You are on page 1of 32
EN igs Julian Maria Esta obra foi publica originalmente em espankol com o titulo HISTORIA DE LA FILOSOFIA por Alianza Editovial, Madri. Copyright © Julién Mavfas, 1941. Copyright © 2004, Livraria Martins Fomes Editora Lida, ‘Sdo Paulo, para a presente edigdo. A presente edigio foi traducidla com a ajuda da Direccién General del Libro, Archivos y Bibliotecas do Ministerio de Educacién, Cultura y Deporte. da Espanka, Fedigao Junho de 2004 ‘Tradugio (CLAUDIA BERLINER Revisio téeniea Franklin Leopoldo e Silva Acompanhamento editorial Lucia Aparecida dos Santos Revisbes gréficas Renato da Rocka Carlos Sandra Garcia Cortes Dinarte Zorzanelli da Sitva Producao grifiea Geraldo Alves Poginacio/Fotolitos Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogacao na Publicagio (CTP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasit) ‘Maries, Juin, 1914- Histria da flosofia / Julian Macias; prologo de Xavier Zubir epilogo de José Ontega y Gasset; tradugio Claudia Berlin ‘io técnica Franklin Leopoldo e Silva. tes, 2004, ‘io Paulo : Martins Fon- ‘Titulo original: Historia de la filosoia Bibliograia. ISBN 85-336-1992-8 1. Filosofia — Histéria 1 Zubiri, Xavier. I, Ortega y Gasset, José 1M. Titulo, 04-3080 epp-109 Tndces para eatilogo sstemtico 1: Flosofin:Histria | 109 Todos os direitos desta edigdo para o Brasil reservados & Livraria Martins Fontes Editora Ltda. ‘Rua Consetheiro Ramatho, 330'340 01325-000 Sao Paulo SP Brasil Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3105.6867 e-mail: info@martinsfontes.com.br hitp:liwww.martinsfontes.com.br IV. ARISTOTELES Com Aristoteles, a filosofia grega atinge sua plena ¢ total maturi- dade, de modo tal que a partir de entao comecara sua decadéncia, ¢ ja- mais voltara a alcangar altura semelhante. A Grécia nem sequer € ca- paz de conserva a metafisica aristotélica, pois lhe falta entendimento para os problemas filoséficos na dimensio profunda em que os for- mulara Aristételes, ¢ 9 pensamento helénico se banaliza nas maos das escolas de moralistas que povoam as cidades helénicas e em seguida as do Império Romano. Aristételes é - com Platao — a maior figura da filosofia grega, e talvez de toda a filosofia. Determinou em maior me- dida que qualquer outro pensador os caminhos que depois dele a fi- losofia viria a percorrer. Foi o descobridor de um profunde estrato das questées metafisicas; o forjador de muitos dos mais importantes con- ceitos que 0 intelecto humano maneja ha muitos séculos para pensar 0 ser das coisas; o criador da légica como disciplina que até hoje se mantém quase nos limites que lhe deu Aristételes, excetuando-se duas ou trés tentativas geniais ao longo de toda a historia da filosofia; 0 ho- mem, em suma, que possuitt todo o saber de seu tempo, ¢ que onde pés a mao deixou a marca tnica de sua genialidade. Por isso Aristéte- les esteve presente de modo incalculavel em toda a filosofia, e talvez Por isso seja nosso primeiro problema, aquele com que se tem de en- frentar mais seriamente 0 pensamento atual se quiser expor a razio de si mesmo e situaz-se radicalmente em seu proprio tempo e no au- téntico problema da filosofia. Vida ¢ Aristételes nao era um grego puro, e sim um macedonio, embora com fortes influéncias gregas. Nasceu em Estagira, na penin- 65 HisTOrIA Da FILOSOFIA sula Calcidica, no ano de 384 a.C. Seu pai, Nicdmaco, era médico e amigo do rei da Macedonia, Amintas 1. E possivel, como assinala Ross, que essa ascendéncia tenha exercido influéncia no interesse de Arist6- teles pelas questoes fisicas e biolégicas. Aos 18 anos entrou para a €s- cola de Platao, em Atenas; ali permatieceu por dezenove anos, até a morte do mestre, na qualidade de discipulo e de mestre também, in- timamente vinculado a Platio ¢ ao mesmo tempo em profunda dis- crepancia. Aristoteles, o tinico auténtico platénico, mostra qual o sen- tido exclusivo em que € posstvel um verdadeiro discipulado filosdfico. Com a morte de Platéo, Espeusipo encarrega-se da diregao da Acade- mia, ¢ Aristoteles sai dela e de Atenas. Foi para a Misia, onde perma- neceu trés anos € se casou; mais tarde, com a morte da esposa, teve outra mulher, mae de seu filho Nicomaco; também esteve em Mitile~ ne, na ilha de Lesbos. Por volta de 343, Filipe da Macedonia convidou-o para se encar- regar da educacao de seu filho Alexandre, que tinha 13 anos. Arist6- teles aceitou e rumou para a Macedénia. A influencia de Aristoteles sobre Alexandre deve ter sido grande; sabe-se que divergiam em re- lacao & questao da fusdo da cultura grega com a oriental, que Arist6- teles nao considerava conveniente. Em 334 voltou para Atenas e fun- dou sua escola, Nos arredores da cidade, num pequeno bosque con- sagrado a Apolo Liceu ¢ as Musas, alugou varias casas, que viriam a constituir o Liceu. Ali tratava com seus discipulos, passeando, das questées filoséficas mais profundas; por isso foram chamados de peri- patéticos, A tarde expunha para um auditorio mais amplo temas mais acessiveis: retérica, sofistica ou politica. Aristoteles desenvolveu uma intensissima atividade intelectual. Quase todas as suas obras s4o dessa época. Reuniu um material cien- tifico incalculavel, que Ihe possibilitou fazer avangar de modo prodi- gioso o saber de seu tempo. Com a morte de Alexandre, em 323, sur- giu em Atenas um movimento antimacedénico, que acabou sendo hostil a Aristételes: foi acusado de impiedade e ndo quis — disse - que Atenas pecasse pela terceira vez contra a filosofia — referia-se & perse- guicao de Anaxagoras e a morte de Socrates; por isso, mudou-se para Calcis, na ilha de Eubéia, onde a influéncia macedénica era forte, ¢ ali morreu no ano de 322. 66 ARISTOTELES Obras * Aristételes escreveu dois tipos de livros: uns, chamados exotéricos, destinados ao grande publico, eram, de forma geral, didlo- gos, cuja elegancia e valor literario so muito elogiados; os outros, fi- loséficos ou acroamaticos, ou também esotéricos, tratavan das questdes mais profundas ¢ eram dirigidos exclusivamente aos nucleos reduzi- dos do Liceu; sua forma era, em geral, ado curso ou licdes, e foram as vezes conservados com redacao provisoria, sem elaboracdo, como simples anotagées. Todos os didlogos se perderam; restam apenas frag- mentos; em contrapartida, o principal da obra cientifica de Aristételes foi conservado. Deve-se, por certo, levar em conta que entre os escri- tos aristotélicos encontram-se alguns apécrifos, ¢ em muitos casos fo- ram feitos em colaboracao com discipulos, ou foram redigidos por es- tes com base em suas anotagoes e papéis de aula. Aristoteles divide as ciencias em teoricas, praticas e poéticas. E preciso explicar esta divisao. Poiésis, de onde vem poesia, quer dizer em grego producio, fabricagdo; o que a caracteriza é ser uma ativida- de que tem um fim distinto dela mesma; por exemplo, a fabricacao de um armario, cujo fim é 0 armario, ou a composigao de uma ode, cujo fim é também a ode. A praxis ou pratica € uma acdo, uma atividade, cujo fim é ela mesma, nado uma coisa externa ao agir; € superior, por ter o fim em si, e, portanto, suficiéncia, a autarquia, tao estimada pe- los gregos; um exemple seria a politica. A theoria ou contemplacio é um modo de praxis; nado devemos esquecer que a teoria € também pratica; ndo se opdem exceto na medida em que a teoria é a praxis su- prema, diferentemente do que s6 € pratico, mas nao chega a ser teori- co. A contemplacdo € uma atividade cujo fim é ela mesma, mas que ademais contém em si mesma seu proprio objeto, O politico, por exem- plo, precisa de algo além dele, a cidade, para poder exercer sua acdo; o homem tedrico nao precisa de outra coisa sendo de sua propria men- te; € o mais suficiente de todos e, portanto, superior. Dessa distincao depreendem-se trés tipos de vida e trés modos de ciéncia. E, antes de tudo, uma que néo entra em nenhum deles, mas é an- terior: a légica. Trata-se — assim foi intitulada ~ do Organon, instrumen- to, e serve para todas as ciéncias. O Organon de Aristoteles esta com- 67 HISTORIA DA FILOSOFI posto de diversas tratados: Categorias, De interpretatione, Analiticos (pri- meiros e segundos), Tépicos, Refutacdes sofisticas e outros pequencs escritos légicos. As ciéncias tedricas sio a matemitica, a fisica e a metafisica. As principais obras deste grupo sio a Fisiea, o livto Do céu, o Do mundo, 0 De anima e uma série de tratados sobre questoes fisicas ¢ bioldgicas; e, sobretudo, os catorze livros da Metafisica ou Filosofia primeira. As ciéncias praticas sio a ética, a politica e a economia, ou seja, as da vida individual ¢ social do homer. Suas principais obras sao as trés Fticas — Etica a Nicémaco, Etica a Eudemo e Grande Etica (a menor das trés ¢ nao auténtica) -, a Politica ¢ os Econdmicos, estes ultimos de interesse bem inferior, ¢ certamente apécrifos. As obras poéticas capitais sao a Poética, que exerceu extraordind- ria influéncia, ¢ a Retorica. Aisso se deve agregar uma grande quanticlade de breves tratados sobre todas as matérias da enciclopédia cientifica aristotélica e um re- pertério de questdes variadas, de redagéo provavelmente posterior, que se chama Problemas. Foi isso que de mais importante nos restou da obra de Aristoteles. 1. Os graus do saber No comeco de sua Metafisica, Atistoteles coloca a questio do sa- ber por exceléncia, que é justamente o que ele chamou de filosofia pri- meira e desde a edicao de Andronico de Rodes é tradicionalmente chamado de metafisica. (Os livros da filosofia primeira foram coloca- dos atras dos de fisica e sao chamados de td metét ta physika; esta de- nominagao, puramente editorial, foi posteriormente interpretada como um além da fisica, como uma transfisica, ¢ desse acaso, como é bem sabido, nasceu o nome da suprema ciéncia filosdfica.) A primeira frase da Metafisica diz: “Todos os homens tendem por natureza a saber.” E logo acrescenta que o sinal disso é 0 gosto que te- mos pelas sensacées e, sobretudo, pela da vista; e distingue o uso que fazemos delas por sua utilidade para fazer algo, do gosto que também temmos quando ndo vamos fazer nada. Mas essas sensagdes, que su- 68 ARISTOTELES poem um infimo saber, nao sao privativas do homem; também os ani- mais as tém, ¢ alguns deles até memoria, que pela permanéncia da re- cordagio permite aprender. © homem, em contrapartida, tem;outros modos superiores de saber, antes de tudo, a experiéncia, empetria, no sentido de “experién- cia das coisas’. £ um comhecimento de famitiaridade com as coisas, com cada coisa, de um modo imediato e concreto, que s6 nos é dado pelo individual. Por isso a empeiria nao pode ser ensinada; pode-se apenas dar ao outro condicées para adquitir essa mesma experiéncia. Ha outro modo de saber mais elevado, que € a arte ou técnica, téxvn. A arte em seu sentido tradicional, como quando se fala da arte de cu- rar, que é o exemplo a que mais imediatamente se refere Aristoteles. A tékhne € um saber fazer, O tekhnites, 0 perito ou técnico, é o homem que sabe fazer as coisas, sabe que meios empregar para alcangar os fins desejados. Mas a arte nfo nos da o individual, apenas certo uni- versal, uma idéia das coisas; por isso pode ser ensinada, porque do universal se pode falar, ao passo que o individual s6 pode ser visto ou. mostrado. Portanto, a téklne é superior 4 empeiria; mas esta também € necessaria, por exemplo para curar, porque o médico nao tem de cu- rar o homem, ¢ sim Sécrates, um individuo que é um homem; portan- to, diretamente Sécrates, e o homem apenas de modo mediato. Esta tékhne nos da o qué das coisas, e até seu porque; mas $6 co- nhecemos algo plenamente quando o sabemos em suas catisas e em seus principios primeiros. Esse saber s6 a sabedoria, a sophia, pode nos dar. Esse saber supremo tem de dizer o que as coisas sao e por que S40; isto é, tem de demonstrar as coisas a partir de seus principios. A cién- cia, o saber demonstrativo se chama em grego epistéme; esta é a verda- deira ciéncia, a ciéncia que Aristoteles busca, Cntouévn émoriun. Mas os princfpios néo sao demonstraveis — por isso sao principios -, nao derivam de nada; por isso é preciso haver uma intuicdo deles, e esta € 0 nolis, outro momento essencial que, com a epistéme, compoe a verdadeira sabedoria. E com isso chegamos ao grau supremo da cién- cia, que tem por objeto o ente enquanto tal, as coisas na medida em que sdo, entendidas em suas causas € principios. Todas as cigncias — diz Aristételes — sio mais necessirias que esta: superior, nenhuma. 69 | | i : | | | ' | | | i i HisTOIA DA FILOSOFLA Eaesse saber, a filosofia, em suma, chegaram os homens pelo as- sombro, ¢ 0 assombro é sempre, hoje como no primero dia, a raiz do filosofar. 2, A metafisica Aristételes define a filosofia primeira (Metafisica, IV, 1) como a ciéncia que considera universalmente 0 ente enquanto tal, ow seja, a to- talidade das coisas enquanto sio, As outras ciéncias estudam uma parte das coisas, segundo um acidente determinado: por exemplo, a botanica estuda as plantas enquanto organismos vegetais; a matema- tica, as figuras ¢ os niimeros do ponto de vista da medida. A metafisi- ca, em contrapartida, tem como objeto a totalidade das coisas, mas enquanto sdo, 0 ente enquanto ente, 16 dv i bv. Por outro lado, Atis- toteles diz que a metafisica € uma ciéncia divina, em dois sentidos: no sentido de que se Deus tivesse alguma, seria ela, e além disso no sen- tido de que o objeto da metafisica € Deus; e por isso a chama vambém ciéncia teolégica ou teologia, Geodoyin} Emompn. E, por ultimo, defi- ne-a em outros lugares como ciéncia da substancia, nepi Tig obaiac. Que quer dizer isso? Sao tres ciéncias, ou € uma 56? Esse problema preocupa profundamente Aristoteles, que volta a ele varias vezes € afirma a unidade da Bilosofia primeira. A metafisica é uma ciéncia tini- ca, e 0 € a um SO tempo do ente enquanto tal, de Deus e da substan- cia, Tentaremos mostrar a conex4o interna desses trés momentos ¢, com isso, a unidade da metafisica aristotélica O ente enquanto tal + Existem diferentes pos de entes. Em pri- meiro lugar, as coisas naturais, os objetos fisicos. Para Aristoteles, a na- tureza é 0 principio do movimento das coisas Gpxz} ths mviisews); algo é natural quando tem em si mesmo o principio de seu movimen- to, por exemplo uma drvore ou um cavalo, diferentemente de uma mesa. (Entenda-se, principio de seu movimento ou de seu repouso natural, como a pedra). As coisas naturais $40, portanto, coisas verda- deiras; no entanto, elas se mover, chegam a ser € deixam de ser, e nes- sa medida nao sao plenamente entes. Existe outro tipo de entes que nao se movern: os objetos matemdticos. Pareceria que a ciéncia que 70 ARISTOTELES: versasse sobre eles seria mais ciéncia. Mas t¢m um gravissimo incon- veniente: nao sao coisas; existem na mente, mas nao fora dela, separa- dos. Se na qualidade de iméveis tem mais dignidade de entes, na me- dida em que nao existem como coisas sfio menos entes. Como teria de ser um ente para retinir as duas condigées? Teria de ser imovel, mas separado, uma coisa. Esse ente, se existisse, se bas- taria a si mesmo e seria o ente supremo, o que mereceria em sua ple- nitude a denominacao de ente, Deus * Mas este ente Aristoteles chama de divino, Deus, 6e6¢. E aciéncia suprema que trataria dele seria uma ciéncia teologica. Ou seja, Deus é em Aristoteles aquele conjunto de condigdes metafisicas que fazem com que um ente o seja plenamente. A ciéncia do ente enquan- to tal e a de Deus, que € o ente por exceléncia, sao uma e a mesma. Esse ente é, por certo, vive, porque o ser vivo € mais plenamente que o inerte, Contudo, além disso tem de bastar-se a si mesmo. Re- cordemos que é possivel fazer muitas coisas, e duas possiveis ativida- des sio a poisis ¢ a praxis. A primeira é essencialmente insuficiente, pois tem um fim fora dela, uma obra. Se Deus fosse Deus por ter uma poiésis precisaria, para ser, daquelas obras e nao se bastaria a si mes- mo. Na praxis, em contrapartida, o fim nao é a obra o érgon, mas 0 proprio fazer, a atividade ou enérgeia. Pois bem: a praxis politica, por exemplo, tem dois inconvenientes; em primeiro lugar precisa de uma cidade na qual se exercer, e nessa medida nao é suficiente, embora o seja como atividade mesma: em segundo lugar, o saber do politico se refere sempre 4 oportunidade, ao momento, é um saber cairologico. Mas, como vimos, ha outro tipo de praxis, que é a theoria, a vida teorética. Trata-se de um ver e discernir o ser das coisas em sua totali- dade; esse modo de vida € o supremo; porianto, Deus ter de ter uma vida teorética, que € o modo maximo de ser. Mas nao basta; porque o homem, para levar uma vida teorética, precisa do ente, precisa das coi- sas para sabé-las, e ndo € absolutamente suficiente. Essa theoria s6 se- ria suficiente se se ocupasse de si mesma; por isso Deus € pensamento do pensamento, vonors vores. A atividade de Deus € 0 saber supre- mo, ¢ a metafisica é¢ divina por ser ciéncia de Deus, no duplo sentido de que Deus é seu objeto e a9 mesmo tempo seu sujeito eminente. 7h i i | i i HISTORIA DA FILOSOFIA Theoria nao € uma mera consideracdo, mas o cuidado de deixar que as coisas sejam o que séo, pé-las na luz Ev part). Isso € sophia, sa- bedoria, e, em sentido estrito, so Deus a tem. O homem sé pode té-la em certos instantes; o que pode ter uma filosofia, uma certa amizade com a sophia Aristoteles dira que para que o homem seja filosolo nao basta que ienha essa visao por um instante, € imprescindivel que te- nha uma ¥£1¢, um habito, uma maneira de viver. E ¢ isso que é verda- deiramente problematico (Zubiri). A substancia * Em terceiro lugar, a metafisica como ciéncia da substancia; é preciso mostrar que essa ciéncia ¢ una com a ciéncia do ente enquanto tal e com a de Deus. Diz Aristoteles (Metafisica, TV, 2) que o ente se diz de muitas maneiras, mas ndo de modo equivoco, € sim anal6gico; ou seja, em relacdo a um principio unico que dé uni- dade aos muitos sentidos. Por isso o ente ¢ uno ¢ multiple ao mesmo tempo, Como veremos mais adiante com maior precisio, 0 sentido fundamental do ser é a substdncia. Os outros modos dependem deste, porque todos siio ou substancias ou afeccdes da substancia. Acoré cor de uma substancia, ¢ se dizemos trés nos referimos a trés substan- cias, € até a privacdo encerra a mesma referéncia. Para que haja uma ciéncia é preciso haver uma unidade, uma certa natureza, segundo a qual se dizem as outras coisas. Essa unida- de éa da substancia, que € o sentido principal com que se diz 0 ser, 0 fundamento da analogia. Em todas as formas do ser est presente a substancia, e, portanto, esta nao é algo distinto do ente enquanto tale de Deus, mas 0 ente como ente enconira sua unidade na substancia. Trata-se, pois, de uma tnica filosofia primeira ou metafisica com sua triplice raiz. Comecamos buscando a ciéncia também buscada por Aristéte- les; descobrimos as caracteristicas da sophia ¢ vimos que € ciéncia de Deus, ¢ que é ciéncia do ente enquanto tal, porque Deus € 0 conjun- to das condicdes ontoldgicas clo ente. Virnos em seguida que essa cién- cia é também ciéncia divina porque nela o homem se assemelha a Deus. Vimos, por tiltimo, que essa ciéncia € ciéncia da substancia, que esta presente em todos os modos do ente. 6e6¢ nada mais € que o ente enquanto tal, a forma plena da substancia, ¢ nisso fundamenta-se a unidade essencial da ARISTOTELES, 3. Os modos do ser Aanalogia do ente » Um termo é univoco quando tem uma tini- ca significagao; por exemplo, homem; equivoco, quando tem uma plu- talidade de sentidos independentes, sei’ outra coincidéncia sendo a do vocabulo: a palavra gato, que designd ‘tum animal doméstico ou um aparelho para levantar grandes pesos. Vimos que a palavra ser nfo € equivoca, apesar de seus muitos sentidos, porque estes tém uma co- nex&o ou unidade entre si, nao sdo inteiramente dispares. E uma pa- lavra andioga ou analigica, como saudavel, que se diz de um alimento, do passear, de um medicamento, da cor da cara, e em cada caso quer dizer uma coisa distinta: que conserva a satide, que a produz, que a devolve, que € indicio dela etc. Coisas distintas, mas que envolvem uma referencia comum a satide. A satide ¢, pois, quem funda a unida- de analdgica. O mesmo ocorre, como vimos, com o ser, que tem sua unidade na substancia, porque todos os modos do ente sao substan- cia ou afeccdes dela, num sentido amplo. Convém, no entanto, precisar isso um pouco mais. Ao dizer que © ser se diz de muitas maneiras, ndo se quer dizer apenas que existem muitos entes, nem sequer que existem muitas classes de entes, mas que a palavra ser significa coisas distintas quando digo que algo é um homem, ou que é verde, ou que sao trés, ou que uma moeda é falsa. Nao sao os objetos nomeados que se distinguem, mas é o é que signi- fica uma coisa distinta em cada exemplo, embora sempre implique uma alusio, mediata ou imediata, @ substancia. Os quatro modos * Aristételes diz concretamente que o ser se diz de quatro maneiras. Esses modos sao os seguintes: 1°, 0 ser per se (Koe' ocdt6) ou per accidens (Kot ovpBeBnx6c), ou seja, por esséncia ou por acidente; 2°, segundo as categorias; 3°, o ser verdadeiro e o ser falso, e 4°, segundo a poténcia e 0 ato. Vamos examinar brevernente o sentido desses quatro modos de ser. “Per se” e “per accidens” * Quando dizemos, por exemplo, que o homem é miisico, isso € por acidente. Musico ¢ um acidente do homem; é, simplesmente, algo que acontece ao homem, mas que ndo pertence a sua esséncia. Quando dizemos que o justo é misico, tam- 73 I : | | HISTORIA DA FILOSOFIA bem € per accidens, porque os dois pertencem como acidentes a um sujeito, homem, que é musico ¢ justo. O ser per se se diz essencial- mente; o homem é um ser vivo, por exemplo, nao acidentalmente, mas por sua esséncia. Esse ser essencial se diz em diferentes acepcdes, que sao os modes segundo os quais sépode predicar o ser. E esses mo- dos so os chamados predicamentos ot categorias. Categorias * As categorias sao os diversos modos como o ser pode ser predicado. E sao, por isso, as flexdes ou quedas do ser, rtoEIg tod Svtocg. Aristételes fornece varias listas desses predicamentos, e a mais completa compreende dez: substancia (por exemplo, homem), quan- tidade (de quatro palmos de altura), qualidade (branco), relacéo (do- bro), lugar (no Liceu), tempo (ontem), posicdo (sentado), estado (cal- ado), acdo (corta), paixao (cortam-lhe). Nao se trata da diferenca en- tre essas coisas, mas de que o proprio ser se flexiona em cada um cesses modos e quer dizer uma coisa diferente em cada uma das categorias. Por isso, se 4 pergunta “o que é isto?” se responde “sete”, trata-se, sem considerar a veracidade ou falsidade, de uma incongruéncia, porque o é da pergunta se move na categoria de substancia, ¢ a resposta na de quantidace. Essas categorias tém uma unidade que é justamente a subs- tancia, porque todas as demais se referem a ela: é 0 caso mais claro da unidade analdgica. A substancia esta presente em todas as outras ca- tegorias, que nao tém sentido exceto a partir do pressuposto dela, a qual em ultima instancia se referem. O verdadeiro ¢ 0 falso * A veracidade ou falsidade se da prima- riamente no juizo. O enunciado A é B, que une dois termos, encerra necessariamente verdade ou falsidade, conforme una o que esta na realidade unido ou o que est separado: o inverso pode ser dito da negacao, Mas ha um sentido mais radical de verdade ou falsidade, que € a verdade ou falsidade das coisas, a do ser. Assim, dizemos que algo € uma moeda falsa, ou que é café verdadeiro. Aqui a verdade ou falsidade corresponde a propria coisa. E quando dizemos que 2 mais 2 sao 4, 0 sentido do verbo ser € o de ser verdade. Algo é verdadeiro @anPéc) quando mostra o ser que tem, e é falso (yedSog) quando mos- tra outro ser que ndo o seu, quando manifesta um por outro; quando tem, portanto, aparéncia de moeda o que é um simples disco de chum- 74 ARISTOTELES bo. O disco de chumbo, como tal, € perfeitamente verdadeiro, mas é falso como moeda: ou seja, quando pretende ser uma moeda sem s¢-lo, quando mostra um ser aparencial que na realidade ndo tem. Aqui apa- rece o sentido fundamental da verdade:(éGe1a) em grego. Verdade é estar descoberto, patente, e ha falsidadé. quando o descoberto nao é o ser que se tem, mas um aparente; ou seja, a falsidade ¢ um encobri- mento do ser quando se descobre em seu lugar um enganoso, como quando se encobre o ser de chumbo por tras da falaz aparéncia de moeda que se mostra. A poténcia e 0 ato * Por ultimo, o ser se divide segundo a potén- cia (Sivopnc) € o ato Evépyera). Um ente pode ser atualmente ou ape- nas uma possibilidade. Uma arvore pode ser uma arvore atual ou uma arvore em poténcia, em possibilidade, por exemplo uma semente. A semente € uma arvore, mas em poténcia, como a crianca é um ho- mem, ou o pequeno, grande. Mas € preciso ter em mente duas coisas: em primeiro lugar, nao existe uma poténcia em abstrato, uma potén- cia é sempre poténcia para um ato; isto ¢, a semente tem poténcia para ser carvalho, mas nao para ser cavalo, nem sequer pinheiro, por exemplo; isso quer dizer, como afirma Aristételes, que 0 ato é ante- rior (ontologicamente) 4 poténcia, como a poténcia ¢ poténcia de um ato determinado, o ato ja esta presente na propria potencialidade. O carvalho esta presente na bolota, e a galinha no ovo; pela simples ra- zo de que nao existem oves assim, sem mais, em abstrato, mas que 0 ovo , por exemplo, de galinha, o que significa que a galinha ja esta implicada no ovo e é quem lhe confere sua poténcia. Em segundo lu- gat, o ser em poténcia, para existir, precisa ter certa atualidade, embo- ra ndo como poténcia. Isto é, a semente, que € carvalho em poténcia, € bolota em ato, e 0 ovo ~ galinha em poténcia ~ é um ovo atual e mui- tissimo real. O mesmo ente tem, portanto, um ser atual ¢ o ser potén- cia de outro ente. Isso é sumamente importante para a interpretacao imetafisica do movimento. A idéia de atualidade se expressa em Aristételes com dois termos distintos: enérgeia Gvépyera) e enteléquia Evtedéxera.). Embora as ve~ zes sejam usados como sinénimos, nao s4o equivalentes, porque enér- geid indica a simples atualidade, ao passo que enteléquia significa o 75 HISTORIA DA FILOSOFIA que atingiu seu fim, seu telos, ¢, portanto, supde uma atualizagao. De Deus, que é ato puro, que nao tem, como veremos, poténcia nem mo- vimento, que é, portanto, atual, mas no atualizado, cabe dizer que € enérgeia, mas nao, a rigor, enteléquia. Vemos, pois, que os modas do sét; que sdo quatro, tém uma uni- dade analégica fundamental que ¢ a da substancia, Por isso Aristote- les diz que a pergunta fundamental da metafisica é: “o que € 0 ser?” € acrescenia a titulo de esclarecimento: “isto é, 0 que ¢ a substdncia?” Examinaremos agora a andlise ontoldgica da substancia que Aristote- les faz. 4. A substancia Substancia se diz em grego oboia. Esta palavra quer dizer na lin- guagem usual haveres, fortuna, bens, aquilo que se possui. E 0 con- junto das disponibilidades de uma coisa, aquilo de que se pode lan- car mao. Em espanhol so encontramos um sentido semelhante quan- do falamos de que algo tem muita substéncia; um caldo, por exemplo, que dizemos ser substancioso; ou também, em outro sentide, quando falamos de uma pessoa insubstancial, carente de substancia. A pala- vra substdncia aponta para outra ordem de idéias: € sub-stantia, o que esta debaixo, sujeito, em seu sentido literal de sub-jectum, que é a tra- ducdo, nao de oboia, mas de outro termo grego droygitievov, que quer dizer substrato ou sujeito. Esse momento é decisivo: a substin- cia é suporte ou substrato de seus acidentes; 0 vermelho, o duro, 0 quadrado etc. estdo suportados pela substincia mesa. Por outro la- do, os acidentes sao predicados de outra coisa, de um sujeito, e inver- samente, a substancia nao é predicado de nenhuma outra coisa. A me- sa € mesa por si ao passo que o vermelho é vermelho da mesa. Mas nao se deve esquecer que esse sentido de substrato nao ¢ o primario, e sim o de ousia, e que justamente por ter um haver proprio pode a substancia ser um sujeito ao qual se atribuam como predicados os acidentes. Por isso, a substancia é antes de tudo coisa, algo separa- do, independente, que existe por si e nao em outro. E 0 mode funda- mental da substancia é a natureza (por), porque vimos que consis- 76 ARISTOTELES te no princfpio do movimento, naquilo que constitui as possibilidades proprias de cada coisa. Mas existem varias classes de substancia. Antes de tudo, temos as coisas concretas, individuais: este homem, esta arvore, esta pedra. Sao as substancias em sentido mais rigorogo, as que Aristdteles chamara de substancias primeiras. Mas temos outro tipo de entes, que sio os universais, os géneros e as espécies, o homem ou a arvore (ou seja, o correlato das idéias platénicas). Evidentemente, nao sao substancias em sentido rigoroso de coisas separadas; Aristételes nega isso, mas a que outra categoria podem corresponder? E claro que a nenhuma, salvo 4 de substancia; e entao tera de distingui-las como substancias segundas. Que quer dizer isso? Qual é a estrutura ontologica da subs- tancia? Para explica-lo, Aristételes recorre a sua genial teoria da maté- ria e da forma Matéria e forma ¢ A substancia ¢ interpretada como um com- posto de dois elementos: matéria e forma. Nao se trata de duas partes reais que se unera para formar a substancia, mas de dois momentos on- toldgicos que a andlise pode distinguir na ousia. A matéria é aquilo de que € feita uma coisa; a forma € 0 que faz com que algo seja o que é. Por exemplo, a matéria de uma mesa é a madeira, e a forma, a de mesa, A matéria (im) e a forma (uop@ii, ei80¢) nao podem existir se- paradas, s6 é possivel encontrar a matéria informada por uma forma, € a forma informando uma matéria. E nao se deve entender a forma em sentido exclusivamente geométrico, que é secundario, mas como aqui- lo que confere o ser: ou seja, a madeira ou a carne tém, por sua vez, forma de madeira ou de carne, e a esta forma pode-se superpor outra, por exemplo a de mesa. Desse modo, a madeira, que seria uma cerla forma, funcionaria como matéria em relacdo a forma de mesa. O ente concreto é o composto hilemarfico (de hyle e morphé) e também é chamado obvohov. O universal é forma, mas nao esta, como as idéias platonicas, separado das coisas, e sim presente nelas, infor- mando-as. Isto é, o homem, a espécie homem ndo esté separada de cada homem, mas presente nele, como forma humana. Assim se ex- plica pela vez primeira o problema da relagao das idéias ou espécies WF HISTORIA DA FILOSOFIA com as coisas individuais, que Platéo tentou em vao esclarecer com o conceito insuficiente de participacdo. Os universais s4o substancias, ‘mas abstratas, momentos abstratos de cada coisa individual, e por isso se chamam substancias segundas.: Ha uma estreita relaco entre a matéria e a forma e a poténcia e o ato. A matéria é simplesmente possibilidade, é poténcia que s6 se atualiza informando-se; nao tem, portanto, realidade por si mesma. Por essa razio, Deus, que é pura realidade atual, nao pode ter maté- ria, porque nao tem mescla de poténcia e ato, é ato puro. Essa teoria € aque permite, pela primeira vez desde Parménides, resolver o proble- ma do movimento. O movimento * Recordemos que eram dois os graves problemas debatidos na filosofia grega, intimamente relacionados entre si: 0 da unidade do ser e da multiplicidade das coisas, e o do movimento. Os dois confluiam na grande questao do ser e do nao-ser. Vimos que a pri- meira parie do problema encontra sua solucio em Aristoteles admi- tindo que o ente é uno, mas ao mesmo tempo miultiplo, mediante a analogia, que concilia e resolve a aporia. Vejamos agora o que se refe- re mais concretamente ao movimento. Mover-se ou mudar é chegar a ser e deixar de ser. Todo movi- mento supée dois termos, um principio e um fim. Esta dualidade € impossivel ontologicamente se o ente ¢ uno. Pois bem, dentro da me- talisica aristotélica, essa impossibilidade nao subsiste. Que € o movi- mento para Aristoteles? A definicdo que ele da, aparentemente obscu- ra, € no fundo de grande clareza: a atualidade do possivel enquanto pos- sivel. Ja indicamos os pressupostos necessarios para entendé-la, Vimos que um ente em poténcia, como a semente ou o ovo, tem também certa atualidade, qual seja: a que torna possivel comer um ovo ou Co- merciar trigo, que ¢ um negécio de realidades, e nao de puras possi- pilidades. Quem come um ovo come um ovo em ato, nao uma galinha em poténcia; quando essa poténcia, em vez de permanecer como pos- sivel, se atualiza, ha movimento, que é concretamente a geragdo. Ve- tifica-se ento o que costuma ser chamado de passagem da poténcia ao ato, € com mais rigor, a passagem do ente em poténcia ao ente atual. O movimento era impossivel desde Parménides, porque era en- 78 ARISTOTELES tendido como uma passagem do nao-ser ao ser, ou vice-versa. A teo- ria da analogia do ente permite ver que se trata da passagem de um modo do ser a outro; isto é, que nos movemos sempre no ambito do ser uno e multiplo. Dessa maneira o problema crucial do movimento atinge sua solugao madura dentro da fildsofia helénica, e a fisica como disciplina filosofica se torna possivel, j4 que se pode falar, do ponto de vista do ser, de uma natureza, As causas * Para Aristételes, a ciéncia, que € do universal, por- que o individual tem uma infinidade de aspectos e nao pode se esgo- tar num saber, e que nao é do acidente, mas da esséncia, € antes de tudo ciéncia demonstrativa, que faz conhecer as coisas por suas cau- sas e principios. Saber nao é mais discernir, como nos pré-socraticos; nem sequer definir, como em Sdcrates ¢ Platéo, mas demonstrar, sa- ber o porqué. (Cf. Zubiri: Filosofia y metafisica.) Os principios sao, a um s6 tempo, principios do ser e do conhecer; em Aristoteles a teoria do conhecimento esta, como em toda auténtica filosofia, vinculada essencialmente @ metafisica. As causas séo os possiveis sentidos em que se pode perguntar por qué. Aristoteles, no livro I de sua Metafisi- ca, retoma as doutrinas dos predecessores para rastrear nelas, de modo balbuciante, a propria teoria das causas. Estas so quatro: cau- sa material, causa formal, causa eficiente e causa final. A causa material ¢ a matéria, aquilo de que algo ¢ feito. A causa for- mal ou forma é 0 que informa um ente e faz com que seja o que €. A causa eficiente é o principio primeiro do movimento ou da mudanga, é quem faz a coisa causada. Por ultimo, a causa final € 0 fim, 0 para qué. Por exemplo, se tomarmos uma estatua, a causa material € o bronze de que esta feita; a causa formal, o modelo; a eficiente, o escultor que a fez, ea final, aquilo para que se esculpiu; por exemplo, o adoro ou a co- memoracao. A causa formal e a final coincidem com freqdéncia’. Deus + Ja temos elementos suficientes para compreender a teo- ria de Aristoteles, exposta principalmente no livro XII da Metafisica. 1, Sobre as dificuldades internas da teoria aristotélica da substincia e de sua in- terpretagao do ponto de vista de materia e forma, potencis e ato, ver minha Biografia de la filosofia, ap. 11 (Obras, vol. ll, pp. 487-94). 79 HISTORIA DA FILOSOFIA Deus € o primeira motor imdvel. Que significa isso? Todo mével preci- sa de um motor. A é movido por B; este, por C, e assim sucessivamen- te. Até quando? Teria de ser até o infinito, eic &xerpov, mas isso € im- possivel. E preciso que a série dos motores termine em algum mo- mento, que haja um motor que seja primeito. E esse motor tem de ser imével, para ndo necessitar por sua vez de mais um motor e assim até 0 infinito. Esse motor imével, como 0 objeto do amor e do desejo, que move sem ser movido, é Deus. 826g aristotélico é o fim, o telos de to- dos os movimentos, ¢ ele mesmo nao se move. Por isso tem de ser ato puro sem mescla nenhuma de poténcia, ¢ €, portanto, forma sem ma- léria. E, por conseguinte, o sumo de realidade, o ente cujas possibili- dades sao todas reais O Deus de Aristoteles ¢ o momento absoluto de mundo. Sua missio é tornar possivel o movimento, ¢ mais ainda, a unidade do movimen- to: é ele, portanto, que faz com que haja um Universo. Mas nao € cria- dor; esta idéia é estranha ao pensamento grego, ¢ seré ela que marca- 14a profunda diferenga entre o pensamento helénico ¢ 0 cristéo. O Deus de Aristoteles esta separado e consiste em pura theoria, em pen- samento do pensamento au visdo da visao vénorc voriseas, E s6 nele que a rigor se da a contemplacao como algo que se possui de modo permanente. © Deus aristotélico ¢ 0 ente absolutamenie suficiente, € por isso é 0 ente maximo. Nessa teoria culmina toda a filosofia de Aristételes. O ente como transcendental + Resta abordarmos, para comple- tar esta rapida visdo da metafisica aristotélica, um ponto especialmen- te importante e dificil. Como vimos, Platao considerava 0 ente género supremo, Esse género se dividiria em espécies, que seriam as diferen- tes classes de entes. Aristoteles nega categoricamente que 0 ser seja genero, Ea razio que dé é a seguinte; para que seja possivel a divisio de um género em espécies é preciso acrescentar ao género uma diferen- ¢a especifica; assim, ao género animal acrescento a diferenga racional para obter a espécie homem; mas isso nao € possfvel com o ser, porque adiferenca tem de ser distinta do género, e se a diferenca é distinta do ser, nao é. Portanto, nao pode haver nenhuma diferenca especifica que se agregue ao ser, ¢ este, portanto, nao € género. substancia plena, o ente enquanto tal. 80 ARISTOTELES: O raciocinio de Aristoteles € incontestavel. No entanto, depois de reconhecer sua indiscutibilidade, resta certo mal-estar, porque se per- cebe de modo igualmente evidente a possibilidade de dividir o ente. Basta pensar nas diferentes classes de entes que existem para perceber que, com efeito, a divisto € possivel. Aristételes por certo nao negaria isso, ¢ ele mesmo faz varias divisdes. Entéo, o que quer dizer tudo isso? Algo muito simples: ndo se pode confundir a divisio em generos e espécies com a divisdo sem mais nem menos. O ente pode ser divi- dido, mas ndéo com uma divisdo tao simples. Ha uma articulacao on- tolégica muito mais complexa, e esta é, precisamente, a analogia do ente, Existem muitos modos de ser, mas ndo so espécies, e sim, por exemplo, categorias, flexdes do ente, e o ser esta presente em todos es- ses modos, sem se confundir com nenhum deles. Aristételes diz que oente é 0 mais universal de todas as coisas, xa8dA0v WeALoto, TavtOV, que envolve e penetra todas, sem se confundir com nenhuma. O ser € umn dos que a filosofia medieval chamou de transcendentais, principal- mente 0 ente, o uno e o bem, Nao sao coisas, mas penetram todas as coisas e — diz Aristételes - acompanham-se mutuamente. Um ente é uno, e seu ser é seu bem em sentido aristotélico. Ea unidade tripla do bv, ouév e ou ceyaO6v. A esséncia * Aristételes distingue os termos substdncia e essen- cia. Esséncia se diz em grego com uma expressao estranha, v5 vi fv eivoa, que foi traduzido assim em latim: quod quid erat esse, liveralmen- te o que eva o ser O interessante é esse pretérito que se introduz no nome da esséncia. A esséncia é, portanto, anterior ao ser, é 0 que o tor- na possivel, o que faz com que seja. Nao se deve entender que a essén- cia seja um conjunto de caracteristicas especialmente importantes de um ente, mas expressa o que faz com que aquilo seja o que é. Quando dizemos que o homem é animal racional, ou animal que tem ldgos, que fala, nao significa que tomamos duas caracteristicas centrais do ho- mem, sua animalidade e sua racionalidade, e as unimos, mas que essa animalidade e essa ractonalidade, essencialmente unidas, so as que fa- zem com que um ente determinado seja um homem. Por isso, quando se diz que o légos da a esséncia de uma coisa, isso ndo quer dizer sim- plesmente que enuncia suas caracteristicas centrais, mas que na verda- 81 HISTORIA DA FILOSOFIA de manifesta ou torna patente o ser oculto em que consiste a coisa, 0 que a faz ser. A esséncia tem sempre um estrito significado ontalégico e ndo deve ser entendida como mero correlato da definicao. 5. A logica Como jd vimos, o conjunto dos tratados légicos de Aristoteles se agrupa sob 0 titulo general — cunhado por Alexandre de Afrodisias ~ de Organon ou “instrumento”. E a primeira obra em que se estudam direta e sistematicamente os problemas da logica, em que esta se cons- titui como disciplina. A tal ponto, que todo o corpus da logica aristo- télica percura até hoje, quase sem alteragdo, e sé em raros momentos da historia foram introduzidos pontos de vista novos. A perfeicao des- sa obra aristotélica pesou — nao sem perturbagdo ~ sobre o pensamen- to Logico posterior e talvez tenha dificultado sua evolugdo. Mas néo se deve esquecer que a logica aristotélica tradicionalmente usada foi bastante formalizada e banalizada, e que a fecundidade do Organon em sia forma originaria esta longe de estar esgotada. Vejamos, antes de tudo, o sentido dessa disciplina no conjunto da obra de Aristoteles € a conexao do ldgos com o ser e com a verdade. O “logos” + A palavra légos (Ndyos) quer dizer em grego palavra. Em latim foi traduzida por verbum, e assim aparece no comeco do evangelho de Sao Joao: In principio erat Verbum. Mas também quer di- zer proporgdo, razao em sentido matematico, e, portanto, sentido; e, fi- nalmente, razdo em sua significacao plena. Mas nao esquecamos que seu sentido primario deriva do verbo légein, reunir ou recolher e, tam- bém, dizer. Légos € 0 dizer, isto é, a voz significativa. O légos diz o que as coisas sdo, e tem uma estreita relacdo com 0 ser. Os principios légicos, por exemplo o de identidade, o de contra- dicdo etc., s4o principios ontoldgicos que se referem ao comportamen- to dos entes. Eu nao posso dizer nem pensar que A é e nao € B ao mesmo tempo porque A nao pode sé-lo ¢ ndo sé-lo. A légica nada mais é sendo metafisica. Pois bem, vimos que o ser se diz de muitas manei- ras. Com que modo de ser tem a ver o légos? Evidentemente, com 0 ser do ponto de vista da verdade ou da falsidade. 82 ARISTOTELES Vimos que o verdadeiro e o falso dependem de como se manifes- ta ou se torna patente o ser das coisas. Verdade ou falsidade sé exis- tem no ambito da verdade em sentido amplo, entendida como alétheia, como descobrimento, desvelamento of patenteamento. E as coisas se manifestam de modo eminente no dizer, quando se diz o que sao, quando se enuncia seu ser. Por isso Aristoteles diz que o lugar natural da verdade ¢ 0 juizo. Quando digo A é B, enuncio necessariamente uma verdade ou uma falsidade, o que nao ocorre em outros modos da linguagem, por exemplo num desejo (“tomara que chova”) ou numa exclamagao (“ai!"), O dizer enunciativo coloca as coisas na verdade. Mas é claro que essa possibilidade funda-se no carater de verdade das proprias coisas, na possibilidade de seu patenteamento. A verdade mostra o ser de uma coisa, ¢ a falsidade o suplanta por outro. No juizo verdadeiro, uno o que na verdade esta unido, ou se- paro (em meu juizo negativo) o que esta separado, ao passo que no juizo falso faco 0 contrario O homem é o animal que tem ldgos; ¢, portanto, 0 érgao da ver- dade. E 0 ente no qual transcorre a verdade das coisas, o que as des- cobre € as pe em sua verdade (Zubiri). Por isso Aristoteles diz que a alma humana é em certo sentido todas as coisas. Existe uma relacao essencial entre o ser e o homem que o sabe e o diz. O que funda essa relagao é o saber, a sophia, a filosofia. Nela o ser alcanca sua realidade atual, a luz da verdade. O contetido do “érganon” + O tratado das Categorias com que se inicia a Logica aristotélica estuda em primeiro lugar os termos e distingue o uso isolado deles — sem complexao, é&vev ovprdrokijs — de seu uso ligado ~ segundo a complexdo, xaté ovpmdoxtjy, Isso leva Aristoteles 4 doutrina das categorias (ou predicamentos), que por si mesmas nao alirmam nem negam nada e, portanto, nao sao verdadet- ras nem falsas até entrarem numa complexdo, para formar proposi- des ou juizos. © tratado da Interpretacdo ou Hermenéutica (Tlepi éppnveiac) distingue, antes de tudo, duas classes de palavras: o nome (6vop.a) € © verbo (pita). O nome é uma voz significativa (gwvi, onpovtd) por 83 HisTORIA DA FILOSOFIA convengio, sem referencia ao tempo, e nenhuma de suas partes tem. significacdo separadamente. © verbo acrescenta a sua significacdo a do tempo e é signo de algo que se diz de outra coisa; ou seja, o ver- bo funciona dentro da oragdo ou discurso (Adyos), que € uma voz sig- nificativa cujas partes tém significacdg independente; mas nem todo logos € enunciagio, sé aquele em que reside a verdade ou falsidade; ou seja, a afirmacao (Kotéparoic) ¢ a negacdo (Gndpowic) sio as duas espécies em que se divide a enunciacio, andpavens, ou légos apophan- tikds. A partir desses pressupostos Aristételes estuda as relacdes entre as proposicées, Os Primeiros analiticos contém a teoria aristotélica do silogismo, que constitui um capitulo central da ldgica, elaborado de modo qua~ se perfeito por Arisiételes. O silogismo (ovAAojopds) se opde em cer- to sentido a inducgdo Emaywyi): esta, embora as vezes aparega como um. procedimento de raciocinio, redutivel ao silogismo (inducéo comple- ta), tem valor de intuicao direta que se eleva da consideragao dos ca- sos particulares e concretos aos principios; as coisas induzem a se ele- var aos principios universais. Os Segundos analiticos focalizam o problema da ciéncia, ¢ por- tanto da demonstracao (nbéetéic). A demonstragdo leva 4 definicdo, cortelato da esséncia das coisas, ¢ se apdia nos primeiros principios, que, como tais, sio indemonstraveis ¢ sé podem ser apreendidos di- reta ou indiretamente pelo nods. A ciéncia suprema, como vimos em outro lugar, é demonstrativa, mas seu fundamento witimo € a viséo noética dos principios. Aqui culmina a légica aristotélica. Os dois ultimos tratados, os Topicos e os Argumentos sofisticas, sAo secundatios e se referem aos lu- gares comuns da dialética, usados na argumenta¢ao provavel, ¢ & and- lise e refutacao dos sofismas'. 2. Sobre o problema da logica aristotélica ¢ de suas interpretagdes itadicionais ver minha introduecton a la filosofia, ap. 61 (Obras, vol. UI). Cf. também Ensayos de te0- ria (Obras, IV, pp. 414-9) ¢ La filosofia del Padre Grairy (Obras, WW, pp. 274-7 ¢ 312-4). 8+ ARISTOTELES 6. A fisica A ciéncia fisica * A fisica tem por objeto os entes méveis. Com- parada com a filosofia primeira ou metalisica, é filosofia segunda. Por seu tema, coincide com o contetido da‘especulagao filosdfica grega da época pré-socratica. Por essa razio, no livro I da Fisica Aristoteles tem de se ocupar das opinides dos antigos, especialmente dos eleatas, que negam a natureza e, portanto, a propria possibilidade da fisica. Para os eleatas o movimento nao existe; isto é, o movimento néo ¢, nao tem ser, € por conseguinte no pode existir uma ciéncia da natureza. Ante essa tese, Aristoteles tem de reivindicar a realidade do movimento e estabelece como principio e pressuposto que os entes naturais, todos ou alguns pelo menos, se mover, o que, acrescenta ele, é evidente pela experiéncia ou inducao (Fisica, 1, 2). Com esse ponto de partida, Aristoteles tera de chegar aos principios, as causas e aos elementos. A ciéncia tem de comecar pelo que é menos cognoscivel em si, mas mais facil de conhecer para nds e acessivel & sensacdo — as coisas con- cretas e complexas —, para chegar aos princfpios e elementos, que séo mais distantes de nés, mas mais claros e cognosciveis em si mesmos. E esse o método dessa forma concreta de andlise da natureza que é a fisica aristotélica. Anatureza * Aristteles distingue os entes que séo por natureza (aoe) € os que sio por outras causas, por exemplo artificiais Gd téxvng). Sao entes naturais os animais e suas partes, as plantas e os corpos simples, como terra, fogo, agua, ar; em contrapartida, uma cama ou um manto sao artificiais. Sao entes naturais os que tém na- tureza; e por natureza (g@ioig) Aristoteles entende a principio do movi- mento ou do repouso, inerente as proprias coisas. Nesse sentido, a na- tureza € substancia, aquilo de que a coisa pode lancar mao para suas transformacées internas. Dados esses pressupostos, Aristételes tem de estabelecer sua teo- tia das quatro causas e formular, sobreiudo, o problema do movimen- io, na esteira da doutrina da poténcia e do ato. O movimento, como atualidade do possivel enquanto possivel, consiste num modo de ser que determina a passagem de ser em poténcia para ser em ato, em virtude 85 HISTORIA DA FILOSOFIA da descoberta aristotélica de que 0 ente nao é univoco, mas analdgi- co, ¢ se diz de muitas maneiras (noAAaryéc). Em seguida, Aristoteles tem de estudar os problemas fisicos do lugar (t6n09), do vazio (18 xevéy) ¢, sobretudo, do tempo (xpdves), definido como “o niimero do movimento segundo o antes ¢ 0 depois". O estudo minucioso dos problemas do movimento leva Aristoteles a infetir o primeiro motor imével (Deus), que, por ser imével, nao per- tence A natureza, embora seja sua chave, € cujo estudo nao corres- ponde, portanto, a fisica - ainda que tenha um lugar na problema- tica desta disciplina —, mas a filosofia primeira ou metafisica, que é, como vimos, ciéncia teolégica. 7. A doutrina da alma Aristételes trata dos problemas da alma em seu livro intitulado Tlepi woyitg, geralmente designado por seu nome latino De anima. Antes de tudo, é preciso ter em mente que 0 livro De anima é um It yro de fisica, um dos tratados referentes as coisas naturais. Aristoteles realizou a primeira elaboracdo sistematica dos problemas da psique, € se inscreve na esfera da biologia. ‘Aesséncia da alma + A alma (yoy) € 0 principio da vida; os en- tes vivos sao avtimados, em comparacdo com os inanimados, como as pedras. Vida é, para Aristoteles, nutrir-se, crescer € se consumir por si mesmo, A alma é, portanto, a forma ou atualidade de um corpo vive. Alma informa a matéria do ser vivo e Ihe da seu ser corporal, torna-o corpo vivo; ou seja, a alma nao se superpde ou se agrega 20 Corpo, mas 0 corpo — como determinado corpo vivo — 0 € porque tem alma. Segundo a definicdo aristotélica (De anima, Ul, 1), aalma € a atualida- de ow enteléquia primeira de um corpo natural organico. Se 0 olho fosse um ser vivo — diz Aristoteles -, sua alma seria a vista; 0 olho € a ‘matéria da vista, e se esta falta, nao ha olho; ¢ assim como 0 olho é, a rigor, a pupila unida a vista, a alma e 0 corpo constituem o ser vivo. © que define o ente animado é 0 viver; mas 0 viver se diz em muitos sentidos, ¢ por isso existem diversas classes de almas, Aristote- les distingue trés: a vegetativa, a tinica que as plantas possuem e que 86. ARISTOTELES se dé também nos animais e nos homens; a sensitiva, de que carecem as plantas, e a racional, privativa do homem. Entenda-se, contudo, que cada ser vivo possui apenas uma alma; o homem, concretamente, tem uma alma racional, que ¢ forma de seu corpo, ¢ essa alma impli- ca as outras fungdes elementares. © homem possui sensacdo (aisonois), que é um contato imedia- to com as coisas individuais e constitui, como ja vimos, 0 estrato infe- rior do saber; a fantasia, por meio da meméria, proporciona uma ge- neralizacao; em terceiro lugar, a faculdade superior é 0 nats ou enten- dimento. Aristételes rejeita a doutrina das idéias inatas e da reminis- céncia ou andmnesis platénica; substitui esta metafora pela da tdbua rasa, a tabua encerada sobre a qual sao gravadas as impressdes; 0 notis é passivo. Mas junto deste entendimento passivo Aristoteles introduz o chamado noiis poietikds ou entendimento agente, cujo papel ¢ bas- tante obscuro e que constituiu um dos temas prediletos da Escolasti- ca medieval, em suas disputas com o averroismo. Sobre esse nofis Aristoteles diz, em sua famosa e obscura passagem (De anima, Ill, 5), que “é tal que se torna todas as coisas ¢ é tal que as faz todas, ao modo de um certo habito, como a luz; pois em certo sentido também a luz faz serem cores em ato as que so cores em poténcia”. “Esse entendi- mento — agrega — é separavel, impassivel e sem mescla, j4 que € por esséncia uma atividade... S6 quando separado € o que é verdadeira- mente, ¢ 56 ele € imortal e eterno.” Esta é a principal referéncia aristo- télica @ imortalidade da alma ou de uma porcao dela; mas a interpre- taco do sentido dessa imortalidade foi amplamente discutida desde os comentarios antigos até a época moderna. Como a ciéncia e a sensacdo sao, em certo sentido, o sabido ou o sentido nelas, Aristoteles pode dizer que a alma € de certo modo todas as coisas. Com uma feliz metafora, acrescenta que a alma é como a mao, pois assim como a mao é o instrumento dos instrumentos — 0 que confere ao instrumento seu ser instrumental atual —, o entendi- mento é a forma das formas, e o sentido a forma dos sensiveis. Como ja vimos, no saber as coisas adquirem seu ser verdadeiro, seu paten- teamento, sua &hi|8eto;, passam a estar, de certo moda, na alma, em- bora fiquem fora dela; a pedra nao esta na alma, diz Aristoteles, so- mente sua forma esta. 87 HisTORIA DA FILOSOFIA Aestética + A doutrina estética de Aristételes, em cujos detalhes nado me alongarei aqui, est intimamente relacionada com sua psico- logia. A principal fonte é a Poética, na qual estuda a tragédia. Aristote- les distingue a poesia da historia, ndo,porque a primeira use o verso € a segunda a prosa, o que € acidentaly thas porque a historia refere 0 que sucedeu, ea poesia, o que poderia‘acontecer. A poesia € mais filo- sOfica € importante que a histéria ~ diz Aristoteles —, porque a poesia se refere mais ao universal, e a historia, ao particular. A historia afir- ma que alguém fez ou disse algo, de facto: a poesia, em contrapartida, estabelece o que um homem de tal tipo faria ou diria provavel ou ne- cessariamente em cerla situagao. Com isso, Aristételes aponta para uma certa compreenséo da realidade ¢ da vida humana essencial & poesia para que esta tenha sentido. No magistral estudo que dedica a tragédia, Aristételes a conside- ra como imitacao de uma acdo grave, que provoca iemor ¢ compaixdo, e opera uma katharsis ou purificacao dessas afecedes. Trata-se de emo- des penosas; e, no entanto, a tragédia, por seu carter artistico, trans- forma-se num prazer estético. A arte do tragico livra essas vivéncias do desagradavel e provoca uma descarga emocionai, em virude da qual a alma fica aliviada e purificada. 8. A ética A ética aristotélica é a ontologia do homem. Ao falar dos possiveis tipos de vidas, jA indicamos o que ha de mais profundo no problema ético. Vamos apenas resumir e completar brevemente aquelas idéias. O bem supremo A exposicao fundamental da moral de Arist6- teles é a Etica a NicOmaco, provavelmente editada por seu filho, dat esse titulo. Nela discute a questao do bem @ya@6v), que ¢ o fim tihti- mo das coisas e, portanto, das agées humanas. O bem supremo é a fe- licidade (eb3o1povie). Mas, de modo ainda mais claro que em Sécrates, distingue-se a eudaimonia do prazer ou hedoné. Este ¢, simplesmente, “um fim sobrevindo”, algo que néo se pode querer e buscar direta- mente, mas que acompanha a realizacdo plena de uma atividade. Sé- neca, que recolheu o ensinamento de Aristételes, comparava-o (De 88 ARISTOTELES vida beata) as papoulas que crescem num campo de trigo eo embele- zam ainda mais, sem que tenham sido semeadas ou procuradas. A felicidade « A felicidade é a plenitude da realizagao ativa do homem, no que tem de propriamente.humano. O bem de cada coisa é sua funcdo prdpria, sua atividade, quie’é a0 mesmo tempo sta atua- lidade; assim, a visio 0 € do olho, e a marcha, do pé. E claro que exis- te uma funcao propria do carpinteiro ou do sapateiro; mas Aristoteles se pergunta qual ¢ a do komem em si. Examina a hipotese do viver, mas verifica que a vida é comum as plantas e aos animais e busca en- tdo o que é exclusivo do homem. Por isso se atém a “certa vida ativa propria do homem que tem azo”, esta é a felicidade humana. Essa forma de vida € a vida contemplativa ou teorética, decerto superior a vida de prazeres, e também a regida pela poiésis ou producao e & vida simplesmente pratica, por exemplo a politica. Mas Aristoteles adverte que para que essa vida teorética seja a felicidade, é preciso que ocupe realmente a vida, “porque uma andorinha nao faz verdo, nem mes- mo um dia, e assim tampouco torna o homem ditoso e feliz um s6 dia ou um tempo breve”. A vida contemplativa + Esta atividade é a mais excelente de dois pontos de vista: porque o entendimento € o que ha de mais excelente em nés, € porque as coisas que o entendimento conhece sdo as mais excelentes entre as cognosciveis. Em segundo lugar, é a atividade mais continua, pois ndo cessa com sua realizacdo, e uma vez visto ou pensado um objeto, a visdo ou a inteleccao persistem. Em terceiro lu- gar, vem acompanhada de prazeres puros ¢ firmes, que sao necessa- rios para a felicidade, embora nao se confundam com ela. Em quarto lugar, ¢ a forma de vida mais suficiente; porque todo homem precisa das coisas necessarias para a vida, mas o justo, ou o valente etc. pre- cisam de outras pessoas para exercer sua justica ou sua coragem, ao passo que o sabio pode exercer sua contemplacao até mesmo no iso- lamento. Por ultimo, é a Unica atividade que se busca e se ama por si mesma, pois nao tem nenhum resultado fora da contemplacao, a0 passo que na vida ativa buscamos algo fora da propria acdo. Essa forma de vida teorética é, em certo sentido, superior a con- dicéo humana, e $6 é possivel na medida em que haja algo divino no 89 HISTORIA Da FILOSOFIA homem. Embora se seja homem e mortal, nao se deve ter, diz Arist6- teles, sentimentos humanos e mortais, mas é preciso se imortalizar dentro do possivel e viver de acordo com o mais excelente que ha em nés, ainda que seja uma exigua porcdo de nossa realidade. O mais ex- celente € o mais proprio de cada cdisa; e “seria absurdo — conciui Aristoteles ~ nao escolher a propria Vida, mas a de algum outro” (Eti- ca a Nicomaco, X, 7). As virtudes * Aristoteles divide as virtudes em duas classes: dia- noéticas ou intelectuais, virtudes da didnoia ou do nofis, e virtudes éti- cas ou, mais estritamente, morais. E faz o carater da virtude consistir no termo médio (ecdtn¢) entre duas tendéncias humanas opostas; por exemplo, a coragem é 0 justo meio entre a covardia e a temerida- de, a liberalidade, entre a avareza e a prodigalidade etc. (Investigar o sentido mais profundo dessa teoria do mesotes ou termo médio nos le- varia longe demais. Basta indicar, como simples orientagao, que esta relacionada com a idéia de medida métron, e esta corm 0 uno, que por sua vez se refere de modo direto ao ente, ja que se acompanham mu- tuamente como transcendentais.) Afora isso, o conteudo da ética aristotélica é, principalmente, uma caracterologia: uma exposi¢ao e valoragao dos modos de ser do homem, das diferentes maneiras das almas e das virtudes e vicios que tém. A Aristoteles devem-se as finas descricdes da alma que legaram para nossa linguagem termos téo acurados e expressivos como mag- nanimidade, pusilanimidade etc. 9. A politica Aristoteles estudou a fundo os problemas da sociedade e do Es- tado nos ito livros de sua Politica. Além disso, possuia um material documental extraordindrio sobre as constituigdes das cidades gregas (158, das quais s6 chegou até nds a de Atenas), € a isso unia um co- nhecimento profundo das questées econémicas. A sociedade © Aristoteles reage aos sofistas e cinicos, que por diversas raz6es interpretavam a cidade, a polis, como ndémos, lei ou conyencao. Aristételes, pelo contrario, inclui a sociedade na natureza. 90 ARISTOTELES Sua idéia mestra é que a sociedade é natureza e nado convencao; por- tanto, algo inerente ao proprio homem e nao simplesmente algo esta- tuido. De acordo com os principios da ética aristotélica, toda ativida- de ou praxis se faz com vistas a um bem, que é, portanto, seu fim e lhe confere seu sentido. Para interpretar o'ser da polis, Aristételes parte desse pressuposto e da idéia de que toda comunidade (Roinonia) ou sociedade tende para um bem. Aristoteles considera a origem da sociedade. Sua forma elemen- tar e primaria é a casa ou a familia (oixic), formada pela uniao do ho- mem com a mulher para perpetuar a espécie; a essa primeira funcdo sexual soma-se a de mando, representada pela relagao amo-escravo; esta segunda relagao tem como finalidade alcangar a estabilidade eco- némica na oikia; por isso, para os pobres, 0 boi faz as vezes do escra- vo, como diz Hesiodo. A agrupacio de varias familias numa unidade social superior produz a aldeia ou kome. E a unio de varias aldeias forma a cidade ou polis, forma suprema de comunidade para Aristéte- les. O vinculo unitario da aldeia é a genealogia, a comunidade de san- gue: os filhos e os filhos destes. A pélis € uma “comunidade perfeita”, autarquica, que se basta a si mesma, diferentemente das aldeias, que so insuficientes e necessitam umas das outras A finalidade da famtlia, da oikia, ¢ simplesmente o viver (15 Civ); a finalidade da aldeia ou kome é mais compiexa: o viver bem ou bem- estar (to 0 Civ): como a perfeicdo de cada coisa é sua natureza, € a polis € a perfeicao de toda comunidade, a polis ¢ também natureza. E, por conseguinte, o homem € por natureza um “animal politico”, um ser vivo social (G@ov roAitixdy), e o que vive — por natureza e nao por acaso — sem cidade ¢ inferior ou superior ao homem: o que nao pode viver em sociedade ou nao precisa de nada por sua propria sufi cia nao é um homem, é uma besta ou um Deus. A linguagem » A natureza social do homem se manifesta na lin- guagem, no dizer ou légos. Os animais também tem voz (gevi) que expressa o prazer e a dor; mas a palavra (Aéyog) destina-se a manifes- tar o Util e o prejudicial, o justo e 0 injusto; o conhecimenio disso é o que caracteriza o homem e é o fundamento das comunidades. A jus- tica €, portanto, essencial 4 cidade ~ de acordo com Platao; é a ordem ién- OL HISTORIA DA FILOSOFIA da polis, O homem pode funcionar como coisa - como € 0 caso da muther ou do escravo — ou como homem, o que s6 pode fazer na co- munidade. O homem é um animal que fala (hov A6yov Exov), e 0 fa~ lar € uma funcao social: € dizer a alguém o que as coisas sdo — por exemplo, justas ou injustas. Por isso.¢-homem precisa de uma comu- nidade na qual viver, e seu ser politico'se funda em seu ser eloquente. Isso € © que nao acontece com Deus — concretamente com o Deus aristocratico —, e por isso ele pode ignorar o mundo e ser simplesmen- le noesis noeseos, pensamento do pensamento, visdo da visio. O ho- mem necessita de um ente sobre o qual verse sua contemplacdo e um proximo ou semelhante a quem dizer o que viu, Deus é a suma autar- quia ¢ se contempla a si proprio. Sociedade e Estado ¢ Aristoteles atribui uma importante funcao a vontade no social e nao distingue entre sociedades “naturais”, como a familia, na qual nos encontramos involuntariamente, e associacées fundadas por um ato voluntario, como um circulo, ao qual se perten- ce ou se deixa de pertencer sempre que se queira. Mais ainda: insiste no carater voluntario e mesmo violento da constituicao clas aldeias e cidades, e diz que estas comunidades sao por natureza. Hoje nao di- rfamos isso. E isso prova que Aristoteles usa de preferéncia o concei- to de natureza “de cada coisa” e nao o de “a” natureza. Os dois senti- dos se cruzam constantemente desde os pré-socraticos, E por isso, pelo fato de a sociedade ser natural e de a culminagio ou perfeicao desta ser a polis, a sociedade e o Estado se identificam: 0 social é po- Iitico, € a polis significa a interpretacdo estatal da sociedade. Aristoteles nao se di conta de que a sociedade nao € o Estado, que em seu contexto histérico coincidem: a sociedade perfeita é a po- lis, a cidade-Estado. E quando, a partir da fundacao do Império ale- xandrino, as velhas fronteiras helénicas se rompem, o homem antigo fica desorientado em relacdo aos limites reais das comunidades, com uma desorientagdo que culmina no cosmopolitismo dos estdicos. A organizacao do Estado * A hierarquia dos cidadaos esta de acordo com os tipos de vida possiveis. Os trabalhos inferiores, de fi- nalidade econdmica, estao a cargo de escravos, pelo menos em parte. Aristoteles defendia a idéia da escravidao segundo a velha convicgaio helénica de que os barbaros deviam servir aos gregos. Neste ponto dis- 92 ARISTOTELES crepava da politica seguida por Alexandre, e que desembocou na for- macao das culturas helenisticas. A economia deve tender para a forma autarquica, para que a cida- de se baste a si mesma na medida do possfvel. Aparece aqui novamen- te, wansladado para a comunidade politiga, o ideal grego de suficiencia. Por isso, Aristételes ¢ mais favoravel a cidade agricola que 4 industrial. Com relacdo a forma do regime ou constituicao, Aristételes nao acredita que tenha de ser forcosamente unica. Considera possiveis trés formas puras, regidas pelo interesse comum. Essas trés formas dege- neram se os governantes se deixam levar por seu interesse pessoal. Conforme a soberania corresponda a um sé, a uma minoria dos me- Thores ou a todos os cidadaos, o regime € uma monarquia, uma aris- tocracia ou uma democracia. As respectivas formas degeneradas sao a tirania, a oligarquia, baseada quase sempre na plutocracia, ¢ a dema- gogia. Aristoteles insiste especialmente nas vantagens do “regime mis- to” ou republica (politefa), mescla ou combinacao das formas puras, por considerar que € o de maior estabilidade e seguranca (asphdleia), pois este é o tema fundamental de sua Politica’. E preciso ter em men- te que Aristételes, como Platdo, pensa sempre na cidade-Estado, sem imaginar como formas desejaveis outros tipos de unidades politicas mais amplas. Em Aristoteles isso é ainda mais surpreendente, embora se explique por razdes profundas, porque estava sendo testemunha da transformacio do mundo helénico, que, em seu tempo e por obra de seu discipulo Alexandre, passou da multiplicidade de cidades inde- pendentes para a unidade de um grande império territorial, o eféme- ro império macedénico, logo desmantelado nos reins dos Diddocos, mas que desde entio manteve a idéia da monarquia de grande exten- sao, sem voltar & atomizacio das cidades. A filosofia de Aristételes nao cabe numa exposicdo como esta nem mesmo numa muito mais extensa; menos ainda a discussao dos pro- 3. Ver minha Introduccion a la Politica de Aristoteles (Madri, 1950). 93 i i 5 : i | iE a HISTORIA DA FILOSOFIA blemas radicais que coloca e que sao, de certo modo, os que a filosofia posterior encontrou, os que hoje temos de resolver. E um mundo de idéias: a tentativa mais genial da historia de sistematizar em suas ca- madas mais profundas os problemas metalisicos. Por isso Aristoteles determinou mais do que ninguém o curso ulterior da historia da filo- sofia, e 0 encontraremos a partir de agora em todas as partes. Fui obrigado a omitir muitas coisas importantes € até mesmo es- senciais. E, ante essa necessidade, optei por prescindir de quase toda a informacdo erudita e enumerativa do pensamento aristotélico ¢ expor com algum rigor, sem falseamento, o problema central de sua metafisi- ca. Considero preferivel ignorar a maior parte das coisas que Aristéte- les disse, mas ter uma consciéncia clara de qual é o problema que o move e em que consiste a originalidade genial de sua solucao. Desse modo é possivel entender como a filosofia helénica alcancou sua ma- turidade na Metafisica aristotélica, e como com ele conctuiu-se efetiva- mente uma etapa da filosofia, que depois tera de percorrer longos sé- culos pelo caminho que lhe abriu o pensamento de Aristételes*, 4. Ver minha Introduccion a ta Btica a Nicdmaco (Madi, 1960), 94

You might also like