You are on page 1of 14
Repensar a América: do Sul, ao plural, austral Biagio D’Angelo Sans donte pent on visquer |...) la definition suivante de cette ste de nonvelle « identité américaine, Tdentité multiple tra Jronticres qui, aussi imperceptibles qu'elles puissent étre, n'en constituent pas moins notre mémoire, En somme, ce que le roman de Noil Audet, Frontitres on tableanx: d’Amérique suggere, a travers son narratenr-promencnr-romancer, c'est que pour assurer son identité québécoise, pour devenir « souvenir » am sens istentiel du terme, il doit partager son américaineté en Vinserivant dans l'hétérogéndité du continent tout entier. Autrement dit, il doit assumer son identité impure et vivre enfin la « différence » comme un phénomine dialogiqne dans une esthétique comme nouvelle facon de réver ! Amérique, Liva LeGrand, Réver “Amérique: pour une lecture de Frontitres on Tableans: d’Amérique de Noi! Audet ‘Temo que tenhamos os olhos maiores do que o ventre, ¢ mais curiosidade do que a capacidade que temos. Tudo abarcamos, mas estreitamos apenas vento |...) Nao ha nessa nagdo nada de beirbaro e de selvagens, pelo que me contarany, a nao ser porque cada qual chama de barbie aquilo que néo é de sen costume, (Montaigne, Ensaios, Livro 1, XXX1) da descoberta, por obra de Villegagnon, da : : : ae “Pranga Antartica”, 0 eético Montaigne adverte que “essa descoberta de i is ii me, li- pais infinito parece ser de considerivel importincia” (Montaigne, 1996, Xx! ‘ fi = Fea Montaigne indi- vro 1, XXXI). Atrds dessa misteriosa conotagio geografica, Montaigne 1? coal “Tet aco latino- a mos, Perguntamo-nos: 0 espa americano configura Talvez. seja 0 momento adequado pa para 0 comparatismo latino-americano a partir da discuss Ao relatar a curiosa histori Brasilis” que hoje ocu] ainda como “franco-antartico”? repensarmos novas 3 10 sobre 0 “ . éncia dos dis espaco ¢ discurso insuficiente a abrangéncia dos s como Hi: um continente no”-americano como aroldo. »-me indispensavel reler figu cursos da atualidade. Parec as “latinas” de de Campos ¢ Octavio Paz, ¢ romper as mar que é plural, marcado pela heterogeneidade, pelo plurilinguismo, pelos ™° vimentos utdpicos, pelas conexdes com Africa e Oriente. 7 Nao é este o melhor lugar para detalhar um exxurus historiogrifico sobre 0 termo “latino” ou “latinidade”. Porém, nos serve, como ulterior ponto de partida, uma defini¢io de “atinidade” dada por Sérgio Rowane em 2001, a ante sobre francesas na América. inalada por Regina Campos, em artigo muito instiga as ideias Nessa acepciio especifica de “atinidade”, os povos latinos estariam vivenciando “uma sensacio de partilharem uma identidade comu™” (Perrone-Moisés, 2004, p. 79). Tratar-se-ia de uma identidade comum qU° muito se aproximaria de um conceito “es latinidade encialista” de espirito, A seria um elemento “essencial” que se transmite via linguagem. Porém, “latinidade” da atualidade acontece por agregagio, A formacao do reconhecr mento da latino-americanidade deriva hoje da reformulagio da conscience continental, Novamente, Regina cates lembra que a palavra “Jatinidade”, inventada por Charles Calvo, em 1862, e “dedicada” a Napoleao III, indica- tia uma homenagem a unidade de todos os povos de raga latina (Perrone Moisés, 2004, p. 82). Os debates atuais sobre a globalizagio, 0 multiculturalismo, © ao transnacional ¢ as migragdes tornaram indispensivel retomar a discus: sobre a vivacidade da multiplicidade natrativa, etnogrifica, antropolégica € epistemologica das Américas. Digo “das Américas”, e nao apenas “da Amé- rica”, pois as narragdes ¢ as fibulas investem rerticalmente todo um mapa geopolitico, A recuperagio das fibulas como expressio de uma forga ficcional fi» 18 em um territério plural, global, e em uma “identidade miltipla”, Sa z ; ented ia ta: ent dis proposta de Edouard Glissant, uma tradi¢So “diversa”, incompleta, em = f . eo ee cussao continua, aproximativa, na qual as etnias ¢ as culturas coexistem se Fati i 10 1 cfetivamente interpenetrar-se” (Glissant, 2005, p. 50): se se criouliza, isto é, se multiplica, misturando as flores neagados, (roc! ado, chamava adas (p. 75)" O Mundo treme, indo. tos ¢ seus blocos de gelo, todo eaquilo qui seus mares, seus de: emudando seus costumes e suas cultu no pass mos ainda as suas identidades, na grande maioria hoje massacr jstematizar O di uma cultura “nacional” — talv urso de Glissant busca as orientagdes basi s para s " “ inicana liminar como aquela caribenha ou martinica ~a favor de uma mudanga de percurso. » Glissant, ntes do pensamento de Glissan Mario de Andrade, varias décadas s binarias, tinha alimentado uma “tensio dialética” de superagio de regr ; como escreve Ratil Antelo, “entre um fato de /angue © um fato de parole, jabilidade das enfim, entre a obrigatoriedade cega da lei e a constante va Rormas que pautam a rapsédia” (1997, p. 301). tre mascaras e totens, metanarrac’o e intertextualidade, identifica-se com ° discurso plural marioandradino. Por meio de mitos € utopias, Mario declara, de fato, a obrigagio de se pensar um “nacionalis isse narrador oscilante €~ no universalista”. dos em relagao as civilizagdes o dia em que criarmos 0 ideal, a orientagio brasileira. Entio passaremos da fase 40 “Nos s6 seremos civiliz mimetismo pra fase da criagio. E entio seremos universais porque naclo~ nais”, escreve Mario a Carlos Drummond de Andrade (Andrade, 1982, P- 16). Ha uma maneira de ser nacional ~ segundo o autor de Masunaima - que € totalmente contriria ideia fascista © separatista de nacionalisme- Para consolidar a literatura, Mario de Andrade rompe com os regionalis- mos que nfo siio ainda reconhecidos como parte da cultura nacional siste- matizada, Mério nfio pensava nem em uma assimilacio nem em uma pura insercio, mas em valorizar os segmentos regionais para se ampliar em uM contexto internacional. * “Oli les ethnies et les cultures coexistent sans vraiment s‘interpénétret”. Tradugio nossa. * “Le Monde tremble, se ¢ es banquises, tous men encore il appelait ses identités, pour une grande lise, c’est-A-cire se multiplic, mélant ses foréts et ses mets, ses déset és, changeant et échangeant s 19 Na regio austral das Amé as, 08 processos discursivos pés-ut6picos (ou, se quisermos, p6 preocupante da modernos) estio encorajando um achatamento significagaio ¢ das repercussdes da literatura comparada, A auséncia das priticas comparatistas compromete 0 conhecimento do outros pottanto, repensar a literatura (mundial e latino-americana) dev ser asso- ciado & problemiatica cultural das nagdcs ¢ das identidades, ‘Tania Carvalhal escreve: “Propor a comparacio dos comparatismos é, efetivamente, reco- nhecer que a literatura comparada é hoje plural” (Carvalhal, 1997, p. 11) Resumindo: a literatura comparada na América Latina é sracunainica, isto é, plural, mitica ¢ mitol6gica, irOnica, e nessa diversidade se apresenta como um discurso necessario ¢ revelador, como 0 reconhecimento de uma pratica e de uma stratept de leitura (uma leitura como tradugao) ¢ tentativa de compreensiio da realidade: Latin America is a fictional space, forever in between the hegemonic domination of North America and nostalgia for Europe. This in-between space is populated with voices of such diversity that the wildest fabulations of the first Huropean visitors are but a remote and pale simulacrum, Latin America does not only speak in Spanish and Portuguese, but also in Creole and in Quechua, Nahuatl, Guarani... (Valdés, 1995, p. 5) também Ora, perguntamo-nos: aqui, nés, latino-americanos, falamos japonés, chinés, coreano, ou uma das linguas primitivas do arquipélago polinesiano? A resposta niio pode ser senio afirmativ O diflogo cultural entre Oriente ¢ Ocidente tem se limitado, por exem- plo, as trajetdrias dos assim chamados Fias-West Stadies, que revelavam formas Ses culturais ocidentais sado- de aproximagio as expres da parte de pesqui res, em sua maioria, do Extremo Oriente. O estudo das influéncias literarias orientais (a “presenga” japonesa, em particular) na literatura latino-americana permitiria introduzir-nos na tentativa de tr: car uma “cartografia alargada” da literatura latino-americana. Uma figura-chave na construgio dessa ponte para a abertura da latino- americanidade é 0 tradutor. Embora pensadores como Hans-Georg Gadamer sustentem a inevitabilidade de se pensar a partir da evidéncia linguistica, na qual 0 sujeito nas ¢ se desenvolve, 0 nosso pensamento nio sofre apen: a pertenca a uma realidade tinica que, do nascimento, tinha se dado; ele se move dentro, também, dos frutos culturais que provém de uma nova nogio de cul- > 20 tura ampliada ao panorama do mundo globalizado em que vivemos. O sujeito pensa, portanto, no apenas com uma lingua apreendida do meio familiar, 5 culturais que sio os ide 0 comego, mas vibra de uma rede de interconex6 d estimulos profundos ¢, quiga, sub-repticios derivantes do hibridismo cultural que domina os espagos e 0s discursos de um mundo em transformagé O tradutor se transforma, retomando as palavras de Haroldo de Cam- ntes € pos, em uma série de figuras alegoricas: ponte entre dimensdes dis insuspeitiveis, demolidor de fronteiras, dilatador de espacos, o tradutor possui er com a imensa tarefa de reconfigurar imagens pocticas, assim como faz antes se recubram de significado € In- que as express6es puramente signifi tensidade vital, poética € profética. Nao é por acaso que para Haroldo © tradutor é, em primeiro lugar, um transcriador, que transita entre criagdes, uma figura que se coloca no meio de duas ou miltiplas aguas; ao converg!T nele a fungio de atragio das respostas plurais do imaginirio, dissipa ¢ desig- ida) significados que, de outra maneira, resultariam incompreensiveis, inacess na (“dissemina”, poderiamos ousar dizer com um termo caro a De veis. define o tradutor como um “coredgrafo da danga das linguagens”, uma eX- por isso que, com genialidade, mais uma vez, “oriental”, Haroldo pressfio que demonstra as solugdes descobertas pelo poeta de Galaxias 00 encontro com a tradigaio do Extremo Oriente. ‘Tania Carvalhal, que tinha dedicado a taxonomia tradut6ria perspica- zes trabalhos de abertura intelectual ¢ sabedoria “oriental”, afirmava que © ou gesto da tradugio nunca é reduzivel a um intercimbio de letras, palavrs uma atividade do espirito verbos. A tradugiio, que Haroldo de Campos quis € de uma mente perceptora e receptora de verbo-voco-visualidade, 6, 48 palavras de Tania Carvalhal, principalmente “sempre uma aventura do co- nhecimento”. A traducio assume, portanto, um valor nao apenas informativo- cultural. Cada gesto tradutorio é uma espetacular abertura ao conhecimento do outro, uma “aventura” metaférica, que se une & “consciencia da alteridade”, ou scja, de uma dimensfio transgressiva, uma peculiaridade que, excedendo 08 confins mais préximos e imediatos do sujeito, langa-se ao reconhecimen- e to de si em outros rostos, paises, livros, ”’. Contudo, essa busca da alteridade, signo constante de um desejo inenarravel de se conhecer, de se superar e se desafiar na tomada de consciéncia da babélica divisio das cultu- ras, ultrapassa “o simples exotismo ou a atragio pela diferenga, pois trata-se 21 da aquisigao de uma outra maneira de ver 0 mundo, de se apropriar dele ¢, ‘j-lo” (Carvalhal et al., 2004, p. 27). Desde que Edward Said, com Orientalismo (1979), quis provocar, com essencialmente, de expres justo acerto, certa mentalidade restrita a0 programa cultural eurocéntrico, niio é ficil entrar nos espagos orientais sem pensar no “orientalismo” como uma formula magica separatéria, nfo acolhedora da cultura alheia, uma pos tura egoistica © egocéntrica, mais que comodamente eurocéntrica, O orientalismo, segundo Said, representa uma das ideias menos inocentes que a cultura ocidental tinha promulgado. Atrevo-me a util aro termo “orientalismo”, evitando os artificios sectarios ¢ limitados, ¢ com 0 desejo € ‘a curiosidade que suscita 0 Oriente, por sua fascinagio indiscutivel de ser “cultura-outra”, de apresentar um sistema cultural complexo de diferengas, variavelmente interpret . As qualidades de eis empatica ou analiticament desejo ¢ curiosidade se justificam por ser 0 Oriente uma representagio ale mbio de experiéncias da “alteridade”, ¢ nesse intercambio gorica do inter Consiste a necessidade epistemoldgica de langar-se ao conhecimento de um de Consideramos, por exemplo, para introduzirmos ao problema, um onhecida. Jugar ¢ de uma abordagem cultural q pelissimo conto de Titaméia, intitulado, muito sugestivamente “Orientagio”, Guimaries Rosa nos oferece, nesse breve relato, uma reconsideragio da nogio de orientalismo, uma releitura da palavra ¢ do conceito de “exético”, basea- sa diversida- cio da “diferenga”, da diversidade, da aceitagao d dana afirma de como tolerincia ¢ enriquecimento reciproco dos valores proprios de cada jndividualidade. Rosa reconhece no Oriente um caminho pottico que opera uma profunda inversfio desestabilizante da identidade, como na significativa definicao da cineasta ¢ critica vietnamita Trinh Minh-Ha: “I become me via an other. Depending on who is looking, the exotic is the other, or itis me” (Minh-Hla, 1994, p. 23). Guimaries Rosa é consciente de que a escritura é uma experiéncia de mobilidade, veiculo de encontros, mediagao entre as culturas, que cria ¢ abrevia distincias; cla mesma (a eseritura) pede ao artista uma constante comparacio, epistemolégica € ontol6gica, entre a posi¢io egaturalistica” do escritor ¢ 0 que estimula o objeto fora dele, mas, nele se estabelece o centro das sua s atengoes. Esta focalizagio, em que o esctitor se dispde na atitude da aceitagio do outro, é a filosofia prévia que guia Guimaries Rosa no conto que estamos 22 ‘ Frequéncia, percebido tratando: 0 Oriente, que em outros autores é, com frequéncia, perce : aia Zo hostilidade, ganba na leitura na sua incompreensibilidade, quando nio hostilidade, ganha na ane Seman es dis- rosiana uma atmosfera de certa familiaridade, formando, assim, wm sobre 0 Oriente: de a incontrolivel curso irregular, instavel, ja que quebra as duas vise uma parte, como idilio sentimental ¢, de outra, como ame que tem que ser dominada. io abstrata”, escreve riente Sempre “navegamos para Oriente”, uma “navegaga num poema a portuguesa Sophia de Mello Breyner Andersen: esse “O' nta, conforme @ do Oriente do Oriente” de que fala Pessoa — € que repr 4 8 “ ar ideal que no leitura de outro poeta portugués, Manuel Alegre, “aquele lugar ideal que s povos vem em nenhum mapa, mas onde um povo, contatando com outros Pov € outras culturas, acaba por descobrir a sua propria alma” (Alegre, | Mildonian et al., 2002, p. 18-19). . Este “oriente” (mas poderiamos também chama-lo de “orientalismo > de “alheio”, de “alteridade”) — que se manifesta como dramitico, quando nao trigico, na interpretagiio dos autores da modernidade literiria, come Edward Morgan Forster, Ezra Pound, Lafcadio Hearn, Paul Claudel ~ revela em Rosa como abertura ao diverso, accitando-o em todas as suas diferencas e caracteristicas, que enriquecem a individualidade, a singulari- dade, na sua esséncia precisa da alteridade ¢ também como construgio poética. 3, 20 mesmo tempo, um “oriente” que inverte, do ponto de vista artistico, os sistemas de valores eurocéntricos de supremacia ¢ poder, fun- ‘ador ista cionando, assim, como entre-lugar antinacionalista e antirracista, vivifi € dinimico construtor de identidades. Esse Oriente assim “orientalizado” pode ser encontrado em outras manifestacées literarias latino-americanas Provavelmente, 0 maior iniciador de uma redescoberta, na América Latina, de vinculos com a cultura oriental é Octavio Paz, cuja teoria do “orientalismo” pode ser identificada como um fluxo constante, uma niio- separacio, a experiéncia realmente universal do pensamento poético. A auséncia de exploragdes sobre as relagdes entre Oriente ¢ Cultura Latino- Americana é definida pelo critico e poeta mexicano como uma auténtica “deficiéncia de nossa critica” (1996, p. 177). Paz admite que “a estética nd japonesa ~ melhor di 0 leque de visdes € estilos que nos oferece essa tradigio artistica e poética — nao cessou de nos intrigar e de nos sedu- zit”, porque o que se busca nela é “outro estilo de vida, outra visio do mundo e, também, do fransmundo” (p. 171, grifo meu). Em definitiva, tra- sa fa» 23 ta-se de uma “sensibilidade” que nao se reduz a nsacio, nem a uma intuigao falsamente devocional: poderia ser traduzida com a expressio ja- ponesa “kokoro”, uma mistura entre raciocinio e sentimento, entre as entra- has ¢ 0 coracio destituido de sua decaida no banal ¢ no sentimentalismo. Ademais, Paz identifica de forma surpreendente em poetas significativos squecide hispanicos, embora ligeiramente , como 0 equatoriano Jorge Carrera Andrade ( Téquio em 1940), os mexicanos José Juan Tablada (com sua obra inova- dora ¢ pioneira Hiroshiqué de 1914, composta por textos e desenhos) ¢ u livro japonesizante, Microgamas, foi publicado em Efrén Rebolledo, ¢ também nas produgdes mais divulgadas de Federico Garcia Lorca, Anténio Machado ¢ Juan Ram6n Jiménez, uma curiosa ali- anca cultural: a aproximagio entre 0 haikai ¢ 0 tanka com a seguidilla de origem andaluza. Essa sensibilidade primorosamente comparatista subli- nha um movimento de bus a da alteridade mediante o complexo e vital fendmeno da tradugio: uma tradugio que funciona, portanto, como estra- tégia privilegiada para entrar no conhecimento da cultura alheia. Sintetiza Tania Carvalhal: “Na tradic: oriental das imagens, 0 poeta encontra as imagens da tradigao ocidental € com ambas elabor: suas transcriagdes poéticas, As tradugées comprovam, entio, o papel decisivo que represen- tam nas relag6es interculturais” (2004, p. 26). Se Rebolledo experimentou, pelo viés da poesia oriental, um exotis mais parisiense que toquiano, Tablada soube descobrir na experiéne es- tética japonesa (¢ no por dltimo, pintura), certos elementos originais que recuperou na sua produgio postica: “economia verbal, humor, lingu gem coloquial, amor pela imagem exata ¢ insélita” (Paz, 1996, p. 177). Seria suficiente dar uma olhada em sua obra Hiroshigué, para ver até que ponto a simbiose com a cultura japonesa foi cumprida pelo artista mexica- no, oferecendo ao leitor de lingua espanhola composigdes poéticas que, ainda hoje, conforme a opinidio de Octavio Paz, conservam “intactos seus poderes de surpresa e seu frescor” (p. 178). A mesma poesia de Paz, de Blanco (1966) a In/mediaciones (1979), bem ilustra a assimilacio da cultura oriental como parte proveitosa para a propria experiéncia poética, um enriquecimento cultural ¢ espiritual, que desembo- card em uma extraordiniria amizade, uma verdadeira “convergéncia”, poéti- ca ¢ intelectual, com Haroldo de Campos que, operando na mesma época que Paz, dedicou ensaios de fundamental importineia no conhecimento da 24 fugaz da brevidade (1977), € poética do haikai, em particular sobre a bel também uma “tesposta” a Paz através da traduga morfose” (é0 termo que utiliza Rodriguez Monegal) de Blanco por Transblanco (1986). A correspondéncia vivencial entre Haroldo e Paz faz, dizer ao critico uruguaio que a cultura oriental entra, dessa maneira, em um tecido de apro- 0, ou melhor, da “meta- ximagao e fusio, fazendo com que “a intertextualidade se converta em intervivencialidade” (Rodriguez Monegal, 1986, p. 11). Paz reconhece tam- bém o papel decisiv da poesia espacial, em oposigio a poesia temporal, discursiva, que terio os poetas vinculados com Haroldo, os grupos de e-se a uma singular apropriagio Noigandres e Invengao. Em Transblanco, 2 da cultura chinesa e japonesa (Li-Po, Matsuo Basho, em primeiro lugar), io por ideogramas. O segundo o principio programatico da compos im, com pleno direito na estrutura morfolégica ¢ men- extenso, na literatura latino-america- ideograma entra, ass tal da poesia concreta brasileira e, por na, “um dominio novo de experimentagiio da fragmentagiio das palavras € de sintese visual no poema” (Campos, 2004, p. 28). Para Haroldo de Campos, é injustificavel a “aura de melifinidade © exotismo gratuito que a visdo ocidental procura, frequentemente, emprestar a0 haikai, desvitalizando-o em sua principal riqueza — a linguagem altamente centrada € vigorosa” (1977, p. 55-56, grifo meu). [i justamente o intere’ para uma linguagem tnica, na qual por meio de uma estrutura unificante de grafemas e signos se chega a uma fulguragio, muitas vezes, metafisica, que uscita a atengao de um leitor ¢ transpositor (em outras palavras, um “transcriador”) como Haroldo. Citando grandes nomes da critica oriental no Ocidente, como Donald Keene, Earl Miner e¢ Ernst Fenollosa, sobre cujas reflexes Ezra Pound fundamentou sua poética imagética, Haroldo Sintetiza a vigorosa ¢ original dinamicidade do ideograma como signo poé- tico por exceléncia, compondo-se de “duas coisas conjugadas” que no Produzem uma terceira coisa, “mas sugerem alguma relacio fundamental entre ambas” (p. 56). As explicagées e traducdes de textos de Buson (como © seguinte: “canta o rouxinol// garganta mitida// -sol lua — raiando”), ou de Bashé (“o velho tanque// ra salt// tomba// rumor de agua), com a disposi¢ao visual das linhas poéticas © as impressionantes invengdes linguisticas, efetivamente “transcriativas”, renovam com forga uma lingua- gem poética ocidental talvez ja estancada e impenetravel aos compromis- sos culturais de lugares desconhecidos, 25 Para Haroldo, a maior obtencio cultural da poesia oriental, em parti- cular da japonesa, é constituida pelo uso do elemento visual ¢ da concisao. Es da sua propria natureza” (p. 63). Através de uma imagem-escrita (ideogramitica), a matéria poética “passa do vi apd Campos, p. 64), ou seja, se transforma imediatamente, sem media- ses dois fatores sao intrinsecos 4 poesia japonesa, porque “participa[m] el ao invisivel” (Fenollosa goes logicas definitorias, no recurso da metifora, em que “o uso de ima- gens materiais” é a ferramenta de obtengio e “sugerir relagdes imateriais” (p. 64). Dessa forma, a poesia se libera, conforme Haroldo, da patina do tempo, assim como do desgaste linguistico causado pelo pérfido uso coti- diano ¢ revela, “nao obstante, toda a sua concreticidade” (p. 65). Haroldo explica em que consiste essa concreticidade, que define com uma remanipulagio fecunda do termo, “verdadeiro realismo magico”, que pe mite revisar um cliché literario, abusado, através de outras lentes, outras leituras, mais agudas ¢ perceptiva Para um poeta japonés, aids, o “magico”, o “surreal” parece no ser outra cois imaginirio franqueiam-se os respectivos umbrais, si ingredientes do seu cotidiano; bastaria lembrar a presenga constante do maravilhoso na tradi ou referir, por tris da téeni seniio a sua mancira de considerar o auténtico “real”: para cle, real ¢ io do haikai, 0 “momento de literdria nipOni iluminagao”, de inspira ‘io zenbudista (p. 67). descobrimento da cultura oriental, com particular énfase na poesia japonesa, permite, conforme Haroldo, sublinhar o carter ontologico do fendmeno literirio como “poética sincrdnica”. Haroldo de Campos faz suas as palavras de Octavio Paz, sob o impacto da leitura da “poesia concreta”, em uma carta que 0 escritor mexicano man- jleiro, datada 14 de margo de 1968. Ao da ao bras onhecer que os idiomas espanhol e portugues oriental, font cour), Par. declara que 0 que se pode “fazer” “esti no Extremo oposto” da cultura japonesa (¢ apenas “inventar procedimentos plisticos ¢ sintiticos que, mais do que imitacgio dos } Seria interessante, mas escorres nna produgio literiria ocidental, eitande io com uma referéncia a Fernando Pessoa, atr oriental > espaco da culty guns nomes mais evidentes, Haroldo de Campos conelui de seu heterénimo Alberto iro. seu en: Goostaria apenas de reenv que contém um excelente texto sobre as influéncias da poesia zen na poet Mois La» iro eitor ao volume de Le Perrone-Moisés sobre poeta pormgués, de Caciro. L. Perrone 5, Fernando Pessoa, aguém do en, alin do ontro, Sio Paulo, Martins Fontes, 2001 26 : ; se énicos” (Pa cam- ideogramas, sejam suas metiforas, seus duplos antagonicos” (Paz. apud C idade inte- pos, 2004, p. 200), Trata-se, portanto, nao apenas de uma curic a serem reassumidas lectual, nem de adesfio a umas culturas desprestigiadas A : A - ética oriental pela inteligencija da época. Ambos os poetas identificam na poética oren ilidades novas as palavras ¢ &S uma verdadeira aprendizagem que abre pc i : ee cain ane imagens poéticas, oferece nova vida a sincronia literria, superando as fr ; ; eycsteento, teiras amortecedoras do tempo ¢ do espago. Paz vé na poesia concreta F : ‘cana, filtrada pelo futuro fenomenolégico da experiéncia poética latino-americana, filtrada pel rsio do curso: um nove: vigs oriental-japonés: “A poesia moderna é a dis-pe . : on ct ‘a dis-curso. A poesia concreta é 0 fim desse curso ¢ 0 grande re-curso cont esse fim” (Paz apud Campos, p. 200). O haikai apresenta a ambigio de responder a es a dis-persao, reunin- ano, um do em um fragmento fulgurante, como reverberagio do aleph borg instante minimo ¢, ao mesmo tempo, total. Nio é fragmentado, pols ele recolhe uma poética arquetipica que se funda em um tempo sempre prese™ te. E, em outras palavras, a con iéncia do pr o gesto poctice. Depende do limite da palavra, mas sente que fa lata por superd-lo, O haikai reformula & literatura latino-americana para poder repensar a crise do ato poético, num geracio de forgas culturais referenciais ¢ de nova lina, “Desenraizada € 60S” mopolita, a literatura hispano-americana é regresso ¢ procura de uma tradi- cio. Ao procuré-la, a inventa”, escreve Octavio Paz em Pnertas al campo (apd Campos, 2004, p. 265), Assim, a histéria e a geografia literirias instituem uma abertura peculi! elas “inventam” ¢ permitem novos transitos politico-culturais para outros lugares do Brasil e para paises diretamente mais voltados 4 cultura ocidental (como Argentina, Uruguai e Colémbia), mas também insistem em “pene- trar” outras margens, outros espagos fronteirigos que leem a “América” des- de o Sul, o Oriente a partir das rotas do Pacifico, a Africa como simbolo de uma outra origem comum. Unico risco: a suspeita que a cultura “outra”, a alteridade, se insinue no espaco proprio com a violéncia da separagao e do arranco do autoc- tone, do indigena. Os Andes, coluna vertebral do continente latino-americano, dividem 4 América em dois lugares contraditorios, nao apenas por problemas linguisticos: de fato, eles parecem, por um lado, dar as costas ao continente > 7? = 27 sio” de europeu, em um gesto de autodesafio ¢, por outro, manifestam a “il abrir-se ao descobrimento do continente as ‘itico. Trata-se, efetivamente, de uma aparéncia: a impenetrabilidade permanece como aspectos peculiares desses espaco nao se limitando 4 divisio puramente geografica ou politica, mas penetrando, também, a produ sfera cultural, Se tomarmos como exemplo a » poética peruana, pode-se observar um reflexo dessa “impermea- bilidade” aos elementos alheios nas formas culturais nacionais, ancoradas ainda nas disputas internas entre oralidade e escritura, ¢/ou nas imitagoes exclusivas dos cinones europeus, nao obstante na presenca estrangeira (¢ oriental, justamente) n es territérios. Contudo, a proximidade com 0 con- tinente asiatico, ainda insuficientemente ponderada, parece ter adquirido nova forga nas tiltimas década de im- , se considerarmos as experiéncias postica portantes tradutores ¢ poetas como Javier Sologuren, José Watanabe, Marco Martos, Pesquisadores peruanos como Fernando Iwasaki ¢ © comparatista Estuardo Nuiiez dedicaram parte de seus estudos aos contatos literatios, a partir da época da coldnia, entre Peru ¢ Japio! A publicagao de Saswki Blues (Lima, Lustra Editores, 2006), de Renato Sandoval, dialoga com os mestres da literatura japonesa, a im como pro- poem Adriana Lisboa, com Rakushisha (2007) ¢ Bernardo Carvalho, com O sol se pie em Sao Panlo (2007), no Brasil, reconhecendo na cultura japonesa a vocacio local ao reconhecimento do outro ¢, portanto, da identidade, Mais uma vez, e para concluir, Pierre Rivas adverte sobre o tecido com- plexo da literatura emergente dessa identidade plural latino-americana: “A preocupagio com o mundo € maior nas literaturas do Terceiro Mundo que nascem com grande dificuldade, dai sua forga; elas falam da emergéncia de uma Humanidade em vias de crioulizagio, jogam com as miltiplas identida- des, rompendo o vinculo entre lingua € Nacio” (In: Nitrini, 2008, p. 52). »” vertical € forga”, uma “crioulizag: Nés queremos uma “literatu transvers al, que polemize com a pluralidade desse espaco, a geografia que © compoe, com sua riqueza americana, afticana ¢ oriental, atkintica e pacifica. allembrar que jé em 1630 foi publicado um poema intitulado “Poema das festas que se n no convento de Sio Francisco pela canonizagio dos vinte seis 1 al, geradlor de norreram ma er ires do Japio”, em que am exaltados o luxo ¢ o exotismo do pais 01 ais heroieas figuras humanas, € Lima, cidade vire > irizados, inal que os acolheu ¢ onde ALEGRE, Manuel MILDONIAN porta d'Oriente c minl ‘Adntico, minha pagina, Atlintico, minha volas M. ALZIRA SEIXO; L. CANCIO MARTIN vii Poesia / 4 arta do Oriente: viagens © poesia Osmos, 2002. p. 17-26, ANDRADE, Mitio de | Updo de amiga, Cartas de Meirto de Andrade a Car a Andrade. Rio de J pio, 1982, ANTELO, Raul. Macu Macunaima, ¥ dig tima: apropriacio ¢ originalidade, | In: ANDRADI Lp 40 critica (Telé Porto Ancona Lopez, coord,), Madrid-F Co-Buenos Aires-Sio Pp, aulo-Lima-Guatemala Sao J Chile: ALLCA xx, 1997 P. 295.305 CAMPOS, Harok José de Costarica-Si lo de. A arte no orizonte do provivel, Sio Paulo: Perspect CAMPOs, Haroldo de. Me talingnavem e outras metas. Sto Paulo: Perspecti CARVALHAL » Tania Franco, méthodes, In: CARVAI HAL, ‘ssues and methods) 1a literatura comparée dans le monde, Qui ia Franco (Ong,). Comparat literature 3 La tieratura cany parée dans le monde Oni Mae Alegre: AILC, 1997, p. 9.14 CARVALHAL, Tania Franco. O priprio o albeio: en aios de literatura con Sio Leopoldo: Un CARVALHAL, T. M. F Transcriagies, sREBELLO, Lucia 4 Teoria ¢ priiticas. Texctos *: Evangraf Editora, 2004 | FERREIRA, Eliane memiria de Fernanda Haroldo de Campos ANT, Edouard. La cobs du Lamentin. Paris Gallimard, 2005 MINH-HA Trinh Tc MASH, Me Tim editores, >ther than Myself/My Other Self. In: RO} linda - TICKNER, Lisa BIRD, Jon Travellers? tales Narratives of Routledge, 1904, p. 9-26, BERTSON, G CURTIS, Barry - PUT) fame and displacement. London New MONTAIGNE, Michel de Saggi. Milio: Adelphi, 1996, MOURA, Jean-Mar interfaces, Des dise ‘ours caribéens In: D'HUL n-New York: Rodopi, 2007 » Lieven et al, Caril Amsterda P. 185-202 PAZ, Octavio. Signas on relario. Sao Paulo: Perspectiva, 1 996. patria”. In 5 (Org). La Lisboa: Fd. » Drummond , Mario de aris-Méxi ntiago de iva, 1977. 2004. stions et rorldwide ., Porto Cunha Porto corge JAM, York: bean PERR¢ NE-MOISTi Leyla (Org.). Do positivisma a desconstrucao, Idéias Prancesas na Amita, Si Paulo Edusp, 2004, RIVAS, Pierre, Crise © mutagées na cultura e na liter Atura francesa (Mitos do declinio € mitologias da renov; ). In: NITRINI, Sandra et i O: )» Literatura, arte Sio Paulo, Abralic \deraldo & Rothschild, 2008, p. 43.64 RoDRiGUE MONEGAL, Emir Prologo In: Transblanco lem torno a Blanco de Octavia Paz), dy Octavio Paz y Haroldo de Campos. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1986, p. 11-17. VALDES, Maria Hiena de Mario Valdés - Richard A. Young, [ is tin America and literature, Selected P, Comparative Report e« pers of the XIV Literature Ag litors, 1995, th Congress of the International 's World ‘sociation, ed., Council on N wdional Literature

You might also like