Permitem-lhe também superar as condicio-
nantes fruto de sua prépria produg¢ao cultural, nao obs-
tante a mesma liberdade que lhe permite transcender essas
condicionantes seja a caracteristica que torna possivel
tal produgao cultural. Assim, o homem pode sobrepor-se
também as praticas consuetudinarias de seus ancestrais,
as tradi¢des arraigadas em sua comunidade, as suas origens
1 Sobre o papel do antropocentrismo religioso na crise ambiental, conferir 0
emblemitico ensaio de Lynn White Jr. intitulado The historical roots of our
ecologic crisis na Revista Science, v. 155, n. 3767, edicdo de marco de 1967, p.
1203-1207.16 O PERIGO VERDE
nacionais. E tudo isso sé é possivel por forca da liberdade,
que é, como se vera mais adiante, a principal caracteristica
diferenciadora da humanidade.
A extin¢do da espécie humana, se se quiser referir a
essa como mais uma espécie animal, nao significaria uma
perda maior do que a de cada uma das cento e cinquenta
que se extinguem todos os dias. Ja 0 fim da liberdade e de
tudo o que é préprio do homem, diferentemente, represen-
taria a insuperavel perda de uma riqueza sem paralelo.
Oretorno a natureza, uma ética a ser extraida do ecos-
sistema e o conceito de localismo numa versdo extremada,
tal como conclamados pelo movimento ecoldgico radical,
significam nao sé a negacdo dessa liberdade, mas também
a negacao da universalizacao do espirito humano, que re-
monta a filosofia kantiana, com a sua concep¢ao do homem
como legislador universal e com a ideia de uma moral valida
incondicionalmente para todos os seres racionais.
E por isso que, conforme Francois Ost, é propria do
homem:
A faculdade inaudita de se distanciar em relacao aquilo
que se é, Aquilo que se faz ou aquilo que se diz; a faculda-
de de se transportar para outro lado, de se projetar num
espaco-tempo diferente, de recusar a sua condi¢ao. Esta
faculdade tem um nome: é o dom da universalizagao.
Distanciando-se em relacao as determinagées do hic et
nunc, o homem é capaz de se universalizar: de se colocar
no lugar do outro, nao importa qual.”
2 OST, Francois. A Natureza & Margem da Lei: ecologia & prova do direito.
Lisboa: Instituto Piaget, 1997, p. 248.EVERTON LUIS GURGEL SOARES 17
Na mesma linha é a ligdo de Luc Ferry, que, de resto,
relaciona a caracteristica da universalizag¢ao com 0 senso
de altruismo:
A existéncia ética mais fundamental entre os modernos,
a do altruismo, é, no seu préprio principio, antinatural,
uma vez que implica uma forma de desinteresse. Pressu-
poe, com efeito, uma “boa vontade” e exprime-se, inevita-
velmente, sob a forma de um imperativo. Mas é também
a referéncia a universalidade, incompreensivel fora dos
limites desta nova antropologia filosdéfica, que se torna
necessaria [...] E por se mostrar capaz de se distanciar do
ciclo da sua vida biolégica, mas também da sua lingua, da
sua nagao, da sua cultura particulares, que ele pode entrar
em comunica¢ao com outrem. A sua capacidade para 0
universal é fungao direta desse afastamento.>
A vista disso tudo, coloca-se a questao: faz algum
sentido adotar politicas ecolégicas com o pretensioso
objetivo de salvar a Terra dos atos humanos danosos se
tais politicas exigirem a mitigacdo da liberdade? Na tra-
jetoria do universo, que se inicia com a grande explosao
e segue com sua fase de expansao, a liberdade do homem
pode ser vista como um brevissimo lampejo, mas que reluz
forte como um clarao a partir daquele pequeno ponto azul,
o planeta Terra. Na breve jornada da existéncia humana,
mais vale aos homens velar pela liberdade, propulsora da
producao cultural, que Ihes permite transcender a natureza
e, vale dizer, os proprios condicionamentos culturais. Defini-
tivamente, descabe-lhes concorrer para o desvanecimento
desse lampejo, ainda que sob o pretexto de resguardar 0
ecossistema. Se para valorizar 0 que o homem possui de
3. FERRY, Luc. A Nova ordem Ecoldgica. Porto: Edigées Asa, 1993, p. 51.18 O PERIGO VERDE
peculiar em sua esséncia é pressuposto abracar o antropo-
centrismo’, é nossa obriga¢ao fazé-lo entao.
Desse modo, com alicerce em tais ideias, pugno por
uma nova conformagao do principio da sustentabilidade,
aveicular duas dimensées: a natural (ou ecoldgica) e a
metanatural (ou humana). Esta ultima a envolver tudo o
que é préprio do homem (ou, se se quiser colocar em uma
s6 palavra, sua liberdade) e que lhe permite ultrapassar
os condicionamentos bioldgicos e do meio natural em que
se insira, mas também a cultura de seu povo, os condicio-
namentos sociais, as tradi¢des. Nao é que o homem nao
sofra influéncia desse estado de coisas. Todos esses fato-
res agem sobre seu espirito, moldando-o. Mas, e isso é 0
que importa, nao o limitam. Repise-se: o homem nao deixa
de ser ele e mais suas circunstancias, como quer Ortega y
Gasset, contudo, ainda que apenas potencialmente, sempre
lhe resta algo de liberdade para conferir-lhe a aptidao de
ultrapassar tais condicionamentos.
4 Vale dizer que a pertinéncia de certo grau de antropocentrismo nao é refutada
sequer por Klaus Bosselmann, um dos que defende ferrenhamente a priori-
zacao da dimensao ecoldgica em face das demais dimensées da sustentabili-
dade. Veja: “Sugere-se que um certo grau de antropocentrismo é necessario
protegdo ambiental. Nao no sentido de a humanidade ser o centro da biosfera,
mas porque a humanidade ¢ a tinica espécie, pelo menos que nés saibamos,
que tem consciéncia necessaria para reconhecer e respeitar a moralidade dos
direitos porque os seres humanos sao, eles mesmos, parte integrante da na-
tureza. Em suma, os interesses e os deveres da humanidade sao inseparaveis
da protec¢ao ambiental.” (BOSSELMANN, Klaus. Direitos Humanos, Ambiente
e Sustentabilidade. Revista do Centro de Estudos de Direito do Ordenamento,
do Urbanismo e do Ambiente - CEDOUA, n. 21, 2008a, p. 24). Particularmente
sobre antropocentrismo e sustentabilidade, note que a Declaracao do Rio so-
bre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, j4 em seu principio n. 1, consigna:
“Os seres humanos constituem o centro das preocupacdes relacionadas com o
desenvolvimento sustentavel. Tém direito a uma vida saudavel e produtiva, em
harmonia com a natureza.” (ORGANIZACAO DAS NAGOES UNIDAS. Declaragao
do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, 1992).EVERTON LUIS GURGEL SOARES 19
Assim, sob essa nova perspectiva, ao se langar mao
do principio da sustentabilidade, ha que sempre se convocar
a baila o que é proprio do homem, dado o contrabalance-
amento de valores insito ao preceito (equilfbrio entre as
dimensées ecolégica e humana). O principio da sustenta-
bilidade é, nesse cenario, uma garantia de que tudo o que
é proprio do homem - como a liberdade, a razao ea
cultura - seja tomado em considera¢ao ao se encetarem,
por exemplo, politicas publicas ambientais. O principio da
sustentabilidade funciona, entao, como um limite as politicas
ambientais® que tendam a relegar os valores humanos a
segundo plano. Um limite especialmente as investidas
misantr6picas da ecologia profunda ou radical.
Nao obstante, como deixarei claro a frente, o principio
da sustentabilidade nao impée uma escolha aprioristica
entre suas dimensdées natural e metanatural. Ambas tém
sua importancia reconhecida pelo principio. O que nao
poderia ser diferente, j4 que formam suas dimensées ou
vertentes. O principio exige, na verdade, que ambas as ver-
tentes sejam levadas em consideracao e, com isso, impede
o avanco de algumas proposi¢6es da ecologia profunda que
resultariam no aniquilamento do que é proprio do homem,
ou mesmo do préprio homem. Dessa forma, a norma evita
que cedamos passo, por exemplo, aos preceitos que emba-
sam as seguintes manifestacdes de ecologistas radicais:
“preferiria matar um homem aatirar numa cobra’; “a pior
coisa que poderiamos fazer na Etiépia é fornecer ajuda; a
5 Alocugio “politicas ambientais” foi aqui adotada num sentido bastante am-
plo, englobando agées nao sé do Poder Piiblico no exercicio de sua fun¢ao
executiva, como também as diretivas, preceitos e conjuntos de regras rela-
cionados & interpretacio de normas ambientais, & producio legislativa e as
agdes da sociedade organizada.20 O PERIGO VERDE
melhor, deixar a natureza buscar seu proprio equilibrio,
deixando as pessoas de la passar fome’”; “se a epidemia de
AIDS nao existisse, ecologistas radicais teriam de inventa-la”;
“a humanidade tornou-se algo como uma praga de gafanho-
tos no planeta”; “uma mortalidade humana macica seria
uma coisa boa” (ver capitulo 4).
Devo dizer, por fim, que o viés antropocéntrico da
tese aqui defendida e 0 enfoque dado aos riscos a que a
ecologia radical pode sujeitar o humanismo nao implicam
que este autor desconsidere a importancia de se alterar a
atual relagao do homem com 0 ecossistema. A humanidade
éa protagonista 6bvia em problematicas como a da bio-
diversidade, preservac¢ao ambiental e producao de residuos.
Muito lhe compete fazer, ou deixar de fazer, para que sejam
atingidos equilibrios razodveis em cada um desses campos,
nao sé para proporcionar qualidade de vida, mas também
para garantir as condi¢ées mesmas de sobrevivéncia para
sie para os demais componentes da comunidade bioldgica.
Entretanto, a despeito de sua crucial importancia, tais temas
cedem passo nesta obra a outro igualmente relevante: a
ameaga aos valores humanistas por parte de doutrinas
ecoldgicas radicais.EVERTON LUIS GURGEL SOARES 61
(visdo holistica) ou em seus elementos individualizados;
retorno a um estado natural de simbiose com a natureza
que importaria, pelo menos como um modelo utépico,
no regresso ao modo de vida rustico ou selvagem; ruptura
filosdfica e politica com os preceitos do humanismo, por-
quanto este seria responsavel pela fundamentag¢ao tedrica
do dominio do homem sobre a natureza.
Outro ponto de contato entre as escolas da ecologia
profunda é o viés anti-humano, que reconhece, no homem
e em tudo o que o distingue do natural, o mal que assolaa
existéncia. Por isso a ecologia profunda assume um recorte
claramente misantr6pico. O louvor ao que é natural descor-
tina-se concomitantemente a repulsa a humanidade.
A heuristica do medo promovida por alguns ecolo-
gistas radicais suscita nado apenas o temor das catastrofes
ambientais, mas tendo em vista suas declaragées de ddio
aos homens, o temor deles préprios - dos ecologistas
radicais - e do que pode emanar de sua doutrina.
Sao muitos os exemplos de manifestagdes da ecologia
radical que seguem essa trilha. Algumas vezes 0 ddio ao
humano é expresso com uma evidéncia desconcertante;
em outras dissimula-se em meio a exaltacado a eugenia,
que nado é menos do que a mesma misantropia, mas vertida
contra uma parcela nao eleita da humanidade.
Alista é longa, mas merece transcri¢ao: Edward Abbey,
autor de um dos livros inspiradores do grupo ambienta-
lista Earth First, diz sem rodeios que “preferiria matar um62 O PERIGO VERDE
homem aatirar numa cobra”*!; David Ehrenfeld faz lembrar
que o virus da variola é uma “espécie em extingao””, um
recado que mais diz respeito ao homem do que ao agente
infeccioso; Dave Foreman, um dos expoentes da ecologia
radical, fundador do grupo ecologista Earth First e, junta-
mente com George Sessions, autor do ja classico Ecologia
Profunda, asseverou a revista Australiana Simply Living
que “quando digo as pessoas que a pior coisa que poderi-
amos fazer na Etidpia é fornecer ajuda - e a melhor, apenas
deixar a natureza buscar seu préprio equilibrio, deixando
as pessoas de 1a passar fome - acham isso monstruoso”**
(Pelo menos ha algum alento na sentenga de Foreman, por
deixar-nos saber que ainda ha quem a considera mons-
truosa). Nao bastasse isso, o mesmo Foreman, tentando
emendar sua declara¢do, disse tempos depois (numa
emenda que saiu pior que o original, diga-se) que de nada
adiantaria um auxilio humanitario de ultima hora aos
etiopes se isso significasse a manutengao da vida de “pessoas
permanentemente incapacitadas ou deficientes”. Pelo con-
trario, a ajuda “redundaria em ainda mais pressdo sobre
41. Aassertiva de Edward Abbey foi citada por DESJARDINS, op cit, p. 219, e consta
também na obra denominada “Desert Solitaire: a season in the wilderness’.
42 Transcrito em BOOKCHIN, Murray. Social Ecology versus Deep Ecology: a
challenge for the ecology movement. Anarchy Archives, 1987. Disponivel em:
. Acesso em: 20 ago. 2014.
Aassertiva de Dave Foreman, originalmente publicada na revista Australiana
Simply Living, foi citada por DESJARDINS, op. cit, por BOOKCHIN em Social
Ecology {...], p. 6, € por BOOKCHIN e FOREMAN em Defending the Earth: a
dialogue between Murray Bookchin and Dave Foreman, Montreal/Nova
York: Black Rose Books, 1999, p. 102. Disponivel em: . Acesso em: 20 ago. 2014.
4EVERTON LUIS GURGEL SOARES 63
o ambiente”; Christopher Manes, no artigo Populagdo
e AIDS, escreve que a epidemia de AIDS é “uma solu¢ao
necessaria” para o problema populacional e, parafraseando
Voltaire, diz que “se a epidemia de AIDS nAo existisse,
ecologistas radicais teriam de inventa-la’**; Paul Taylor, o
celebrado autor de Respect for Nature, afirma, em outra
obra, que o ultimo homem, mulher ou crianga poderiam
desaparecer da face da Terra sem qualquer consequéncia
significativa para o bem dos animais e plantas selvagens
[..] Nossa presenca, em suma, nao é necessaria. Se fossemos
perscrutar o ponto de vista da comunidade natural e dar
voz ao seu verdadeiro interesse, a extincdo dos homens
seria recebida com um caloroso “boa partida!”**; Gary
Snyder, vencedor do prémio Pulitzer, cujo epiteto é nada
menos que “o aclamado poeta da ecologia profunda’, diz
que a “humanidade tornou-se algo como uma praga de
gafanhotos no planeta’; um grupo ecologista denominado
Gaia apareceu na televisdo francesa a dizer que a terra-Gaia
tem a faculdade de eliminar os elementos que lhe sao mais
prejudiciais, assim como um organismo rejeita uma subs-
tancia que o envenena. Nao seria mau de todo se a terra
se desembaracasse da espécie mais nociva que a habita:
a humanidade*; Willian Aiken, em um texto veiculado em
prestigiosa publicagado organizada por Tom Reagan - tam-
bém um nome prestigioso da ecologia radical -, diz que
44 BOOKCHIN; FOREMAN, op. cit., p. 114.
45 BOOKCHIN; FOREMAN, op. cit., p. 17.
46 TAYLOR, Paul W. The ethics of respect for nature. Environmental Ethics, v. 3,
p. 197-218, 1981, Disponivel em: . Acesso em: 20 ago. 2014.
47 DEVALL, Bill; SESSIONS, George. Deep Ecology: living as if nature mattered.
Salt Lake City: Peregrine Smith, 1985, p. 171.
48 OST, op.cit., p.197.64 O PERIGO VERDE
responderia afirmativamente, uma vez questionado sobre
e “uma mortalidade humana maci¢a seria uma coisa boa”
e, o que é pior, se “seria nosso dever provoca-la”. Para
Aiken, o eco-holismo implica o dever de “eliminarmos
90% dos nossos efetivos’*’; Garret Hardin, com sua ética
do bote salva-vidas, referindo como exemplo a superpopu-
losa India, entende que “a cada vida de um indiano salva
mediante a assisténcia médica ou nutricional do exterior,
diminui-se a qualidade de vida para aqueles que perma-
necem, e para as gerac¢des subsequentes’™; Paul Ehrlich,
partidario do crescimento populacional zero, pugnava
pela criagao de uma agéncia governamental para controle
populacional “com base numa triagem ética” que serviria
para estabelecer “a concessdo ou a recusa de auxilio” aos
assim chamados paises subdesenvolvidos™; ainda sobre
controle populacional, Luc Ferry, em comentario acerca
de dois importantes nomes da ecologia profunda, lembra
que “se chega ao ponto de sustentar que o numero ideal
de seres humanos, face as necessidades dos seres nao
humanos, seria de 500 milhGes (James Lovelock), ou mesmo
de 100 milhées (Arne Naess)”. Ferry roga para que lhe seja
explicado, concretamente, “como se pensa atingir tao filan-
trépico objetivo”2. E a heuristica do medo em seu estado
natural. (Sobre o tema “populacdo mundial”, é também um
49 AIKEN, Willian. Ethical issues in agriculture. In: REGAN, Tom (Ed.). Earth-
bound: new introductory essays in environmental ethics. Nova York: Random
House, 1984, p. 269. Citado também em FERRY, op. cit., p. 122.
50 HARDIN, Garrett. Lifeboat ethics: the case against helping the poor. Revista
Psychology Today, setembro de 1974. Disponivel em: . Acesso em: 20 ago. 2014.
51 BOOKCHIN, op. cit, p. 21.
52 FERRY, op. cit., p. 122.EVERTON LUIS GURGEL SOARES 65
sinal dos tempos o enredo de Inferno, ultimo livro de Dan
Brown, o mesmo autor de O Cédigo Da Vinci. No final daquela
ficcdo de aventura, a propagacao de um virus que deixara
infértil um ter¢o da populagdo mundial encerra a trama
como se significasse um final um tanto feliz.)
Nao é nada bom constatar que declaragées como essas
nao partem de pessoas ou grupos irrelevantes dentro do
movimento ecologista profundo. Ainda pior é concluir que
tais posicionamentos sao, de uma maneira ou de outra,
resultados légicos dos fundamentos doutrinarios da eco-
logia radical.
4.1 Uma nova moral?
Aecologia radical ou profunda contrapée-se ao ambien-
talismo ou ao reformismo ambiental, entre outras razGes,
por negar que a soluc¢do para os problemas ecoldégicos
envolva a mera reforma ou mudanga pontual das instituigdes
sociais, politicas e econémicas. A ecologia profunda quer
ir além e propor uma mudanga basilar de paradigmas que
desga as raizes da ética e da estrutura social.
Para a ecologia radical, a crise ecolégica é consequéncia
de uma crise ético-filosofica. A origem dos males ambientais
resultaria entaéo do fato de a sociedade moderna estar
erigida sobre alguns “malfadados” alicerces, tais como: a
légica cartesiana de uma natureza-objeto; fundamentos
utilitaristas; ideias humanistas, que arrebatam 0 homem
da natureza, por pretendé-lo diferente do que esta ao seuCapitulo 8
Excertos-Chave
(Compilacao extraida do corpo do livro)
I. A forga do termo Sustentabilidade, uma “marca”
estabelecida
O conceito de sustentabilidade, apesar da miriade de
sentidos que carrega (o que implica certo grau de impre-
ciséo), desempenha importantissimo papel, quando menos,
pela forca persuasiva inerente a um conceito que ja vem
de se arraigar generalizadamente no senso comum. Con-
forme assinala a Unido Internacional para a Conservagao
da Natureza (IUCN), “a sustentabilidade é uma ‘marca’ esta-
belecida, que goza de amplo reconhecimento e consegue
expressar valores essenciais para um grande ptblico”.
Il. Aspectos positivos da indeterminagao do
conceito de sustentabilidade
A indefini¢gao sobre 0 conceito de sustentabilidade
nado vem a ser necessariamente ma. Um conceito juridico
indeterminado, como é 0 caso, possibilita a ampliagao
do rol de sujeitos responsaveis por definir 0 contetido
da norma - seja um governo, os 6rgaos judiciarios oua138 O PERIGO VERDE
propria sociedade - e também do campo temporal de defini-
¢ao desse contetido, conferindo uma perspectiva diacréni-
ca a construgao do principio, que se pode renovar a luz
das novas conjunturas.
Ill. A incompatibilidade da ecologia radical ou
profunda com o mecanismo de compensa¢ées
entre as dimensées da sustentabilidade
A ecologia radical nao compactua minimamente
com um mecanismo de ponderag¢ao entre as dimensées
que compéem o principio da sustentabilidade. Colocar,
num prato de uma balan¢a, o homem ou 0 que é proprio
dele, e, no outro, a natureza - uma imagem, portanto,
ilustrativa da sustentabilidade - significaria adotar a
premissa de que o homem compée uma valéncia propria
a ser tomada em considerac¢do no mecanismo de pesos
e contrapesos do desenvolvimento sustentavel. Tal se
oporia a conceitos basilares da ecologia profunda, como
oigualitarismo das espécies, o holismo e o ecocentrismo.
Tanto mais porque importaria em riscos de hierarqui-
zac¢ao de interesses em favor da humanidade. Para Arne
Naess, um dos pontifices da ecologia profunda, a susten-
tabilidade, tal como exposta no Relatério Brundtland, se-
ria demasiadamente permissiva, pois, naqueles termos, a
acao do homem encontraria limitagao apenas na satisfa-
cdo das suas necessidades, quer fossem da gera¢ao pre-
sente, quer fossem da geracdo futura.EVERTON LUIS GURGEL SOARES 139
IV. O avango das doutrinas ecoldgicas radicais
leva a uma reagao da ordem juridica, que desloca
o principio da sustentabilidade, dentro do quadro
normativo, para uma posi¢ado de contraponto a
ecologia profunda
O principio da sustentabilidade coloca-se em con-
traponto a ecologia radical ou profunda. Num cenario de
avanco de doutrinas anti-humanistas, 0 mesmo contetido
de antes preordena-se hoje a garantir, ao homem ea tudo o
que o distingue da natureza, lugar de destaque no exercicio
de ponderacées de valores das politicas ambientais. Nao
se trata de estabelecer uma configura¢gao absolutamente
nova ao principio, a ponto de negar seu contetido histéri-
co. Na verdade, a nova complei¢do que se quer para a sus-
tentabilidade nao destoa daquela ja prevista no Relatério
Brundtland. Ocorre apenas que, com o avan¢o da ecologia
profunda e de suas teses anti-humanas, o principio da sus-
tentabilidade passa a submeter-se a novos parametros in-
terpretativos. Parametros esses modelados pelos desafios
impostos pelo radicalismo ecoldégico. Pode-se assim dizer
que os preceitos e os fatos originados da ecologia radical
produzem vetores de valor que, agindo sobre o principio
da sustentabilidade, liberam, em reacdo, outros vetores,
que conformam a morfologia atual do principio, com um
dos nuicleos na dimensao humana e 0 outro na dimensao
ecoldégica. Assim, 0 aprimoramento da dimensdo humana
da sustentabilidade passa a significar o aperfeicoamento
dos mecanismos que distinguem o homem da natureza,
como a racionalidade, liberdade, universalidade, suas leis140 O PERIGO VERDE
morais, os valores insculpidos nas diversas declaragées
de direitos fundamentais etc. Os efeitos, mais ou menos
concretos, que podem advir da assunc4o do principio da
sustentabilidade como um preceito normativo valido sao
postos a servic¢o de um fim, que vem a ser a garantia de
consideracao do homem e dos valores que lhe sao ine-
rentes dentro da discussao sobre os rumos das politicas
ambientais. O principio da sustentabilidade, na concep¢ao
aqui defendida, passa a desafiar o paradigma erigido pela
ecologia radical, e, com isso, tem sua importancia renova-
da dentro do quadro de normas ambientais. Nao houve
mudanga essencial nesse incessante processo histérico de
construcao do contetido do principio. A mudanga diz res-
peito, na verdade, aos fins a que se destina aquele mesmo
contetido.
V. As dimensées natural e metanatural da susten-
tabilidade
O equilfbrio a ser perseguido nao se coloca em termos
de dimensao ambiental, econémica e social, mas do equi-
librio entre o que é natural e o que é objeto da cultura
humana, entre o que é fruto das leis da natureza e 0 que
é préprio da humanidade, entre o que é consequéncia
natural de uma a¢ao e reagao do sistema ecoldgico e o que
é produzido pela razdo e liberdade. Em suma, entre as
dimensées natural (ou ecolégica) e metanatural (ou humana)
da sustentabilidade. De um lado, posiciona-se a natureza,
do outro, o homem e tudo o que por ele é concebido no
exercicio de sua humanidade. Luc Ferry teria preferido oEVERTON LUIS GURGEL SOARES 141
termo antinatural, ja que, em suas palavras, “o homem é,
por exceléncia, o ser antinatura’, pois é por af que ele “escapa
aos ciclos naturais, que acede a cultura, e até a esfera da
moralidade que sup6e um ser-pela-lei e nado sé pela-natu-
reza’. Em todo caso, preferi langar mao do afixo “meta”
para fugir 4a imagem de uma humanidade em franca
oposig¢ao a natureza.
VI. A economia compée a vertente metanatural
(ou humana) da sustentabilidade
Ou se esta no campo do natural ou se esta no campo do
metanatural. Nao ha espaco para um tertium genus. Nao
obstante a similitude etimoldgica das palavras “ecologia” e
“economia’, nada ha de mais diverso entre as duas figuras
no que respeita a dualidade homem-natureza. A economia,
em que pese a dificuldade de se Ihe dar uma defini¢ao
unica e inequivoca, é parte do processo humano de trans-
cendéncia da natureza, é elemento da cultura e, como tal,
componente da dimensdo humana ou metanatural da sus-
tentabilidade. E ja nado diziam Dillard, Dujon e King que “a
vida econdmica deve ser adequadamente pensada como
um elemento de sustentabilidade social, tendo em vista
que a economia é claramente uma constru¢ao social e nao
um fendmeno natural, como o é, por exemplo, o clima”?
Isso nao significa desconsiderar a importancia da economia
para a emancipacdo do homem e para que seja atingido
um circulo virtuoso de desenvolvimento. Tanto que a correta
alocacao de bens materiais pode concorrer para o incre-
mento da dimensao humana da sustentabilidade.142 O PERIGO VERDE
VII. Desenvolver-se é proprio da humanidade
Também porque inclui em seu contetido o desenvol-
vimento, o principio da sustentabilidade cuida do que é
préprio do homem. Ha uma diferenga substancial entre
as dimens6es do principio: sé a vertente que diz respeito
ao homem é sujeita ao desenvolvimento ou, se se preferir,
a evoluir no tempo. Seria impréprio conceber o desen-
volvimento do mundo natural, pelo menos no que toca
ao contetido de um principio normativo. E certo que a
natureza possui sua dindmica propria, seus cambios cli-
maticos e metabolismos de toda sorte. O mundo natural
experimenta suas mudangas constantes, mas, a despeito
disso, nado ha nada ali que corresponda a capacidade do
homem de se aperfeicoar, e sem aperfeicoamento tam-
pouco é apropriado falar-se em desenvolvimento. O apri-
moramento do homem ocorre no campo que transcende
a natureza, é dizer, a revelia do estado de coisas ao seu
redor, e 6 mesmo em razdo disso que esse actimulo é pos-
sivel. 0 processo de desenvolvimento do homem, porque
atrelado a nota essencial de sua liberdade, é-lhe igual-
mente essencial.
VIII. A sustentabilidade nao demanda uma escolha
aprioristica entre as vertentes ecolégica e humana
E da esséncia do principio da sustentabilidade o
equilfbrio, o contrabalanceamento e as compensagées entre
suas valéncias. Se, por um lado, a sustentabilidade tem por
fun¢ao primordial a garantia de se tomar sempre em con-EVERTON LUIS GURGEL SOARES 143
sideracgdo o que é imanente ao homem, por outro, nao é
menos certo que a dimensao natural também se abriga no
mesmo principio.
IX. O equilibrio entre as vertentes se verifica
somente até que o principio seja manejado para
a solucdo de um caso concreto
Ha um embate axioldgico interno entre as dimensdes
do principio da sustentabilidade do qual resulta a preva-
léncia de uma ou de outra na mesma medida em que o
caso concreto o exigir e a vista das demais normas aplicaveis
a hipétese. Onde se apresentem preceitos da ecologia
radical, por exemplo, a dimensdo metanatural ganha corpo
para lhe fazer frente.
X. A ecologia profunda ou radical
Ecologia profunda ou radical é um conceito aglutinador
de algumas correntes doutrinarias que abrigam, as vezes
mais, As vezes menos, as seguintes ideias: biocentrismo ou
ecocentrismo; igualdade de direitos entre as espécies ou
entre os homens e o mundo natural (vivo ou ndo-vivo);
valor intrinseco da natureza, em seu conjunto (visdo
holistica) ou em seus elementos individualizados; retorno a
um estado natural de simbiose com a natureza, que impor-
taria, pelo menos como um modelo utdpico, no regresso
ao modo de vida rtistico ou selvagem; ruptura filosdfica e144 O PERIGO VERDE
politica com os preceitos do humanismo, porquanto este
seria responsavel pela fundamenta¢ao tedérica do dominio
do homem sobre a natureza.
XI. Radicalismo ecolégico: o louvor ao que é na-
tural descortina-se concomitantemente 4 repulsa
a humanidade
Outro ponto de contato entre as escolas da ecologia
profunda é o viés anti-humano, que reconhece, no homem
e em tudo o que o distingue do natural, o mal que assola a
existéncia. Por isso a ecologia radical assume um recorte
claramente misantropico, além de promover com afinco a
heuristica do medo. Sao muitos os exemplos de manifes-
tacdes da ecologia profunda que seguem essa trilha (ver
pags. 39-41). Algumas vezes 0 6dio ao humano é expresso
com uma evidéncia desconcertante; em outras dissimula-se
em meio a exaltagao a eugenia, que nado é menos do que a
mesma misantropia, mas vertida contra uma parcela nao
eleita da humanidade.
XII. Oposi¢ao ao ambientalismo ou reformismo
ecolégico
A ecologia radical contrap6e-se ao ambientalismo ou
ao reformismo ambiental, entre outras razées, por negar que
a solucdo para os problemas ecoldgicos envolva a mera
reforma ou mudanga pontual das instituigdes sociais,EVERTON LUIS GURGEL SOARES 145
politicas e econdémicas. A ecologia profunda quer ir além e
propor uma mudanga basilar de paradigmas que desca as
raizes da ética e da estrutura social.
XIII. Incompatibilidade do holismo ecolégico com
o principio da sustentabilidade
O holismo ecoldégico, defendido pela ecologia radical,
nao compactua com o principio da sustentabilidade porque
seu traco totalizante incompatibiliza-se com a divisdo, pr6-
pria da sustentabilidade, entre as diferentes dimensdes
do principio. Na concepg¢ao holistica, descaberia falar em
vertentes natural e humana como dois compartimentos
estanques, ja que so 0 todo seria digno de consideracao e,
por isso mesmo, haveria de sobressair as parcelas. O prin-
cipio da sustentabilidade é, portanto, incompativel com a
teoria holistica e constitui, por isso, um principio normativo
que se lhe apresenta em contraponto.
XIV. A falacia naturalista
Ha forte oposi¢ao doutrinaria contra a possibilidade
de se extrafrem, como quer a ecologia radical, disposigées
normativas das coisas em si, é dizer, extrair, do ser, 0
dever-ser; ou, da natureza, a moral. O que se convencionou
chamar de faldcia naturalista se constituiria em impedi-
mento intransponivel a edificagao de um quadro ético que
seja extraido do mundo natural.146 O PERIGO VERDE
XV. Neomisticismo e vontade ambiental minori-
taria
E tudo face da mesma moeda: a concep¢ao de uma
moral como algo a ser extraido da natureza; uma vonta-
de ambiental minoritaria impositiva e autoritaria, porque
calcada na verdade absoluta encontrada na natureza; uma
ética preordenada a construir um novo homem; a pre-
dominancia dos sentimentos na delineacdo dos ditames
morais; um neomisticismo que atribua a instancias me-
taffsicas a disciplina da relacdo travada entre os homens,
bem como entre estes e 0 mundo natural. E contra isso
que se posiciona o principio da sustentabilidade, mediante
o exercicio de ponderagao de valores que coloque em um
mesmo patamar as vertentes natural e metanatural do
desenvolvimento.
XVI. Liberdade, o coragao da vertente metanatural
da sustentabilidade
A capacidade de romper com o que é natural rela-
ciona-se primordialmente com uma caracteristica huma-
na: a liberdade. O que se designa por liberdade nesse caso
trata-se, em esséncia, da aptidao de esquivar-se dos compor-
tamentos guiados pelo instinto. A possibilidade de esca-
par de seus impulsos por meio da razao da ao homem a
capacidade de transpor-se para além dos determinismos
naturais, para um plano metanatural, por assim dizer. AEVERTON LUIS GURGEL SOARES 147
liberdade permite ao homem nao apenas se desvencilhar
da natureza, como também desgarrar-se de suas origens
culturais, nacionais, de suas praticas consuetudinarias.
Desse modo, para além de decalcar-se dos designios
naturais, o homem pode também renunciar a cultura na
qual esta imerso, como o faz ao aprender uma nova lingua
(para lanc¢ar mao do exemplo dado por Ferry), ou ao repu-
diar os usos e costumes de sua terra.
XVII. O retorno a natureza, pugnado pela ecologia
radical, é a nao liberdade
O retorno a natureza, como quer a ecologia radical,
significa enraizar-se e submeter-se ao destino tracgado
pelo corpo e pelo ambiente. E a nao liberdade. E 0 ato de
desenraizar-se que permite ao homem “pér-se no lugar do
outro” ou “entrar em comunica¢do com outrem”, para usar
as express6es de Ost e Ferry. As expressdes sao distintas,
mas empregadas pelos autores para designar a mesma
coisa: a capacidade de universalizacao. Entao veja que a
possibilidade de colocar-se no lugar do outro, de comunicar-
-se com outrem ou de se transportar de um status cultural
para outro remete a ideia de que o homem é um, mas poten-
cialmente muitos. Por isso tanta rejei¢ao da ecologia radical
ao universalismo refletido na economia de mercado e na
globalizacao (ou na chamada americaniza¢ao). Sao rejeicdes,
todas elas, ndo por mero acaso, compartilhadas com dou-
trinas fascistas.148 O PERIGO VERDE
XVIII. O respeito pela natureza constitui um impe-
rativo categérico kantiano
Para Kant, em respeito as leis universais da natureza,
ao lidarmos com os objetos, isto é, com o mundo natural,
haveremos de respeitar as leis universais que regem a
natureza, do mesmo modo que, ao lidarmos com outro
homem, devemos nos guiar pela potencial universalizacao
de nossos atos. Por isso, é correto dizer que, na filosofia
kantiana, constitui um imperativo categérico o respeito
pela natureza e pelos mecanismos que a mantém integra. O
imperativo categorico expresso nesses termos nao impede,
entretanto, que o homem, ao produzir cultura na condi¢gao
de ser livre, ultrapasse a no¢ao formal de natureza.
XIX. A segunda natureza, por Bookchin
O conceito de segunda natureza elaborado por Murray
Bookchin confere uma feicdo coletiva 4 capacidade do
homem de se furtar ao determinismo natural. 0 ponto-
-chave do conceito reside na peculiar caracteristica hu-
mana de poder acumular cultura. Caracteristica que, para
Bookchin, deflagrou o processo evolutivo que fez o homem
superar a fase de sujei¢ao as leis naturais (0 que chama de
primeira natureza) e ingressar em outra em que a humani-
dade seguiu uma trilha propria de evolucao social e cultural.
Essa trilha propria levou-a a formacdo de uma sociedade
altamente institucionalizada, justamente 0 que Bookchin
denomina segunda natureza.EVERTON LUIS GURGEL SOARES 149
XX. A neutralidade social da ecologia radical a
torna palatavel para as esferas de poder
A cisdo entre problemas sociais e ecoldgicos é uma
das mais marcantes caracteristicas da ecologia profunda.
Sua neutralidade social é justamente o que a torna tao pala-
tavel para os grandes circulos de decisdo. Tal caracteristica
faz do impeto anti-humanista da ecologia radical algo ainda
mais perigoso e preocupante.
XXI. O principio da sustentabilidade nao se coa-
duna com o igualitarismo entre as espécies
O papel do principio da sustentabilidade como fiador
do que é proprio da humanidade ja n4o faria qualquer
sentido se nao fosse admitida uma diferenga essencial
entre o homem e o mundo natural. Uma vez que a igualdade
entre as espécies (ou o combate ao especismo) é uma das
pedras de toque da ecologia profunda, novamente aqui a
sustentabilidade se lhe revela um obstaculo.
XXII. Animais nao sao sujeitos de direito
Ha uma clara diferenciacao qualitativa entre o homem,
as demais espécies vivas e 0 restante do mundo natural.
S60 homem é dotado de liberdade e razao. S6 0 homem é
um ser moral, pelo arbitrio que a razdo e a liberdade lhe
outorgam. Se sé ele - e nado um animal irracional qualquer
- pode, por exemplo, vir a cometer crimes, isso se deve ao150 0 PERIGO VERDE
fato de que sé a humanidade é igualmente capaz de agir
em conformidade com valores tais como o respeito a vida,
Asatide ea liberdade. 0 homem é, assim, ao mesmo tempo,
liberto e prisioneiro de sua propria racionalidade. Como
ensina Soromenho-Marques, as nossas obrigagées para
com os animais nao sao fruto de uma légica sinalagmatica
entre direitos e deveres. Vale dizer, nado é porque temos
deveres em face dos animais que estes gozardo também
de direitos, haja vista a assimetria brutal existente entre
animais e homens.
XXIII. Econazismo e pioneirismo ecologico do
regime nazista
O nacional-socialismo alemdo editou, na década de
trinta, o que veio asera mais moderna legislacao de prote¢ao
animal e de conservagao da natureza ja vista até entdo.
Dé-se especial realce a Lei do Bem-Estar Animal, de 1933,
cujo pioneirismo no reconhecimento do valor intrinseco
dos animais nao diverge do discurso atual da ecologia pro-
funda. A Lei diz que deve ser reconhecido o “direito que os
animais, enquanto tais, possuem de serem protegidos por
si proprios”. Para nao deixar dtividas, acrescenta: “nao se
fara, pois, nenhuma diferen¢a entre animais inferiores e
superiores, ou ainda entre animais titeis e prejudiciais ao
homem”. Além disso, Biehl e Staudenmaier chegam a fazer
referéncia ao que seria uma “ala verde” do nazismo, que
incluiria Todt, Seifert, Hess, Himmler, Rosemberg e Darré.
Este ultimo, tendo merecido de um bidgrafo o epiteto
de pai dos verdes, era o responsavel pela politica nazista
do sangue e solo, que nao se distancia da associa¢ao entreEVERTON LUIS GURGEL SOARES 151
homem e natureza tao desejada pela ecologia radical. A po-
litica do sangue e solo, do nacional-socialismo alemdo,
antitese do homem livre e transcendente, demonstra como
doutrinas fascistas se amoldam a ecologia radical, dela se
apropriando para renovar antigos e odientos preceitos.
Como assinala Luc Ferry, “o que é o racismo, no seu fundo
filoséfico, senado a pretensao de encerrar uma categoria de
humanos numa definicdo essencialista? (0 que é 0 mes-
mo que vincular o homem a uma determinada natureza)”.
Além disso, a inclinagdo ecoldgica do regime podia ser
identificada na exploragado romantica, pela propaganda
nazista, do retorno do povo a sua terra e a suas tradicées,
com os germanicos apoderando-se do solo que, por desti-
nacao natural, Ihes pertenceria. Referidos autores lembram,
ademais, que o Estado nazista era prodigo no uso da agri-
cultura organica, no planejamento paisagistico-ecolégico
e na conserva¢ao da natureza.
XXIV. Fundamentos comuns entre ecologia radical
e doutrinas totalitarias
Ha fundamentos comuns que alicergam igualmente a
ecologia radical, o nazismo e outras doutrinas de premissas
totalitarias, tais como os demais matizes de fascismo e
mesmo o comunismo. Sendo veja que todas elas nutrem
uma repulsa a sociedade de consumo; ao mercado; ao libe-
ralismo; e, com excecdo do comunismo, a modernidade;
a técnica; ao universalismo; 4 unidimensionalidade (que
outorga aos homens a aptidao para desgarrar-se da natureza
e de suas tradi¢6es, tornando-os ainda mais semelhantes
uns com outros, estejam do lado daqui ou do lado de 1a152 O PERIGO VERDE
de qualquer fronteira politico-cultural). Nutrem também
uma repulsa comum 4a heranga humanista, mensageira da
liberdade e da universaliza¢ao do espirito humano. (Nao
somos todos legisladores universais, como disse Kant?)
Em correspondéncia coma repulsa a tudo isso, essas mes-
mas correntes de pensamento, também em comum com
a ecologia profunda, nutrem o anseio por uma mudanga
messianica do mundo; por construir um novo homem; por
erigir uma nova moral, que possa extrair dos homens seus
vicios e males; por reformar a sociedade de acordo com a
natureza; por exacerbar o patriotismo, por vezes o ultimo
refuigio de tais doutrinas.
XXV. Da ameaga aos direitos fundamentais
A ecologia profunda ou radical insiste em se insurgir
contra o estabelecimento dos direitos fundamentais. Nao
se trata apenas de combater o que seria a expressdo de um
antropocentrismo injustificavel, mas de opor-se a heran¢a
das luzes em geral - da qual os direitos humanos provém
=, que se contrapée claramente ao desejo da ecologia radical
de mimetizar o homem na natureza. Para isso, s6 mesmo
ferindo de morte o humanismo, mas ndo sem antes cobrir-
-se com 0 manto da nobre causa ecolégica. A perda, ou,
nem tanto, o abrandamento da eficacia dos direitos funda-
mentais abriria terreno para a ado¢ao de medidas que teriam
por efeito o constrangimento dos atributos humanos que
transcendem a natureza. O principio da sustentabilidade,
nos moldes aqui sugeridos, constitui um contraponto a tal
constrangimento.