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RONEY CYTRYNOWICZ AUSCHWITZ EO TURISMO DA MEMORIA Umavisitaaolocalonde fun FerenreltRees Un pron reenter te Fee Remreme CCRG TC TTL Cedar Auschwitz/Birkenau,na cidade polonesade Oswiceim, permite duas experiéncias completa- Pen ene OME e Tre FYCaTOY renee eevee OnE Cone CCST Hn CUTTER) Guerra Mundial Auschwitzé narealidade um Rien ercont ence rekon tes fra ende sub-campos. NTS Nai td Mpstesy oa tesa adosequechegouamanter 135, mil presos, Birkenau (ou PNUSO INUIT ernte ekerece iret) exterminiode I 6milhaode pes- soas, © Buna-Monowitz (ou Auschwitz H1),umconjuntode 46 campos de trabalhos forga- dos para industrias como a LG sta ee aS Serene Sento ent Ae NCA OM Teen 08 seis campos de exterminio OORT Oe USMY aT) Lorene tie OSE Cea oa Foi também o maior campo de concentrag’ioedetrabalhos for- ¢ados entre os cerca de dois mil ampos que funcionaram na Alemanha © paises ocupados depois de 1933. No local onde funcionou Auschwitz I, existe hoje um ong Ce eat Secrets rors museu e uma estrutura organizada para re- ceber visitantes do mundo todo, com guias, mapas e folhetos em dezenas de Iinguas. Na cidade medieval de Cracévia - ponto de partida provvel paraconhecer ocampo-as vitrines das agéncias de turismo da cidade apresentamcartazes promovendoexcursées de um dia ao museu de Auschwitz. 34 a chegada na estagdo de trem de Cracévia, nao importa a que horas da ma- drugada, taxistas perguntam aos turistas, monossilabicamente: “Auschwitz?”. A per- gunta soa algo sardénica em um pais que assistiu passivamente ao extermfniodequa- se trés milhdes de judeus poloneses (cerca de 90% da populagdo judaica polonesa do pré-guerra), metade dos quais em Auschwitz/Birkenau. Foi na mesma Poldnia, aliés, que ocor- reu 0 primeiro massacre de judeus apés 0 nazismo. Em 1946, 42 judeus foram mortos na cidade de Kielce. Eram todos sobrevi- ventes de campos de concentracao. Intime- 10s outros episédios de anti-semitismo fo- ram engendrados aps 1945, mesmo com uma populagio judaica de ndo mais que quatro mil pessoas. Quase poderia se dizer que toda agitacdo deliberdadenopats,como na origem do sindicato Solidariedade, era combatida com doses violentas de anti- semitismo, enraizado em uma cultura cat6- lica eagrériae habilmente manipulado pelo governo comunista Oprimeiro choquedo visitante queche- ga a Auschwitz I é a percepgao de que o ‘campo fica praticamente dentro da cidade de Oswiecim. Fica hoje como ficava hd cin- qiienta anos. A oflebre frase inscrita na en- trada do campo, “O Trabalho Liberta”, 6 apenas uma pequena passagem de onde se pode observar a cidade. ‘Ao entrar em Auschwitz, o visitante é sacudido por um anti-climax: 0 horror ima- ginado se dilui rapidamente diante do tran- lilo cardter hist6rico-turistico que o local assume agora. O alivio rapidamente ofere- cido ao visitante garante uma estadia sem ‘choques e sem encontros com a morte. No méximo,conformeaplaca dentradadocam- po que pede siléncio em varias linguas, ad- verte-seque “naquelelocal algo muitotriste aconteceu”, Em Auschwitz inteiramente preserva- do, existe uma saturagao de referenciais conhecidos’ - amigdveis, diria-se na REVISTA USP, SHO PAULO (26) novilingua da informatica - dispostos den- trodocampo:lanchonete, lojade souvenirs, sanitérios modernos, ruas demarcadas, ro- teiros preestabelecidos, excursées pedag6- gicas, gruposescolares, pausaparaolanche, placas, cartazes, dizeres em varias linguas, ‘explicagdes, mapase guiascredenciadosque fazem tours com os visitantes. Tudo acaba ganhandoum imensamente suportével ar familiar, tornando a visita a Auschwitz uma excursio de férias, um pas- seiode domingo, umaatividade escolar fora da rotina das salas de aula. As vozes dos visitantes, suas conversas, os chicletes mas- cados,ossuspiros, as égrimas,obarulhodos cochichos ¢ dos passos, as explicagdes, as identificagbes,asdtvidas,tornam Auschwitz rapidamente apreensivel e amortecido. Avisitaa Auschwitz 1 écomo assistirao filme A Lista de Schindler, de Steven Spielberg, Alimesmoondese pretende“con- tar” o Holocausto, deixa-se de fazé-lo ao utilizar recursos que tornam a hist6ria ex- cessivamente familiar, fluente ¢ toleravel. Em Spielberg, oespectador vé imagens me- diadas por todos os truques de emogio (de suspense, de tragédia, de comogao etc.) que © cinema de diversio consagrou. A tela, a ilusdio do cinema, a sedugdo do escurinho, a pipoca, a certeza do contrato de duas horas do cinema, tudo ali dé a tranqiilidade da hist6ria jé consumada. Agora consumida. ‘Oque mais tocaas pessoas em sua visita a Auschwitzsdioasinstalagdes onde funciona- va 0 QG das SS: celas pequenas, cubiculos para solitérias sem janelas ou ventilagio, onde osofrimentoé mensurdvel ao visitan- tede hoje: o tamanho de um homem, ador deuma tortura visivel pelas pontas dosins- trumentos, ainumanidade da falta de jane- lae de ar. Naquele prédio, os guias detém-se a ex- plicar como funcionavam as punigdes € 0 terrorantequalquer infragaodoregulamen- to. Neste edificio, dezenas de fotografias de poloneses mortos esto dispostas em qua- dros afixados as paredes. Osofrimento ali tem rosto e nome, nao € 0 genocidio de milhdes aos quais a pro- pria morte foi roubada, sem direito a um témulo, sem direito sequer a lembrangado seu nome. Na Poldnia, mais de 400 comu- nidades judaicas foram inteiramente destrufdas; delas muitas vezes ndo restou uma tinica testemunha. 140-153, JUNMO/AGOSTO 1995 SEMELMANTE AUMA ESCOTILMA REVISTA USP, SHO PAULO (26): 148-153, JUNNO/AGOSTO 1995 151 152 NAO HA CAMINHO Eapenas em Auschwitz II, ou Birkenau, onde funcionaram sistematicamente as cA- maras de gés e foram mortas cerca de 1,6 milhSo de pessoas que o visitante pode se aproximar do que foi o genocidio. Nas seis cAmaras de gésdo campo, os nazistas chega- ram amatar 24mil pessoasem um tinicodia. Oscorpos eram depois cremados. Todos os detalhes técnicos eram estudados para ilu- dir as vitimas e evitar qualquer reago. As ‘camaras de gs eram disfargadas de banhei- ros de desinfecgdo e as vitimas recebiam cabides numerados & porta sob a justificati- va de poder encontrar as roupas depois do “banho”. O géseraconduzidoemcaminho- netes pintadas de ambulancia e eram médi- cos que o administravam, depois de fazer a “selegao” dos que iam viver e dos que iam morrer logo & chegada ao campo. Auschwitz Il/Birkenaundo faz parteda infra-estrutura turfstica do complexo Auschwitz. Pertoda entrada domuseu, um microOnibus fica dispontvel para percorrer 08 trés quilometros até Birkenau. O servi- 0 do Onibus ¢ mantido por uma organiza- do norte-americana. Mas ninguém vai 4; a visita a Auschwitz invariavelmente se encerra com a visita a Auschwitz I, onde est o museu. Acentrada de Birkenau ¢ inconfundivel para quem jéaviuem fotografias. Umramal ferroviério dirige-se diretamente a portado campo; era ele quem conduzia os trens de deportagio. Tudoestéexatamantecomofoi deixadoem 1945.Um tnicofuncionériozela pela seguranca do local, mas ¢ preciso procuré-lo. Nem mesmo uma guarita anun- passagem para dentro do campo. Em Birkenau ndo hé roteiros, nao ha caminhos nem calgadas,nem trilhas,ndohé placas, ndo h4 guias, nem lanchonete nem banheiro, nem grupos organizados nem es- colares comendo lanche. O visitante cami- nha apenas na companhia dosseus proprios fantasmas. Ocampo permanece inteirocom suas centenas de barracdes de madei muito diferentes das s6lidas casas de devidamente mantidas de Auschwitz Em um barracio, que os nazistas chamavam de banheiro, veem-se dezenas de buracos de madeira toscamente cavados. Em outro barracio, pode-se ainda ler ordens nazistas inscritas na parede, No final do campo, a uma meia hora de ‘caminhada, a rampa que levava a uma das ‘cdmaras de gas eos destrogos precisos des- ta. E impossivel olhar passivamente aque- las rufnas. Nenhum detalhe arquitet6nico chama a atengdo, nenhum sinal visfvel de tortura, de sofrimento, de morte. E apenas umagrandesaladeconcretocom uma inica Porta cujo acesso se dé pela rampa. Esta é a marca da destruigo nazista: a completa falta de marcas, 0 horror sem vestfgios, a morte em massa dilufda na mais banal ro- tina cotidiana, executada por milhares de homens e mulheres que terminavam o ex- pediente ¢ iam para casa regar as plantas ¢ acariciar os filhos. Birkenaundoémuseu. Eo prépriocam- po.Omatocresce em todososcantos,alama Suja os sapatos, o siléncio invade e turva os referenciais conhecidos, as ordens nazistas inscritas nas paredes parecem fazer-se ou- vir; no inverno, sozinho no campo, a meia hora de caminhada apressada da entrada, 0 ‘medo evoca o pavor das vitimase vem uma pulsio de correr, de fugir, de sair, de cruzar logo todas as fronteiras: de Auschwitz, de Cracévia, da Pol6nia, da Europa... Contra a narratibilidade previstvel da visita a Auschwitz I,em Birkenau instaura- seumvazio,umsiléncio,umestranhamento, um quase terror. E neste estranhamento, 0 do choque da morte de milhées executados em clmaras de gés,o daidéia de matar todo ‘um povo, sem que se ouvissem seus gritos e suas stiplicas, sem que se registrassem seus nomes € seus rostos, sem que sobrassem si- nais e marcas da destruigdo; 6 nesse estranhamento que reside a possibilidade de elaborar a meméria de Auschwitz. Em Massase Poder, Elias Canetti escre- veu que a hiperinflacao alemi desvalorizou de tal forma as quantidades~ milhoes, bi- Ihdes, trilhdes-,tornandocorriqueirascifras antes nexistentes, que as pessoas perderam no apenasosreferenciais do valor de troca, ‘mas junto com este os pardmetros de iden- tidade em uma sociedade gerida pelo mer- ado. Depois, quando se falavaem milhdes, nao mais de marcos, mas de mortos, esses nidmeros jé no tinham qualquer valor, j4 nada significavam para os alemies. J4 no significam nada para ninguém. A propria meméria dos sobreviventes ‘encontra-se presa em uma série de armadi- Ihas. O que se espera do sobrevivente ¢ 0 que REVISTA USP, SHO PAULO (76): 148-153, JUNMO/AGOSTO 1995 elepodecontar é0 relato pessoal de sua tragé- dia individual. Mas a tragédia coletiva de Auschwitz é composta de outra natureza que no a simples soma das tragédias individuais. Nao éde umasala de torturas ou dosofrimen- to extremo de um individuo que foi feito 0 horror de Auschwitz, mas de uma estratégia deexterminioem massa segundo parametros industria, ou seja, uma linha de produgao da ‘morte para matar omaior nimero de pessoas com miiximaeconomiaderecursosede forma a aproveitar parte dos cadéveres como maté~ ria-primaindustrial. Amemériade Auschwitz no 6, portanto, a daqueles rostos poloneses com fotografiaeidentificagio,masameméria das cinzas e das valascom milhoes de cadéve- res andnimos, cujo tinico nome - sentenga de morte - era: “jude”. ‘Como lembrar Auschwitz? Nao basta contar, narrar, ndo basta fazer novos memoriais, monumentose museusparaque ‘excursionemos nossa responsabilidade ou nossa culpa, ou simplesmente nossa dor. REVISTA USP, SHO PAULO (26): 148-153, Nem basta levar os tiltimos sobreviventes & televisdo,dar-lhescdpsulasdememériamon- tadas em estatfsticas e imagens que a televi- sto oferece hoje diariamente com o nome de diversio. ‘A meméria de Auschwitz exige siléncio, exige estranhamento, exige concentrado delicadorespeitopelorelatodossobreviven- tes. Eles testemunham o radical rompimen- to do principio que fundamenta a idéia de humanidade: a possibilidade de reconhecer ‘no Outro um semelhante, Nenhuma histé- ria comovente ou edificante nos faré “supe- rar” © passado. Epreciso que nosso corpo sinta vibrar um remoto eco do pavor das cAmaras de gés e que nossos olhos leiam as ordensnazistasna parede dos barracdese se contraiamde horror. E precisoentender que Auschwitz foi uma primeira morte da hu- manidade. Para que nossa consciéncia recu- se os modelos de liberdade impostos em nomedeum passadoque todosqueremcon- sumir e fazer passar. JUNMO/AGOSTO 1995 AuscHwitz A NoITE: ‘Conneoor EXTEANO Com HLUMINAGAG ATUAL 153

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