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1" EDICAO 1976 © JOAO ESTEVES DA SILVA Direitos reservados para a lingua portuguesa Capa de Dorindo Carvalho ¢m00170741-6 2H ya > 2G ; "St » £8.03. COLECGAO CIENCIA E IDEOLOGIA/ 3 PARA UMA TEORIA DA HISTORIA de Althusser a Marx JOAO ESTEVES DA SILVA 2. volume DiARiL OO, SEE eee erent ee eee forte 7 CAPITULO III (cont.) PARA UMA CIENCIA MATERIAL DAS FORMAS 5. O estatuto das abstracgdes determinantes Como deverd ser, neste momento, aparente para O leitor, a preocupacdo que orienta este ensaio nao é a de restituir a figura do «verdadeiro» Marx; nfo se trata de contrapor a outras leituras uma leitura mais «fiel», nem de saber se Althusser & mais ou menos marxista que Lukdcs, Sartre ou Garaudy; um dos enormes méritos de Althusser € precisamente o de nao se apresentar como um leitor fiel de Marx; 0 problema de Althusser — que é também o meu —, nio reside em conhecer © auténtico pensamento de Marx, mas em produzir o conhe- cimento da realidade socio-histérica, a partir dos instrumentos conceituais que possibilitem a constituigio da histéria em dominio de objectividade cientifica. Assim, as criticas que dirijo a Althusser nio se baseiam no convencimento de que a minha leitura seja mais conforme ao sentido de quaisquer textos sagrados, ou mais consenténea com a verdade muda que neles se exprimisse de modo mais ou menos obliquo. O alcance da minha leitura nado é sendo o de constituir — exactamente com a de Althusser —, uma reacti- vagiio dos textos. E dentro desta orientagdo que procurarei abordar o pro- blema deixado em suspenso pelas consideragdes anteriores, qual seja o de saber porque razio de principio a reconstituigdo teérica do modo de funcionamento do modo de producao capitalista constitui, do mesmo passo, a reconstituigiio do meca- nismo explicativo de todo o processo histérico, como processo de produgio e reprodug&o das condigées de existéncia material. © tratamento deste problema conduzir-me-4 directamente A tentativa de esclarecer a quest&o das relagdes entre a ordem 7 histérica e a ordem légica, problema fundamental em que se tam enredado a maior parte dos intérpretes de «O Capital», e€ que constituird 0 objecto de uma alinea posterior do presente capitulo. if Entretanto, convém que regressemos ainda ao problema do estatuto das abstraccdes determinantes, produzindo algumas referéncias mais directas A nova forma de racionalidade de que releva a teoria da histéria, de modo a fazer ressaltar a sua diferenca radical em relagdo a todo o tipo de ideologia histo- ricista. . Sio problemas que se encontram, alids, estreitamente relacionados; com efeito, é a natureza especifica dos conceitos produzidos pelo trabalho tedrico que permitird esclarecer por- que razio o privilégio tedrico do modo de producdo capita- lista nio envolve — contrariamente ao que pensa Althusser —, qualquer retrospeccio do presente sobre o passado e é comple- tamente estranho a qualquer forma de inflexdo historicista do conhecimento. Como foi anteriormente acentuado, a fundacdo da teoria da histéria implica uma disting&o rigorosa entre as abstracgées representativas, que se limitam a evidenciar o elemento geral e comum a uma multiplicidade de fenédmenos, e os conceitos universais concretos, que denotam a substancia formal efecti- vamente presente no real e constituida por um processo redu- tor objectivo completamente independente da abstracc&o mental. E por isso que pensar os conceitos cientificos como objectos abstracto-formais, rigorosamente purificados de toda a conta- minacaio empirica, e denotando apenas estruturas tedricas completamente destituidas de todo o peso ontolégico, é falhar 0 exacto alcance da constituigdo da teoria cientifica da historia, no preciso momento em que se procura pensar as consequén- cias da sua fundagdo. Os conceitos da teoria da historia nao so formas a-histricas em cujo sistema articulado os contetidos viriam amoldar-se por forga de um misterioso isomorfismo; na sua qualidade de universais concretos, aqueles conceitos constituem a expresso tedrica da substancia formal efectiva- mente produzida por um processo objectivo de estruturagdo que a teoria reconstitui cognitivamente. Como observa Marx: «As categorias econémicas sao ape- nas as expresses tedricas, as abstraccdes das relagdes sociais 8 de produg&o» (4); ou ainda, «Em toda a ciéncia social e histé- rica € preciso nao esquecer que... estas categorias exprimem for- mas de existéncia, condigdes de existéncia.» (2) J& anteriormente procurei esclarecer em que sentido os conceitos exprimem formas e condigées de existéncia; apontei, entdo, que 0 conceito, ao contrdrio da simples representacdo, nado contém apenas o momento da universalidade, mas simul- taneamente, 0 momento da particularidade; que o conceito denota, nfo apenas a substincia universal, mas igualmente a forma que a especifica e particulariza, conferindo-lhe o esta- tuto de substancia social; e que sé por isso aquelas abstracgdes gerais e determinantes que constituem o comego de direito da exposig&éo podem servir de base ao desenvolvimento cate- gorial que reconstitui cognitivamente 0 mecanismo objectivo de constituico da substincia social como realidade objectiva. Esta a razio porque, como Marx assinala, o trabalho cientifico s6 pode comecar «post festum», com os resultados do desenvolvimento, pois, «as abstracgdes mais gerais nado se produzem sendo no seio do desenvolvimento concreto mais tico, onde uma caracteristica liga uma multiplicidade de coisas e deixa de poder ser pensada sob forma particular» (3). Assim se compreende igualmente porque motivo afirmd- mos desde o inicio que no hd método que nado diga nada sobre o real, que ndéo ha epistemologia que nao pressuponha uma ontologia subjacente e que o discurso cientifico esta sempre subordinado ao estatuto de objectividade dos seus objectos. J&é se tem pretendido— assim Sartre, por exemplo—, constituir uma insuficiéncia infeliz a auséncia de uma episte- mologia marxista; é, pelo contrdrio, prova da superioridade do pensamento dialéctico nao procurar construir uma teoria gnoseologica; Marx nao constréi uma tese epistemoldgica pre- cisamente porque nao aceita o problema do conhecimento nos termos em que habitualmente é colocado (4). Com efeito, @) Cf. «Misére de la Philosophie», ed. cit. pag. 78. @) Cf. «Introduction...», ed. cit. pag. 269. @) Cf. ibidem, pag. 259. ; : _ @) Isto explica, até certo ponto, que, no seio da luta ideoldégica, se haja improvisado uma posigao epistemoldgica simplista que pudesse opor-se, 9 a racionalidade de que releva a teoria da histéria envolve uma completa inversio da relacio de dependéncia entre contetidos e formas que constitui o cerne de toda e qualquer teoria expli- cativa, A determinagdo das prdticas dos agentes histéricos pela estrutura do modo de producaio, bem como a dependéncig desta estrutura em relacdo ao processo da sua formacio nao envolve a atribuigéo de qualquer forma de eficdcia causal, nem aos invariantes estruturais, nem aos invariantes funcio- fiais do processo, nem, muito menos, as leis que exprimem a sua intelegibilidade. A teoria da histéria, como bem acentuou Althusser, nao releva de um modelo de causalidade linear e transitiva, nem de um modelo de causalidade expressiva. Nem a infraestrutura, como processo de formacdo da base econémica da sociedade, é a causa dos diferentes modos de produg&o, nem a estrutura de cada um destes modos é a causa das diversas prdticas dos agentes, cuja reiteracio define a propria realidade e consisténcia da estrutura. A teoria explicativa de que releva a teoria da historia estd para além de todas as formas de racionalidade constituidas antes da sua fundacdo. Ao passo que, no estadio actual do desen- volvimento das ciéncias que tém por objecto a natureza mate- rial, —as quais relevam de um modelo de causalidade deter, ministica ou probabilistica—, a explicacdo consiste na inser- go do real no conjunto de todas as suas transformacées vir- tuais, pensadas como reversiveis, e os seus conceitos denotam a estrutura deixada invariante pelo jogo daquelas transforma- g6es, reais ou simplesmente pensadas, no dominio das ciéncias humanas a explicag&o consiste, pelo contrdrio, na insercdo das formas no processo real da sua constituicgao0, mostrando como as estruturas se constituem, nio como articulacado de formas «quaisquer», mas como formas da substincia que nelas no mesmo terreno, as teses dos adversdrios (como é designadamente © caso da tristemente célebre teoria do refiexo, e que, por outro lado, esta Posicdo haja sido gostosamente aceite pelos detractores, dada a facilidade de refutacdo que manifestamente oferece. 10 «st un de ne ou ex, tu he es| qu ju ou de toi va da se} é] pu da sis de qu de tec no qu po cee ha se objectiva, transmutando-se em substincia formal, realidade «sensivel-suprasensivel» ou, simplesmente, social. Nao se trata de inserir o fendmeno num jogo de formas universais, que definam a sua objectividade por determinacgio de invaridncias — como nos modelos de causalidade linear —, nem de reconduzir as formas a uma actividade constituinte ou a um principio interior — como nos modelos de causalidade expressiva —, mas de dar conta do processo objectivo de estru- turacao das formas em que se cristaliza a «energia pratica dos homens», tinica realidade a que seria possivel atribuir um papel estritamente causal, em sentido cldssico, se tal adiantasse o que quer que fosse ao nosso conhecimento. O problema radicalmente novo, colocado por Marx, é justamente aquele que a economia cldssica nunca se colocou: a questio de saber porque é que os contetidos tomam estas ou aquelas formas? «A economia cldssica analisou, embora incompletamente, o valor e a sua grandeza, e descobriu o que jaz por detrds destas formas. Mas nunca perguntou porque razdo este contetido toma estas formas, porque é que o trabalho é representado pelo valor do produto, e o tempo de trabalho é a medida do valor.» A teoria da histéria sé pode ser uma teoria estrutural da histéria, ndo porque a estrutura contenha, em si mesma 0 segredo da sua propria intelegibilidade, mas porque 0 seu objecto € precisamente 0 processo de formagio das estruturas que esti- pulam as condigdes de objectividade e subjectividade da reali- dade social; a estrutura nfo é aqui o simples invariante de um sistema de transformagées operatérias, mas a prépria forma de objectividade social, a qual determina o sentido das praticas que nela se plasmam e sem as quais n&o possui nenhuma forma de eficacia. Nao se trata de incluir 0 «dado» no seio de um reticulado tedrico, a fim de descrever a articulacdo dos seus elementos no interior de uma combinatéria formal; esta operagao, da qual se reclama, de um modo geral, o estruturalismo contem- poraneo, releva de um tipo de pensamento mecanicista que pro- cede por decomposigao e recomposi¢ao. O problema da teoria da historia é radicalmente outro; ha que eliminar as ilusées do mundo vivido, mas para colocar Il as ilusdes se constituem; hg o problema i aa Retoemaille da subjectividade, ia renunciar 4 Pe aHieate o problema de saber como essa Para co acne ee a ser, porque nao esté em causa a recon. subjectividade toad sa formas que lhes seriam exteriores, mas aie SC ccuatae saber como se constituem essas formas, antes ‘precisamente para que 0 alcance desta teatia explicativa possa ser claramente apreendido, que = eo obie fi © mal entendido que vé na afirmagio de um estatu he ijectivo das abstraccdes da ciéncia uma desvalorizagao historicista que afectaria os conceitos de um indice de relatividade qualquer, Quando, ao tempo em que redigia os «Manuscritos» de 1844, Marx abordava a economia classica de uma _perspectiva antropolégica, procurando compreender — «begreifen» —, isto é, reconduzir a uma actividade constituinte, ° sentido das categorias econdémicas, concebidas como expressdes abstractas — separadas —, do trabalho alienado e da propriedade privada, ele observava: «A economia politica, para dar as suas leis uma maior consisténcia e uma maior determinagdo, deve colo- car a realidade como acidental e a abstracgdo como real», Num texto como este, a abstracgao é contraposta 4 reali- dade e, como tal, radicalmente desvalorizada; com efeito, no momento em que escrevia os Manuscritos, Marx ndo se havia ainda apercebido do cardcter cientifico da economia classica e limitava-se a ver nas suas abstracgdes o discurso da proprie- dade privada capitalista, algo como a tomada de consciéncia de si da sociedade burguesa; as categorias econdémicas sio encaradas como as formas de um discurso através do qual uma sociedade histérica toma consciéncia de si mesma, num momento determinado da sua evolucao; a economia ricardiana € encarada pelo jovem Marx no prolongamento directo e ime- diato da vida quotidiana; concebidas como traducdo redutora de uma realidade histérica contingente, as abstracgdes ndo poderiam deixar de ser, por isso mesmo, afectadas de um indice de temporalidade relativizante, Cabe. entretanto perguntar: mas, a qué? S6 pode rigorosamente falar- moldgica quando se concebe um Ab: fira & entidade em quest&o o seu sent © Absoluto em relacio ao qual a abst 12 relativizadas, em relagao se de relativizagao episte- soluto qualquer que con- tido relativo; qual é, pols, tragdio resulta relativizada, no pensamento do jovem Marx? Este Absoluto é ai_efectiva- mente postulado sob a forma de uma Historia, concebida como objectivacao — alienagao da esséncia_ genérica do Homem; as categorias econémicas sdo apreendidas de uma perspectiva filosdfica no sentido mais tradicional, e é do ponto de vista de uma verdade antropolégica concebida como totalizacao de uma praxis englobante, que todo 0 discurso abstracto é rela- tivizado, na medida em que se revela A consciéncia filosdfico- -critica como expressdo parcelar de uma realidade histérica limitada, a qual vird a ser superada e integrada no discurso total que sera proferivel quando a sociedade humana se tornar completamente transparente para os agentes, na translucidez de uma praxis indivisa, recuperada como actividade genérica socializada. Numa concepgio desta ordem, nado ha, evidentemente, lugar para a distingao entre ciéncia € ideologia. Para o jovem Marx, exactamente como para Hegel, todo 0 pensamento € uma tradugio e o seu mecanismo € 0 da tomada de consciéncia; mesmo quando esta consciéncia é uma consciéncia falseada —o que sera, alids, sempre 0 caso... até que... —, 0 homem esteve e estaré sempre na Verdade, porque embora esta ou aquela verdade possa ser alienada — parcelar, separada, abstracta pre- cisamente —, todo o pensamento é a traducdo de uma situagao histérica realmente vivida; na medida em que esta vida real é alienacdo da esséncia, o discurso que a diz terd que ser necessa- riamente limitado; quando, porém, 0 homem recuperar, no seio da humanidade socializada, a sua esséncia genérica — trans- viada, mas nunca perdida—, 0 seu pensamento sera, entdo, integral e imediatamente verdadeiro, a titulo de expressdo de uma vida auténtica e finalmente adequada a sua esséncia. Por isso, 0 discurso do jovem Marx nao se pensa como discurso verdadeiro ou discurso cientifico, mas como discurso critico, critico da especulacao ou da abstraccdo, ou seja, como reconducao das ilusdes do pensamento & historicidade concreta da vida real de todos os dias. _ Na sua contribuigdo para «Lire le Capital», Jacques Ran- ciére tem uma magnifica andlise daquilo a que chama as an/i- bologias deste discurso critico, cuja produtividade se esgota na traducao das categorias econédmicas em categorias antro- polégicas universais destinadas a exibir as primeiras na nudez 13 rica. A titulo ilustrativo, passo a inserir ére sintetiza. as referidas anfibologias 9 um diciondrio: ivi hist6 da sua relatividade r o quadro em que Ranci e que poderd ler-se com Quadro das anfibologias CRITICA ECONOMIA ri homem ‘drio at ae trabalho actividade genérica produto objecto capital ser estranho meios de subsisténcia meios de vida valor dignidade troca comunidade comércio sociabilidade riqueza sensibilidade Como assinala muito justamente Ranciére, as condigdes de possibilidade deste discurso critico desenham, do mesmo golpe, as condi¢des de impossibilidade do discurso cientifico; € o cerne desta impossibilidade reside precisamente na recusa da abstracgao. Quando todo o pensamento é comprimido num sé bloco €a abstracc4o que o define é identificada com a separacdo daquilo que se encontra unido no real, resulta necessariamente que esta separacdo dos elementos do real deve apresentar-se como um momento isolado e alienado da Histéria, concebida como o Jugar de uma Verdade que se faz e n&o existe em parte alguma sendo no movimento do seu prdéprio devir. Foi justamente ao Tomper com uma concepcao desta ordem que Marx fundou a teoria da histéria, produzindo simultanea- mente a distingdo entre a ciéncia e a ideologia e uma teoria da natureza diferencial das abstraccdes. eae parr numa espléndida sintese: teoria que fundaa Reig larx tompe radicalmente com uma a historia e a politica sobre uma esséncia do 14 home cidve fund form supe! pela nism nao ¢ das ¢ homem. Esta ruptura comporta trés aspectos tedricos indisso- cidveis: 1. Formagio de um teoria da historia e da politica ndada sobre conceitos radicalmente novos: conceitos de o social, forgas produtivas, relagdes de produgdo, super estruturas ideoldgicas, determinagdo em Ultima instancia pela economia, determinagado especifica dos outros niveis, etc. 2. Critica radical das pretensdes tedricas de todo o huma- nismo filosdfico. 3. Definigéo do humanismo como ideologia. fu' formaga ...j a esséncia-do homem criticada — 2 — é definida como ideologia —3—, categoria que pertence 4 nova teoria da sociedade e da histéria — 1» (5). Nao posso deixar de dar razdo a Althusser quando faz da acentuacdo desta ruptura o instrumento indispensdvel da compreenséo do alcance da teoria da histéria. E um erro, no entanto, supor que a construgio efectiva da teoria da histéria poderia ter sido levada a efeito, por assim dizer negativamente, pelo simples reptidio das concepgdes do Marx jovem ou do con- ceito hegeliano de totalidade expressiva. A ruptura de Marx com a sua consciéncia filosdfica ante- rior n&o representa uma simples inversdo do seu ponto de vista de juventude; e se é rigoroso afirmar que as condigées de possi- bilidade do seu discurso critico desenham as condigdes de impossibilidade de um discurso cientifico, é, por outro lado, completamente destituido de sentido supor que a negacéo daquela rede de condi¢des de possibilidade e de impossibili- dade possua, por si s6, para além da fungdo negativa de deslo- car um obstdculo, o papel positivo de contribuir, por simples inversio, para a construgao de um conhecimento efectivo do mundo humano e das suas transformagées. Pensar que € possivel a reconstrugao do alcance da obra do Marx da maturidade a partir de uma critica do pensamento () Cf. «Pour Marx», ed. cit. pag. 233. Este texto est4 incluido no tra- balho «Marxisme et Humanisme»; a sua aceitagdo praticamente integral nao envolve, porém, como deve ser ja evidente para o leitor, a aceitacao das conclusdes gerais do estudo em que se encontram inseridos. IS do conceito de totalidade hegeliana, sem a uma construcdo positiva dos conceitos 6 uma ilusdo que sé poderia ter surgido cepcaio da teoria formal do da histéria vem precisamente do Marx jovem ou procurar proceder da teoria da histéria, como consequéncia daquela con discurso que a fundagao da teoria por em causa. : ma vez a distor¢éo a que a revo- Aqui se manifesta mais u lugo tedrica de Marx é submetida no pensamento de Althusser e, por consequéncia no de Ranciére; segundo Althusser, Marx teria efectuado em «O Capital» precisamente aquilo que nos manuscritos censurava & economia classica: afirmar a abstrac- cao como real e a realidade como acidental; sé que, desta feita, a realidade da abstraccao seria uma pura realidade de pensa- mento, sem qualquer referéncia directa 20 objecto real da teoria. E neste sentido que Ranciére, apés uma magnifica critica a distorc¢ao historicista que se opera nos trabalhos de Pietra- nera (5), afirma: «o que distingue efectivamente a abstracgao de Marx é que ela apreende as propriedade de um espaco € a constituicio de um dominio de objectividade». A aceitar-se uma tal concepgdo, 0 que estaria em causa no discurso da teoria da histéria nado seria a objectividade do ser social, mas a objectividade dos objectos abstracto-formais construidos no seio de um sistema tedrico formalizado; a passa- gem do jovem Marx ao Marx da maturidade seria como que uma rotacdo de 180°: a passagem de uma desvaloriza¢ao histo- ricista da abstraccgo a uma sobrevalorizacdo anti-historicista da mesma abstracg4o; assim como para o jovem Marx toda a abstraccio representava uma traducao das condigées histéricas existencialmente vividas sob 0 modo da alienagdo, assim para (8) A afirmagio do texto significa que Ranciére leva a efeito uma notd- vel critica do pensamento que imputa a Pietranera; faco esta reserva por- guanto, embora nao tenha tido acesso ao trabalho de Pietranera a que Ranciére se refere, pude verificar, através da leitura da introducdo de Lucio Colletti 4 introdugdo italiana da obra de Il’enkoy, que, pelo menos, Ranciére imputa falsamente a Pietranera a adopcdo daquela aberrante tese Engels segundo a qual a lei do valor seria valida desde os primér- dios da troca at is Pi once é ao século XV, pois Pietranera rebate expressamente 16 o Marx da maturidade, toda a abstraccao cientifica constituiri um conceito extra-histérico situdvel num universo de fon? O caso € que ndo se trata da mesma abstraccdo CMa constitui a teoria da historia como disciplina cientifica ous nas distingue aquelas abstraccdes que se limitam a sistematiar i jntuigdes & representagdes dos agentes, Operando a tradu io do mundo vivido e o seu reconhecimento ideoldgico, das abstra, codes de cardcter cientifico que resultam da transformacao daque- las intuigdes e representagdes em conceitos universais concre- tos que denotam as formas reais em que se objectiva a realidade socio-histérica. Por isso Marx pode afirmar que as categorias econémicas exprimem condigdes de existéncia histéricas, nado a titulo de traducdo na consciéncia psicolégica dos sujeitos, mais tais como aquelas condigdes se revestem de uma realidade objectiva inde- pendentemente do modo por que sio refletidas pelos agentes; o trabalho tedrico consiste precisamente na trituragdo das significagdes vividas e na recondugio do movimento da vida quotidiana ao movimento real do sistema. E possivel concordar inteiramente com Ranciére quando este afirma: «A revolucgio de Marx ndo consiste em histori- cizar as categorias da economia politica, consiste em fazer © sistema dessas categorias e a critica do sistema é feita pela sua exposi¢io cientifica, pois o sistema faz aparecer uma estru- tura que n&o pode ser compreendida sendo dentro de uma teoria das formacées sociais». Mas o que Ranciére n&o se pergunta € porque razio a exposig&o do sistema das categorias da econo- mia politica constitui a sua critica, ao passo que a exposicdo de um sistema fisico nao constitui critica‘de coisa nenhuma, nem t4o pouco porque razfo a estrutura reconstituida por aque- las categorias nio pode ser compreendida sendo através da sua insergdo num processo histérico, ao passo que as estruturas construidas por Levi-Strauss parece ndo exigirem semelhante insergao e se nos oferecem como fundamento da sua propria intelegibilidade sincrénica ou acrénica. Serer O caso é que do facto de que Marx nao historicize as cate- gorias da economia politica classica no se segue que deshis- toricize a realidade de que essas categorias sio conceitos. E na medida em que os conceitos sio as formas da propria substancia social que eles permitem apreender cognitivamente, 17. 2~-C.H. (2° vol.) e na medida em que esta substAncia é historica, que a estrutura estruturada, reconstituida pela anilise dos classicos é necessaria- mente a face de uma estrutura estruturante, que nao é mais do que a infra-estrutura ou formacdo economica da sociedade, con- bida como processo de producio e reproducio das condig&es da vida material. Compreende-se, portanto, que Marx jamais tenha cessado de criticar a economia cldssica por tomar a realidade como acidental e a abstracc4o como real, embora tal critica assuma na obra cientifica da maturidade um alcance completamente dife- rente do que lhe cabia nos Manuscritos de 1844. Seja aqui invocado, a titulo de ilustragao, o seguinte texto: «A economia cldssica nunca conseguiu deduzir da sua andlise da mercadoria e, especialmente do valor da mercadoria, a forma sob a qual se transforma em valor de troca, e ai reside um dos seus vicios fundamentais. Sdo precisamente os seus melhores representantes, como Adam Smith e Ricardo, que tratam a forma valor como algo de indiferente, ou sem qualquer relagao interna com a propria natureza das mercadorias. E isto nfo apenas porque o valor, como quantidade, absorve a sua atencio; a razio é mais profunda. A forma valor do produto do trabalho é a forma mais abstracta e mais geral do modo de produg&o actual, que por isso mesmo adquire um cardcter histérico, o de um modo particular de produgdo. Se se comete 0 erro de toma-la pela forma natural e eterna de toda a produgao e de toda a sociedade, perde-se necessariamente de vista 0 lado especifico da forma valor e, depois, da forma mercadoria, e, num grau mais desenvolvido, da forma dinheiro, da forma capital, etc.». Resulta claro que, num texto como este, Marx continua reprovar a economia cldssica a atribuigdo de um cardcter natural e supra-histérico 4s suas abstracges e a atribuig&o cor- relativa de uma natureza meramente irracional ¢ contingente A empiria. Simplesmente, enquanto que nos Manuscritos @ critica conduzia a uma sobrevalorizacio acritica de uma empiria concebida como manifestagio da esséncia — alienada —, do homem, e a uma desvalorizacao da abstracc&o, como tradugao unilateral da cisio do sujeito e da esséncia, agora a abstraccdo nao € criticada pelo facto de ser abstracta, mas, ao contrario, pelo facto de, por um lado, nao ser suficientemente aprofundada, 18 e nao se libertar suficientemente do domini 2 arinci quotidianas, €, por outro lado, pela Ceti aie bida como meramente formal e, por isso, incapaz de s ean base 3 reconstrugdo gene et E este justamente o sentido do seguinte texto em qu Marx se refere directamente 4 obra de Ricardo: = «Dando-se conta da forma da concorréncia, Ricardo renun- cia a aparéncia da concorréncia para estudar as leis como tais. Poderfamos reprovar-Ihe, por um lado, nao ir suficiente- mente longe, e, por outro, tomar a forma exterior imediata- mente como a confirmacio da lei geral, em vez de a desenvolver. No primeiro sentido, a sua abstragao é incompleta, no segundo, é completamente formal e falsa em sin. E ainda, em outro local: . «Seria um erro reprovar-lhe demasiada abstracg4o; 0 con- trdrio é que é verdadeiro; considerando 0 valor da mercadoria, Ricardo n&o consegue esquecer os lucros que a concorréncia Ihe revela». A insuficiéncia de Ricardo n&o reside na sua abstracgito; pelo contrdrio, «é fazer obra cientifica reduzir 0 movimento visivel, 0 movimento simplesmente aparente, 20 movimento real interno». A pratica da economia cldssica, ao contrario da economia vulgar, € uma verdadeira pratica cientifica, justa- mente na medida em que, reduzindo as formas fixas e estranhas umas as outras 4 sua substancia comum e a sua unidade interior, ela produziu algumas daquelas abstracgdes efectivamente deter- minantes que constituem yerdadeiros conceitos cientfficos. A sua insuficiéncia resulta sim de nao saber de que é que essas formas sao formas, de olvidar sistematicamente a diferenga entre a representacio ¢ O conceito, e prejudicar liminarmente a solugdo do problema de saber porque razdo a substancia social, que os conceitos denotam, assume justamente aquelas formas mistificadas em que Monsieur le Capital ¢ Madame la Terre se consorciam misticamente com vista a producao de uma prole numerosa, como mandam os preceitos biblicos. Mais adiante procurarei abordar directamente, de um ponto de vista estritamente teérico, a questiio da insuficiéneia da economia classica. Deve, entretanto, notar-se, desde ja, que o cerne das insuficiéncias de Ricardo nao é completamente alheio As insuficiéncias de algumas correntes do estruturalismo I9 contemporaneo; Levi-Strauss, por exemplo, € capaz de proce. der, a partir do material etnogrdfico disponivel, que representa as suas intuigdes e representagoes (7), 4 recondugao da aparéncig ao movimento interno, a estrutura escondida; sé que nado se pergunta de que é que essa estrutura € estrutura, e assim se mos- tra incapaz de ultrapassar o modelo de racionalidade que the é fornecido pelo estadio actual de desenvolvimento das ciéncias fisicas e produzir aquela integragao do real e do vivido, pela qual a sua obra se reconheceria tributdria da ciéncia da histéria e nao relevando de Kant ou de Laplace. Por isso se compreenderd igualmente que Ranciére, tal como acontece com M. Godelier, seja capaz de proceder a uma exacta caracterizagdo do discurso da economia vulgar «que se limita a traduzir no plano doutrinal e a sistematizar as repre- sentagdes dos agentes de produgio tomadas das relagdes de produgdo burguesas e a fazer a apologia delas», mas se mostre absolutamente incapaz de dar conta da natureza do discurso da economia classica. E assim que, nas notas que concluem o seu citado trabalho, alids extremamente valioso a varios titulos, Ranciére acaba por dizer um pouco abruptamente: «Podemos, entio, afirmar que Marx nao nos da o conceito da possibilidade do discurso da economia cldssica. Para poder formular este conceito era preciso pensar este ugar comum onde se separam a economia classica e a ciéncia marxista, isto é, para compreender a possi- bilidade da economia cldssica é preciso colocar o problema da possibilidade da ciéncia mesma, da sua relagado com as suas condigdes histéricas de possibilidade». Este texto é particularmente significativo, porquanto o que aj se revela é a imputacdo por Ranciére a Marx de uma insuficiéncia que precisamente é prépria de Ranciére; ao con- trdrio do que este pretende — e como se vera seguidamente com mais pormenor —, Marx dd-nos bem as condigdes de possibi- () Embora jé o tenha pretendido—cf., por exemplo, a resposta as criticas de J. F, Revel —, Levi-Strauss nao construiu os seus conceitos a partir dos seus contactos vividos com os simpaticos Nambikwaras, mas, como todo e qualquer teérico, a partir das representagdes ja siste matizadas e classificadas que constituem o patriménio comum de centenas de etndlogos. 20 lid: cor rit¢ tici at qu his rai de de res da bil tal da cit ak tu ap un de se} qu pu fo pe tre im lid fec un) en tay 3 ciéncia, a qual tomada unitariament jidade, — entidade mitica da mesma ordem ieee corn tifico” ou o «lumen naturale», mas das diferentes a tT orjentificas historicamente constituidas no seio do prooeesa ee ctivO de estruturagdo da realidade social e histérica, i Quando Marx afirma, e reafirma, em textos que vao desde a «Miséria da Filosofia» até as «Teorias sobre a Mais-valia», que 0S economistas classicos cometem o erro de tomar as formas nistoricas do modo de produgao capitalista pelas formas natu- rais e eternas de toda a produgao e de toda a Sociedade, ele define claramente, embora por forma negativa, qual é a condi¢ao de possibilidade da economia cldssica e qual o ponto onde reside a sua insuficiéncia. A condicio de possibilidade objectiva de constituigdo da economia cldssica nao é outra sendo a condi¢do de possi- bilidade de constituig&o da prépria teoria da histéria; o comple- tamento do processo de formagdo da infra-estrutura da socie- dade, a constituig&o da realidade histérica como dominio espe- cifico de objectividade; mas o nascimento de uma ciéncia exige, além das suas condigdes de possibilidade objectiva, a consti- tuigio de uma forma de subjectividade capaz de proceder 4 apropriagio cognitiva desse dominio de objectos, a partir de um ponto de vista exterior. A insuficiéncia da economia cldssica, quando encarada desta perspectiva, resulta precisamente da incapacidade dos seus tedricos em se elevarem a um ponto de vista a partir do qual o estatuto de objectividade da realidade socio-histérica pudesse ser posto em questao e se encontrarem, por isso mesmo, forgados a encarar as formas como se se tratasse de pressu- posigdes dadas, ou seja, formas da realidade natural. Como se verd, com maior detalhe no numero seguinte, trata-se aqui de uma insuficiéncia propriamente tedrica: a impossibilidade de atingir uma forma de racionalidade capaz de exibir a irracionalidade da aplicagdo ao tratamento da rea- lidade socio-histérica do modelo analitico que se revelara fecundo para a constituigéo das ciéncias da natureza. Fazendo da ciéncia uma entidade unitdria, definivel_a um nivel puramente formal, néo admira que Ranciére nao encontre no seu arsenal tedrico instrumentos que Ihe permi- tam formular a distingdo entre as ciéncias naturals ¢ a ciéncia 21 mente, 56 8 Pat oe elas seria post sectivi los seus 0! Ppossi- oe ee estan abjectividade acto ontoldgico da realidade ede realidade socio-historica. Ao impossibilitar-se natural ¢ da reali Ithusseriana retira-se todos os meios esta distingao, a escola anh ane ia cldssica, pel ceptualizar a insuficiéncia da econom: lassica, pela eae eto de que esta lhe reflete a sua propria limitagao. Pe de, agora, ver-se qual o ee que jaz por detrds retenso anti-historicismo marxista. ce ciam, por exemplo, as seguintes _afirmagoes de ane citadas por Ranciére, ainda a propésito da apreciagdo da economia politica cldssica: Mesmo os melhores dos seus porta-vozes, mantém-se, as mais das vezes, cativos das aparéncias deste universo que a sua critica dissecou — do ponto de vista burgués nao podia ser de outra maneira». : 7 «A economia politica toca de perto o verdadeiro estado de coisas sem nunca o formular consequentemente. E isso ser- -lhe-4 impossivel enquanto nao se libertar da sua pele burguesa». certo que Althusser ndo pretende reconduzir todos os textos assinados com 0 nome de Marx a uma unidade mitica que constituiria a verdade do «auténtico» pensamento mar- xista. No entanto, textos como estes—ao lado de tantos outros —, constituem verdadeiros ossos, extremamente difi- ceis de digerir pela concepgio althusseriana da ciéncia marxista. Althusser diz-nos que tais textos nao representam a ultima palavra da critica de Marx; o que é uma maneira de insinuar que so um simples prolongamento da primeira, um residuo da ideologia historicista que caracterizaria ainda a «Ideologia Alem» e se introduziria subrepticiamente pelos inimeros lapsos tedricos em que Marx teria incorrido com tanta frequéncia. _ E que, na concepgao althusseriana, entre a ideologia historicista, que pensa a ciéncia na continuidade da consciéncia de si, € a pureza epistemoldgica do discurso formalizado, «tertium non datum, como diriam os escoldsticos. Ora, pelo facto da ciéncia implicar uma ruptura com as Tepresentagtes vividas dos agentes histéricos ao nivel da «rea- idade» quotidiana, n&o se segue que os conceitos cientfficos a one denotar os seus objectos de conhecimento, defini- peragdes que os engendram, nem que sé apreendam 22 da histéria. Efectiva as propriedades formais de um espago teédric acontece nas ase ra ene ee e com a om o s aa evidéncia sensivel ou racional de wae que nela se ou transcendental, e constréi conceitos que hee $e eolésico descrever 9 que e, mas nos explicam como o é imitam a ser, a dentincia da «realidade» ideolégica como a a we veio a se faz em proveito de um simples espacgo tebrice, ea nao de toda a referéncia ontoldégica, mas no sentido a. esprovido de uma objectividade mais real, a partir da qual se ies Opriagao yel dar conta das formas da sua aparigdo-dissimulacao. © a imagem do que Quando a cigncia 6. A economia cladssica e a teoria da histéria Procuremos, pois, esclarecer onde reside a diferenga teérica fundamental entre a economia cldssica e a teoria da histéria, abordando directamente a quest&o de saber como carac- terizar adequadamente as insuficiéncias da teorizacdo de Ricardo. Quando Althusser afirma que Marx no procede a histo- rizagiio das categorias de Ricardo, a sua posicao é, nesse ponto, absolutamente irrefutdvel; Marx ndo 6, como por vezes se supde, um Ricardo posto em movimento, por um impulso hegeliano. A. insuficiénica de nado proceder a um de Ricardo nao reside na circunstancia tratamento histérico dos seus mate- tiais, ou seja, de nado procurar acompanhar a par e passo as vicissitudes da historia empirica; nisso se manifesta, pelo con- trdtio, a sua grande qualidade, aquela que faz dele 0 maior tedrico da economia classica. Nem tio pouco se trata de consi- derar Ricardo como um simples idedlogo da classe burguesa ascendente. O defeito de Ricardo é propriamente tedrico; é na sua qualidade de sujeito da cigncia, e nfo na circunstancia indi i i ele de o indivi Ricardo ser banqueiro, que se revela a sua pé aaa natural e€ suprahistorico burguesa. A atribuigdo de um cardcter Ricardo as categorias do universo burgués nao éuma Feast ologista se proponha defender doutrinariamente, 2 titulo i ei licada do sistema; mas uma consequéncia rigorosamen - arti- no modo de conceber a natureza dos conceitos & culagio dedutiva. 23 ‘ i ue se encontra impli- ¥ no proprio método, d Sane dategorias econémieas, cada a natureza eaet eae Levi-Strauss que se encontra impli- assim como € no ed ° radical de teorizar a historia, apesar cada a LS ene que Levi-Strauss nao deixa de ren- ae de cet notdrio aue a sociedade burguesa niio ope. Saude, Sernsuficidncia de Ricardo no reside em qualquer espécie de dedicacdo espiritual a sociedade do seu tempo; esta insuficiéncia esta implicita na sua incapacidade de distinguir, de um modo consequente, entre a representacio e 0 conceito, e na impossibilidade que ai se manifesta de se libertar do dominio da concepedo empirista do conhecimento, exemplarmente formulada por Locke, e que domina toda a economia classica inglesa. Pode hoje compreender-se que, j4 desde a obra de Adam Smith, a economia cldssica sé efectuou um verdadeiro trabalho cientifico na medida em que, inconscientemente, transgrediu os canons da inducao empirista, isto é, na medida em que a sua pratica tedrica foi capaz de se elevar das formas fenomenais até A substancia universal dos fenémenos econdmicos, como se exprime no conceito do valor. Tal prdtica encontrava-se, porém, em permanente conflito com as concepgdes metodoldgicas conscientes, vinculadas & filosofia de Locke, e segundo as quais o conhecimento haveria que edificar-se a partir da comparagdo e generalizagdo da expe- riéncia empirica, oferecida 4 virgindade original do espirito do tedrico. E precisamente este conflito que explica que a investi- gacdo propriamente tedrica se entrelace constantemente com uma sistematizago acritica das representagdes empiricas quo- tidianas. (8) E o que Marx pée claramente em evidéncia no seguinte texto: - «O proprio Smith, com grande ingenuidade, move-se numa contradicao permanente. Por um lado, procura a conexdo pntime pure! a lige cone? cient jntere! modo na fis a cats quais no P coexi igual cio é nan de Vv cates afirn class Locl e to! crita uniy men vita Dac estr cate con que a fi sob @) Cf, sobre tod: citada de iVowey, a esta apreciagio da economia classica, a obra J pag. 136 e seg., da qual me servi Jargamente. 24 intima das categorias econédmicas, a estrutur purgués. Por outro lado, a par desta con a ligagdo que een se oferece concorréncia, tal como se apresentam ao cientifico ou de quem quer que seja, na pritba, preioeeh ae jnteressado no processo de producio burguesa. Estes. dor modos de conceber, um dos quais penetra na conexio intima, na fisiologia do sistema burgués, enquanto que 0 outro se Timita a catalogar, descrever, narrar, reduzir a representagdes concei- tuais esquematizantes aquilo que se manifesta exteriormente no processo da vida, tal como aparece e se mostra, ndo sé coexistem pacificamente em Smith, ao lado um do outro, como igualmente se entrecruzam e contradizem mutuamente». Ricardo representa inegavelmente um progresso em rela- cao a Smith — como Levi-Strauss em relagdo a Malinowsky —, na medida em que adopta, com plena consciéncia, 0 ponto de vista da conexdo intima dos fendmenos e da deducdo das categorias a partir da sua substancia. E hoje um lugar comum afirmar que Ricardo foi o mais dedutivo dos economistas cléssicos; com efeito, mais de acordo com Spinoza do que com Locke, Ricardo compreende que «toda a formagao econémica, e toda a forma particular de riqueza, nado deve ser apenas des- crita, mas compreendida com modificagao de uma substancia universal». (9) Foi o que Marx viu claramente: «...aqui intervém Ricardo e grita Alt! a ciéncia. O funda- mento, 0. ponto de partida da tisiologia do sistema burgués —e da compreensio da sua conexao organcia e do seu processo vital —, ¢ a determinagao do valor pelo tempo de trabalho. Daqui parte Ricardo, obrigando a ciéncia a abandonar a sua estrada tradicional e a dar-se conta de até que ponto as outras categorias que ela desenvolveu e apresentou correspondem ou contradizem este fundamento, este ponto de partida, fe até que ponto a ciéncia, que de um modo geral se limita 7 re - a forma fenomenal do processo, corresponde ao a if sobre o qual repousa a conexdo intima, & fisiologia real da socie oculta do sistema exdo intima, coloca nos fendmenos da ©) Cf. Ienkoy, ob: cit. pag. 139. 25 | | | dade burguesa, e em que relacdo se encontra, em geral, Perante esta contradicfo entre o movimento aparente e o Movimento real do sistema, Este 69 grande significado histérico de Ricardo», Na medida em que transgride o método indutivo de for. macao das abstracgdes, Segundo o modelo empirista, Ricardo consegue manter-se, com muito mais consequéncia do que Smith, no dominio do campo da deducio das categorias a partir do seu fundamento interno substancial. O que Ricardo nao alcanca é a compreensao de que esta deducdo construtiva pacdo € a de dar conta dos factos: 3 4 solugdo especulativa hege- liana n&o poderia Sequer assomar-lhe ao esp‘rito, Assim, 9 modo de ligagao entre a substancia de aparicdo dos fendmenos permanecerd sempre um mistério, © quebra cabecas que perseguiré Ricardo até ao fim dos seus dias. Incapaz de compreender que a sua substancia éuma rea- lidade social efectiva e nio meramente conceitual, Ricardo é forgado a conceber as _determinagées universais que Ihe ser. vem de ponto de partida da deducdo, como se Se tratasse das determinagdes de um simples termo geral, de um universal abstracto: «a relagdo entre © conceito de valor ¢ g, Conceitos de moeda, lucro, renda, salétio, JNtO, ete., aparece-the como uma relagaio de género-espécien. (10) : al E justamente aqui—e ae aaah nla de nag histo. ricizar as categorias—, que reside a insuficigncia qe Ricardo, Concebendo o bored ease ae he ae 80 mesmo a substanci: 2 a Co: todas, ounaa categorias mais complexas, Ricard Vese of i (@°) Cf, I’enkov, ob. cit., pag. 144. 7.6 ihe gado a duplicar a sua dedugéo por uma anilise empirica que terd por fungdo determinar a diferenga especifica das catego- rias particulares em relacgio ao seu género comum. Sendo a deducao teérica uma simples dedugio formal de conceitos, ela carece ser amalgamada com uma indug&o empirica levada a efeito a partir das caracteristicas que se oferecem a nivel feno- menal e ndo esto formalmente contidas no conceito abstracto de valor. A diferenca em relagio a Smith é a de que Ricardo tem consciéncia da contradigao em que se debate e estabelece uma hierarquia onde Smith se contentava com uma simples justaposic¢io; por isso Ricardo se mantém sempre fiel ao ponto de vista da substancia e da dedugio e Ihe atribui a pri- mazia sobre a generalizacio empirica, muito embora carega dos meios tedricos que poderiam justificar essa primazia. A sua abstracgio é formal e falsa em si, como observa Marx, na medida em que a deducio, despojada da sua cons- trutividade, nado lhe permite sendo reencontrar em cada uma das categorias mais complexas — o dinheiro, 0 lucro, o sald- rio, etc. —, aquilo que ja se encontrava contido no conceito universal do valor; de onde a necessidade de uma especificagao exterior e 0 conflito entre a dedugdo e a generalizacao indutiva dos factos; a contradigdo real entre o valor e o lucro transfor- ma-se numa contradicdo ldgica entre a definicdo quantitativa do valor e o conceito de taxa média de lucro. Como sabem os economistas, é a partir desta contradigao que veio a pro- cessar-se a dissolugo da heranga ricardiana. O que falta a Ricardo, e se reflete na sua concep¢ao a-his- torica da economia, é a ligacdo entre a dedugiio e desenvol- yvimento. Concebendo a dedugo nos moldes do silogismo clas- sico, Ricardo € incapaz de aprender o conhecimento como reconstitui¢io do processo de constituigao do real. A passagem do conceito de valor As outras categorias mais complexas da economia burguesa é, para Ricardo — como, hoje, para Althus- ser —, um movimento que tem lugar apenas no pensamento, e nao na propria realidade; e porque 0 pensamento é o domi- nio da eternidade, as categorias adquirem, por essa via, a carac- teristica da contemporeneidade eternitdria: esto todas em face umas das outras, € 0 valor &é concebido como uma simples abstraccio mental que condensa espiritualmente aquilo que tém em comum. 27 A contradigéo em que se move Ricardo é, no fundo, a que existe entre o ponto de vista da substancia € 0 nominalismo medieval. O valor é, para Ricardo, a substancia do sistema eco. ndémico burgués, mas, tal como os universalia dos escolasticos, &é algo que sO pode ter existéncia post rem € Jamals ante rem: assim como «o animal em geral» néo pode ter qualquer Teal. dade independente e anterior 4 dos animais particulares — cdes e gatos, cavalos e mulas —, assim também o valor nao pode ter qualquer existéncia concebivel antes do dinheiro, do capital, do lucro, etc. Fazer derivar estas categorias particu- lares do conceito de valor em geral apresenta-se, a Ricardo, como algo de tdo inverosimel como a derivacao das diferentes espécies animais do conceito do «animal em geral». E justamente porque o universal abstracto conserva sem- pre tracos dos objectos particulares a partir dos quais foi abstraido (11), o valor, em Ricardo, conserva também tra¢os das categorias particulares de que se apresenta como género; é neste sentido que Marx afirma que a sua abstracdo é incom- pleta; com efeito, o valor nunca é¢ rigorosamente isolado da renda, do lucro, da concorréncia, etc. Ricardo passa imediata- mente do exame do valor ao exame das formas da concorrén- cia, limitando-se a reconhecer a reiteragio do mesmo conceito nos diferentes fendmenos empiricos, nunca encarando o valor pura e simplesmente como valor, abstraindo completamente das outras formas. Vemos, agora, de onde resulta a aparéncia de eternidade ou de acronismo. Com efeito, se o teal constituisse um sistema sempre idéntico a si mesmo, 0 nominalismo seria, sem divida, a unica concep¢ao consequente ¢ purificada de contaminacdes metafisicas; so que dificilmente existiria sobre esta Terra alguém que o pudesse conceber. : A natureza anti-histérica da concepgao ricardiana reside justamente na atribuicdo de um alcance nominalista aos seus conceitos, e na incapacidade de se libertar da concepeao do universal como propriedade genérica comum a todos os fend. (11) & por isso que a representacdo, embora mais pobre, i € mais do que © conceito. Plena 28 nos individuais, 0 que o impossibili gett ae Mat eoneeita! possibilita de distinguir a repre- E por isso que, em face da concepsio ricardiana, a tarefa da ciéncia n&o consiste em relativizar os conceitos, pensando-os como formas da consciéncia histérica, nem em reconverte o conhecimento a histéria empirica. i O problema nao é o de pér Ricardo em movimento, mas o de teorizar o movimento real. Aquilo que para Marx é histérico nio 60 conhecimento cientifico do sistema capitalista ou do processo histérico em geral; 0 conhecimento constituido na sua qualidade de reconstituigao cognitiva do processo hist6- rico real, tem uma existéncia puramente ideal e nao é histérico, nem deixa de o ser. O que é histérico é o sistema real. Nao se trata de relativizar 0 conhecimento produzido; 0 que Marx relativizaria se a expressdo tivesse algum sentido a esse nivel, seria a realidade, e o processo de producao de conhecimento que nela se inclui. Quando Marx afirma que as categorias nao s&o eternas, nao pretende afectar os conhecimentos de qualquer coeficiente de relatividade, nem reduzir 0 conhecimento a um tomada de consciéncia da sociedade por si mesma. Afirmar que as categorias nao sdo eternas significa que o estatuto das categorias nao é o da simples abstraccdo mental, e que os conceitos ndo exprimem apenas a substincia idéntica que fornece energia ao processo, mas também a abstracgao real efectivamente produzida como realidade objectiva, independentemente do modo pclo qual é traduzida na consciéncia dos agentes. E esta distingo entre a representagao e o conceito, e nao qualquer tipo de relativizagdo do conhecimento que cons- tuitui o fundamento racional da conceptualizagao da realidade como processo de formagao. ical : O absurdo da concepgdo nominalista dos conceitos néo constitui um absurdo légico, mas aquilo a que poderiamos cha- mar, introduzindo uma expresso original, um absurdo dialéc~ tico. O erro do nominalismo ndo reside na sua incoeréncia interna, mas na sua propria coeréncia; ¢ isto num duplo sentido: o da coeréncia formal da teoria, e o da coeréncia desse forma- lismo com uma concepgio do real como um sistema eternitirio constituido de uma vez para sempre. 29 GN \ a disting&o entre a representagdo € 0 conceito Ita de qualquer incoeréncia de uma teoria formal ngo resul oes, mas da exigéncia de teorizar cientificamente - ae de desenvolvimento real. nae ero tdentemente correcto que Os animais individuais actual- mente existentes niio podem ser deduzidos idealmente da repre- sentagao abstracta do animal em geral; mas, nem a biologia tem, hoje, qualquer divida de que estes animals actualmente exis- tentes sio o produto de uma evolucdo, nem a teoria cientifica desta evolugio pode contentar-se com as abstrac¢6es represen- tativas do animal em geral, quando o seu problema € 0 de construir os conceitos capazes de permitirem a reconstitui¢ado cognitiva dos mecanismos evolutivos. i ‘Assim também, no dominio da teoria da histéria, nado é a abstracctio do valor, concebido como género onde se apa- gam todas as diferengas especificas, que pode servir de base A reconstituic#o da génese do lucro, da renda, do sald- rio, etc. O que constitui o fundamento elementar genético da recons- tituigo cognitiva do processo de estruturagao destas formas derivadas de objectividade social ¢ a realidade mesma de que o valor é 0 conceito, ou seja, o valor como substdncia formal, efectivamente existente ¢ incarnada na mercadoria. Conceber o valor como simples abstraccéo mental equi- valeria a colocd-lo, em relagio ao desenvolvimento do modo de producdo capitalista, exactamente na mesma posigdo em que se encontra a abstracgfo do animal em geral, em relagado & evolugdo das espécies. E perfeitamente coerente continuar a supor que todos os conceitos tem a mesma consisténcia ténue do conceito do animal em geral, o qual, devidamente enriquecido, através da sua articulagdo em sistemas de conjunto, pode fornecer uma descrigéo completa de todas as espécies animais existentes. Pode efectivamente fazé-lo; sé que nao é preciso, pois Lineu ca om Am bmp de rn Oe 3 ae Ccliees wine uma Teconstituicdo explicativa do processo taxinomias da Nasa n&o se limite a pdr em momento as acporlen St le Classica, tal como Marx nao se Jimitov rente & por um ae as categorias de Ricardo. O que é incot- ‘ n lado, n&io poder deixar de admitir a realidade 30 A exigéncia d ele ind vai log me ger. da evolucao, e, por outro, apelidar de metafisica uma concepcaio que permita reconstituir efectivamente o seu movimento. E na medida em que nado é uma simples representacio, mas um conceito universal concreto, que o conceito de valor sé pode ser compreendido pelos economistas burgueses como uma entidade metafisica. Mas é justamente porque o conceito de valor tem essa natureza de universal concreto que a dedugio categorial que arranca do valor, e da sua incarnagdo na mer- cadoria, pode levar a cabo a reconstituigdo cognitiga do processo de formagaio de uma estrutura; no porque o conceito contenha em si mesmo, como acreditava Hegel, a forga de se desdobrar © complexificar; como ja anteriormente observei, 0 que cons- titui_o fundamento genético elementar, em cuja contradigdo intrinseca se encontra, «in nuce» todo o desenvolvimento do sistema, néo € o conceito de valor, mas o produto real concreto do trabalho, no interior do modo de produgdo capitalista — a mercadoria, como unidade contraditéria de uma substancia e de uma forma. E nesta forma de conceber os conceitos, e néo em qual- quer forma de relativizag&o historicista, que reside a esséncia da visio histérica de Marx. Tal como uma concepg4o nominalista implica uma viséo estdtica da realidade e, por isso, se revela inoperante quando se trata de abordar um processo de desenvolvimento real, assim também a concepsao do conceito como um universal concreto envolve uma visdo histérica da realidade, sem que esteja em causa a reconducdo do conhecimento a uma tomada de cons- ciéncia ou a convicgo de que a ciéncia esteja forgada a acom- panhar a par e passo as vicissitudes do processo real. Como adiante procurarei esclarecer mais de espago, o desenvolvimento categorial que reconstitui o processo de for- mago da estrutura interna a partir do seu fundamento genético elementar, ndo representa uma descrigdo da génese empirica do sistema. A construgao dos conceitos cientificos néo é uma indugdo que vai do particular ao geral, nem uma regressdo que vai dos efeitos as causas ou do resultado a uma origem crono- logicamente datada, mas uma transformagao que val dos fend- menos, tais como surgem nas representagdes abstractamente gerais — na forma do seu aparecer—, a0 elemento simples a 31 rtir do qual se torna possivel operar a sua reconstituicag pa xplicativa. . 7 exp Quando Marx descobre na mercadoria a unidade de uma substancia e de uma forma, unidade Sara a partir da 2 de & reconstituigio do processo de estruturacao Sada a tema capitalista, ele n’o supde uma anterioridade ais ‘ca do Walee cal relagiio As outras categorias do sistema, “ oO miles como substincia formal constituida no es das trocas, s6 resulta integralmente realizado ve se1o do Hae de producao capitalista; é ai que, como diz ” AIX, © be se torna pela primeira vez verdade prdtica, substancia social efec. ee entre a substincia e a forma do valor pode conduzir & suposicdo de que a deducdo ldgica € uma expressio do devir da histérica empirica e que 0 valor é cronologicamente anterior A constituigéio do sistema cuja formagdo permite reconstituir. cee Como vimos anteriormente, o valor & uniao indissolivel de uma substancia e de uma forma — substncia formal, reali- dade sensivel-suprasensivel —; 0 que é cronologicamente ante- rior ao modo de produsiio capitalista, e constitui o fundamento de toda a continuidade histérica, néo 6 o valor, mas muito simplesmente a sua substancia — 0 trabalho, como pura energia prética dos homens. Nesta sua universalidade, a substancia ' do valor é efectivamente coextensiva a histéria; mas a substancia do valor no é 0 valor. Este s6 se constitui como realidade social no interior do processo das trocas, processo que surge inicial- mente como a repeti¢éo ocasional de acontecimentos pura- mente contingentes, que se passam na periferia das comuni- dades naturais. E nfo é na anterioridade cronolégica da subs- tancia que reside a necessidade do desenvolvimento; a histéria nao estd submetida a nenhuma forga mistica que a conduza por um curso pré-determinado. Marx 6, alids, inteiramente explici : : plicito quando afirma: «E apenas sobre a base da producdo capitalista que a merca- doria se torna efectiy. L amente a forma iversal chee Se elementar e univers E certo que ‘ i do oar um determinado grau do desenvolvimento constitui um proee Produciio € circulagaio das mercadorias— uposto histérico do nascimento do capital. 32 Neste sentido, a reconstituigdo da génese das categorias corres- fe ao processo histérico real. Mas isto nao significa que se trate da reconstituigadio de uma génese empirica; o aparecimento da mercadoria é um fenémeno muito antigo, que data do Neo- litico Superior, sem que, no entanto, o modo de produgio capi- talista se tenha desenvolvido a partir dai sob a forma de uma necessidade férrea. O surgimento deste modo de produgao é uma contingéncia histérica, cuja génese empirica pode ser objecto de estudo por parte dos historiadores, mas no repre- senta, 0 objecto da teoria da histéria. F, contudo, no processo do contingente que a necessidade se realiza. A teoria que reconstitui a formacio da estrutura do modo de produgdo capitalista, a partir do desenvolvimento das contradigées intrinsecas da forma da mercadoria, é uma dedugao explicativa da génese histérica real, justamente na medida em que exibe a transformacdo da contingéncia dos de de um processo de estruturagao. acontecimentos na necessida Independentemente das peripécias do nascimento_histdérico do modo de produgo capitalista nesta ou naquela outra regiaio do mundo, o surgimento deste modo de produgdo é, em todos os casos, 0 processo de realizagdo do valor e das suas leis. Apesar da sua enorme penetracio tedrica, nem o préprio Jenkov evita cair, por vezes, no erro de confundir o funda- mento com o antecedente cronolégico. E esta confusdo que o conduz a observar—a propdsito do exemplo de que atrds nos servimos —, que, Se OS animais individuais nao derivam do animal em geral, derivam, no entanto, de um antepassado comum, e que é da considerag&io deste animal que a deducAo explicativa deve arrancar, fazendo derivar dele, por diferenciagao real, os cavalos e as mulas actualmente existentes. Guardadas todas as diferengas, © problema tedrico é exactamente o mesmo nos dois casos. Supor que a derivacaio do antepassado comum, por diferenciagio real, constitui uma dedugdo necessdria, equivale a atribuir 4 evolucdo biold- gica a mesma necessidade mistica que, no caso similar, se atri- buiria & historia. Alids, a ideia de que é possivel deduzir do ante- passado comum o cavalo e a mula actualmente existente esta em contradicdo directa com a observacao de Marx segundo a = «a anatomia do homem é a chave da anatomia do ma- CO). pond 33 3~C.H (2 vol) to se trata de acreditar — como, porventura, Lisenko nio ea longe de supor —, que Marx tenha legislado sobre © futuro da biologia; 0 facto é que a teoria da evolugao biol. gica nao pode constituir-se atraves da busca indefinidamente regressiva dos antepassados comuns | das espécies existentes, O problema da teoria da evolugéo bioldégica nao é o de encontrar © animal original, mas o de construir o conceito do elemento genético universal, cuja substincia representard o fundamento de toda a continuidade evolutiva. A definitiva construg&o de uma teoria da evolugdo biolégica nao deve esperar-se do lado da Paleontologia ou da Anatomia Comparada — ou de qualquer outra disicplina descritiva—, mas do lado da Genética e, particularmente, da Genética humana. Sem quaisquer preten- sdes legiferantes num dominio que € absolutamente alheio & minha competéncia, julgo, no entanto, poder avangar que sera _no campo tedrico da genética humana que vird a descortinar-se o fundamento elementar que, no organismo mais complexo, se revele como forma particular da substancia funcionalmente idéntica de todo o processo evolutivo, substancia que se mantém, através das variacdes hereditdrias, néo porque se transmita ou se reproduza, mas, muito simplesmente, porque se conserva ou continua. Embora esta ordem de consideragdes parega afastar-nos do nosso tema, julguei-as, contudo, necessdrias para afastar © equivoco que jaz por detrds do pretenso historicismo, como do pretenso anti-historicismo marxista. Se, ao afirmar que o marxismo nao é um historicismo, se pretende simplesmente acentuar que a teoria da historia é uma disciplina cientifica, que releva dos seus préprios crité- tios de cientificidade, e que a validade dos seus conceitos nio depende minimamente do curso do processo histérico real, como seria 0 caso se fizéssemos do materialismo histérico uma espécie de consciéncia de si do proletariado (12), ent&o 0 mar- xismo nao é um historicismo. ‘ feeeae com tal afirmagdo se pretende que a teoria 44 ia € uma teoria formal que arrasta a destruigdo de toda 12) 7 ‘ Paris ee G. Lukécs, «Histoire et Conscience de Classen, ed. Minuit, 34 7 contitnuidade histérica, reduzindo @ histéria a um jogo de estruturas Cujo modo de ser é um mistério, entio o marxismo nao é um anti-historicismo. Em conclusio, © marxismo nio € um historicismo nem um anti-historicismo, assim como nao é um humanismo nem um anti-humanismo, exactamente porque é a teoria que per- mite o conhecimento da realidade que se exprime em todos estes «ismos», na sua natureza de formagdes ideoldgicas, quali- ficagdo que nao significa que todos eles se equivalham, mas sim que nenhum deles tem qualquer valor cognitivo. 7. Sobre a indigéncia da leitura sintomal No momento em que abordarmos directamente o problema da ordem Idgica e da «ordem» histérica das categorias deter- . minantes, ver-se-A rigorosamente onde radica a impossibili- dade de caracterizar a teoria da histéria como um historicismo ou com um anti-historicismo. Entretanto, poderd ser curioso verificar—o que cons- tituird um simples interltidio de divagacdo critica —, que, na medida em que Althusser reconduz a uma ideologia historicista todo e qualquer entendimento da teoria de Marx que nio arranque da sua intransponivel distincdo entre o objecto do conhecimento e 0 objecto real, ele vé-se forcado a autorizar nos préprios textos de Marx a deformagao historicista que, muito acertadamente mas com éxito duvidoso, procura combater. Dai resulta a necessidade de uma extraordindria insis- téncia nos «lapsos tedricos» em que Marx se encontraria tao persistentemente sujeito a incorrer. E certo que Althusser pro- cura atenuar o aspecto quase risivel de semelhante insisténcia nessa forma de cegueira tedrica do fundador da teoria da histé- ria, atribuindo aos proprios lapsos um significado objectivo, recuperdvel no interior de uma teoria da histéria epistemolé- gica. O fenémeno seria caracteristico de todas as fundagdes revoluciondrias de um novo dominio de objectividade cienti- fica; os pioneiros de uma nova problematica seriam necessa- riamente forcados a recorrer aos conceitos antigos a fim de pensarem problemas que até entdo jamais haviam sido abor- dados; este o facto objectivo capaz de dissipar a aparente 35

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