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Titulo original: La Part maudite Copyright © 1967 by Les Editions de Minuit, 7, we Bernard-Palissy, Paris. Editoracao Coordenacao: Pedro Paulo de Sena Madureira Tradugao: Yilio Castafion Guimaraes Revisto tipogréjica: Gustavo Meyer Capa: José Tornel 1975 Direitos para a lingua portuguesa adquitides por IMAGO EDITORA LTDA,, Av. N. Sra. de Copacabana, 330, 10° andar, tel,: 255-2715, que se reserva a propriedade des- ta tradugao. Impresso no Brasil Printed in Brazit GEORGES BATAILLE A PARTE MALDITA Precedida de “A Nogio de Despesa” Série Logoteca Directo de JAYME SALOMAo ‘Mombro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicandlise do Rio de Janeiro, Membro da Associago Psiquitcica do Rio we Janeiro. Membro da Sociedade de Psicotcrapia Analitica de Grupo do Rio de Fanciro. IMAGO EDITORA LTDA. Rio de Janeiro SUMARIO Introdugio. — Bataille e © mundo . A NOCAO DE DESPESA Insuficiéac O principio da perda 7 Produgdo, troca © despesa improdutiva ‘A despesa funcional das classes ricas . ‘A luta de classes © Cristianismo ¢ a Revolugéo A insubordinacdo dos fatos materiais A PARTE MALDITA Preticio PRIMEIRA PARTE. INTRODUGAO TEORICA. 1 — Sentido da economia geral . 1, 2, ja do principio da utilidade clissica .. ‘A dependéncia da economia em relagdo ao percurso da energia sobre o globo terrestre Da necessidade de perder sem lucro 0 exce- dente de energia que ndo pode servir para 0 crescimento do sistema .. . 1B 49 1 —Leis Moe wee 10. A pobreza dos organismos ou dos conjuntos Uimitados e 0 excesso de riqueza da naturera viva... - A guerra encarada como uma despesa catas- trdfica da energia excedente . a economia geral A superabundincia da energia bioguimica’ & © crescimento sam O limite do crescimento A pressio 2 © primeira ejeito da pressio: a extensao . O segundo efeito da presséo: a dilapidacao ou 0 tuxo Os trés tuxos da natureza: a a manducinto, a morte € a reproducdo sexuada 4 extensto pelo tabalho e pela ténica, e 0 Juxo do homem ‘ “ A parte maldita .: Oposicéo entre 0 ponto de vista” ponto de vista “particular” AS solucdes da economia geral ¢ a cia de si” SN 6 eral” @ 0 “conscién= SEGUNDA PARTE. OS DADOS HISTORICOS I. “A SOCIEDADE DE CONSUMO” 1 — Suctiticios e guerras dos astecas . Sociedade de consumo e sociedade de em- Preendimento © consumo na concepcao do mundo dos as- tecas Os sacriticios humarios do México Intimidade dos algozes e das vitimas Cardter religioso das guerras Do primado da regio 20 primado da efi cia militar . O sacrificio ox 0 consumo A vitima maldita e sagrada 60 6 65 66 67 6 70 n 2B 18 76 18 IM —A dédiva de rivalidade (O “pottatch”) 100 1. Importancia geral das dadivas ostentatérias rs Sociedade mexicana . . 100 2. Os ricas e @ prodigalidade ritual 101 O “potlatch” dos indios do noroeste norie- americano seeoveresers cy 10h 4. Teoria do “potlatch”*: 0 paradoxo da “dd diva” reduzida & “aquisicdo” de um poder .. 105 3. Teoria do “potlatch”*: 0 contra-senso apa rente das dadivas . 107 6. Teoria do “poilatch"*: @ aquisicdo da “posi- a0” moa 108 7. Teoria do “pottatch': ‘primeiras leis junda- mentais 109 8. Teoria do “ "pottt: a ombigidade € acon. tradicao 110 9. Teoria do “potlatch” *: 0 luxo e a miséria.. 111 TERCEIRA PARTE. OS DADOS HISTORICOS Il, “A SOCIEDADE DE EMPREENDIMENTO MILITAR E A SOCIEDADE DE EMPREENDIMENTO RELIGIOSO” I — A sociedade conquistadora: 0 Isti u17 1. Dificuldade de dar um sentido @ religiéa mu- gulmana 417 2. As sociedades de consumo dos drabes antes da Hégira 120 3. 0 Isl nascente ou a sociedade reducida ao empreendimento militar 122 4. 0 Isla tardio ow 0 retorno a estabitidate 126 TT —A sociedade desarmada: 0 lamaismo 128 1. As sociedades pacijicas 128 2. O Tibet moderno e seu analista inglés... 129 3. O poder puramente religioso do Dalai-lama 131 4. A impoténcia e a revolta do décinw-terceiro Dalai-lama...... 133 S.A revolia dos monges contra uma tentativa de organizagdo militar . 137 6. © consumo pelas lamas da totalidade do ex- cedente Sey wales ox 7. A explicagdo econdmica do lamaisma QUARTA PARTE. 08 DADOS HISTORICOS IIL SOCIEDADE INDUSTRIAL” T — As origens do capitalismo ¢ a Reforma 7 i 1. A moral protestante ¢ 0 espirito do capitalisma 2. A economia na doutrina e na pritica da Ida- | de Média Btn ae 3. A posicéo moral de Lutero 4. O eabinisM os ccvcssveiees cecoueee 5. 0 efeito longinquo da Reforma: a autonomia t do mundo da produsiio ot Il —O mundo burgués . oe 1. A contradi¢éo fundamental da midade nas obras . ee 2. A similitude da Reforma e do marxismo .. 3. O mundo da indiistria moderna ou 0 mundo yusca da inti- burgués 2.2... os Toe 4. A resolueao das dificuldades materiais e 0 radicalismo de Marx .........c1.. 5. As sobrevivéncias do feudalismo ¢ da religizo 6. O comunismo e a adequacao do homer a uti- lidade da coisa iGGdles siheisanes QUINTA PARTE. OS DADOS PRESENTES I — A industrializagao soviética feces 1. Indigéncia'da humanidade nao comunista 2. As posicdes intelectuais em relasdo Go co- munismo.... 3 ie 3. O movimento operério contrério @ acumulario 4. A impoténcia dos czares para acumular ea acumulacdo comunista ..... 5. A “coletivizacdo” das terras |. 139 140 147 147 148 153 154 156 160 160 162 167 169 170 171 175 175 176 180 182 187 II —O Plano Marshall .... a 2 10 Fraqueza das criticas opostas as durezas da industrializagdo ce alesse Oposi¢ao entre 0 problema mundial e 0 pro- blema’ russo cece es A ameaca de guerra... A possibilidade de wma concorréncta néo ini- litar entre métodos de producto © Plano Marshall Set aye sagee sn A oposicao entre as operacies “gerais” ¢ a economia “‘cléssica” ..... Do interesse “geral” segundo Francois Perroue 0 ponto de vista da “economia geral” A pressio soviética e 0 Plano Marshall Onde a ameaca de guerra permancce sendo 4@ tinica que pode “mudar 0 mundo” A “paz dindmica” ...... A realizapio da humanidade ligada @ da eco- nomia norte-americana .... A consciéneia do fim iltimo das riquezas @ @ “consciéneia de si"... 189 194 196 196 198 200 202 205 209 212 213 A Exuberincia & Beleza, William Blake INTRODUCAO Bataille e 0 Mundo Nio constitu a menor contradi¢ao 0 fato de a obra de Georges Bataille, consagrada & busca angustiada de uma ex- pressio no limite do impossivel, freqiientemente adquitir c aspecto de uma negacio obstinada, quando ele nfo cessou também de dizer “sim” a0 mundo, sem qualquer reserva ou medida. Ele era aberto a0 mundo para o melhor e para o ior, para o mais intenso e para o mais humilde *, e seu desejo de apreendé-lo sem limite assim como sem falso pudor & testemunhado por sua preocupaco constante de comunicar, de aproximar sew pensamento do dos outros, “de todos os ‘ou- tros”, pela atencio escrupulosa que manifestava ao menos importante de seus interlocutores; testemunhado também pelo esforco paciente e apaixonado que nia cessou de dese volver, sobretudo durante a maturidade de sua vida — mui tas vezes ao prego de um trabalho fatigante e tedioso de infor- magio —, para interpretar, A luz das intuigdes de sua expe- riéncia tumultuosa, os acontecimentos nao menos tumultuosos que se desenralavam sob nossos olhos — e isso sem negligen- iar qualquer dos aspectos desses acontecimentos, inclusive 1 Em Le Courable (2+ ed,, revista e corrigida, Gallimard, 1961 p. 35), ele observa: “.,. se hi somente universe’ inacabado, cada Parte nao tem menos sentido do que 0 conjunto." E acrescenta, con: {estando a insignificancia das impressOes que experimenta no trem ‘quando este entra na estagio de Saint-Lazare: "Eu teria vergonha de procurar no extase uma verdade que, elevandome so plano do tuniverso acabado, retiraria © sentido da entrada de um trem na cestagao.” 2 Le Coupable, ibid., preficio, p. XIV (nota) 13 aqueles que, por sua formagio assim como pela influéncia da maioria de seus amigos, poderia ter tido alguma tendéncia a negligenciar, © que sio da competéncia do que comumente designamos’ sob 0 nome de economia, Por certo, além de confessar humildemente sua “igno- rancia”, Bataille foi durante muito tempo dominado pelo sen- timento’ de que este “mundo...” era para ele “apenas um twimulo”, devido a sensagdo de estar “perdido em um corredor de cave"? © convice#o de que the restava apenas deixar “seu pensamento. ... confundir-se lentamente com o siléncio” Contudo, mesmo nos textos do perfodo mistico, que oonstituem sem divida alguma a parte mais aguda de sua obra, ele no cessa de se corrigir, de gritar: ainda nao!, de ocultamente lan- gar apaixonados olhares aos outros, a esse mundo — exposto nessa época aos piores tumultos — que ele pressentia que em sew conjunto so podia ser apreendido como “um desastre” (do qual 0 homem “talvez seja o cume”) ® mas nunca tendo renunciado a conhecélo e a representito. De fato, toda uma parte da obra de Bataille, de “A Nogio de despesa” a A Parte maldita, & consagrada a essa tentativa de representacdo do mundo. Esses textos talvez nao sejam os mais brilhantes dos que escreveu, ¢ poderdo espantar aqueles que tém o costume de ver tais problemas abordados de forma mais ordenada e mais logicamente discursiva, Posso, no en- tanto, dar testemunho da importante posicdo que Ihes reservava dentro de sua obra; da inquietacdo que o perseguia, com a aptoximacdo da velhice, por nfo ter conseguido dar a esse esbeco a forma mais desenvolvida que ele desejava, ¢ que ti- vesse consegrado, brilhantemente, a unidade ja to notdvel de seu pensamento através dos milltiplos movimentos de sua pesquisa; finalmente, de sua vontade tenaz, no correr dos ilti- mos anos de sua vida, de rever A Parte maldita, assim como de dar a todos esses aspectos de sua obra o verdadeiro coroa- mento que pudesse ser constituido por aquilo que ele mesmo 3 Le Coupabie, p. 9. 4 ibid, prefécio, p. XIV. 5 Ibid, preficio, p. XUIL 4 designava como devendo ser uma espécie de enssio sobre a histéria universal. A Bataille certamente ndo passava despercedido que o enfoque de uma interpretacZo do mundo exterior supde — an- tes que intetvenha (como ele mesmo ressalta no pre! A Parte maldita) essa *audaciosa inversio", Gnica cois mente, capaz de substituir a “estagnagio das idéias isoladas” Por visbes dinfmicas de conjunto “em acordo com 0 mundo” — estudos prévios, “efctuados segundo as regras de uma raziio que nao desiste”, acumulagio de uma documentagio que s6 poderia ser recolhida junto’ a especialistas, e também, sem Gévida alguma, um ambiente coletivo de curiosidade, de in- quietagio © de pesquisa que implica na convivencia bastante estreita com grupos mais ou menos animados por preocupagses de ordem politica ou econdmica. Essas condigdes foram preenchidas durante pelo menos dois periodos bastante longos da vida de Georges Bataille. O primeiro situa-se entre 1930 € 1935: foi marcado sobretudo pela colaboracio de Bataille em Le Critique Sociale e por seu convivio quase difrio com homens momentancamente reunidos em torno dessa revista, O segundo seguiu-se A criagio de Critique e terminou com © aparecimento de A Parte maldita Entre esses dois periodos, houve fongos anos de meditagao interior, a partir de 1939 e da redacio das primeiras linhas de Le Coupable, livro iniciado “gragas a uma desordem que vinha colocar tudo em questiio” ¢ que se apresentou enti co- mo uma libertagao de empreendimentos ¢ de pesquisas — que dai em diante pareciam sem safda — nos quais ele tinha a impressio de “se enterrar”* Uma tal altemincia no movimento do pensamento de Bataille no deve dissimular 0 fato de que a busca de um acordo desse pensamento com © mundo, @ ardente aspiracio a “essa extrema liberdade de pensamento que igual as no- Ges & liberdade de movimento do mundo”, ocuparam lugar cada vez maior em sua vida, na medida em que avangava em idade ¢ em que inclusive nunca deixou de persegui-las. © Le Coupable, p. 32 ‘A constincia dessa preocupagéo € colocada em evidéncia se lembramos algumas datas, Bataille tinha quase trinta anos qundo escreveu, para a revista La Critique Sociale, “A Nogao qe despesa”, e pouco menos de cingiienta e dois quando foi publicada A Parte maldita, livto que ele apresenta em seu pre- Facio como fruto de dezoito anos de trabalho, Poderfamos assim situar 0 inicio dessa reflexio em torno de 1931. Na verdade, porém, esse infcio deve estar ainda mais distante ¢ coincidir fom © periodo do fim dos anos 20, quando, som divida alguma Sob a instigagio de Alfred Métraux, tamou conhecimento da teoria do potlaich exposta por Mauss em seu “Essai sur le don, forme archaique de l’échange”, publicado em Année Socio- Togique de 1925. Essa descoberta parece estar na origem extrema do inieresse que em seguida cle devia demonstrar nio ‘apenas pela etnologia, mas também, e cada vez mais, pelos fa- tos econdmicos, assim como parece ter intervido como uma iluminagdo que ia permitir a Bataille representar-se 0 mundo como que animado de uma ebuli¢do & imagem e semelhanga daquela que ndio cessou de deminar sua vida pessoal. © essencial dessa representacio jé esté em “A Nogio de despesa”, texto denso e fulgurante, que constitui 0 eixo da teflexio de Bataille sobre 0 mundo, sobre © homem no mundo. ‘Ai encontramos, & luz das observacies feitas por Mauss © outros etndlogos sobre as instituigdes econdmicas primitives, onde “a troca... € tratada como uma perda suntuéria dos fobjetos cedidos” e “apresenta-se assim, basicamente, como tim pracesso de despesa sobre 0 qual se desenvolveu um pro- cesso de aquisigio”, a afirmagio do “caréter secundirio da producdo ¢ da aguisigfo em relagio & despesa”: a idéia de iim “mundo pacifico e conforme a seu modo de ver”, que seria ordenado pela necessidade primordial de adquitir, de pro- Guzir e de conservar, € apenas uma “ilusio cémoda”, quando fo mundo em que vivemos esti consagrado A perda e quando 4 propria sobrevivéncia das sociedade 36 ¢ possivel ao preso die despesas improdutivas considerdveis ¢ erescentes. Essa con cepeao — da qual Bataille sublinha 0 acordo com suas expe- rigncias pessoais do erotimos e da angétis, com a Uo filho 16 vido de esbanjar exposto A avareza e a0 comportamento semedido de seu pai, e mesmo com certos dados da psicand- vewpsclarece, segundo ele, grande nimero de fendmenos socials, politicos, econdmices, estéticos: 0 luxo, 8 jogos, os spetaculos, 0s cullos, a atividade sexual desviada da finslidade fpenital, a5 artes, a poesia no sentido estrito do termo so mani- Fstacdes da despesa improdutiva. Essa concep¢io fornece_in- Clusive uma primeira base de interpretagéo da histdria das civi- Tizagtes: “E se é verdade que a producio ¢ a aquisicéo, mu- dando de forma ao se desenvolverem, intreduzem uma variével cujo conhecimento é fundamental para a compreensio dos fe- ‘nmenos historicos, elas, no entanto, sf apenas meios subor~ dinados & despesa”. ‘Quanto 2 vida do homem,’sd tem sentido em acordo com um destino do mundo: “A vidas humana, distinta da existéncia juridica ¢ tal ‘como tem lugar de fato em um globo isolado no espago celeste Go dia A noite, de uma regio a outra, a vida humana nfo po- de em caso algum ser limitada aos sistemas fechados que lhe ‘io destinados em concepcées razodveis. O imenso trabalho de abandono, de escoamento de tormenta que a constitu po- deria ser expresso dizendo-se que ela s6 comeca com o déficit esses sistemas: pelo menos o que ela admite de ordem ¢ de reserva s6 tem sentido a partir do momento em. que as forgas fordenadas e reservadas se liberam e se perdem para fins que ‘no podem ser sujeitados a nada de que seja possivel prestez contas, E somente através de uma tal insubordinagio, mesmo Iniserdvel, que a espécie humana deixa de estar isolada no esplendor sem condigdo das coisas materials.” Trecho magistral, onde encontramos cm germe — mas cexpressa talvez com forga jamais igualada — uma concepgto fio homem e do mundo que veremos desenvolvida ao longo ‘da obra posterior de Bataille, quer se trate dos ensaios filos6tt- cos, quer se trate de A Parte maldita. Mas, se “A Nogdo de despesa” se apresenta como a anun- ciadora do que se seguiria, ela também € fortemente marcada pelas circunstincias que presidiam sua elaboracio, pelo am- Biente em que foi concebida, pelas proprias tendéncias da re- 17 vista onde seria publicada. Os colaboradores de La Critique So- cciale eram em Sua maioria membros do Cercle Communiste Démocratique, que reunia, a0 lado de poetas © escritores em sua maior parte oriundos ‘do surrealismo, militantes de movi- mentos politicas oposicionistas ainda marcados por sua for- magio terica marxista, apesar de sua ruptura com “o parti- ‘depois uns e outros seguiriam caminhos bastante diver- sos. A revista era digna de nota por mais de uma razio, prin- Cipalmente pelo vigor de seu tom, pois esses heréticos hetero- gineos tinham em comum o fato de serem violentamente eriti- cos, Foi para se colocar no diapasio dessa violencia que Batail- te forgou selvagemente a voz em certas passagens de seu artigo, ‘ov devemos ver, nesse furor extremo de expressio, os primeiros censaios dos exercicios de elogiiéncia blasfematéria a que logo depois iria entregar-se durante 0 epis6dio de Conte-Attaque? © certo & que € dificil encontrar na obra de Bataille trechos tio enérgicos por sua violéncia imprecatéria quanto certas passagens dese texto. ‘A importincia atribufda & luta de classes em “A Nogio de despesa” também reflete, sem divida alguma, as discus- ‘sGes de que Bataille participava com seus amigos de La Cri- rique Sociales mas como foi que alguns destes acolheram a in- terpretagio dada, em fungio da teoria da despesa improdutiva, ‘dessa Iuta de classes em cujo “desencadeamento inaudito” — estando atrofiados na sociedade burguesa todos os modos de despesa tradicional — vem perderse “o tumulto suntudrio vivo", aparecendo assim como “a forma mais grandioca da despesa social”? A representagio da revolugio como a forma suprema do potlatch nfo poderia deixar de suscitar algumas reservas entre of responsiiveis pela revista: uma nota prelimi- nar da redagio observava que, “em muitos pontos, 0 autor entra em contradigdo com nossa orientacdo geral de pensa- mento”, ¢ anunciava a préxima publicagio de uma_anéli ‘citica do estudo que, segundo me consta, nunca foi feita De qualquer forma, trata-se de aspectos que podemos considerar como circunstanciais a “Nocio de despesa”, € cujas divergéncias com certas posigées adotadas mais tarde por 18 Bataille poderfames facilmente destacar, elas sto extremamente caracteristicns da forma de que entio se revestia a eferves- Cacia de seu espirito, mas em nada poderfamos diminuit 0 fato de que esse texto capital ¢ uma verdadeira fonte de onde ja brota aquilo com 0 que ele fara, cerca de vinte anos mais tarde, o livro que designou, para virios de seus amigos, como sendo 0 mais importante de sua obre, A Parte maldita & 0 nico livro de Georges Bataille onde cle teria tentado construir uma exposicao sistemética de sua visio do mundo: filosofia da natureza, filosofia do homem, filosofia da economia, filosofia da histéria, FE sempre a nogio de excesso que esté na base dessa construgao; dessa vez, porém, ele se esforca em procurar para ela uma explicacio ecientifica a partit da reuaido de dados su- mirios sobre os movimentos da energia na superficie do globo. HE verdade que esses dados ainda no so suficientes para “encontrar a chave de todos os problemas colocados por cada Jina que tem em vista 0 movimento da enerpia sobre a mas, tratando-se da energia assim considerada como fendmeno césmico, uma grande hipétese é langada: sempre hd excesso, porque a irradiagio solar, que esté na origem de todo crescimento, é dada sem contrapartida: “O sol dé sem nunca receber”; ha entéo necessariamente acumulagio de uma energia que 6 pode ser desperdicada na exuberincia e na ebuligio. Donde as modalidades de crescimento da vida, que inces- santemente se choca com limites. Ha, por certo, descobertas {que permitem ao crescimento dar saltos a frente, saltos que Ihe abrem novos espacos. Mas outros limites ndo tardam a reapa- recer, ¢ a perda se torna inclutével. ‘Nessa hist6ria da vida, o homem desempenka, com dupla razio, um papel eminente. Por um lado, a técnica humana abre caminho a novas possibilidades, assim como foi feito na natu- reza pela “ramagem da Arvore” ou pela “asa do passaro”; 19 por outro lado, porém, 0 homem é, de todos os seres vivos, “o mais apto a consumir, intensamente, luxuosamente, 0 exce- dente de energia”. Ao paso que sua inddstria multiplica as possibilidades de crescimento, ele dispde também de uma “faci- lidade infinita de consumo inGtil”: assim encontramos nele o ritmo ordindrio do uso da energia no mundo, caracterizado pela “alternincia da austeridade que acumula e da prodigali dade”; do mesmo modo como hi dois tipos de homens, um “poueo preocupado com suas abras”, como aquele de que nos falam 05 etuélogos, outro “voltado para a conservacao, a re- particdo justa”, celebrado pela moral moderna; do mesmo mo- do, ainda, como os dois aspectos podem caracterizar sucessiva- mente um mesmo homem, cuja face muda “da turbuléneia da rpite para os negécios sérios da manhi”. Contudo, dessas duas fungses do homem, é a de consumo que the permite estar em acordo com o mundo: visto que 0 destino do universo € “uma realizacio intitil ¢ infinita”, 0 do homem é levar adiante essa realizagio. O homem € um cume pela dilapidacio: operagio gloriosa entre todas, signo de soberania, Assim como a moral de Bataille € um “colocar as aves- sas” a moral corrente, suas concepsées apresentam-se como uma inverséo do pensamento econdmico comum. E certo que ele permanece perseguido, como a maioria dos especialistas que abordavam esses problemas logo apés a segunda guerra mun- dial, pela lembranca das grandes crises de superproducio do periodo anterior & guerra, e fortemente influenciado pelas teo- rias que elas suscitaram, dos ensaios de Keynes & hiptese da “maturidade econdmica”; e, se inicialmente determina como sendo seu objetivo “aproximar do problema geral da natureza © problema surgido nas crises”, quando insiste longamente so- bre “a ilusio das possibilidades de crescimento que a aceleracio do desenvolvimento industrial oferece”, nao se distingue clara mente do pessimismo de varios economistas da época. Mas onde inova, onde propoe uma verdadeira “mudanca coperni cana” das concepgdes econdmicas basicas, € a0 perceber a 20 diferenga fundamental entre a economia de um sistema sepa- sado — onde reina um sentimento de raridade, de necessidade, onde surgem problemas de lucros, e onde o crescimento pode sempre parecer possivel © desejével — e a de uma economia que € a da massa viva em seu conjunto — onde @ energia ‘est sempre em excesso, sendo necessdrio destruir sem descan- s0 um acréscimo, Mostrando que 0 estudo dos fendmenos iso- Jados € sempre uma abstragHo, propde um esforgo de sintese, até entio sem precedente, em oposigio ao espirito limitado dos economistas tradicionais, que ele compara ao “de um mecinico que troca uma roda”. Visio profunda que alcangou posigio de destaque, pois sabemos 0 sucesso obtido, desde que essas linhas foram escritas, pelo temo economia generalizada. Todo 0 problema é saber como, no sei dessa econor geral, € utilizado 0 excedente. F 0 usa feito do excedente “que € a causa das mudangas de estrutura”, ou seja, de toda a his- t6ria das civilizacdes, & qual sio consagrados trés quartos dos capitulos de A Parte mnldita; uma série de “dados histéricos” € ai sucessivamente estudada, colocando em evidéncia o contra: 4e enire dois tipos de sociedades: as “sociedades de consumo” (como 0s astecas ou as sociedades primitivas com potlatch) € as sociedades de empreendimento militar (como 0 Isla) ou industrial (como a sociedade moderna tal como se desenval- veu a partir da Reforma), estando um lugar & parte reservade para a solugéo paradoxal do Tibet, “sociedad de empreendi- mento religioso”, onde o “monaquismo” € uma forma origi- nal de despesa do excedente — soluciio em vaso fechado que, ‘gragas ao grande ndmero de monges improdutivos e sem fi- Thos, “estanca internamente sua violencia explosiva No entanto, € também da escolha — a ser feita pelos homens contemporaneos — do modo de despender o inelutavel vexcedente que depende seu futuro, Continuario eles a “supor- tar” 0 que poderiam “operar”, ou seja, a deixar o excedente provocar explosdes cada vex mais catastréficas em vez de “con- sumi-lo” voluntariamente, de destrui-lo conscientemente atta- vés dos meios que pudessem escolher © “accitar”? Nesse ponto, a reflexio de Bataille, aplicada a época con- temporiinea e as experiéncias de uso das riquezas que ai se 21 Maomé: as conquis- 17 tas dos primeiros califas, o desmembramento do império, as sucessivas invasées dos mongsis e dos turcos, e depois a deca- déacia das poténcias mugulmanas de nossa época. Tudo isso € claro, mas, na verdade, é claro apenas super- ficialmente. Se tentamos penetrar no espitito que determinon lum imenso movimento € que ordenou, no correr dos séculos, a vida de inumeriveis multid6es, no’ percebemos o que nos poderia ter tocado pessoalmente, mas dados formais, a cuja atragéo exercida sobre o fiel a rigor s6 somos sensiveis na medida em que ela nos representa a cor local de costumes, de cidades desorientadoras e todo um encadeamento de atitudes © de gesios hieraticos. O proprio Maomé, cuja vida nos & conhecida, fala uma linguagem que para nds nfo tem o sentido elazo_¢ insubstituivel da linguagem do Buda ou do Cristo. Por menos iluminados que sejamos, 0 Buda eo Cristo diri- gem-se 2 nés, mas Maomé a outros. Isso € tio verdadeiro que no momento em que a inegivel sedugo por nés sofrida quer exprimir-se, formular-se, nada podemos dizer. Os principios entdo aparecem tais como sfo estranhos ao que nos diz respeito. S6 nos resta recorrer a f lidades. Nio poderfamos duvidar da sinceridade — nem da com- peténcia — de Emile Dermenghem ao concluir com um resu- mo dos valores que o Isla nos fornece 0 rico volume que os Cahiers du Sud acabam de consagrar a0 Isl, Seria inttil inctiminar outra coisa que ndo uma irredutivel dificuldade, mas © fato de se dar énfase A lberdade — em oposigio a serviddo —e A mansuetude — em oposicio A violéncia — provoca surpresa ¢ indica @ confuséo de quem quer expressar uma profunda simpatia, Se Dermenghem fala de liberdade (p. 375), exprime a simpatia que sente ao mesmo tempo pela liber- dade e pelo Isl, mas as citagdes que invoca nio podem con- vencer, “Deus nao ama os opressores”, diz. 0 Corio, Admite- se a antinomia entre a idéia de Deus ¢ uma injusta opressio, ‘mas ngo se trata de um trago mugulmano. Por isso nfo se pode esquecer o cardter despético, em geral, da soberania no 1 Témoignages de Uslam. Notes sur tes valeurs permanentes et actuclies de Ta chilisation musulmane, p. T1387. 8 Isif._A fiberdade nfo se funda na revolta, assim como a insub- missfo? Ora, a propria palavra isla significa submissio. E mugulmano aquete que se submete », Ele se submete a Deus, a disciptina que Deus exige ¢ conseqiientemente aquela exigida por seus lugartenentes: 0 Ili 6 a disciplina oposta a virilidade caprichosa, a0 individualismo dos arabes das tribes politeistas. Nada mais contririo as idéias desperiadas pela virilidade da palavra liberdade. ‘Um trecho sobre a guerra (p. 376-377) no € menos es tranho. Dermenghem tem razio, sem diivida alguma, a0 su- blinhar 0 fato de que, para Maomé, a grande guerra santa nio €a do mugulmano conta o infiel, mas aquela — de rendncia — que € necessério conduzir incessantemente: ele contra ele proprio. Tem também razio a0 assinalar © caréter moderado por uma evidente humanidade das primeiras conquistas do Isla. Contudo, caso se fale “da guerra” a propésito de mucul- manos a fim de louvé-los, € conveniente no estabelecer sep2- ragio entre essa moderacio e seus principios. Contra o infiel, segundo seu ponto de vista, toda agio violenta é boa. Desde os primeiros tempos, em Medina, os discipulos de Maomé vi veram de saques. “Por ecasifio de uma razia, escreve Maurice Gaudefroy-Demombynes, realizada por muculmanos numa vio- ago da trégua dos meses sagrados anteislimicos, © Corio (II, 212) prescreveu o combate aos muculmanos” *. © Hadith (tradi¢go escrita e espécie de cédigo do Isla antigo) organizou sistematicamente a conquista, Excluiu as violéncias ¢ as exacdes initeis. O regime imposto aos venci- dos que pactuavam com o vencedor devia ser humano, sobre- tudo se se tratava de homens da escritura (cristdos, judeus zoroastristas). Estes s6 foram submetidos ao imposto. O Hadith, do mesmo modo, ordenou que as culturas, as drvores e 0s tra- 1 Emile Dermenghem certamente ndo o ignora e escreve mais adiante (p. 381): "visto que mugulmano significa justamente re- Sianado, submisso..-". A competéncia de Dermenghem, em maté Fla de sii, nio poderia ser recusada: ele por veres falou admira telmente do misticismo mugulmano; s6 estd em questo sua con fasio quando quis definir os valores permanentes do Isls Fed, 1946, p, 120. 2 Les Institutions musuimanes, 119 ° balhos de irrigagdo fossem respeitados*. Contudo, “o imi da comunidade mugulmana deve fazer jihad (a guerra santa) con- tra os povos do ‘etritério de guerra’ que avizinha imediata- mente © ‘tertitério do Isli’, Os chefes do exército devem asse~ gurarse de que esses povos conhecem as doutrinas do Isla € de que se recusam a segui-las; a partir de entio € necessério combaié-los. A guerra santa, portamo, encontra-se permanente- mente nas fronteiras do Islé. Nao hé de modo algum possibi- lidade de paz verdadeira entre os mugulmanos e 03 infigis. Era essa uma nogio teérica ¢ absoluta que ndo podia resistir aos fatos, tendo sido necessirio encontrar o expediente juridico, a Hila, para evité-la e a0 mesmo tempo a ela se conformar. A douirina admitiu que os principes mugulmanos podiam con- cluir tréguas de no méximo dez anos com os infigis, em caso de fraqueza insuperével do Estado mugulmano e visando 20 interesse deste. So livres para rompé-las de acordo com sua opinido, fazendo reparagéo por seu juramento violado”. Como no ver nesses preceitos um método de extensio — de cres- cimento indefinido —, 0 mais perfeito tanto em seu principio, como em seus efeitos © na duragdo desses efeitos? ‘Algumas outras opiniges de Dermenghem também no seem de um mais ou menos que nfo corresponde a realidade. No entanto, deixa claro o seguinte: como apreender o sentido de uma instituigio que sobrevive A sua razdo de sex? O Isle 6 uma disciplina aplicada a um esforco metédico de conquista. © empreendimento conclufdo € um quadro vazio; pot conse- guinte as riquezas morais que ele mantém so as da huma- hidade comum, mas suas conseqiiéncias exteriores sio mais marcadas, menos instveis ¢ mais formai 2. — AS SOCIEDADES DE CONSUMO DOS ARABES ANTES DA HEGIRA Se precisames determinar o sentido da disciptina do pro- feta, do Isla, ndo podemos ater-nos A sua sobrevivencia, que Toi, p. 12 120 guarda para nds a beleza da morte ou das ruinas. O Isla opde a0 mundo arabe, onde nasceu, @ determinagao que fez um império de elementos até entio dispersos. Conhecemos rela- tivamente bem as pequenas comunidades arabes, que ndo ul- trapassavam os limites da tribo e que viviam dificilmente an- tes da Hégira. Nem sempre cram ndmades, mas dos nom: des aos sedentétios das povoagoes — como Meca ou Yatrib (@ futura Medina) — a diferenga era relativamente pequena. Mantinham dentro de duras regras tribais um individualismo desconfiado, a0 qual estava vinculada a importincia da poe- sia. As rivalidades pessoais, ou tribais, os arroubos de intre- pidez, de galamteios, de prodigalidade, de elogiiéncia, de t Tento’poético, ai desempenhavam grande papel. A didiva ¢ 0 desperdicio ostentatérios alastravam-se, e pode-se concluir — de uma prescrigio do Cordo: “Nao dés para ter mais” (LXXIV, 6) — pela existéncia de uma forma ritual de po- latch. Muitas dessas tribos, que permaneceram politeisias, ti- ham’ sacrificios sanguinolentos (outras eram cristls, outras judaicas, mas era a tribo e no 0 individuo que tinha esco- Thido uma religido; e € incerto que 0 modo de viver tenha sofrido grande modificagio). A vinganga do sangue, a obri- gagdo de os pais de um homem morto se vingarem nos pais do assassino, completava esse quadro de violéncias dilapida- doras, Supondo que as regides vizinhas, dotadas de uma forte organizagio militar, tenham sido fechadas a uma possibilida- de de extensio, esse modo de vida dispendioso podia asse- gurar um equiltbrio duradouro (o freqiiente exterminio de recém-nascidos de sexo feminno vinha evitar o excedente nu- mérico). Contudo, se os vizinhos estivessem enfraquecidos, a manutengio de um modo de vida que impede uma composi cdo de forgas conseqitentes ndo teria petmitido tirar proveito dessa situagio. Uma reforma prévia dos costumes, 0 estabe- lecimento de um principio prévio de conquista, de empreen- dimento e de unificagdo das forgas era necessério para uma agressio contra Estados mesmo em decadéncia. Maomé, apa- rentemente, nfo teve a intengio de corresponder as possiti- lidades que resultavam da fraqueza dos Estados vizinhos: seu 1a1 ensinamento nfo teve menor aleance do que se tivesse tido claramente a idéia de aproveitar a ocasifo. - Para ser mais exato, esses drabes préislamicos nfo ti- nham satingido, mais do que 0s astecas, 0 estégio da socieda~ Ge de empreendimento militar. Esses modos de vida corres- pondem ao principio de uma sociedade de consumo. Mas en {re povos do mesmo estégio, os astecas exerceram uma hege- monia militar, Os drabes, cujos vizinhos eram o Ira sassinida € BizSncio, estavam reduzidos a vegetar. 3. — O ISLA NASCENTE OU A SOCIEDADE REDUZIDA AO EMPREENDIMENTO MI- LITAR, “0 pietismo do Isla primitivo (...), esereve H. Holma, certamente mereceria ser estudado ¢ examinado mais a fun- Go, sobretudo desde que Max Weber e Sombart demonstra- ram com toda evidéncia 2 importancia da concepgéo pictista nas origens ¢ na evolugao do capitalismo”!. Essa reflextio do escritor finlandés é tanto mais fundada na medida em que 0 Pietismo dos judeus e dos protestantes era, por sua vez ani- mado de intengdes estranhas 20 capitalismo. Nao deixou tam- ‘bém de ter como efcito o nascimento de uma economia em que dominou a acumulagio do capital (em detrimento do consumo, de regra na Idade Média) ®. Seja como for, Mao- mné no teria podido fazer melhor se tivesse desejado delibe~ radamente transformar em instrument eficez de conguista a agitacio descontrolada e ruinosa dos arabes de sua época. ‘A agio do puritanismo mugulmano 6 comparvel & do or de uma fabrica onde a desordem se tivesse estabele- ido: ele remedia prudentemente todas 2s falhas na instala- cdo que deixaram a energia se perder ¢ reduzia a nada 0 Tendimento. Maomé ope o din, a fé, a disciplina submissa, & T Mahomet, Prophdie des Arabes, 1M6, p. T2 2 Ver mais adiante, p. 11 segs. 122 muruwa, ao ideal de *visilidade” individual ¢ gloriosa das tri- bos antcistimicas (Richelieu a0 combater as tradigSes da hon- ra feudal, o duelo, caminhava premeditadamente nesse mes- mo sentido), Interdita a vinganga do sangue no interior da comunidade muculmana, mas a admite contra 0 infiel. Con- dena o assassinato das eriangas, 0 uso do vinho e a didiva de rivalidade. Substitui essa dddiva de pura gloria pela es- mola socialmente itil, “Retribui a teus préximos o gue hes € devido, diz 0 Corte (XVIT, 28-29), assim como 20 pobre, © ao viajante, ¢ nio desperdices como um prédigo. Pois em yerdade os prédigos so os irmios dos deménios.” A extre- ma generosidade, virtude maior das tribos, tornou-se subita- meni objeto de aversio, e 0 orgulho individual passou a ser maldito. O guerreito dilapidador, intratavel, selvagem, amante © amado de suas jovens, herdi da poesia das tribos, dé lugar a0 soldado devoto, observador formal da disciplina'e dos ri- tos. O costume da oragio em comum nfo cessa de afirmar exteriormente essa mudanga: ele foi comparado justamente ao exercicio militar, que unifica © mecaniza os coragées. O contraste do Corfio (e do Hadith) com o mundo ceprichoso da poesia simboliza essa negacio. Somente apés a irresistivel ‘onda de conquista do exército devoto foi retomada a tradi- Go postica: o Isla vencedor no se atinha A mesma sever dade; 2 dilapidacio generosa, cuja nostalgia subsistia, no tinha mais inconveniente @ partir do momento em que o im- pério consolidara sua dominagio. ‘A alternancia da austeridade, que acumula, ¢ da pro- digalidade, que dissipa, constitui 0 ritmo ordinério no uso da energia, Somente a austeridade relativa e a austncia de dissipagio permitem o crescimento dos sistemas de forga que os seres vivos ou as sociedades sic. No entanto, pelo menos durante algum tempo, 0 crescimento tem seus limites, sendo necessirio dissipar o excedente que nfo pode ser acumulado. © que coloca o Isla & parte nesses movimentos € a abertura que ele teve antes de tudo em direso a um crescimento apa- rentemente ilimitado do poderio. Nao se tratava de modo algum de um intento, de um projeto observado, mas por si mesma a oportunidade efetuava tudo que era possivel. A opor= 123 1 | i ! tunidade, alids, era suportada por um minimo de necessida- de. E relativamente fécil reunic pessoas por causa de um en- fusiasmo que Ihes € inspirado, Entretanto, € preciso dar-lhes ‘lguma coisa para fazer. Reunir ¢ exaltar € antes de tudo ex- trair uma forga inaplicada: ela s6 pode seguir o impulso e le- vantar v6o se for empregada a partir do momento em que esteja disponivel. O Isii, em primeiro luger, teve a oportuni- dade de ser obrigado a se opor violentamente ao mundo on- de nasceu. O ensinamento de Maomé 0 opée a tribo ¢ as suas tradicdes contra as quais ele blasfemava. A tribo amea- gou excluito, 0 que equivalia & morte. Teve assim de negat © vinculo tribal e, como uma existéncia sem vinculo no era concebivel, instituir entre si e seus adeptos um vinculo de outra natuzeza, Esse foi o sentido da Hégira, que dew inicio Ge modo justo’e legitimo & era mugulmana: a fuga de Maomé de Meca pera Medina consagrou a ruptura dos vinculos de sangue ¢ 0 estabelecimento de uma nova comunidade funda- da sobre uma fraternidade de eleicio, aberta a quem adotas- se suas formas religiosas. O cristianismo data do nascimento individval de um deus redentor: o Isid, da vinda 20 mundo de uma comunidade, de um novo tipo de Estado, que nao tinham como fundamento nem o sangue nem o local. O Isté difere do cristianismo e do budismo por ter-se tornado, des- de a Hégira, outra coisa que ndo um ensinamento difundido no quadro de uma sociedade ja formada (comunidade san- guinea ou local): foi a instituigio de uma sociedade fundada sobre 0 novo ensinamento, Esse principio era, em certo sentido, perfeito, Nao se tinha necessidade alguma de equiveco ou compromisso: 0 chefe religioso era ao mesmo tempo o legislador, 0 juiz © 0 chefe do exército. Nao se pode imaginar comunidade mais rigorosamente unida. A vontade estava sozinha na origem do vinculo social (mas nfo podia rompé-lo), 0 que oferecia no apenas a vantagem de assegurar a profunda unidade mo- ral, mas também a de abrir o Isla para a extensio indefinida, Era um admiravel mecanismo. A ordem militar sucedia & anarguia dos povos rivais e os recursos individuais, que nio eram mais desperdigados inutilmente, passavam a servit & co- 124 munidade armada. Suspensa a dificuldade (0 limite da tribo), que outrora se opumha ao crescimento, as forgas individuals feram preservadas com vistas a companhas militares. Finalmen- te a conquista, que os Hadith transformaram meiodicamente em um meio de extensio, investiu os novos recursos — sem destruicto digna de nota — em um sistema de forcas fecha- do, cada vez mais vasto ¢ crescendo cada vez mais rapidamen- te. O movimento lembra o desenvolvimento da indastria pela acumulagdo capitalista: se € colocado um freio no desperdicio, se © desenvolvimento ndo tem mais limite formal, o afluxo da energia ordena o crescimento, o crescimento multiplica a acumulacio. Todavia, uma perfeigio to rara nflo deixa de ter a con- trapartida, Opondo-se as conquistas muculmanas ao desen- volvimento das religides cristis ou budistas, nota-se de imedia to a impoténcia relativa do Islé: € que a poténcia, para ser formada, exige que se remuncie a seu uso, O deseavoivimen- to da indiistria exige um limite do consumo: o equipamento conta em primeiro lugar, a ele se subordina o interesse ime- diato. © préprio principio do Isli implicou na mesma ordem de valores: em busca de uma poténcia maior, a vida perde um poder imediato de disposigao. O Isli, ao evitar a fraqueza moral das comunidades cristis e budistas (reduzidas a servir a um sistema politico que nio sofrew mudanga), caiu em uma fraqueza maior, conseqiiéncia de uma perfeita submissio da Vida religiosa & necessidade militar. O piedoso mugulmano nndo renunciou apenas as dilapidagSes do mundo da tribo, mas em geral a toda despesa de forga que nfo fosse violéncia ex- terior voltada contra o inimigo infiel. A violencia interior que funda uma vida religiosa e culmina no sacrificio desempenhou no Isla dos primeiros tempos apenas um papel secundiério. Is- So porque 0 Isli nfo é antes de tudo consumo, mas, como o capitalismo, acumulagio das forcas disponiveis. Em sua es- séncia primeira, € estranho a toda dramatizagfo, a toda con- templagdo transida do drama. Nele nfo hé nada que corres- ponda & morte do Cristo na cruz, ou & embriaguez do aniqui- lamento do Buda. Opde-se, como o soberano militar que de- sencadeia sua violéncia contra 0 inimigo, ao soberano religio= 125 so, que sofre a violéncia, © soberano militar nunca € expos- to a morte, ele tende inclusive a por fim aos sacrificios: ele esté li para dirigir a violéncia para fora e para preservar de ‘um consumo intemo — da ruina — a forga viva da_comuni- dade, Encontra-se antes de tudo engajado no caminho das apropriagoes, das conquistas, das despesas calculadas, que tem ‘0 crescimento como fim, Em certo sentido o Isla é em sua unidade, uma sintese das formas religiosas e militares, mas 0 rei militar podia deixar, a seu lado, as formas religiosas in- tactas: o Isla as subordina aos militares; cle reduziu os sa- crificios, limitando a religiéo & moral, & esmola e & observagao das oragéee. 4. — O ISLA TARDIO OU O RETORNO A ES- TABILIDADE Dado na fundagio e na conquista, 0 sentido do Islé per- de-se no império muculmano constituido, Desce que em ra- zio de suas vitrias 0 Isla deixou de ser uma rigorosa con- sagrago de forcas vivas ao crescimento, ele se tornou ape- nas um quadro vazio ¢ rigid. Aliés o que veio até ele entrou nessa coesio rigorosa somente depois de transfigurado, Mas, excetuando-se a coesio, nada ha nele que nio tivesse sido realizado antes. Abriu-se rapidamente & influéncia dos paises conguistados, cujas riquezas herdou. © menos estranho ndo € que, uma vez firmadas as con- quistas, 0 fundo de civilizagio arabe — cuja negagdo fora um fundamento — se encontrasse vivo € intocado. Alguma coisa dessa murawa das tribos, & qual Maomé opde os rigores do Cordo, subsiste no mundo arabe, que guardou uma tradi- do de valor cavalheizesco, onde @ violéncia se une & prodi- galidade, e 0 amor & poesia. E mais ainda: 0 que temos a ver com 0 Isla nao patticipa da contribuicio de Maomé, mas justamente desse valor condenado. £ curicso reconhecer uma influéncia arabe em nossa “religiio” cavalhelresca, to dite- rente da instituico da cavalaria que as cangGes de gesta re- velam, sendo esta bastante esiranha a0 mundo mugulmano. 126 A propria expressiio cavatheiresco adquitiu no tempo das eru- zadas sentido novo, poético, ¢ ligado ao valor da paixto, No século XIE, no Ocidente, a interpretagio banal do ritual do ammamento era mugulmana, E o nascimeato, no sul da Fran- sa, da poesia da paixio protonga aparentemente uma tradi- 80 que remonta, pela Andaluzia, a esses concursos de poesia das tribos que provocavam a reacio austera do profetal, i Henri PERES consagra A questio da influéncia andaluza win notdvel artigo de L'lstam ef TOccident: "La poésie arabe Ganda lousie et ses relations. possibles avec la podsie des troubadours", 107-130. A questso, segundo o autor, nio pode ser resolvida de mo do absoluto, mas’ as relagses encontramse bem tmarcatas, Nao se zeferem apetias ao conteido, aos temas fundamentals, mas também & forma da poesia. E surpreeadente a coineidéncia da grande ¢po- ea da poesia arabe da Andaluzia (século XI) ‘com. 0 nascimento dda, poesia cortest em lingua de oc (fim do sdculo XI). Por outro lado, a8 relasdes entre 0 mundo musulmano espanhol © 0 mundo cristo do norte da Espanha ou da Franga podem ser estabelecidas com precisio, 127 Oo IL A SOCIEDADE DESARMADA: O LAMAISMO — AS SOCIEDADES PACIFICAS © Isla difere, por tragos em certo sentido exagerados, das banais sociedades de empreendimento militar, Nele slo levadas a0 extremo tendéncias menos visiveis nos empreendi- rmentos imperiais da Antiguidade clissica ou da China, Ne~ le nao se encontra, é verdade, © nascimento conexo de uma moral: o Isla adota uma moral preexistente. Contudo, sua ruptura categorica com a sociedade da qual saiu, dé a ima~ gem por ele composta uma nitidez que os impérios mais an- figos ao possuem. A subordinagdo da conquista & moral de- termina e resume seu sentido. Talvez parega paradoxal té-lo escolhido — de preferén~ cia a Roma ow a China, mais clissicas — para ilustrar um tipo de civilizagio. Da mesma forma como € estranho invo~ caro lamaismo, em vez da Igreja cristd, para descrever uma sociedade desarmada, Contudo, dando exemplos extremos, a ‘oposigao € mais acentuada, 0 jogo dos elementos € mais in- tcligivel. ‘Em meio 2 uma humanidade sempre pronta a fazer ex- plodir a guerra, o Tibet constitu. paradoxalmente um quiste Ge civilizagio pacifica, inapto tanto para o ataque quanto para a defesa. A pobreza, a imensidao, o relevo, 0 frio, si Aqui os tinicos defensores de um pais sem fora militar. A 128 populacio, pouco diferente racialmente dos hunos ¢ dos mon- 6's (alids, 0s tibetanos outrora invadiam a China, exigiam dos imperadores um tributo), mestra-se no inicio do século XX como sendo incapaz de’ futar militarmente, incapaz de opor a duas iavasdes sucessivas, inglesa (1904) e chinesa (1909), mais do que uma resistencia de um dia, Uma insu- perivel inferioridade de srmamento, € verdade, tomava im- provavel a derrota do invasor. No entanto, em outras partes, Outros exércitos mal equipados opuseram-se utilmente mesmo a forcas blindadas. Eo Tibet tem a vantagem de uma posi- do por assim dizer inacessivel. Trata-se na verdade de uma Geterminagéo decidida, Os nepaleses, cujas raga, situaco geo- grética e civilizagio material sao pouco diferentes, possuem a0 contrério grande capacidade militar (inclusive ‘invadiram por varias vezes 0 Tibet). A primeira vista € fécil dar uma razio para este caréter pacifico: sua origem € 0 budismo, que provbe os figis de ma- far. © Nepal guerreiro € dominado politicamente pela aristo- cracia militar, hinduista, dos Gurcas. Os tibetanos budistas, porém, sfio muito pieddsos: seu soberano € um alto digni- tario do clero. Essa explicacio, no entanto, nfo é to clar: apesar de tudo, diante de uma invasio, é muite exquisito uma reacGo inteiramente indolente. Outras’religides condenam a guetra, mas os povos que as professam evidentemente nfo se matam de forma menos convincente. Gostariamos de olhar as coisas mais de perto: a obra pdstuma de um representante briténico, sir Charles Bell, consagrada tanto & vida pessoal do décimo-terceito Dalai-lama (1876-1934) quanto a histé- tia do Tibet sob seu reinado, permite seguir de forma bastan- te satisfatéria 0 mecanismo material do sistemat. 2, —O TIBET MODERNO E SEU ANALISTA INGLES Esse livro de Charles Bell € mais do que uma biografia ou um trabalho de hist6ria: nfo & uma obra estruturada. Tra- 2 Portrait of the Dalai-lama, Londses, 1946, ins. 129 | ta-se de um documento de primeira mo, erénica de uma tes- temunba envolvida com os acontecimentos, relatando suces- sivamente o que lhe corre, Em resumo, 0 autor expde o que no conheceu diretamente, mas estende-se bastante sobre os pequenos fatos de sua propria vida: no Tibet ou na India em contato com o Dalai-lama, ele nao deixa escapar nada, A obra talvez seja mal feita, mas & mais viva e instrui mais do que ‘um estudo regular; é confusa, mas isso pouco importa: ndo temos sobre a civilizago do Tibet documento menos sistema~ tico nem mais completo. Charles Beil foi o primeira branco que teve com um Dalai-lama relacdes continuas, baseadas em uma espécie de amizade. Esse honrado representante diplo- mético parece ter-se preccupado tanto com os interesses de sou préprio pals quanio com os do Tibet, cuja lingua The era familiar. Inclusive 0 governo da India, pouco preocupada em se ligar, parece $6 ter recorrido a seus servigos com um pou- co de hesitacdo. Segundo Charles Bell, os ingleses deveriam ajudar os tibetanos a manterem sua independéncia, a se li- bertarem do jugo chinés. Os ingleses por fim se empenharam nessa politica, que devia fazer do Tibet uma zona de influén- cia, mas prudentemente: viam a vantagem de um Estado-tam- pio, desejavam realmente um Tibet autdnomo e forte, mas desde que no fosse preciso pagar com graves embaragos um amparo contra embaracos eventuais. Desejavam evitar a vizi- nhanca dos chineses, mas desde que para tanto nfo devessem indiretamente sustentar hostiidades contra eles. ‘Um periodo de amizade anglo-tibetana, bastante viva em torno de 1920, pelo menos permitiu 20 autor ter uma estada tranqiila © agir politicamente em um pais que permanecera fechado acs brancos durante mais de um século. E sem di- vida, ai8 Bell, as instituigées do Tibet nfo eram ignoradas, mas no se podia aprender a partir de dentro sua vida e suas vicissitudes. $6 entramos em um sistema se percebemos suas coscilagSes, se descobrimos, depois de experimentada, uma in- teragdo dos elementos. Charles Bell, em um ano de estada em Lassa, esforgou-se para engajar 0 governo do Tibet em uma politica militar. O Tibet ndo podia ter um exército proporcio- nal a seus meios? As dificuldades por ele encontradas permi- tem exatamente seguir um paradoxo econdmico. Daf sobres- 130 saem mais nitidamente as diversas possibilidades da socieds~ de humana e as condigdes gerais de um equilibrio. 3. —O PODER PURAMENTE RELIGIOSO DO DALAI-LAMA objeto especifica do iiltimo livro de Charles Bell (mor- to em 1940) € a biografia do décimo-terceiro Dalai-lamz. Es- se propésito levou-o naturalmente a lembrar as otigens co- mhecidas de uma instituicko que a rigor s6 tem como andlogo © papado. Resumirei esses dados histéricos. O budismo foi introduzido no Tibet em 640. O Tibet era entio goverado por eis, e, nos primeiros tempos, o desenvolvimento dessa feligiio de modo algum enfraqueceu o pais, que no_século VIII foi uma das principais poténeias militares da Asia. To- davia, 0 monaquismo budista expandiuse ¢ a influéncia dos mosteiros, com o tempo, ameacou @ partir de dentro a dos eis, Um reformador, Tsong-Ka-Pa, fundou no século XT uma seita mais severa, na qual os monges observavam estritamen- te 0 celibato. A seita reformada dos “barretes amarelos” opds- se A seita menos rigorosa dos “barretes vermelhos”. Aos maiores dignitérios des “barretes amarelos” conferia-se um cardter de santidade, de divindade mesmo, que, teproduzindo- se em seus sucessores, Ihes concedia o poder espicitual © a soberania religiosa. Um deles, grande lama do “Monte de Ar- 02", mosteiro vizinho de Lassa, apoiou-se em um chefe mon- gol que atacou um iiltimo rei “barrete vermelho", O Tibet, esse modo, ficou scb a autoridade do “Dalai-lama”, titulo mongol dado por essa ocasifio 2 quinta encarnacdo desse per~ sonagem sobre-humano. Esse Dalai-lama seguramente nfo era o mais importante dos deuses encarnados do Tibet. As narrativas meio legendé- rias que se referem as origens dio, em certo sentido, uma dig- nidade superior ao “Panchen” de Tashi Lun-po (mosteiro situado a oeste de Lassa). Na verdade, a autoridade espiri- tual do Dalai-lama aumentoa devido & sua autoridade tempo- ral. O proprio Panchen, alm de imenso prestigio religioso, possui o governo secular de uma provincia; possui sua poli 131 tica particular, a titulo de vassalo indécil. O mesmo ocorre, em menor escala, com outros grandes lamas, pois um mos- teiro importante constitu’ um feudo em um reine pouco cen- tralizado, & como um Estado dentro do Estado. No entanto, 2 soberania do Dalai-lama adquiriu consisténcia devido a0 fato de ter-se desligado da funcdo que a fundara, Em nossa época, o grande lama do “Monte de Arroz” incorpora tio pouco a funcio de chefe do governo, que esse mosteiro, as Yezes revoltado, péde efetuar uma politica pré-chinesa e con- trariar a politica pré-inglesa de Lassa, Esse cardter indeciso das instituicbes locals & encontrado nas relacdes do Tibet com a China. A autoridade do Dalai- Jama, que néo € bascada em qualquer poder militar, sempre dominou apenas fragilmente jogos de forgas aos quais ela nao pode opor obsticulo real. F precéria uma soberania que nao dispSe ao mesmo tempo do fascinio religioso do povo € da obedigncia meio mercendria, meio afetiva, de um exército. ‘Assim, o Tibet teocrético caiu em pouco tempo sob a suse~ tania da China, A origem dessa vassalagem no é clara. Os tibetanos contestam a versio chinesa; os chineses, as dos ti- etanos. O Tibet esteve fregiientemente, desde a Antiguida~ de, submetido & China, mas nio como um feudo a um suse~ rano (devido a um direito fundado sobre uma tradigao reco- hecida pelas duas partes): tratava-se de uma questio de for- ga ea forca derrubava rapidamente 0 que a forga estabelece- ta. A China interveio no Tibet a partir do século XVII € controlou, tanto quanto pode, a escolha dos Dalai-lama; um ‘ambén, alto comissirio apoiado por uma guarnigio, tinka em ‘suas maos a realidade do poder secular. A guamnicdo, em ge~ ral, parece ter sido fraca, pois o Tibet nao era um proteto~ rado. (nenhuma colonizacao, @ administracdo permanecia in teiramente tibetana). No entanto, a Chine exercia a prepon- derincia e devido a seus representantes a soberania do Dalai- Jama era ficticia: se ela era divina, era também, na mesma medida, impotente. ‘A facilidade para anular o poder do Dalai-tama eta maior ainda devido & estranha forma de sucessio que periodicamen- te, durante longos intertegnos, entregava 0 pais a regentes. ‘Aos olhos dos tibetanos, 0 Dalai-lama nao € mortal: ow me- 132 Ihor, ele s6 morte aparemtemente, reencarnando-se logo em seguida, Desde as origens, era encarado como a encarnagio de um ser mitico, Chen-re-zi, que no pantedio dos budistas era protetor e deus do Tibet. Para os budistas, a reencaroa- ‘glo geral dos seres humanos apés a morte (em outras criatu- ras animais ou humanas) é objeto de uma crenca fundamen- tal. Assim, quando da morte de um Dalai-lama, sempre atri- ‘buida ao dasejo de morrer, é preciso por-se em busca de uma crianga do sexo masculino, em cujo corpo ele nao tardou a renascer. Um ordculo oficial designa a regido e efetuam-se in- vestigagdes sobre as criancas nascidas dentro de um espaco de tempo que correspond & morte do Dalai-lama. O sinal decisivo € 0 reconhecimento de objetos que serviram & encar- nacao precedente: a crianca deve escolhé-los entre outros si- milares. O jovem Dalai-lama, descoberto com a idade de quatro anos, € entio introduzido e depois entronizado, mas nao exerce 0 poder antes de seu décimo-nono ano. Assim, levando em conta o prazo de reencarnagio, ha necessariame! te uma regéncia de vinle anos que separa os deis reinados. E, freqiientemente, essa regéncia € prolongada mais ainda. su- ficiente que o jovem soberano morra bastante cedo. De fato, (05 quatro Dalai-lamas anteriores ao décimo-ierceiro morreram antes ou pouco depois de terem acesso ao poder. Para isso 0s interesses dos ambans chineses muito influiram. Um regen- te € mais décil e, por outro lado, ele proprio tem algum in- teresse om recorrer as facilidades do veneno. 4, — A IMPOTENCIA E A REVOLTA DO DECI- MO-TERCEIRO DALAI-LAMA Constituindo excegio, © décimo-teresico Dalai-lama so- breviveu, Talvez em razio de um declinio, sensivel aliés, da influéncia chinesa, O amban j6 se abstivera quando da esco- tha da crianga. Esse novo deus nascera em 1876 e em 1895 foi investido de plenos poderes, ao mesmo. tempo religiosos seculares. O Tibet nessa época no estava mais bem armado do que antes, mas em geral era defendido pela extrema difi- culdade de acesso. © poder de fato do Dalailama revela-se 133 O° possivel diante do afrouxamento da atencdo dos chineses, mas @ inteiramente precério, O jovem soberano aprende isso ra- pidamente, apesar da ignorincia em que o mantinham, de i cio, do afastamento de tudo ¢ de uma educagio de idol, de monge perdido na meditacio. Cometeu um primeiro erro a0 receber uma carta do vice-rei da India pedindo a abertura ‘aos hindus de mercados tibetanos: o Dalai-lama devolveu-a sem téla aberto. caso em si mesmo tinha pouco interesse, ‘mas 0s ingleses ndo podiam suportar a seu lado um pais que Ihes fosse fechado, que corria o risco de abrir-se a influéncia russa ¢ mesmo — segundo se falava — de ser cedido & Rés- sia pelos chineses. O governo da India enviow uma missiio politica, encarregada de estabelecer relacbes satisfatérias com Lassa. Os fibetanos opuseram-se A entrada dos enviados em ‘seu territ6rio. Assim, a missio tornou-se militar: & frente de um destacamento, 0 corone! Longhusband quebrou a resistén- cia e marchou sobre Lassa. Os chineses ndo se mexeram € © Dalai-lama fugiu, mas antes entregou 0 selo governamental a. um religioso de santidade ¢ ciéncia reconhecidas. Os ingle- ses, 20 deixarem Lassa, no impuseram outras condigdes que no a abertura de trés cidades tibetanas 20 comércio, 0 reco- nhecimento de seu protetorado em uma provincia da frontei- a, 0 Sikkim, e por fim que ndo houvesse a intervencio de qualquer outra poiéncia estrangeira no Tibet. Esse tratado definia uma zona de influéncia inglesa, embora por outro la- do reconhecesse, implicitamente, a soberania do Tibet: igno- rava a suserania chinesa. Os chineses proclamaram através de cartazes, em algumas cidades do Tibet, 2 deposic¢go do Dalai-lama, mas a populagio cobriu esses cartazes com lixo. © Dalai-lama morou quatro anos na China, passando da Mon- gélia para 0 Chan-si e, depois, para Pequim: as relagdes do Buda vivendo no Filho do Céu permaneciam durante todo es- se tempo indecisas (0s chineses davam a impressfo de terem esquecido a deposigio) e tensas, O Delai-lama, subitamente, retomou 0 caminho do Tibet. Contudo, no dia em que che- gou a Lassa, tinha um exército chinés em seu encalco, encar- regado de matar seus ministros e de aprisioné-lo em um tem- plo. Retomou o caminho do exilio, dessa vez para o sul. Em pleno inverno, através das tempestades de neve, a cavalo, ex- 134 tenuado, chegou acompanhado dos seus a um posto de fron- teira onde pediu protecao a dois telegrafistas ingleses que fo- ram acordados no meio da noite, Demonstrava assim que, por mais bem estabelecido que seja, 0 poder religioso esta a mer- 8 de um poder real, epoiado na force armada, Ele, por sua vez, s5 podia apoiar-se no cansago e, a rigor, na prudéncia dos paises vizinhos. Os ingleses acolheram de boa vontade esse fugitivo, que no pudera governar, mas sem 0 qual a autoridade era va. Por outro lado, o Dalai-tama, que fora ins- truido por uma amarga experiéncia, viu © partido que podia tirar de um antagonismo entre a India inglesa e a China. Mas superestimou esse fato. O antagonismo entre os vizinhos e a autoridade soberana sio iiteis para a autonomia de um Fsta- do, mas por si s6 nfo podem asseguré-la. Os ingleses, sotici- tados, corresponderam mal & espera ansiosa do exilado. Re- cusaram seu apoio, limitando-se amigavelmente a formularem ‘© voto de um dia ver o Tibet forte ¢ livre do jugo chinés. So- mente as dificuldaces intemas da China (queda do império em 1911) modificaram, por fim, a situagio. Os tibetanos ex- pulsaram de Lassa uma guarnicSo cujos chefes nfo tinham mais autoridade. O amban e o comandante das forgas chine- sas se renderam, O Dalai-lama retornow a capital ¢ retomou © poder apés um exilio de sete anos: soube habilmente man- ter-se nessa situagio até sua morte (1934). Isso distinguiu © décimo-terceiro Dalai-lama, que, tendo sobrevivido, adquiriu a experiéneia do poder. Mas dentro das condigées mais adversas. Nao havia qualquer tradigio que pu- desse guid-lo. Seus mestres the tinharw fornecido conhecimen- tos proprios de um monge, ele nada tinha aprendido além da fascinante e pacifica meditacio lamaica, regulamentada especulagdes minuciosas, por uma mitologia e uma metafisica profundas. Os estudos feitos nas lamaserias tibetanas sto dos mais eruditos, 0s monges primam em dificeis controvérsias. De uma educacdo desse tipo, porém, pode-se esperar sobretu- do que adormeca, em vez de despertar, o sentimento das ne- cessidades.politicas. Principalmente nessa parte do mundo, inacessivel e voluntariamente fechada ao exterior. Principal- ‘mente numa época em que os tinicos esirangeiros admitidos no 135, Tibet cram chineses, que nfo tinham nem o desejo nem a possibilidade de informar. ‘© décimo-terceiro Dalai-lama fez lentamente, mas com uma aplicagao e uma sagacidade constantes, a descoberta do tudo, Aproveitou seus anos de exilio, nunca negligenciando uma oportunidade para adquirir conhecimentos leis & dire- gio do governo, Conheceu, quando de uma passagem por Cal- Euté, onde o Vice-rei 0 récebeu, 05 recursos das civilizagbes avancadas. Deixou a partir de entio de ignorar 0 resto de um mundo onde ele devia desempenhar sua parte. O Tibet, em Sua pessoa, adquitiu consciéncia dos jogos de forcas externos, que no podiam ser impunente ignorados ou negados. Mais precisamente, essa forca Teligiosa e divina, por ele constituida, Feconheceu seus limites: sem forga militar ela nada podia. Seu poder estava tio claramente limitado a soberania interna, 20 Império das ceriménias sagradas e das meditagdes silenciosas, {que ingenuamente ele ofereceu aos ingleses 0 encargo da so- berania externa e @ decisio quanto ao que dizia respeito as relagdes do Tibet com o exterior; internamente, porém, de- viam continuar ausentes. (O Buti aceitara e recebera essas condigées, mas esse pequeno pais do norte da India é um Es- tado cujos negdcios sio pouco conseqiientes.) Os ingleses no examinaram a proposicio: no queriam no Tibet outra influén- cia que nfo a sua, mas queriam direitos que limitassem os dos outros, e no um encargo, Quase sem auxilio e sem forca, 0 Dalai-iama tinha assim de enfrentar 0 resto do mundo, ¢ essa tarefa The era pesada. Ora, “ninguém pode servir a dois senhores". O Tibet, em sua época, escolhera os monges: negligenciara seus reis. Todo © prestigio coubera 20s lamas, cercados por lendas e rites di- vinos. Esse sistema tinha provocado 0 abandono da forca mi- litar. Ou melhor, o poder militar estava morto: 0 fato de um lama ameacar 0 prestigio de um rei tinha retirado desse silti- mo o poder de resistir 8 pressio externa, Ele tinha deixado de ter, para essa finalidade, a forea de atracdo necessécia para a reunigo de um exército suficiente. No entanto, o soberano que, nessas condigées, 0 sucedera s6 0 pudera fazer aparentemen- te: nfo herdara esse poder militar que ele destruira, © mundo das oragdes suplantara 0 mundo das armas, mas ele destrui- 136 ra sem adquitir a forga, Para vencer, tivera de recorrer a0 cestrangeiro, E permanecia & mercé das forgas externas, pois internamente destruira aquilo que oferecia a resistencia, ‘Esses afrouxamentos acidentais, rapidamente zbandona- dos, da pressio externa, e que tinham permitido ao décimo- terceiro Dalai-lama perdurar, s6 tinham podido, no fim das contas, darlhe a prova de sua indigéncia, Sendo o que era, na verdade ele nfo tinha o poder de ser. Na verdade, estava fem sua esséncia desaparecer no dia em que a possibilidade do poder Ihe fosse dada. Talvez. nfo tenha sido 20 nono, 20 décimo, ao décimo-primeiro € a0 décimo-segundo Dalei-lama, com sua_majoria assassinados, que 0 destino tenha sido con- tracio. E a aparente oportunidade do décimo-terceiro talvez fosse sua infelicidade. O décimo-terceiro, no entanto, recebeu- 4 escrupulosamente; receben escrupulosamente esse encargo de um poder que ndo podia set exercida, que estava essei cialmente aberto a0 exterior e que, do exterior, s6 podia es perar a morte, Resolveu entdo renunciar & sua esséncia, 5. —A REVOLTA DOS MONGES CONTRA UMA TENTATIVA DE ORGANIZAQAO MILITAR, Gragas a uma trégua (cansago ¢ depois revotugio da Chi- na) que ihe permitira subsistir e em seguida veneer, o Dalai- lama teve a idéia de dar ao Tibet a poténcia de que o la- mafsmo 0 privava. Foi auxiliado nessa tarefa pelos conselhos de seu bidgrafo inglés, Charles Bell, de fato, como represen~ tante politico do governo da fndia, engajow finalmeate a In- laterra em uma politica amigivel. A ajuda militar direta con- tinuava a ser recusada; inclusive, no se tinha em vista a en= trega de armamento, mas, durante uma missio oficial de um ano, Charles Bell, “em seu nome pessoal”, apoiou 0 Dalai- lama em um esforco de organizacio militar. Tratava-se, pro- gressivamente — em vinte anos —, de aumentar 0 exército de seis para dezessete mil homens! Uma taxa sobre as proprie- dades leigas © monisticas asseguraria as despesas da opera- go. A autoridade do Dalai-lama obrigava os homens mais 137 eminentes a cederem. Mas, se pessoalmente é facil rennciar, se & possivel ainda conduzir ministros e dignitirios, nio se pode, bruscamente, privar uma sociedade de sua esséncia. (o apenas a massa dos monges, mas também 0 povo era atingido. O crescimento do exército, ainda que pequeno, diminufa a importincia dos monges. Ora, no ha nesse pais palavras, ritos, festa, consciéncia, enfim vida humana que no dependa deles. O resto gira em torno, Supondo, coisa pouco provivel, que alguém se afastasse, ainda seria a partir dos Mmonges que obteria seu sentido e a possibilidade de uma ex- pressio. Diante do povo, a vinda de um elemento novo, que no se limita mais a sobreviver — que aumenta —, nifo po- dia ser justificado por outra voz que nfo a sua. A tal ponto 9 sentido de uma agio ou de uma possibilidade era dado pe- Jos e para os monges, que 0s raros defensores do exército o apresentavam como 0 tinico meio de manter a religivo. Os chineses, em 1909, tinham queimado os mosteiros, matado os religiosos, destruido os livros santos. No entanto, 0 Tibet era essencialmente a mesma coisa que os mosteiros, De que adian- tava, respondiam, lutar para manter um principio, se lutar dependia antes de tudo do abandono do principio? Um im- portante lama de Lassa explicava a Charles Bell: “E indtil aumentar 0 exéreito do Tibet; com efeito, as livros o dizem, fe Tibet de tempos em tempos ser4 invaddio pelos estrangeiros, mas eles munca permanecerio por muito tempo.” Mesmo o cuidado que os monges tinham de manter sua posigio e que ‘os opunha & manutencio de um exército (que teria combati- do o estrangeiro) levou-os a lutar em um outro plano. O in- verno de 1920-1921 foi carregedo de ameagas de rebelides e de guerra civil. Certa noite, em diversos locais movimenta- dos de Lassa foram colocados cartazes incitando 0 povo a matar Bell. No dia 22 de fevereiro tinha inicio a festa da Grande Prece, que atrai para Lassa de cingiienta a sessenta mil monges. Uma parte dessa multidao percorren a cidade gritendo: “Venham conosco e lutem. Estamos prontos a dar nossa vida.” A festa desenvolveu-se em grande tensio. Os Gefensores do exéreito e o proprio Bell assistiram a cerimé. nnias feéricas, misturaram-se a0 povo nas muas, comportando- se tcangiillamente diante da tempestade, A mercé de uma ex- 138 citagio que subitamente teria tomado corpo. Sepuiu-se um Pequeno expurgo, excepcional para dizer a verdade, € a rebe~ ligo fracassou. A’ politica militar do Dalai-lama era’ prudente: baseava-se em um bom senso elementar e a hostilidade geral nao podia opor-lhe nada que pudesse ser confessado. A cau- sa dos monges caminhava no sentido da traig&o, mio apenas do Tibet, mas do proprio monaquismo. Chocava-se com a firmeza de um governo internamente forte; estava previamen- te perdida. E nio & seu fracasso 0 que espanta, mas que um primeiro movimento de massa a tenha mantido tio ardoro~ samente. O paradoxo é tal, que é preciso buscar para ele ra- 26es profundas. 6. — A CONSUMAGAO PELOS LAMAS DA TO- TALIDADE DO EXCEDENTE Afastarei, de inicio, ¢ explicagio superficial. Charles Bell insiste no fato de que a religido budista interdita a violéncia € condena a guerra, No entanio, outras roligiSes tém esses Principios, e sabemos 0 que valem, na aplicaczo, os manda- mentos de uma Igreja. Uma conduta social no pode resultar de uma regra moral: ela exprime 2 estrutura de uma socieda- de, um jogo das forgas materiais que a anima. O que d= mo- do evidente comandow esse movimento de hostilidade néo era um escrtipulo moral, mas sim, com grande forca, o interesse dos monges. Esse elemento, alids, esta tonge de escapar a Charles Bell, que fornece sobre ele preciosas informagdes. An- tes dele, sabia-se da importincia do lamaismo: um. religioso para trés adultos do sexo masculino, mosteiros que contam 80 mesmo tempo com sete 2 oito mil monges, um total de duzentos ¢ cingiienta a quinhentos mil religiosos entre trés a quatro mithdes de habitantes. No entanto, a significagio ma- terial do monaquismo € determinada por Charles Bell em da- dos orcamentérios. Segundo ele, a renda total, em 1917, do governo de Las- sa eta aproximadamente (o valor das prestagdes de mercado- rias e de servicos acrescentado 20 da moeda) de 720000 £ por ano, O orgamento do exército por sua vez era de 150000 139

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