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0 dia em que explodiu Mabata-bata Mia Couto De repente, 0 boi explodiu. Rebentou sein win mic, No ca pim em volta choveram pedacos e fatias, graos ¢ folhas de boi. A. carne eram jé borboletas vermelhas. Os ossos eram moedas espa Ihadls. Os chifres ficaram num qualquer ramo, balougando a imi- tara vida, no invisivel do vento. espanto nao cabia em Azarias, o pequeno pastor. Ainda hé tum instante ele admirava o grande boi malhado, chamado de Mabata bata. © bicho pastava mais vagaroso que a preguiga, Fra ‘o maior da manada, régulo da chifraria, ¢ estava destinado como prenda de lobolo! do tio Raul, dono da criagao. Azarias trabalhava, para ele desde que ficara 6rfao. Despegava antes da luz para que os bois comessem o cacimbo! das primeiras horas. 1 Dote que noivo pags ao fbiones da nina pan asnese com ca. Ese valor leva em tons que, «partir do caxamentn, a mulher entregad ma fica de tabalio a ont grupo familia. A cern em ques fz ofetta também chamada de lobolb. (NE _2Uimiade sereltante o orale, Tamben se chama de cacimboo period de anw-em que ‘tempers eae a moder flea mais ima, «invarno (NF) Olhour a desgraca:o boi poeirad, eco de silencio, sombra de nada, “Deve ser foi um reldmpago”, pensou. Mas relimpago niio podia, O céu estava liso, azul sem mancha. De onde saira o taio? Ou foi a terra que relampejou? Interrogou o horizonte, por cima das éryores. Talver o ndlati, 2 aye do rclampago, ainda rodasse os céus. Apontou os olhos na montanha em frente. A morada do ndlati era ali, onde se juntam 1s todos rios para nascerern da mesina vontade da agua, O ndlati vive nas suas quatro cores escondidas e s6 destapa quando as nu- vens rugem na rouquidao do céu. E ente que o ndlati sobe aos cévs, enlouquecido. Nas alturas se veste de chamas, ¢ langa 0 seu vo incendiado sobre os seres da terra. As vezes atira-se no chiio, buracando-o. Fiea na covae af deita a sua rina, Uma vez fai preciso chamar as ciéncias do velho feiticeiro para escavar aquele ninho e retirar os dcidos depésitos. Talvez 0 Mabata- -Data pisara uma réstia maligna do ndlati. Mas quem podia aeredi- tar? O tio, nao, Havia de querer ver 0 boi falecido, ao menos ser apresentado uma prova do desastte. Jd conhecia bois relampejados: ficavam corpos queimados, cinzas arrumadas a lembrar 6 corpo. O fogo mastiga, ndo engole de uma s6 ver, conforme sucede' Reparou em volta: os outros bois, assustados, espalharam-se pelo ato. O medo ecorregou dos olhos do pequeno pastor Nao aparegas sem um boi, Azarias. 86 digo: € melhor nem apareceres ‘Aameaga do tio sopravi-lhe os ouvidos. Aquela angtstia comia. -Ihe oar todo. Que podia fazer? Os pensamentos corriam-The como sombra mas nao encontravam safda. Havia uma s6 solugio; era fugir, tentar os caminhos onde no sabia mais nada. Fugir € mor rer de um lugar e ele, com os seus ealgGes rotos, um saco velho a fa? Maus-tratos, atrds dos bois. Os filhos tiracolo, que saudade deixa O dia em gue explodiv Mabata-bata 5 dos outros tinham direito da escola. Ele niio, nfo era filho. O ser- vico arrancava-o cedo da cama e devolvia.o ao sono quando dentio dele jd nao havia resto de infancia. Brinear eta s6 com os animais; nadar o rio na boleia do rabo do Mabata-bata, apostar nas brigas dos mais fortes, Eom casa, 0 io adivinhavadhe o futuro: Este, da maneira que vive misturado com a eriagao ha-de ca sar com uma vaca. E todos se riam, sem quererem saber da sua alma pequenina, dos seus sonhos maltratados, Por isso, olhou sem pena para o campo que ig deixar. Caleulox: o dentro do seu saco: uma fsa, frutos do djam- balau‘, um canivete enferrujado, Tio pouco nao pode deixar sauda- de, Partiu na diregio do rio, Sentia que néo fugia: estava apenas a co- mecar o seu catninho. Quando chegou ao rio, atravessou a fronteira da Agua, Na outra margem parou a espera nem sabia de que. Ao fim da tarde a avé Carolina esperava Raul 3 porta de casa. Quando chegou ela disparou a afligao: — Fissas horas e 0 Azarias ainda no chegou com os bois. — O qué? Esse malandro vai apankar muito bem, quando chegar. — Nao é que aconteceu uma coisa, Raul? Tenho medo, esses bandidos. ronteceu brincadeiras dele, mais nada. Sentaram na csteita ¢ jantaram, Falaram das coisas do lobolo, preparagao do casamento. De repente, alguém bateu a porta. Raul levantow-se interrogando os olhos da avé Carolina, Abriu a porta: cram os soldados, trés. — Boa noite, precisam alguma coisa? — Boa noite. Vimos comunicar 0 aeontecimento: rebentou uma 3Bodoque, estlingue. NE) 4Frab decor escuts,rnito atilzacdo pars fazer uma especie ée vino. No Brasil conecida coma fame. (A Contos afrieanon ‘mina esta tarde. Foi um boi que pisou. Agora, esse boi pertencia dai. Outro soldado acrescentou: Queremos saber onde extd o pastor dele — O pastor estames & espera — respondea Raul, E voeiferou: — Malditos bandos! — Quanto chegar queremos falar com ele, saber como foi su cedido. F: bom ninguém sair na parte da montanha. Os bandidos andaram espathar minas nesse lado. Despediram. Raul ficou, rodando a volta das suas perguntas. Esse sacana do Azarias onde foi? E 0s outros bois andariam espa- Ihados por ai? — Av6: eu ndo posso ficar assim. Tenho que ir ver onde estd ose malandro. De ¢ ser talvez deixow a manada fugentar-se, Ei preciso juntar os bois enquanto € eedo, — Nao podes, Raul. Oiha os soldados o que disseram. E: perigoso. Mas cle desouviu e meteu-se pela noite, Mato tem subsirbio? Tem: é onde o Azarias condhuzia os animais, Raul, rasgando-se nas micaias" nnciado mitido’. Ninguém competia com ele na sabedoria da tera, Caleulou que o pequeno pastor escolhera refugiar-se no vale. Chegot ao rio e subiu s grandes pedis. A voz superior, oxdenon aceitou ac — Azarias, volta, Azarias! $60 rio respondia, desenterrando a sua voz comedeira, Nadaem toda a volta. Mas cle adivinhava a presenga oculta do sobrinho. — Apareca ld, nao tenhas medo, Nao you-te bater, juro. Jurava mentiras, Nao ia bater: a matardhe de porrada, quando acabasse de juntar os bois. No enquanto escolheu sentar, estitua de escuro, Os olhos, habituados & penumbra, desembarcaram outra margem. De repente, escutou passos no mato. Ficou alerta, 5 Awote nti cs Alica topical, eeerts de ans espinhosos.(N.E,) Cianga, menino. (N.E:) O dia smipue axplodia Mahsta:bete ” Nio cra. Chegowhe a voz de Carolina. — Sou eu, Raul. Maldita velha, que vinha ali fazer? ‘Trapathar s6. Ainda pisava na mina, rebentava-se e, pior, estourava com ele também. Volta em casa, avé! — OAzarias vai negar de ouvir quando chamares. Amim, hd-de ouvir. E aplicou sa confanca, chamando o pastor. Por tris das som- bras, uma silhueta dew aparecimento, — Fis tu, Azarias, Volta comigo, vamos para cava quero, wu fu O Raul foi descendo, gatinhoso, pronto para sultar e agarrar as goelas do sobrinhe = Vais fugir para onde, meu filho? — Nao tenho onde, avé. — Ease gajo’ yai voltar nem que eu Ihe chamboqueie* até partir de Raul alate, Raul, Na tua vida nem sabes da miséria, — ¥, vol- se dos bocados — precipitou-se a vor. raste tando-se pa a o pastor. — Anda meu filho, 96 vens comigo. Nao tens culpa do boi que moneu. Anda ajudaro teu tio juntar os anirnais. — Nav € precio. Os boi sido aqui, perto comigo, Raul ergueu-se, desconfiado. O coragao batueavalhe o peito, Como 6 Os bois esto at? Sim, estao. Enrescou-se 0 siléncio. O tio nao e tava certo da verdade do Azarias, essa cujo momen i abe on se quer omit individuo de reputago maim. (NUE ‘Chanbouesr, war 0 “chamboeo” isto 6 um pedago de mares pareido com um rmateaa, pasa dar amnasurc. (NE a ZA Qa Q BE | NN x Ce Te — Sobrinho: fizeste mesmo? Juntaste os bois? Aavé sorria peusando no fim das brigas daqueles es dois. Pro- meteu um prémio ¢ pediu ao mitido que escolhesse. = O teu tio extd muito satisfeito. Escolhe. Ha-de respeitar 0 teu pedido Raul achou melhor concorar com tudo, naquele momento, Depois, emendaria as ilusdes do rapaz.e voltariam as obrigagdes do servigo das pastagens. — Fala la o seu pedido — Tio: préximo ano posio irna escola? Jéadivinhava, Nem pensar. Autorizar @ escola era ficar sem guia para os bois. Mas o momento pedia fingimento cele falou de costas para o pensamento: — Vais, vais. ‘ verdade, tio? — Quantas bocas tenho, afinal? — Posso continuar ajudar nos bois. A escola s6 frequentamos dis parte de tarde. — Estd certo, Mas tudo isso falamos depois. Anda ld daqui. © pequeno pastor saiu da sombra ¢ correu 0 areal onde 0 tio dava passagem. De stbito, deflageou um classo, parecia 0 meio-cia da noite. © pequeno pastor engoliu aquele todo yermelho, era 0 grito do fogo estourando, Nas migalhas da noite viu descero ndlati, aave do relampago. Quis gritar — Vens pousar quem, ndlati? Mas nada nao falou, Nao era 0 rio que afundava suas palavras era um fruto yazando de ouvidos, dores ¢ cores. Em volta tudo fechava, mesmo 0 rio suicidava sua gua, o mundo embnulhava 0 chao nos fumos brancos. — Vens pousar a avé, coitada, tao bod? Ou preferes no tio, afinal das contas, arrependido ¢ prometente como o pai verda: deiro que morrew-me? Eaantes que a ave do fogo se decidisse Azarias correu ¢ abragoust nna viagem da sua chara Mia Couto nascau em|955, em Beira, Mogan bique. Anténio Emifo Leite Couto ganhou o a ‘do Mia” do irmiio maisnove, Adotou-o por doar gatos - quando orianga, ele ecreditava ser um doles. Antes do ser escritor, Mia Couto cursou ‘medica jornalismo, formando-se em biclogia. Participou ativamente do processe de indepen- déncia de Mogambique e foi un dos composito- ‘es do hino nacional de seu pais, Tom livres pu- biicados no Brasil e em diversos paises, dente (0 quais figuram os remances Um ria chamado tempo, uma casa chamadl ters, Oiiltino voo do flaningo, Terasonémbuta.eolivra de contos 0 fo das missangas, © dia em gue explodin Mabata-bata 2» As maos dos pretos Luis Bernardo Honwana Jando sei a que propésito € que isso vinha, mayo Senhor Pro fessor disse um dia que as palmas das mios dos pretos sio mais claras do que 6 resto do compo porque ainda hi poucos séculos os avds deles andavam com clas apoiadas av chao, como os bie chos do mato, sem as exporem ao sol, que thes ia escurecendo © resto do corpo. Lembrei-me disso quando 0 Senhor Padre, depois de dizer na catequese qui nds nao prestivamos mesmo para nada ¢ que até os pretos eram melhores do que nds, voltow a falar nisso de as maos deles serem mais clara, dizendo que isso era assim porque eles, ds escondidas, andavam sempre de mais postas, a rezar, Euachei um piado tala esa coisa de as mios dos pretos serem Inais clara que agora ver me a nao largar sea quem for enquanto ‘io me disser por que que os pretos tém as palmas das maos assim claras. A Dona Dores, por exemplo, disse-me que Deus fez-thes as aos assim mais clara para nfo sujarem a comida que fezem para 4 os seus patroes ou qualquer outra coisa que Thes mandem fazer € que nao deva ficar senio limpa. O Senhor Antunes da Coca-Cola, que s6 aparece na vila de vez, em quando, quando as coca-colas das cantinas jé tenham sido todas vendidas, disse que tudo o que me tinham contado era aldrabice Clato que nao sei se realmente era, mas ele garantiu-me que era Depois de eu Ihe dizer quesim, que era aldrabice, ele contou entio © que sabia desta coisa das mios dos pretos, Assit: “Antigamente, hf muitos anos, Deus Nosso Senhor, Jesus Cris- to, Virgemn Maria, $0 Pedro, mi que nessa altura estavam no céu ¢ algumas pessoas que tinham tos outros Santos, todos os anjos morrido ¢ ido para o céu, fizeram uma rennifo ¢ resolveram fazer pretos, Sabes como? Pegaram em barro, enfiaram-no em moldes usados ¢ para cozer o barro das criaturas levaram-nas para os foros celes ies, como tinham pressa € no houvesse lugar nenhum, ao pe P do brasido, penduraram-nas nas chaminés, Fumo, fumo, fumo e al curinhos como carves os tens tu agora queres saber por que é se eles tiveram de se ws deles ficaram brancas? Pois en que ass agarrar enquanto 0 barto deles cozia?!. Depois de contar isto, 0 Senhor Antunes e os outros Senhores que estavam & minha volta, desataram a rir, todos satisteitos Nese mesmo dia, 0 Senhor Frias chamou: ne, depois de o Se- nhor Antunes te: ido embora, e disse-me que tudo o que eu tinha estado para alia ouvir de boca aberta era uma grandessfssimea peta’ Coisa certa ¢ certinha sobre isso das maos dos pretos era o que ele sabia: que Deus acabava de fazer os homens ¢ mandava-os logo tomar banho num lago ld do céu. Depois do banho as pessoas esta- vam branquinhas. Os pretos, como foram feitos de madnigada ¢ & Tapaga. (NE 2 Mentrs, (NE) As mitos dos pretos a5 essa hora a agua do lago estivesse muito fria, 6 tinham molhado as almas das maos e as plantas dos pés, antes de se vestitem e virem para o mundo, Mas eu li num livro que por acaso falava nisso, que 0s pretos Mas midos assim mais claras por viverem encurvades, sempre a apanhar o algodao branco de Virginia e de mais nao sei onde, Jase vé que a Dona Fstefinia nao concordou quando eu The disse isso Para ela és6 por as mios deles desbotarem a forga de tio lavadas Bem, eu nao eio que pensar disso tudo, masa verdade ¢ que ainda que ealosas ¢ gretadas, as maos dum preto so sempre mais laras que todo o resto dele, Essa & que é essa A minha mac é a tinica que deve ter razio sobre essa questio d a» mais de um prety serem mais claras do que o re to do corpo. No clia em que falémos nisso, eu e ela, estavathe eu ainda a contar 0 ue jasabia dessa questio ela jé estava fata de se vi, O que achei esquisito foi que ela no me dissesse logo o que pensava disso tud quando eu quis saber, ¢ s6 tivesse respondido depois de se fortar de ver que eu no me cansava de insistir sobre a coisa, ¢ mesmo assim a chorar, agarrada 3 barriga como quem nio pode mais de tanto rir: O que ela disse foi mais ou menos isto: us fez 08 pretos porque tinha de os haver. Vinh de os haver, meu flo, Ele pensou que realmente tinha de os haver... Depois penddeu-se deos ter feito porque os outros homens se riam deles avamnos para as casas deles pata os por a servir como esc ¥98 ou pouco mais. Mas como Ele jf os nto pudesse fazer fear todos braneos porque os que jd se finham habituado a vé-los pretos teclamariam, fez com que as palmas das mios deh ficassem exa- famente como as palmas das mios dos outros homens, E sabes por ae € que foi? Claro que nio sabes © no admira porque muito: ‘utitos nfo sabem, Peis olha: foi para mostrar que o que os hon fazem, € apenas obra de homers... Que 6 que os homens fazer, 6 feito por miios iguais, mos de pessoas que, se tiverem juizo, saber que antes de serem qualquer outra coisa sao homens. Deve ter sido a pensar assim que Eile fez com que as maos des pretos fossem iguais 2s mos dos homens que do gragas 2 Deus por nzo serem preto Depois de dizer isso tudo, a minha mae beijou-me as mis, Quando fagi para o quintal, para jogar a bola, ia a pensar que nunca tinha visto uma pessoa a chorar tanto sem que ninguém Ihe Livesse batido. Luis Bernardo Honwana nasceu om (942, fen Lourengo Marques (noje Maputs), Mogan bique. Jé aos 22 anos, publcow Nis maténos 0 Cao Tinhoso, livro de contos que © consagrou como um dos mais importantes escritores de sou ‘ pais, O engajamento na hua pela independéncia de Mogambiqueo leu a prisdo nos anos 1960. ‘Quase trinta anos depois, em 1990, entio como rinistro da Cultura, Honwana folum dos signat~ ios do Acoreo Ortogyfico daLingua Portugues. A morte é assunto que atenoriza e fascina, De onde chege? Para onde leva? Em *O entero da bicieleta”, « morte invade 0 cotidiano de wma semota aldeia ajricana, Nessa aldeia, um fato ins6lito, porém, é quase maior do que a dor causada pela perda: 0 entero seré de uma hicicleta. Trespassada por unt humor ettrico, com tons de tristeza, a his- tona de Nelson Saiite revela axpectos triviais do dia a diae partic cularidades da cultura africana com algo de fantdstico Dragao e eu Teixeira de Sousa Era ainda menino mas chegata a idade de ja poder ter um cZo. F assim que soubemos, en ¢ o men primo, que a cadela de nha Felismina tinha parido, saimos de abalada para a Achada-Grande para escolher a cria mais bonita. Entrémos ea mulher indieou o recanto do quintal ande estava 1 parturiente. Fomos ver mas 6 restavam dois cachorros, Os outros ‘morreram logo assim que nasceram, disse-nos nha Felismina por andara cadela com o sangue fraco. Os sobreviventes mal se podiam arrastar para sugar as tetas da mie. Bla, muito magra ¢ escanzelada, também pouco se mexia, No entanto, 0 olhar escoava-se cheio de temura das érbitas ossudas, A histéria dela era negra, negra como: por vezes a dos homens Nha Relismina sugeri que deixissemos pasar uns quinze dias, dartempo que os ces se fizessem mais ios. Enquanto no findaram as quinze dias no sainiosdo quintal da velha. Levivainos leite aes bichas, {que depois icavam com a bamriga luzilia come a pele dum tambor. “ Faziamos projetos, eu eo meu primo. O meu havia de chamar- se Dragioe odele Pirolito.O meu dariao cio mais valente da vila O dele seria o rei dos animais. Em cast nio gostaram do eachorro, quando 9 touse da Achada- Grande, Acharam-no nojento ¢ barrigudo. Minha avé até me des- compés, Disse-me que nio tinha gosto nenhum nas coisas. Que nes se ponto nao safra a meu pai. Mas depois compreendi que o que néio queriam era ter animais novos em casa que gritassem toda a noite Na verdade, nas primeiras noites, ndo se pregava o olho, pois 0 bicho gania até de manha, sem um minuto de descanso, Meu pai ameagou duma vex malar 0 animal, Fiquei cheio de medo e com caneor, ao mesmo tempo. E ensinaram-me a dar-lhe leite de noite até se fartar ¢ deité-lo a seguir em cama fofa, Foi remédio santo Nunca mais piou, Fizemoslhe autépsia e uin entero estrondoso. O mausoléu construido por um amigo nosso, dizia: Aqui jaz Pirolito que faleceu em 6 de Abril Com diarreia de sangue RiP. fagiio teve depois uma vida acidentada, Tudo por culpa dele. Veio urn dia, meu pai disse a mesa que era melhor mandar eastrar 0 bicho. Que havia depois de cngordare ficar bonito. Minha av6 sallow do hugar para dizer simplesmente que conhecia um bom capador de animais. Ku perdia fala. Atravessouse-me um né na gargant deraiva, \derevolta edepena, de profunda pena de Dragilo. Queria-o 0 eo mais valenteda vila, capaz de derrubar a todos dam s6 golpe. Nao disse nada ‘nem pude, Mas fiqueithes com uma gana, que até me senti pequeno demais para tamanha ira. A tarde, na escola, nio brinquei a roda da palmeira, 2 pensar na maneira de salvar Drag 10 ds mos do capadbor Dregdo cu 6 Foi:me impossivel! Numa bela manha, estava ainda na cama, chegou Pinoti-Capador. Nio sei por qué, acordara com um mau pressentimento, Mal ouvi a vor. de Pinoli reconhevina logo, ol Olhei-o des pés 8 cabeca. Usava alpergatas, umas calgas velhas de rer trazia uma faca na cinta e um rolo de cordas na mao. tecido estrangeiro, a camisa cheia de remendos e um chapéu preto buracado. Mas a faca, era uma faca americana, de cabo preto e imina estreita e encurvada. Dragio brincava descuidado, correndo atrés das galinhas Quando vi aparecer a familia para assist ao ato, senti o peso do momento, sozinho em eampo, meio desesperado. ‘Tinham todos ar de coniventes ¢ ev esperwva pelo momento fatal. Mal podia ainda discorrer sobre a situacao e pensei entio em tocar 0 cao para fora do quintal. Na altura em que decidi fazé-o, agarraram-me uns bragos enonnes, grossos, cabeludos. Atirei pon tapés, praguejei, fiz 0 diabo. ‘Tinham segurado 0 cio pelo focinho e preparavamse para o ise doidamente. Viram-se atrapalhados com cle. O lago soltou sei ki quantas vezes, Mobilizaramn 0 pessoal todo amarrar, Dragio agito € era quase um exérvito de gente & roda do desgragado. Em qua- tro ocasides 0 vi perdido, Quatro vezes o vi escapo. Nisto, Pinoti- ‘Gapador afastou-se bruscamente com um dedo mordido. Quando reparci em Dragito, que pulara jd para o muro do quintal, nem sei 0 que senti de alivio e de alegria. F.assim se livrou de ser castrado, Fomos crescendo os dois, mas ele mais do que eu A primeira briga que teve foi no largo da Praga, com outro cio a mesma idade, chamedo Vuledo, Estiveram embrulhados quase uma hora. Vuledo era forte, corpulento, mas ura nada mais baivo, Deitou-sethes terra, deitou-sethes égua e s6 com muita dificuldade se consegui separé-los, Desde eniaio ganharam fama ficaram-se 6 Contos afticanos com um édio tremendo, um pelo outro. Passado esse dia tiveram vi rios encontros, Na impossibilidade de saber-se qual era 0 campezo, ham igual respeito por ambos. Na Vila-Alta ‘quem mandava era Drago. Na Vila-Baixa imperaya Vuledo. Na véspera de fazer 0 exame d com o Frank, que também trazia 0 edo dele por uma corteia, Se houvesse ali testemunhas, ficaria o assunto arrumado para sempre. FE que vi nitidamente 0 Vuledo estar a torcerse para o lado do dono. ‘os eaes da Vila mani 22 gray, encontret-me na rua Frank disfarcow a coisa muito bem, procurando conter 0 animal gue estava mais era cheio de medo. F disse que ia com pressa com: prar senhas para gua. Vuledo tremia de susto a frente do rival Frank foi também examinado no mesmo dia, Eu fiquei Bom ele Suficiente. A familia dele andou dey gostava do menino e por iso foi que s6 Ihe deram a classificagiio de Suiiciente. E que era inferior ao Frank mas em tudo, Em intelige em familia € em educagio. Reparassem depois qual dos dois havia de ser doutor. Brevemente o menino ia seguir para o melhor is espalhar que o jiri nao colegio de Lisboa. $6 0s filhos de pessoas bem relacionadas podiam frequentar ese colégio. Frank estava nessas condigies e na realidade seguir no tardou que eu © 08 outros no vistemos, com certa i (0 nosso companheino de escola para o tal calégio de Lisboa. A Escola! Nao me queria convencer de que tudo tinha acabado. Nao mais as lig Nao mais os livros de leitura com treches bonitos que eu lia em vor alta, “Marilia e Goncalves passeavam numa tarde, 2 beira do rio, quando Marilia se descuidou ¢ cai a dgua. Congalves atirou-se ao rio, salvando Marilia de morrer afogada.” “Luis de Camdes salvara jes em classe € as brineadeiras a roda da palmeira. (05 poemas lutando com as ondas.” Ero tum mundo de coisas belas. Os herdis, as gverras, 08 coragai Jbondosos, ov sibios que descobriram vacinas;e eu sabia tudo na pont Dragan ¢ ew a da lingua. A profe No intervalo, essora falava com brandura ¢ ensinava sem bater, mandava-nos sair © ficava a falar com 0 médico que todos os dias, a mesma hora, ali estava A porta & sua espera Um colega nosso disse-nos que 0 doutor andava a namorar a mestra, Acreditémos e descobrimos a razaio por que todos es dias, tinhamos o intervalo dle um quarto de hora ‘Todos gostivamos da D. Alda. Sabia jogos engragados, era alegre ‘e muito nossa amiga. A mim s6 me castigou uma vex e foi com ond do dedo. Tinha-nos passado um desenho para fazer. Depois andou pelas cartciras a corrgir 0 trabalho. Chegou av pé de mim ¢ esta- cou. Desconfiado, olhei para cima, mas ela sorria um soctiso bom de verdade “O Home, isso parece mais é uma banheira” — disse- -me ela. Na realidade, queria desenhar uma chavenat ¢ saiw uma banheira. Entio sentouse ao meu lado para me ensinar a fazer uma xicara. Passo me o braco por cima do pescogo para me agarrar a jo com que eu segurava o lépis. Os meus dedos sob os dela iam € vinham no papel branco. Foi conversando comigo, a explicar-me com muita paciéneia o desenho, mais um trago aqui, mais ontre ali € agpra a alea, depoiso pires e eu para o fim s6 ouvia una voz muito ‘mansa ao pé do ouvido. Deixei-me estar assim nfo sei quanto tem- po. $6 acorde’ quando senti uma pancada no cocuruto da cabeya, { para nao ser distraido.” Foi com on6 do dedo. A classe esbogou ume gargalhada mas ela ameagowa com um chiu! Tudo se calou, Eu cogavaa cabega olhando para ium lado e para outro, A Escolat ‘Tudo se fora, Queria estudar mais, Queria continuar 2 aprender os oceanos ¢ as capitais da Europa, Frank era bem mais feliz do que en. 14 seguira para o tal colégjo de Lisboa. Quando chegon o més de Outubro e vi claramente que is havia mais escola para mim, tive uma ideia que me encheu de Xian. (UE) a Contos afrieanos alegria, Fui pedir & minha professora para me deixar continuar a estudar, Ela achou muito bem ¢ disse-me que fesse todos os dias para a ajudar a lecionar os meninos mais atrasados, Voltei radiante para casa e conte’ A minha mie. Max meu pai no concordou, Nao, senhor. Jé tinha idade de comecar a trabalhar a sério, Que The fazia muita falta na loja, pois precisava dum ajudante de confianga. Expliqueihe que gostava de continuara estudar, mas cle disse que nio, que no valia a pena. Nunca mais apareci aD. Alda, Quando a via, fugia para ela na me tocar no assunto. Entrei para a loja como ajudante. Levava 0 dia a pesar dois tos- tes de agticar, cinco de arroz e meio tostdo de sal. Por vezes enga- nava-me no peso. E lA vinha uma repreensio de meu pai. A nossa loja ficava num largo ¢ ao centro havia uma acéci enorme, plantada hié bem uns cinquenta anos. Entio uma ma- inhi, da porta da loja, presenciei nm facto cnrioso. A Camara dera ordens para serem presos os cies vadios e registados os que tinham dono. Fui des primeiros a mandar registar o meu. Nessa manha, i, havia pa da vida, Mas s6 Dragio trazia a chapa do registo. Xalino € Chi: chiti andavam por aquelas redondezas.a apanhar ces. Assim que vviram os homens rasparam-se que nem foguetes, menos Drago a sombra da acai 1ra af uns seis ces 2 solta, satisfeitos que continuou pachorrento ao pé da drvore. Meu pai comegava a gostar dele quando duma ocasiao se atirou um edo de gesso que havia na sala ¢ dertubow uma mesa com Fotografias, Quem pagow as favas fui eu. Heavia perfodos em quese ausentava de easa, emagrecia, que fie vvana espinha, Juntava-se & cadela da nossa vizinha, acompanhandora dias seguidos em que pouco comia, Ninguém o fazia afastarse ao pé dela. Nem eu. Bastavalhe ver aproximar alguém para ficar a rosnar Dragéo © ew 9 € a querer atirarse. Jack, o nosso criadlo, esteve quase a ficarlhe nos dentes. Brandiu o pau a tempo. A seguir ao incidente, reparci que © cdo andava a trés patas, Estando deitado, viase-lhea pata inchada e eformada. Mas Dragao era altivo, orgulhoso, soberbo na sua fora, Nunca dava o brago a torcer por maior Ihe fosse a despraca, Para mim, nfo era apenas um animal de estimagdo, era um amigo mais velho que admirava, apesar de mais novo. Era independents e ge- ‘neroso para com 0 companheiros miseraveis. Nao lhes tocava, Fra bem diferente do Vuledio, como a noite do dia, Minha prima Olivia adoecera gravemente da garganta. O M& ico aconselhou a familia a mandé-la para o hospital de $. Vice {e, pois precisava de ser operada. Ficou tudo muito triste. Fu nao fiquet menos. Os olhos pareciam de fogo eas maneitas, entio, prendiam uma “la tinha uns cabelos que Ihe eafam pelos ombros. ceriatura ao pé dela, Foi a minha primeira paixdo. Dragio andou cabisbaixo, pensativo mesmo, no dia em que em= barcou Olivia. A noite nao preguei o olho ¢ ouvi-o uivar na escurie dio. Nem luat havia. Espercimos um mis, més ¢ meio, € nunca mais soubemos naa do navio. Foi horrivel. As familias dos passageiros viveram horas atto- es, na esperanga dalguma noticia. Atéhojel O barco possivelmente saltou de rumo e foi navegando por égua abaixo engu nto as pessoas morriam a fome, tal como as vezes acontece em terra, Ou talver fossem engolidas pelo oceano, pois o navio era velho. Durante esse perfodo infeliz da histsria da nossa familia, o meu tio também ia no veleito, Drago pareceu © niio ter feito nada que nao fosse comer dormir. O mundo para ele parara e para nés também. ‘Com quinze anos, j4 podia tomar conta do negécio € meu pai ficaya assim com o tempo livre para tratar da propriedade do Norte. Entregue nas mfosdo guarda, nao dava luctos nenhuns. Em anos de 50 Contos africonos muita chu: de milo no pilao, que nunca parava de bater. Isto dizia meu pai Recebi a noticia com alvorogo pois brevemente ia fazer-me ho- mem, independente como Dra {ei queo clo me era entio mais submisso quando chamava por cle armavam batuque ali dentro e destrogavar as espigas do. A vor tornara: Me grossa € no- Para comemorar a resolugao de meu pai, fomos a festa de Nessa Senhora do Socorro, a cinco quilémetios da vila. No regresso to pdmos com ur Dragao sain a correr atrés dos a rebanho que pastava num terreno negra de lavas imais como um louco. pouco 'empo pés o rebanho em debandada, Lé longe, numa nuvem de pocira, vi-o sumirse que nem bala, No dia seguinte nsio vendi nada. Perguntei a toda a gente por Dragao. Andet um ror de dias a pensar nele. Com certeza que o mataram, Minha sossego, Hscrevi para todos os cantos da ilha e ninguém me soube fe tinha palavras de esperanca, Eu niio tinha informar, Comparei o desaparecimento do cio com o horrivel caso do veleiro de que munca mais se soubera a nova, Pabre Felizmente nao tardou que a minha vida retomasseo rumo nor- mal. Numa bela manha, quando a eriala se Jevantou para pilar zinha. Pulei dum golpe da cama. Mal se mexia de cansado, cheio de sede ¢ de fome. Olhou para mim com insisténcia, Nao se podia ter em pé cu z, deu com o Dragio estirado a porta da ¢ Lombrei-me de quando ele era pequeno e a custo se arrastava para chupar o leite da mie, Assim que se pos bom, procurou a cadela da nossa vizinha para andat algum tempo na md vida. Minha avé disse que Dragio ve no fim de trés dias recuperou as forcas parecia com 0 marido dela, que Deus tinha. Apropriedade do Norte passou a dat lucros mas, poroutro lado, © negécio ia mal. Prevendo que meu pai me atributse a culpa, trate’ de montar uma everita nova onde viesse tudo completamente Dragao «eu 51 discriminado. Informei-me da atividade das outras lojas © pedi a um amigo, qu stava na alffnclega, para me por em dia com as im= portagdes, Un nana inteira nao me preocupei com mais nada senddo com a organizagio da minha defesa. Pressentia o temporal. Jano horizonte via farrapos de nuvens agoitados pelo vento. E a tempestade chegou. Meu pai mandou fechar a loja para falar comigo. Que famos fazer 0 balango do ano, Do segundo ano da minha atividade no comércio. O primeito fora razosvel Aprontei a papelada com toda a par do espitito, Trabalhamos para af umas trés horas, No fim foi o diabo. Que nao zelava pelos interesses da casa, que era assim, que era assado, Que tinha sido informado das minhas passeatas a noite. K se supunha que era jd homem, andava muito mal enganado, Se se ano. Meu pai, furibundo, no atendia a nada, Repeti a tentativa de liq que nao prec aha confianca nos meus bragos. E saf pela porta fora que nem umn no tentei explicar com pormenores todo o movimento des falar sei las vezes. Finalmente gritei a plenos pulmées wa de ninguém. Que me cansiderava homem c ti Jembro que nos primeiros minutos tive medo de ter enlouquecido, A tarde, quando me voltou a calma, cheguei 3 con- clusio de que eu € que tinha razdo. Abandonei a casa tal qual as vezes fazia Dragao. Minha mae pés Jack atrés de mim com recados hos. Na verdade a tinica pessoa de quem tinhe pena era dels, Mas a resolucao estava tomada e ngo voltaria quisesse ver, fosse d casa da tia Adélia ia dormir no quarto do men primo ¢ a comer do que me € muitos cons alras, Se me mandavam de casa pelo Jack. Drago fugiu também ¢ veio morar comigo. Deu-lhe para acompanhar-me para toda a parte. Parecia que tinha criado juézo, Contos «fricanay Arranjei um lugar nos correies que me dava trezentos escudos por més, Dava para vestir e calgar, Em trés anos que me achet entregue a mim mesmo, softi uma destas transformagées que s6 Deus sabe. Nem mesmo na fase em que pouco faltou para ganar o vicio do jogo me submeti aos con selhos de outras pessoas, Passei a contar comigo e s6 comigo. Tor- netme rebelde ¢ havia noites que no me vinha deitar a0 quart. Metia me com as crioulas de Fonte exo, aguentando-me nos bai- Jes até o riscar da manhii, Os mogos da Bragal eram duros nos seus passarnoites. A coisa acabava sempre com paneadaria ¢ tudo por questies de raparigas. Apagava-se 0 candcciro ¢ ouviam-se depois cantar os varapaus nas costas dos convididos. Ao menor indicio, safa eao largo assistia 2s brigas sem dono. As mulheres fugiam espa~ voridas e os maches de verdade fincavam-se no chao ¢ esperavarn pelo que desse e viesse, Ai do covarde que se lembrasse de abrir uma navalhal Ficava logo ali a dormir para sempre: Em pouco tempo me equiparei ao meu cio, em desenvoltura, em altivez € em atos de independéncia. Cortei com o jogo no dia em que tive uma briga com 0 empregado superior dos correios Chamou-me batoteito, ilho indigno, espirra-canivetes ¢ uma série de caliinias, Embrulhamo-nos ca fora, mas veio gente € apartou= -nos, Deixe-o em misero estado, Nunca mais lé pus os pés. Naquela noite no pude dormir e resolv entio ir tomar o freseo para o largo do Presfdio. Ou fosse do calor, ou fosse da briga, no conseguia conciliat 0 sono. Enfiei as calgas, vesti uma camisa e sat No Presidio, debrucei-me co parapeito que deita para o mar 14 em baixo as ondas rebentavam barulhentas. O eco na rocha era como que tambores rufando, A areia negra, a orla leitosa do mar quebrando, a tocha cortada a pique, era-me tudo to estranho nae {quela noite! Por momentos esqueci-ine dos Lrezentos escudos por * Comios afrieanos ids, da briga com o funcionirio superior ¢ das dificaldades que ia ter para me vestir, calgar e fazer face a outras despesas Comecei a enrolar um cigarro. Procurei 0s fésforos na algibeira, nao trazia, Vi ao longe um ponto aceso, andando. Aproximetne. Era um pescador que vinha chupando pelo eachimbe. Acendi 0 cigarto ¢, quando the perguntei para onde ia, 0 homem néio me respondeu, Levou a mio ao chapéu de palha ¢ seguiu com 0 ca- chimbo ao canto da boca ¢ a cana de pesca ao ombro. ‘Tornei a0 parapeito, L4 para as bandas da Brava piscava o farolim de um bar- co, Aparecia ¢ desaparecia, cinblando como uma estrela. Era sex 2.0 farolim de um barco demandando o ponto da Fura. As ondas, rebentando, faziam eco na rocha. A areia estendia-se negra até a ponta da “Barca-Balecita’ Aproximava-se a madrugida. Os galos da Vila cantayam ali € além. ar quente de Junho acariciava e o farolim do navio conti- rnuava piscando no horizonte, As velas bambas pela calmaria, ora acendiam, ora apagavam a luz de navegagao. Comecei a sentir sono, Ao mesmo tempo no me apetecia ir para casa. Resolvi entio descansar um pouco sobre o banco escava- do no parapeito, As estrelas riseavam 0 eéu em varias diregdes. Os galos irrompiam cm coro que se prolongava para 1é da Vila como que descendo em escadaria, cada vez. ouvindo-se menos alé se mir por completo, Ja nao se ouvia nada, Pararam de ver. de cantar. As estrelas deixaram de risear o céu. Era uma escuridao completa, 6 sabia que havia mais gente na sala e dangava-se mansamente. Ea trazia a Guida de Fonte-Lexo apertada ao peito. famose vinha- mos ao som de uma moma®, Nao se via nada e a morna parecia nio ter fim, Depois a nfo era a Guida, Era a Olivia, minha prima. Mas 2 Tipico nero de ndsca cabo verdana, s moma normalmente &cantada, acompanhada por instruments de cons ¢dangada as pares em itr lente ov mederado NE Drag: cla ha muitos anos que tinha desapareeido num barco. Nao podia ser, Respondewane que nao, que tinha voltado para me vir busear, E sea gente no chegasse a S. Vicente como eles? Por que é que no havfamos de chegar, se eu ia também no navio — insinuow com ar enigmético? Nao és corajoso! ‘Tens medo! Vamos embora antes que acendam a luz! Acordei de repelo com um contato timido na cara. Ergui a ca~ deca, era Dragio que tinha ido ter comigo. Levantei-me estremu- nhado, Olhei ¢ o Sol despontava por tris da serra, Dragio ladrou para ts burros de carga que passavam. Segurei-o pela caleira e 08 machos ld se foram, 2 fiente do carretci. © barco ali estava a0 largo, fixo no ponto onde horas antes tre meluzia o farolim. Irazia uma saudade grande no peito, wna expé- cie de remorso de ter adormecido ou outa coisa qualquer que nao conseguia explicar amim mesmo, Acordei na verdade com a alma: constrangida ¢ se fosse mulher, talvez chorasse. Olhei de novo para o bareo que estagnava no meio da calmaria. As velas, areaclas 4 meio mastro, bamboleavam frouas de estiborlo a bombordo, Estava perto do porto da Vila ¢ era natural que funcleasse. Tinha absoluta necessidade de falar com a Guida de Fonte -Lexo, Procurei-a a tarde. Estive com ela no dia seguinte. Era uma mulata gostosa. Prendia com a sua frescura, Dragio fezse grande amigo dela. Mas o pior & que estava desempregado, Precisava de ganhar dinheiro, A propria Guida me disse que nao tinha 1oupa @ ficaria contente se Ihe arranjasse um vestido. Tratei entio de falar com o secretitio de Fazenda para me arranjar umas avaliagoes Felizmente consegui, niio sem ouvir alguns conselhos do seeré= tirio, Que me procurasse portar bem para ver se destrufa a ma ime presstio que havia a meu respeito. Achei bem nio ripostar e aceite a incumbencia de sair pelos campos, fazendo avaliagdes de prédios - Contos afcicanpe Bu ¢ 0 Dragio fomes companh ‘ros insepariveis nas jomadas para o interior A prinefpio caminhou tudo muito bem, mas depois comecei a notar o ambiente host que me rodeava, Duma ocasiso, apedrejaram-me na estrada ¢ por acaso Dragio coneu atris do. ho- ‘mem que se agachou por tris de um tamarindeiro, Em parte dava razao aquela gente, Fsperavam ansiosos pela chuva, que no vinha, Mesmo que chovesse, era jd tarde, Compreendia que situagiiose tornava cada dia mais dificil e eu tinha que trabalhar de qualquer for- ma, Dragfio de vez em quando espetava.as orelhase panha-se a farejar por todes os lados. Eu sacava da pistola ¢ parava a cavalgadura, Depois continuaya estrada fora, sempre atento as pessoas que passavam. De regresso tinha 0 amor gostoso da Cuida. Minha ti «que eu andava ligndo a uma rapariga de Fonte-Lexo. Falou con soube igo quase em segredoe com muito receio que dsparatasse, Sea minha mae soubesse, teria grande desgosto. Que atentasse nos homens que se amigavam com mulheres dessa laia e que nunca mais se libertavam dos seus bragos. Nao fizesse uma coisa daquelas porque mais tarde me havia de anepender. N 9 me lembro do que Ihe respondi mas 0 que € certo é ela nunca mais me ter tomado a falar no assunto. As avaliagGes acabaram e tudo depois seguiu 0 caminho que ja se esperava. AVila enchia-se de gente que abandonava os campos sem agua. Vinham esfarrapados, magros, com chagas enormes fedendo a podti= dio. As maes traziam os filhos pequenos a cabeca, em grandes balaios. Parayam a porta dos sobrados e mostravam os cestos de cartigo onde se viam olhos gulosos emergindo de carinhas murchas de fraqueza, Deambulavam pelas mas num cortejo de tristeza e desespero, Pinoti-Capador moreu inchado, a bi \car com uma pedra. Perdiam 0 jufzo e ficavam que nem umas erizngas, Os men Diragde's eu 7 ganhavam rugis e pareciam uns andes velhos, De noite recolhiame -

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