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I O FASCINIO DA INDIA (A VIAGEM DE VASCO DA GAMA NA LITERATURA PORTUGUESA) Maria de Fétima Marinho Introdugio A primeira viagem de Vasco da Gama a india, pelo que Tepresentou no ambiente sécio-politico-econémico e cultural da época, desenhou-se claramente como uma potencial gera- dora de mitos, além de ter indubitavelmente sido um funda- ‘mental motor de modificagdo de costumes, saberes e menta- lidades. Um Roteiro da viagem, escrito por um dos seus participantes’, deixa um ponto objectivo de partida, quer para estudiosos, interessados apenas nas vicissitudes do percurso, quer para poetas ou prosadores, que dele queiram tirar elementos para explicar 0 fenémeno criudo no inconsciente colectivo nacional. Se Joo de Barros, nas Décadas, apte- senta um historial no s6 da viagem, mas também da per- ‘manéncia portuguesa na india, com seus problemas adminis- trativos e militares, Camées, em 1572, a0 publicar Os Lusiadas, abre caminho a estruturagdo de um mito que ultrapassa a simples descoberta, para favorecer a criago de uma ideologia baseada na grandeza iniguatével do povo portugués. A pro- pria incluso da mitologia, inquestionavelmente ao gosto da €poca, funciona de molde a atribuir qualquer contratempo a imtromisso de deuses adversos, como Baco, no aparecen- do nunca os portugueses como culpados de menor prudén- "CE, Roteiro da Primeira Viagem de Vasco da Gama, Apresentagao & notes de Neves Aguas, Lisboa, Publicagdes Euroa-Amésca, 1987, 0 de Barros, Décades,selecgo, preficio e notas de AntGaio Baio, Lisboa, Live Sida Costa Ed, vols, 1982 © 1983, 9 cia ou amedrontados por qualquer fenémeno natural. Se medos hé € porque os deuses do Olimpo assim o deter- minaram, ¢ se a chegada a india ¢ bem sucedida € porque YVénus nunca abandonou a frota, Tal contexto acentua 0 ca rdcter épico da narrativa, retirando aos marinheiros © seus comandantes a fragilidade prépria do ser humano. ‘Uma glorificagio de tal indole criow um espirito préptio, propenso a suprir alguma falha do ego nacional, como foi o caso do trauma causado pelo desasire de Alcdcer-Quibir, em 1578, € a consequente perda da independéncia, dois anos depois. Nao tendo a Restauragdo, em 1640, inaugurado uma época de grande Jendor, mas de dificuldades que se foram acumulando até a0 desastroso e decadente sSculo XIX, é natural que a meméria do naior feito da Hist6ria portuguesa, acrescido com a imortalizacaio «que the conferiu Camécs, se tenha revelado como material pro- pico de aproveitamentolitertio, numa época em que 0 passado se revela to importante. Com efeito, & no inicio do século XIX que 0 romance historico teré uma grande fortuna, devido a variad{ssimos fenémenos que vio desde a crise de identidade criada pela Revolucio francesa e pelas tendéncias hegeménicas de Napolio, a0 aparecimento do estudo cientifico da His- Loria, baseada em documentos ¢ nfo em lendas ou su- perstigdes. Antes de passarmos ao estude dos romances fazer um paren: que versam a viagem do Gama, convi tesis para estabelecer uma definigiio 0 mais rigorosa pos- sivel do romance histérico € suas caracteristicas no sé- culo XIX. 10 O Romance Histérico Tradicional Walter Scott, naquele que € considerado, pela generalida- de da critica, como o primeio romance histérico, acrescenta, ao titulo Waverley, 0 seguinte subtitulo: tis sixty years since. ‘O hiato de sessenta anos marcaria assim a distanciagio suficiente ‘io S6 para criar perspectiva critica, mas também para afastar (© momento da enunciagao (que idealmente seria também, 470380 modo, 0 da leitura) do tempo em que decorre a acgio. ‘Avrom Fleishman, no seu clissico estudo sobre o romance hist6rico inglés, poe como condligdo a existéncia de pelo menos duas geragbes entre a escrita do livro e momento cronolégico do enredo’, acrescentando que € tacitamente aceite a necessi- dade de haver referéncia a acontecimentos ou pessoas reais para criar uma certa ctedibilidade®. E este compromisso que permite afirmar a inexisténcia de romances histéricos ante- iores a Walter Scott, mesmo se a diegese se passa em épocas recuadas. * Ch, «Everyone knows what a historical novel is perhaps that is why few have volunteered to define it in print. In such a ease, dhe most petsasive way of defining the subject is not by emphasizing one oF more ofits max nifestcharseteristies, for these are so widely assumed that it wold be foolhardy to lesslate among thesn. Most novels set in the past ~ beyond an arbitrary ‘number of years, say. 40.60 (ewo generations) ~ ae liable to be considered historical)», Avtom Fleishman, The English Historical Novel ~ Walter ‘Scot 10 Virginia Woolf, Baltimore and London, The Jotins Hopkins Press, 1971,p3. CE, idem, p3: Regarding substance, there isan unspoken assumption ‘thatthe plot mastncludea number of historical” evens partielarl thse ia the bli sere (war, politics, economic changes, te), mingled with and seeing the personal fortunes of the charscters.» u Como deixa antever Harry Shaw, logo nas primeiras paginas de The Forms of Historical Fiction‘, 0 romance hiistorico pode, a nivel do proceso narrativo, nfo se afastar ‘muito dos outros tipos de ficgo, sendo exactamente a soma de determinado némero de ingredientes que Ihe conferem carac- teristicas inequivocamente distintivas “Genero hibrido”, chamou-lhe Michel Vanoosthuyse*, na me~ dida em que é préprio da sua essEncia a conjugacio da fieciona- lidade inerente a0 romance, e de uma certa “verdade”, apaniigio o discurso da Hist6ria: «le roman historique ne trouve de égitimité qu’a éue 'abord substantif ou d’abord adjectf, d'abord “roman” ‘ou d'abord “historique” I ii faut éte “fid&le” & Vhistoire ou, au ccontraire, lui faire des infidélités au nom de cet objet supérieur ‘qu'est la poésie.»” Espartthado assim, entre a liberdade de roman- cista eas limitagdes do historiador, o autor de romances hist6ricos deverd assumir essa fundamental ambiguidade, visando, através da representago de factos objectivos a respectiva transcendéncis*, 7 Hanty Shaw, The Forms of Historica! Fiction — Sir Walter Scot and His ‘Successors, Ithaca and London, Coznell University Press, 1983, © Ch, Michel Vanoosthuyse, Le Roman Historique Mann, Brect, Dain, Paris, PUR, Perspectives Germanigues, 1996: » Idem. pls * Chien, pp.16-17:«C extn que pourcerins praciens ou thorcins, le roman historique a por justification de vier, & ravers Ia repésentaton des fats objects, une tanscendance dont is sons rele.» R estabelecendo uma relago metaférica com modelos arquetipicos’. Apesar de logo no século XIX terem aparecido estudos sobre 0 romance histérico, a verdade & que € j4 no presente século (1937), que é publicado o primeiro grande ensaio sobre © género em causa, Refiro-me, evidentemente & obra de Georges Lukaes, Le Roman Historique. Embora fortemente marcada ela ideologia marxista, 0 que a toma de certa forma datada, em alguns aspectos, nfo podemos aludir as caracteristicas de textos como os de Scott, Herculano ou Garrett, sem nos valer- ‘mos dos preciosos ensinamentos de Lukacs. Segundo este autor, a obra de Scott seria a grande continuadora do romance social realista do século XVII, trazendo como inovagao a pintura de costumes ¢ de acontecimentos, 0 cardcter dramético da acco € a importancia do dilogo. Condigdes sécio-politicas precisas como a Revolugéo Francesa, a ascensiio e queda de Napoledo ‘ou as convalsSes do inicio do século XIX, contribuiram, de acordo com 0 mesmo estudioso, para o aparecimento de um énero romanesco proprio e que se afasta radicalmente de obras pretensamente afins do século anterior. Falando raramente do presente, Scott significa-o atra- vés da figuragdo literdria de épocas passadas”, contribuin- * Ci, idem, p42 «Cente mise en intrigue aimite pas Penchainement des <événements dela éalité historique, mais établit une relation métaphoique ave ‘es modes archtipaux.» CF, «Walter Scot pare ts rarement dt présente sulzve pes dans ses romans les question sociales de ”Angletre contemporaine. la ltt de elas Ses entre bourgeoisie et proléariat qui commence 8s intensifier Dan la mesure obi ex capable de répondre a ces questions pour humm, i efit bat fe bias de Ia figuration hitéaire des plus importantes tapes de toute I'histoire 6 Angletere», Georges Lakes, Le Roman Historique, opcit, p33. 3B do para uma certa faceta didéctica to a0 gosto dos romanti- cos. A ideia de que um bom romance hist6rico ensinava mais do que um livro de Hist6ria, preside a grande parte do nosso século XIX ¢ principio do XX, chegando Herculano a afic~ ‘mar que Walter Scott ou Alfred de Vigny ensinam mais do {que 0s historiadores: «Quando o caracter dos individuos ou das nagdes € sufficientemente conhecido, quando os monu- mentos ¢ as tradigdes, € as chronicas desenharam esse carac- ter com pincel firme, © novelleiro péde ser mais verfdico do is habituado @ recompor que © historiador; porque est 10 coragio do que é morto pelo coragio do que vive, o génio do povo que passou pelo do povo que passa. Entio de um dicto, ou de muitos dictos elle deduz um pensamento ow muitos pensamentos, néo reduzidos 4 lembranga positiva, do traduzidos, até materialmente; de um facto ou de mui- tos factos deduz um affecto ou muitos affectos, que se nao revelaram. Esta € a hist6ria intima dos homens que jé néo so: esta € a novella do passado. Quem sabe fazer isto chama-se Scott, Hugo, ou De Vigny, ¢ vale mai mais verdades, que boa meia-dizia de bons historiado- e conta Concepedes semethantes tem Arnaldo Gama, romancista dda segunda metade de oitocentos, quando afirma que grande puiblico 18 com mais facitidade um romance do que uma obra Alexandre Hereulano, «A Velhicen, in Panorama, o°170, WR/E840 € Scenas de Un Ano da Minka Vida e Apontamentos de Viggen, coordenasio © prefacio de Vitrino Ness, Lisboa, Bertand, 1934 4 cientifica®, Esta espécie de “ingenuidade” ditou, com certeza, a observagao de Tolstoi no posticio de Guerra e Paz, referida Por Gilles Barbedette, em L’Invitation au Mensonge: «ft est touchant de voir que chez un romancier classique, comme Telstoi, la vérité, vers laquelle tout son art tend, n'est jamais: ‘une donnée brute et intangible, Liembarras méme que suscite ce probleme chez Tolstoi a dicté Ia savoureuse postface de Guerre et Paix 00 V'auteur explique que les historiens ne savent as écrire histoire et que souvent ils la déforment par manque de sources ou de point de vue. Le romancier, conclut-il, est Ie ‘Vétitable historien. (.,.) La seule naiveté de Tolstot était de croire que sa vérité romanesque constituait LA vérité histo- rique.»"* Curiosamente, o italiano Alessandro Manzoni, ji em 1850, consegue manter uma distanciagio critica em relago a0 cardcter didéctico e veridico do romance: «Quante volte 8 stato det, ¢ anche seritto, che i romanzi di Walter Scott erano pitt veri della storia! Ma sono di quelle parole che scappano @ un primo entusiasmo, ¢ non si tipetono pit dopo una reflessione»'", Cr, «Quera..quria wna novel, um romance histrico, que toda 8 _ente Jesse, qu toda a gente quisesse lr; porque enti, meu caro amigo estou onvencido que & manera de ensnar a histia Agueles que nose aplicam #08 livros, iqueles cojaprofissio os arreda de poder Fazer estucos sriose seguidos € ‘oromanceéla,dilogando-a,e dando vida a época, dando Vi aos personages, dando vidas locaidades(.)», Araklo Gama, Movin Hd Cem Anas Boo, Lie Simfies Lopes de Manuel Barvirs Ba, 1949 (Ie, 1861), pp! Giles Barbedete, L'Unvitation au Mensonge- Essai sur le Ran, Pa tis, sais Gallimard, 1989, pp 24-25, Alessandro Manzoni, «Del Romanzo Storico e, in genere, de" componiment i storia dinvenzione», Tate le Opere, Vo. Secondo, Milo, Sanson Ed, 1993. p 176, Is ‘A inmuiggo de uma certa falsidade inerente ao discurso da histéra, falsidade que os escritores dos tltimos anos irto explorar até & exaustfo, j6 se faz sentir em autores como Arnaldo Gama (Cle que tanto elogiava 0 valor didéctico do romance hist6rico) ou ‘em tticas como Innocencio Fda Silva, na Introdugoa Os Guer- rilheiros da Morte, de Pinheiro Chagas, antecipando, sem disso terem consciéncia, a nogiio de que o passado s6 nos pode chegar textualizado, como insiste Linda Hutcheon: «Mas a pedra, a tes- temunha presencial, € muda, ¢ 0 historiador s6 tem 06 factos - as paréncias - para colher as in-formagies do passado>"*; «Desde (© Cing-Mars rispido e anstero de Alfredo de Vigny, aé 08 heroes Thanos ¢ galhofeiros de A. Dumas, a historia ha sido fotheada ¢ revolta, vestida e quando Deus quer falsificada de todas as ma- neiras, sob pretexto de se the dar o seu verdadeiro iraje>"* ‘Antero de Figueiredo, jé no presente século, em 1916 ¢ 1924, respectivamente, nos Prefécios a Leonor Teles “Flor de Altura” aD. Sebastido, alera para a procatidade da ciéncia histérica que ‘vatia consoante as opinides e convicgdes dos seus autores". amaldo Gama, A Ultima Dona de S.icolau, Porto, Livt. Tavares Martins, 1937 (ted. 1864), p.210. fanoceneioFSiva,InrodugSo a Pinheiro Chagas, Os Gurritheiros da Mort, Lisboa Exeriptorio da Empresa, 1872; p XXXIV. ‘Ce Amero de Figueiredo, Prefiio a Leonor Teles “Flor de Altura, Pars: Lisboa, Liv Aillaud e Bertrand e Rio de Janeiro, Liv. Francisco Alves, 1916, p Vill Todos os historiadores deformam a verdade 0 vsionéTa ara és dos seus preconceitos ritcos» eProficioa D. Sebastian, Puis-Lisboa, Liv. [Alland ¢ Bertrand, 1924, p XK: f...) quanto € preéri a sifaci ds histésia, ‘quand clase poe a interpreta actos que nfo viu, ea apliar-tnes erties impre= ‘nto, sendo precipiteda, que a leva a destrir hoje o que consi ontem, = ‘pega agi o que afirmos ale, jf por defiiéncia de elementos, por excessiva sistematizasio de juizos.» 16 Mais ou menos conscientes das potencialidades & das limitagbes do romance histérico, mesmo se, por vezes, afir- ‘mam a total veracidade do narrado", os diversos cultores do _género vao esbocando, mesmo se ainda incipientemente, uma teoria que regerd os seus escritos ¢ os de quantos se limitam 4 reproduzir a moda literéria, sem veleidades de originalidade ou inovaciio. Prosper Mérimée, no capftulo VIII, «Dialogue entre le Lecteur et’ Auteur», de Chronique du Regne de Charles JX, ensaia um didlogo com o leitor onde poe a nu as expecta- tivas deste em relagio ao romance histérico e a forma como, ionicamente, Ihes tenta fugis”. (Os autores partem, no entanto, de cetos pressupostos, como © de tentar recordar 0 passado e torné-lo 0 mais fiel possivel (ainda estamos longe da alteragdo propositado de fendmenos antigos, como em alguns casos da metaficgio historiogrética pOsmoderna). E assim que Mérimée, no prefiicio & obra citada, esereve: «ll me parait donc évident que les actions des hommes du seizitme sigcle ne doivent pas étre jugées avec nos idées du dix-neuvitme.»" Na mesma linha de pensamento se situam romancistas como Rebelo da Silva, Oliveira Martins ou Artur ° Of Alessandro Manzoni, ep.it..p.1761. «Venendo finalmente al paragone traiassunio comune l'epapeae lla agedia.e'asunto del romanzo siorco,é facile vedere che I differenzaessenaiae ta in questo, che il romanzo storio non prende il soggeto principale dalla storia, per trsfermarlo con un intent poetic, ma'inventa, come componimiento dal quale ha preso il nome, ede quale ¢ una nuova forma.» CL Prosper Métimée, Chronique du Regne de Charles IX, Pais, ‘Charpentier, Libearie- Editeur, 1865, pp. 79-82. dem, pa. a Lobo d’Avila, mesmo se as suas produgdes tém décudas de permeio. Na Introdugio a Odio Velho ndo Cansa, Rebelo da Silva advoga a tentativa de fazer ressurgir 0 “viver e cre” do tempo evocado (mesmo se isso nem sempre € possivel): «Em ‘assumptos historicos, 0 dever do romance consiste em cunhar ‘com a verdade mais approximada a expressio fiel do viver € crer de Portugal, ou de outra qualquer nacio, n'uma designada epocha*!; Oliveira Martins na Introdugio a Febo Moniz de- ‘monstra igual parecer, ¢ Lobo d’ Avila acentua a tentativa de reconstituigio histérica, o mais pr6xima possivel do momento cronolégico narrado: «As personagens filhas da sua imagina- gio, devem ser animadas da vida do tempo, nfo destoando en- tre as personagens historicas revividas para a acgio roméntica, figuras que, se no existiram, podiam ter existido n'aquelle ‘meio.»® Contudo, ¢ apesar desta ¢ de outras chamadas de aten- fo, a verdade € que, frequentemente, 0 autor nio consegue cescapar & tentagio de reproduzir nas personagens as suas mais {ntimas conviegdes. Considerando até Antero de Figueiredo, Prefcio aD. Sebuside,pp- XXV-XXVL 18 que desde Herculano se empenham em ensinar, deleitando, na renga profunda de que a melhor maneira de divulgar 0s feitos da nnagio pretérita seré transformar “em arte”, passagens histéricas mais ou menos conbecidas®. Todavia, e na impossibilidade de repetir a Histéria, tal como os historiadores a concebem, os romancistas arrogam-se 0 direito de narrar prioritariamente «effetti privati degli avveni- ‘menti pubblici»®, na convicgdo de que ao leitor interessam sobretudo os pequenos incidentes da vida familiar: «Mas encar- Fegdmo-nos de um improbo e desgostoso trabalho, 0 de narrar- 'mos as pequenas infamias, as pequenas traigdes que macularam essa grande epocha de 1640.»** Cabe assim ao narrador, como 44 anotava Manzoni, a escolha incondicional da forma de tra- tar os assuntos ¢ de dar maior ou menor realce aos pormenores, 8s anedotas, que constituem a vida privada de qualquer momen- to histérico, por mais épico e glorioso que se apresente. O carécter didéetico que patecia obrigatoriamente inerente 0 romance histérico, ser4 abandonado nas tltimas produgdes, pv «ste liv ¢ ainda, como 0 meu “D Pedro e D.ls", un recho de hstéria pOso em arte. * Alessandro Manzoni, op cit, 1728. © Pinheiro Chagas, 0 Juramento da Dugueza, Lisboa, Live. De Antonio Maia Percis, nova edigao, sd (ed. 1873). p89. * CL. opi, p.1739: «Mac's quales' altro ds fare, in un certo sens, qualeost di meglio: rappresentare queli avvenimenti quali avrebbero doveto essere, per suscir pil dietevolie pit meraviglios. E questa, o poeta, la ta pare. Ate dungue fare una nova sclta ae parti dell'awenimento, lsciando aor quelleche non servono alrwointentospecialee pit elevatoetrasformando omime tora meglio quell che ema meglio di conservares> 19 como teremos ocasifo de notar, na \itima parte do presente estudo. ‘Continuando com a definigdo dos varios ingredientes pre- sentes no romance histérico tradicional, poderemos referir-nos agora aos virios tipos de personagens. De acordo com Lukas, ‘9 her6i de Scott é moderado, fleumético sem grandes cen- viegées®, Em Old Mortality, por exemplo, Morton, porque abriga um antigo companheiro de seu pai, vé-se forgado a eirar nas hostes jacobitas; Redgauntlet, herdi de um r0- ‘mance homénimo, ignorante da sua origem €, literalmente, raplado pela familia paterna, acérrima defensora dos ideais escoceses, ¢ obrigado a lutar por uma causa que Ihe ¢ totalmen- teestranha, De igual modo, a xelago amorosa, mesmo se parece impossivel ou conflituosa, nunca é suficientemente absorvente en ‘a ponto de transtornar 0 herdi ov de o fazer desviar-se do seu caminho, Seré esta uma das razBes porque grande maioria dos romances de Scott terminam bem, exactamente porgu as suas personagens estdo isentas daquele desenfreado grau de paicio que caracteriza herdis de Herculano, como Eurico ou Vasoo™. ‘A comparagio quase inevitivel entre Herculano, Garrett, ou outros, com Scott, toma-se obrigat6ria, uma vez. que durane © > Ch, abe “heros” de Scot est wujours un gentleman angis ps ou ins méioere, moyen U posse gnéralement un certain degre, jamais inst, ‘de sagensepratigue, une cetane ferneé et une certain bienséance morale, qui samme jusgh’s Paplitude au sacrifice desi, misne devient jamais passion Tmpetuense, nest jamais un d6voverententhousiaste& une grande cause», Le Roman Historique, p33. "orice, 0 Presitero © 0 Monge de Cister,respectivamente 20 século passado a sva influéncia foi de tal forma importante ue, como muito bem anota Martin Kuester, em relag@o & li- feratura canadiana de lingua inglesa", existe uma transferéncia dos modelos scottianos para os problemas locais de cada povo, Cortespondente a um heréi moderado sem grandes pai- _x6es, a herofna apresenta caracterisicas idénticas, que lhe poupam tragédias amorosas™. Balzac chega até a afirmar que a he-tofna scoitiana ¢ fruto da sua religiéo: «Obligé de se conformer aux idées d’un pays essentiellement hypocrite, Walter Scott a été faux, relativement & la peinture de la femme, parce que ses modes étaient des schismatiques. La femme protestante n'a pas d’idéal Elle peut étre chaste, vertueuse; mais son amour sans expansion sera toujours calme et rangé comme un devoir accompli.»® Ape- sar de Balzac apresentar como causa de certos tragos a religifo, a verdade & que algumas das herofnas de Her-culano se aproxi- _mam em mais de um aspecto do modelo acabadio de definir, assim ‘como as herofnas dos romances que itemos trata, cuja caracteri= zacSo 6 frequentemente simplista e sem interesse. Decorrente desta constatago, nfo seré dificil de aceitar que as personagens secundérias sejam mais interessantes do > GE Manta Kuster, Framing Truths Parodic Structures in Contemporary English-Canadion Historical Novels, Toronto, London, Bulfalo, University of “Toronto Press, 1992 % Cf, a) tones les heroines de Waller Scot représentent le méme type 4 femme anglaise bourgeoisement comecte, normale, gil ny a pas de place *), assumindo o escritor, entao directamente 0 importante papel da inveng3o no universo romanesco: «Mas porque nile procuraram os vencidios amparar-se dentro dos fortes muros e torres do castello de Guimaries? E 0 que nos diz a historia? Pouco importa: di-lo-hemos n6s.»# Herculano, Rebelo da Silva e outros afirmam, frequente- ‘mente, de um modo inequivoco a total invengao dos seus tex- tos: «F, por isso mesmo que sobre ela pesava o mysterio, a maginagao vinha ahi supprir a historia.»®; «Dentro dos mesmos ciclos usarei amplamente das imunidades do -omance, ¢ de tédas as liberdades da invengio.»* © passado funciona assim como pré-histéria do presente, Iugar onde se encarnam as verdades religiosas e as intemporais paixdes humanas”, Ta afirmagao acarreta necessariamente con- * Fernando Caselo-Branco, Note prelimina a O Regia, Lisboa, Par cera, Anénio Maca Pereira, ed, 1965 (ed, 1874), .13 “ARBurata, Um Ducllonas Sombras ou D. Francisco Manuel de Melo, S. Paulo, Brasil, 1905, 87 “Alexandre Tereulsno, 0 Robo, Lisboa, Live Bertrand, 24, sid Ve ‘no Panorama, 1843, em lve, 1871}, pp,277-278. “© Alexandre Herclano, Bwico 0 Preshyer, Lisboa, Lv Beran e Rio ‘de Janczo, 8, Paul, Belo Horizonte, Liv. Francisco Alves, sie, 1844). p X “ Rebelo daSilva, Contas e Landas, Poo, Live. Civlizagio, sf (Ie 1860), p 182, “Cr, Babara Foley Telling the Truth — The Theory and Practice of Documentary Fiction, Whaca and London, Corel Unversity Pres, 1986, p16 26 "des prprias que presidem ao romance histérico tradicional, que vao desde a inclusfio de marginais, até A tentativa de no modemizar a psicologia das personagens, de nao conservar arcaismos incompreensfveis ¢ de aceitar um anactonismo ne- cessitio. Lukacs e Molino chamam a alengo para a importancia dos marginais em Scott, como bobos,loucos ou fora-da-lei (Ivanhoe). Nas obras de Alexandre Herculano, o bobo (0 Bobo ‘sim como ou O Monge de Cister) tem papel determinante, 6s fora-da-lei em alguns romances de Amaldo Gama ou os rmatinheiros no livro de Pinheiro Chagas, de que iremos tratar. No entanto, estes marginais, além de terem inegavel papel nas so nunca personagens princi- tramas que se desenrolam, ni pais (funcionam antes como embraiadoras) e, muito menos condicionam a focalizagao do narrado. A afirmagiio de Mérimée, em 1829, no Prefiicio da sua Chronique du Régne de Charles IX, parece niio ter tido grande eco até a actualidade: «(...)je donnerais volontiers Thucydide pour des mémoires d’Aspasie “Pinheiro Chagas, em A Mdsea- ‘ou d'un esclave de Périclés ra Vermetha, revela a consciéncia da parcialidade existente no discurso oficial da Hist6ria: «Assim como a musa tragica se envergonhava de fazer figurar no theatro os infortunios bur- guezes, ¢ nfo caleava 0 cothumo classico seno para interessar 0s espectadores pelas desgragas dos grandes, assim tambem a historia no se dignava occuparse da vida e gestos, ¢ muito Prosper Miérimée, Chronique du Régne de Charles IX, Pais, Charpentier, Libvsre-Eaiteur, 1865 (ied, 1829). 9.3. 7 ‘menos ainda da morte dolorosa d’essa plebe vil que tumultu- ava na sombra»® Na ficgdo das tltimas décadas, os marzinais assumem tum papel diferente, embora no menos imporsante ~ a focali- zagio é-Ihes, por vezes, atribuida, modificando o sentido candnico da Historia, Além do Maar, de Miguel Medina é um ‘bom exemplo, ao narrar a viagem de Vasco da Gama do ponto de vista dos marinheiros ¢ dos degredados. ‘A niio modemizagao da psicologia das personagens si- twa-se na linha da fidelidade ao narrado, na pretensio de recons- truir o mais fielmente possivel 0 passado evocado, No entanto, 6 sabido que muitos romancistas hist6ricos do primeito perfodo nfo conseguem fugir & caracterizacdo das suas personagens ‘como herdis roménticos, independentemente do tempo em que se desenrola a acgo. Herculano ¢ Rebelo da Silva séo disso cexemplo, Este tiltimo, todavia, € bem consciente dessa tenta- ‘do, 0 que o leva a escrever num texto de Contos ¢ Lendas: «Nos quadros da meia idade 0 maior perigo consiste em se Ihes errar a expresso, atribuindo as paixdes e sentimentos, linguagem e caracter que Ihes foram desconhecidos, ¢ que transportam a acco para anos muito posteriores. Ha um certo verniz modemo, que € moral para as cenus antigas, porque as retinge, desfeia e desmente a cada mo- mento.»® “ Pinheiro Chagas, A Mascara Vermetha, Lisboa, Livede Antonio Maria Pereira, Nava edigao, sd (Id, 1873), p.197 "Rebelo daSilva, Contos e Lendas, p.340. 28 Teoricamente a uma no modernizagao da psicologia de- veria corresponder uma nao modemizacdo da linguagem. Con- tudo, tal prética levaria inevitavelmente & incompreenséo de ‘grande parte do pliblico, pelo que Scott, logo no inicio de Iva- ‘hoe, se escusa de nfo usar 0 anglo-saxio ¢ o normando: «The dialogue which they maintained between them was carried on in Anglo-saxon, which, as we said before, was universally spoken by the inferior classes, excepting the Norman soldiers ‘and the immediate personal dependants of the great feudal nobles. But to give their conversation in the original would convey but litle information to the modem reader, for whose benefit we beg to offer the following translation.»*" 6 também ‘como uma espécie de tradugdo, embora isso nao seja explici- tamente dito, que textos como Eurico, o Presbitero ou O Alcaide de Santarém nos sao apresentados. Em alguns romances hé até a referéncia explicita de que se modemiza a linguagem para facilitar a compreensio do leitor: «© verdadeiro espirito dos séculos escapa a rede de apa- har vocabulos dos copistas. Ea raro porque este romance € escripto ¢ falado na Iin- gua de hoje, ¢ ndo torcido por torniquete quinhentista. A historia reside nas cousas.»*; «Nao tentémos nem por sombras ressuscitar a Tinguagem do século XVI. Essas ressurreigdes dio ao fallar dos persona~ 5) Walter Scott, Ivanhoe, Lond 1819),p13. Rebelo da Silva, Odio Vetho do Cana p.16. , Penguin Classics, 1986 (ed. 29 gens um caracter rigido € affectado, mil vezes mais falso do que a traduego da expressdo dos seus pensamentos na lingua do nosso tempo.» Marques Rosa vai mais longe, chegando a0 preciosismo de por em nota a linguagem que as personagens teriam usado, Por exemplo, a frase ™, recorda a Viagem e conta-a a Gaspar Correia, Preside a toda a narrativa uum tom profético ¢ até a escola do Gama se revela premo- ~~ “Pinheiro Chagas, O Nau/ngio de Vicente Sod, Lisbos, Empresa Lite risia Universal, ed, <4, pV. 31 nitéria, indiciando a felicidade Manuel] em quem havia de ser o capitio-mér de tao grande expedigio. (...) De repente, sem azo nem motivo, o rei, que no tirava os olhas do Tejo, voltou-os para a sala, e dizia elle empresa: «cogitava [D. depois que sentira um baque no coragdo. Entrava n’esse mo- mento na sala, que atravessava nos bicos dos pés, para no interromper el-rei, um cavalleiro da sua casa, que era este mesmo Vasco da Gama.>*? O perfil do Gama é evidentemente sempre positivo, no se mostrando nunca nenhuma espécie de animosidade por pparte dos marinheiros. Aquando do prendncio de rebeliao, causada pelo desespero, Bastido denuncia os companheiros. tal como Rui Cunha em A Descoberta e Conquista da India pelos Portugueses, de Lobo a’Avila ou Ruy Pereira em 0 Despertar d'um Sonho, de Lourengo Cayolla. © paraielismo centre as trés obras, duas das quais ainda no foram referidas, faz ressaltar 4 falta de originalidade ¢ o convencionalismo inerente x todas estas narrativas. Apesar de 0 narrador ¢ focalizador ser teoricamente um Imarinheiro, a verdade € que a ideotogia veiculada é a da clas- se dominante, ou antes € a do discurso oficial da Histéria, que 86 0 século XX se atreverd a contestar, A insisténcia na provi- déncia divina acentua 0 cardcter Epico que Os Lusiadas se en- carregaram de instituir ¢ retira a relatividade humana aos intervenientes na empresa: «E eu [Bestiio, © narrador] dizia Pineiro Chagas, A Descoberte da India Contada por um Marinkeir, Lisboa, Preeria Antonio Maca Pecira, 2d. Pstuma, 1898, pp. 16-17 32 cotmmigo que realmente era necessério que Deus Nosso Senhor fosse muito misericordioso comnosco, para que assim permitisse ‘que um povo to pequeno como nds somos obrasse tantas ma- ravilhas, e fosse aos confins do mundo, ¢ revolvesse os mates € descobrisse caminhos novos para estas terras distantest»™, © tom euférico que preside a este romance encontra-se igualmente nos dois outros ja citados e que vieram a lume em 1898, aquando das comemoragdes do quarto centenétio. O livro de Artur Lobo d’Avila possui um acentuado pendor pedagégico, prefigurando as personagens inventadas os su- postos sentimentos existentes na época. Nao hé a minima visio critica, tudo & contado rapidamente, repetindo esterié- tipos. Ao descrever a partida, nio falta a réplica fiel do Velho do Restelo («- Oh! Gloria de mandar! Oht va cubiga dessa vaidade a que chamamos fama! no abtiga deceito em seu coragdo Vasco da Gama, Grande coragdo tem na verdade! que bem mal arriscado vae nesta empresa que tantas mortes, petigos ¢ tormentas, fario experimentar ao reino>™), como no faltam 0 projecto de traigo, oportunamente denunciado por Rui Cunha, como vimos, ou a insisténcia na exceléncia dos portugueses em detriment dos indianos, Rui Cunha personagem inventada, simboliza a entrega total aos interes- ses da Pétria, numa linha que tem muito de mistico, Ble e sua amada Isabel casam tardiamente e quase por obrigagio, tal Idem, p10, » mur Labo d'Avil, A Descoberta ¢ Conguista da lndia pelos Portu- ‘gueses, Lisboa, Joso Romano Torres-Eaitar, 1898, p31 33 como aconteceré num outro romance do mesmo autor, O Reinado Venturoso, onde se chega a falar directamente nos Cavaleiros da Tavola Redonda ¢ na exceléncia do amor piritual. Neste sltimo livro também é aflorada a viagem de Vasco da Gama, embora ela surja com menos énfase, uma vez que 0 objectivo ¢ a descricdo da conte de D. Manuel, suas intrigas © segredos. A burguesia ¢ apontada como contrétia & empresa («Era a massa do povo, a burguezia, que nio approvava esta viagem para se descobrir a Indias"), mas a vviagem nao € directamente relatada, uma vez que 0 cenario ‘nunca abandona o territ6rio portugués, Vem dos Agores no- ticias da permanéncia da frota no Arquipélago ¢ é narrada a chegada de Vasco da Gama. As invejas ¢ citimes que as mercés do soberano causaram, sto também referidas, para acentuar © clima de intriga ¢ desconfianga: «As invejas e as emulagdes sao ja patentes, no falar dos contrarios aquella empreza. — Nao bastava o presente de quatroventos cruzados doiro ‘0 capitiio-mér, quando partiu, mas ainda 4 chegada the dé de ccontrapezo 0 titulo de dom ~ dizia um fidalgo (...)»* © romance de Lourengo Cayolla, também publicado em 1898, tem varias semethangas com A Descoberta ¢ Conquista da India pelos Portugueses, de Lobo 4 Avila. O livro tem como subtitulo Episédias da Descoberta do Caminko Mart © Arar Lobo d' Avila, O Reinado Venture, Lishos, Eicora Empreza Literasia Fluminense, sd, I° vo, p-164 Fdem, p25, 3a timo para as Indias e apresentase como um “Brinde 10s A narrago da viagem & assignantes do Diario de Noticias” encomidstica e entrelagada com amores entre diferentes clas- ses sociais. Tal como sucede na obra de Lobo d’Avila néo faltam as intrigas ¢ traigdes, descobertas por Ruy Pereira, 0 heréi, que mantém com Isabel um relacionamento mais espi- ritual do que fisico e que & desejado por Naid, joven indiana, tal como o Rui da obra de Lobo d°Avila o era por uma prit cesa local. Neste caso, a oportuna morte da personagem mas- culina resolve o inconfortavel tringulo. Ainda no mesmo ano de 1898, Campos Iinior inicia a sua fecunda carreira de romancista com Cavaleiro e Monge, romance hist6rico dos reinados de D. Joo Ie D. Manuel I, Jodo Afonso, personagem principal, filho natural de D. Jotio Tle de uma freira, parte na armada da {ndia ¢ através dele que se narram 08 vérios episédios que culminam com a che- gada a Calecut, depois de intimeras peripécias, que por vezes se ressentem do estilo épico e outras se descobrem fruto da ‘mais baixa traigio. A passagem do Cabo contém todos os in- gredientes proprios do estilo sublime: «Pela noite adeante le- Vantou-se um vento ponteiro, cortante, impetuoso, crescet a agitago do mar, carregaram-se os negrumes do ceu, de es- aco a espago rasgados pelos relampagos, que &s vezes pa- reciam enlear 0 vulto do Cabo, como as serpentes mythicas em volta do arcaboigo gigantesco de Lacoonte.»™; de igual © Campos Hinior, Guerreiro e Monge, Lisboa, Empreza do Jomal “O Seculo", Fed, 1899, 9238, 35 modo, a chegada a India reveste-se de uma grandiosidade, que facilmente ultrapassa a factuatidade imediata: ‘«Estava pelas costas do tureo, invasor ovante das terras ‘européas, e dera a opulencia mercantil de Veneza, a rainha dos mares, que fora omnipotente e comecava a estar jé de- cahida, A sua estrella apagava-se precisamente quando a nossa apparecia fulgurante sobre 0 ceu de Calicut, ‘Achara-se 0 amplo caminho entre a Europa e a Asia; era aquelle, 0 nosso, 0 caminho triumphal do Gama, No Allantico tenebroso esfarraparam os nossos a noite immensa de tres mil annos. Ali iam rasgar-se as lendas © os mythos em que a India andara envolvida, nao somente nas, crengas ingenuas da Europa, mas até nas paginas de histori- adores ¢ geographos das mais altas civilisagdes antigas, como fas da Grecia ¢ Roma, ¢ como a dos arabes.»®, {As traigdes e intrigas so encarnadas por um pérfido ve- neziano que persegue os portugueses, em geral, ciente da queda do poderio de Veneza que a viagem do Gama propi- ciard, e Jodo Afonso, em particular, pois the cobica a noiva judia. Todos estes ingredientes concorrem para criar 0 ambi- ente romanesco requerido para simultaneamente glorificar os feitos dos portugueses e encenar uma histéria amorosa que prenda o leitor através das, por vezes, fastidiosas deserigdes de batalhas ou de costumes. © romance histérico tradicional que se debruga sobre 0 Descobrimento do caminho maritimo para a india situa-se, © idem, 9269. 36 como vimos, no fim do século, num momento em que, devido a raz6es vérias, como o Ultimatum Inglés, 0 Mapa Cor-de- -Rosa ou a decadéncia da Monarquia Constitucional, se favo- rece 0 aparecimento de uma literatura apologética que preten- de fazer sobressair a todo 0 custo a grandeza de um Portugal pasado. O século XX, ou mais concretamente a sua segunda metade, vai caracterizar-se por uma questionagHo da Hist6ria © por um modo diferente de tratar o material textualizado, © Romance Histérico Pésmoderno ‘Nido podendo ficar alheio as transformagdes da concep da Histéria, o romancista modificou também a sua relaco com ‘© material pretensamente objective que os manuais Ibe trans- mitiam. Pierre Barbéris divide entre HISTORIA (a realidade histérica), Historia (0 discurso dos historiadores) e historia (a narrativa, a fibula, 0 mito). E partindo desta tripartigiio, que poderemos organizar uma nova nogio de espago e de tempo. Amy Jeanne Elias chama a atengio para o facto de em alguns textos pés-modemnistas a HistOria ser mais vista em termos de espago do que de tempo, havendo uma espécie de jo-consciencia deste, que se representaria pela ndo linearidade € teria fortes razdes politicas e estéticas. CE, Pieme Barbéis, Prude 2 U"Utope, Pais, PUF Ect, 191, p9. Spasalzing istry: Representing History in the Postmodernist Nove, ‘UML, The Pennsylvania State Univers, 1991, dact. 37 Partindo destes principios, poderemos tentar explorar as ligagdes entre HistGria e narrativa, de forma a demonstrar como a evolugio de uma condicionou as experiéncias levadas a cabo pela outra, isto 6, como a dificuldade surge quando se quer dar a acontecimentos reais a forma de uma hist6ria*, White chega mesmo a afirmar que no discurso da Hist6ria € a narrativa que Ihe permite transformar-se num conjucto coerente: «ln. his- torical discourse, the narrative serves to transform into a story a list of historical events that would otherwise be only a chronicle.»*. Como lembra Paul Ricoeur, «reconstrure les liens indirects de Vhistoire au récit, c'est finslement porter au jour intentionnalité de la pensée historienne par laquelle Vhisoire continue de viser obliquement le champ de action humaine et sa temporalité de base.»" Ricoeur alude, em seguida, ao eclip- se do acontecimento na historiografia francesa, fazendo um historial das vétias concepgies de Historia no presente século, que passa pela noo dos limites da objectvidade. Esta ver-se-ia reduzida a partir do momento em que o histo- riador, ao sentir-se implicado na compreensio e explicagio dos acontecimentos do passado, se sente incapaz de atestar um acontecimento absoluto através do discurso hist6rico, Tal to- ada de posieao decorre, entre outras, da recusa absoluta do positivismo: «Si [histoire est la relation de I’historien au passé, histor Cf Hayden White, The Content ofthe Form Narrative Discourse and Historical Representation, Baltimore and London, Te Johns Hopkins University Press, 1987, pl Narrative becomes a problem only sien we wisho give tore event the foam of sory. Its because real events done offer themselves a stories that dei naerativization i so dient» Hayden White op.eit. pd Paul Ricoeur, Temps er Rect, Pais, Seni, 1983, Tome I p. 134 38 on ne peut traiter Phistorien comme wn facteur perturbant qui sajouterait au passé et qu'il faudrait éliminer»® A escola dos Annales deu um grande contributo a este problema, reflectindo sobre 0 préprio oficio de historiador, as suas ddvidas e «ir- resolugdes>” A relagio da Histéria com a realidade do passado, por um lado, & com a literatura, por outro, acarreta inevitavelmente problemas de imitacio e de criagao, podendo-se afirmar, num pprimeiro momento, que as principais formas da narrativa fic- ticia se baseiam num contrato mimético.”" O inverso, no entan- to, € também aceitével, sendo possivel, defender na esteira de Carlos Reis que «todo 0 discurso ficcional é também uma forma superior de enunciago do discurso da Histérian”. ‘Armimese implica, necessariamente, um proceso de verdade”, idem, p12. * Parumestuo mais apofundado dese problema, consr Pau Ricoet ‘op. p. 137-172, Hayden White op cit pp.1-57¢ Paul Hamilton, Historiciam, London and New York, Rowedge, 1996. "Cf, Barbara Foley, Telling the Truth — The Theory and Practice of Docimerary Fiction, taca and London, Comell University Pres, 1986, 9.68 “Invoking bere a fictional tipology move fila o may readers, I would supe ‘hat the socalled major modes of fictional narative — sometimes deseribed as ‘naturalism, elim, romanee, fantasy — are simply variations onthe base form ofthe mimetic contract» % Carlos Reis, «Eg de Queirds eo Discurso da Hisérian,in Qucirasian, TIS, Dez. 1994Sutno de 1995, p46 "Ct -aMimesis inevitably involves arti a process ftw: by duplicating, ‘copying reality which precedes it Ierature works inthe sevice of truth, Bik ‘uth cannot reside inthe work ofa itself, which merely borows is tUe-valie fromm the ett it imitazes to the exten hat ts a faith reproduction. In the Pstonic system, and the Aristzctian aesthetic theory which derives from it the ‘otigin ofthe writen word is always tobe found elsewhere, ina reality or tnth \which exists beyond representation as pure selfpresence.», Wenche Omamundsen, ‘Metafictons?, Melbourne, Melbourne Usiversiy Press, 1993, p37. 39 proceso que pode ser contestado desde infcio. Como lembra Robert Scholes, toda a escrita & construgao. Nao hé mimesis, 86 poesis ‘A concepeao de que 0 romancista histérico se move entre. © real ¢ 0 ficticio ja tinha, alis, sido erunciada por Alfred de ‘Vigny, nos primérdios da teorizagéo do género: «Nous trouve- tions dans notre cocur plein de trouble od rien n'est d’accord, deux besoins qui semblent opposés, mais qui se confondent, & ‘mon sens, dans une source commune: un est amour du VRAL, autre 'amour du FABULEUX, Le jour ott homme a raconté sa vie & Homme, I'Histoire est née.»® Desde entdo, os ro- ‘mancistas consideram-se no direito de apontar nos seus textos (frequentemente em prefacios, introdugies e posficios) a ine- rente ficcionalidade, independentemente de ser um texto do século XIX ou uma obra pés-modema. Aceitando assim carécter ficcional da narrativa (mesmo se hist6rica), ¢ estando conscientes de que nfo existe nenhuma esséncia linguistica especifica da ficcionalidade™, podemos chegar a “morte da referencialidade””, que assentaria na impos- ™ CE, wAll wtng all composition, is contraction. We do no imitate the world, we construct versions of it Ther is no mimesis, only poesis.», cit. in Barbara Foley, opt, p11 Alfred de Vigny,oRellexions sur ln Vésité dans PAs, in Cing-Mars, Pars, Le Live de Poche, 1970. p.24 (Ved, 1827). % Cf, Barbera Foley, opie, pad: «Any given element ina narrative, 1 shall suggest, must be scanned and interpreted as either factual or fetive inorder toberead and understood, Theres no specifically linguistic essence of fiionality ‘thats immediately percepsible in the pariculars oft text» ” CE. Barbara Foley opi. pp-13-14. 40 sibilidade que qualquer escritor sente de atingir a realidade através da linguagem’ e, paradoxalmente, na consciéncia de ‘que o passado s6 nos pode chegar textualizado”, qualquer re- feréncia ao mundo empirico s6 podendo se referir a outro tex- to. A fronteira entre o romance explicitamente baseado na realidade € 0 que ndo demonstra essa preocupagao, toma-se ‘fnida, dando azo & ironia bem consciente de romancistas histori- ‘cos pés-modemos, que parecem fazer eco das dissertagdes dos teéricos, como muito bem anota J. Saramago em Histéria do Cerco de Lisboa: «Importaria saber, isso sim, € quem escreveu © relato daquele famoso acordar de almuadem na madragada de Lisboa, com tal abundancia de pormenores realistas que cchega a parecer obra de testemunha aqui presente, ov, pelo ‘menos, habil aproveitamento de qualquer documento coetineo, ‘nfo forgosamente relativo a Lisboa, pois, para o efeito, nfo se precisaria mais que uma cidade, um rio ¢ uma clara manhé, ‘composigio sobre todas banal, como sabemos.»* 7 Cf, Haydon White, op.ct, p.206: 0.) any text attermpeing to grasp any realty though the medium of language orto epresetitin that medium aise the specter of the impossibly of the task undertaken.» Cf, Linda Hutcheon, A Pacis of Postmodernism — History, Theor, Fiction, New York snd London, Routledge, 1988, p93: «The “real” referent of their language once existed; but its nly accessible to us today in textalized form: dacumeats, eye-witness accounts, archives» e Christos S. Romanos, Postce of ¢ Fetional Historian, New York, Bere, Frankurt am Mai, Peter ‘Lang, 1985, p50, Cf, Idem, p.143: <(..) history as used in historiographic metafition for instance, could never refer to any seta empirical worl, but merely to nother text> "Joa Saramago, Hitria do Cero de Lisboa, Lisboa, Casino, 1989,» 22. 4 © acontecimento deixa, assim, de assumir 0 carécter abso- Juto que o século XIX the atribuia®, e essa instabilidade reflec- te-se na proximidade de relagdes entre a Historia (como cién- cia) e a literatura, relagdes nem sempre amistosas, até por que demasiado préximas: «Seule une métahistoire peut oser consi dérer les récitshistoriques comme des fictions verbales, proches par leur contenu et leur forme de leur contrepartie littéraire.»®. Ricoeur propde a designagao de imputagao causal singu- lar para definir «Cette logique (qui] consiste essentiellement dans la construction par V'imagination d’un cours différent ’événements, puis dans la pesée des conséquences probables de cet événement réel, enfin dans la comparaison de ces ‘conséquences avec le cours réel des événements.»" ‘A assungao desta caracteristica leva-nos invariavelmente para 0 problema do significado ou seja, das relagGes entre os varios sistemas significantes quer seja entre o passado e 0 presente, quer entre os documentos e os leitores, que preten- dem o verdadeito significado desses documentos". Dai que a “SCE, Paul Ricoeur, op.cit, p.140: «Mis i [livre de Raymosd Aron, Intodution ala Philosophie de Hisoie: Essa surles Limite de de’ Ojecivite ‘Hisorique(1938) merited ete cté cette place pour avoir largement contribu 4 issoudre la premiere suppostion du seas eammun, & savoir Tassertion di ‘arate absolu de 'événement, comme cela gui est rellement aves © Paul Ricoeur, op.cit,p 229, *% Paul Ricoeur. op cit. p.257 Cf, Hayden White, oct, p-189: «And this is especialy crucial fr ine- lectual historians, who are coneerned above al with the problem of messing and that of tansating betveen different meaning systems, Whether as between past and present or besween the dacuments and those readers of history books Who ‘wish to know wha these documents "really mean». 2 natrativa, em si, nfo distinga o discurso histotiogritico dos ou- {os tipos de discurso", como lemibra White, ao fazer uma rese- nha dos varios eriticos que se debrugaram sobre este problema, (0 sentimento da necessidade de reconstrucdo interpre- taco do passado", leva a que ele apareca tao caético e com- pplexo como o presente, Tal tomada de consciéncia facilita, de certa forma, © aparecimento de duas natragdes diferentes da ‘mesma ocorténcia, facto que virios autores tém explorado, desde © caso exemplar de John Fowles, em The French Lieutenant's Woman, apresentando dois fins possiveis para 0 enredo. E White quem afirma que » CE. Hayden Whit, op.it, p.188: Here arses a division between the historian wo wishes peimarly to “Yeconstrut” a “explain” the past enone who is imerested either in “interpreting itor using its dts as an oecsion for his ‘wn speculations onthe present (and fom)» © Hayden White, opcit, p20. © Sobre este assunt, consular Elisabeth Wessling, Writing History as Prophet- Postmodernist Innovations ofthe Historical Novel, Amsterdarn! Philadelphia, Jobn Benjamins Pebishing Company, 1991 * C.. Hanping Chiu, Nonfiction Nove, Historical Novel and the Criss of ‘the Novel, UML, University of Minnesota, 1991, dact.pp118-1 4B valor, por parte dos narradores, mesmo se ainda incipientes © sem qualquer inteng2o tedrica de problematizar 0 pas- sado." No periodo p6s-moderno, a “flexibitijade” toma-se da méxima importincia, até por que mais importante do que 08 acontecimentos serd a reflexdio sobre a propria His- tra”, A ficgdo historica assenta assim numa espécie de pa- radoxo: por um lado, afirma-se ficgdio (como vimos) e, Por outro, atesta a sua veracidade (mesmo se ironica- mente). Daf que 0 romance histérico pés-moderno se apresente como «a tertiary form of the historical novel», podendo es- sencialmente ser definido como metaficedo historiografica, na medida em que s6 podemos imaginar o pasado, nunca experimenti-lo™, tomando-se a narrativizagio desse passado, para que White nos alerta (como vimos), condigéo impres- ccindvel para 0 aparecimento da Histéria © do romance. Este ted entdo de ser considerado nao uma forma de conhecimento hist6rico (como 0s roméinticos pretendiam), mas a inguirigo Cf, aHas any historical narrative ever been wten that was not informed notonly by moral awareness bot speifclly by the moral autherty ofthe nator? is dificult ta think of any historical work rodced during thenineteeth cent the classic age of historical narrative, that was not given the force of a moral judgement on the events it related, Hayéen White, op cit, 9221-22. CL, «They [postmodemist historical novels} meafetionally center not con historical evens buton history sel». Amy Jeanne Eis, oct, p-10S, Blisabeth Wesselng, opi, B24 © Cf, Linda Hutcheon, pl, p143: «ln other words, only by naraivicing ‘the pase wll we accep it 5 "rue" “4 da possibilidade de utilizar esse mesmo conhecimento de uma perspectiva epistemol6gica ou politica’. Tal constatagio leva & tomada de consciéncia do cardcter ceminentemente critico e contextualizado de qualquer forma de ‘conhecimento histérico na actualidade™, facto que se traduz frequentemente pelo uso da ironia: «In fact irony may be the ‘only way we can be serious today.»”” repensar irénico pés-modemo da Histéria revela-se definitivamente no nostélgico, a0 contrério da evocagiio r0- ‘mantica de Idades Médias de sonho, na medida em que se toma pena conscigncia de que nfio hd uma s6 verdade”, facto que se poderd traduzir por uma grande instabilidade na focalizagto. ‘A mudanga, por vezes, constante de focalizadores, relatando ‘cada um a sua versio da Histéria, dé a medida exacta da pre- cétia verdade do passado. Os dois romances de que nos ire- ‘mos ocupar, Além do Maar, de Miguel Medina (1994) e Pere- grinagdo de Bamnabé das Indias, de Mério Claudio (1998) ilus- trardo essa tendéncia de relativizar 0 discutso oficial da Histéria, pela anteposicio de outras “verdades” e/ou “mentiras”, Cf, Blisbeth Wessling, opt, p73: «Postmodemist writers do not consider it ther tse to propagate historical knowledge, but to inguire ito the ‘ery possibility, nature, and use of hstorial knowledge from an eistemologicel ora polical perspective.» Cf, Linda fTutcheon, opcit, 88: eThere seems tobe anew deste to think hstosclly and to think historically thse days isco think critically and contextually» Idem, 938. Ch Linda Hutcheon op cit .39:«.)the postmodernist ironic rethinking ‘ofhistory is definetely not nostalgic Ch dem, .129: of. istry isnot the wansparent record of any sure “eu 45 Miguel Medina, Além do Maar Como muito bem anota Hayden White, «The events are ‘made into a story by the suppression or subordination of certain of them and the highlighting of others, by characterization, ‘motific repetition, variation of tone and point of view, alternative descriptive strategies, and the like —in short all ofthe techniques that we would normally expect to find in the emplotment of @ novel or a play, For example, no historical event is intrin- sically tragic: it can only be conceived as such from & part- cular point of view or from within the context cf a structured set of events of which itis an element enjoying a privileged place. For in history what is tragic from one perspective is ‘comic from another, just as in society what appears to be tragic from the standpoint of one class may be, as Mary purported to show of the 18th Brumaire of Louis Buonaparte, only a farce from that of another class.» A narrativa apresentar-se-d, assim, como um processo de descodificagio © recodificacfo, através do qual a perspectiva convencional poderé ser modificada!™ Em Além do Maar, de Miguel Medina sio os banidos, os marginalizados, que peteepcionam o descobrimesto do caii- sho maritimo para a India "© Hayden White, Topics of Discourse Essays in Culture Critcin,Bal- ‘more and Londoa, The Hts Hopkins University Press, 1985 (ed. 1978), p84, Chi dem, p96: «As thus envisaged, naraive Woald be a proces of ‘ecodation end recodtion in which an original perception is life by beng ast ina figurative mode different from that in Which it has cme anced by convention, authority, or custom» 46 Como recorda Wenche Ommundsen, a histéria desses grupos esté sempre mal documentaca 0 que os toma menos resistentes ao tratamento ficticio!. Amy Jeanne Elias chega a contrariar a definigao de Avrom Fleishman", que pressupie a cexisténcia de pelo menos uma figura “real” para que um ro~ ‘mance possa ser considerado histérico, aflrmando que os mar- Avro Fleishman, The English Historical Novel~ Waker Sco to Virgina Woolf, Balimore and London. The John Hopkins Press, 1971 1 Cf, Amy Jeanne is, opi p89: o(.)To limit the gente to “rel” characters almost iramediately excludes thse let out of the historical reco.» a navegagdes portuguesas, que nada tem de idealizada, mas que se apoia na focalizagio dos marinheiros, dos degredados ¢ até dos nativos. A leitura do romance faz lembrat 0 infcio de La Sefiora, de Catherine Clément, onde 0 narrador, no porto de Lisboa, assiste & chegada da nau que acabara de realizar a circumnavegacio: as velas esburacadas, os cabos partidos, a madeira bolorenta, ‘Alguns matinheitos esfarrapados mal se tinham de pé no barco fantasma; espectéculo de miséria..(..) Foi a primeira nau de que me lembro; cheia de remendos, de costures, lamentavel finebre.»"* ‘Toda a obra é constituida como uma partitura, constando de Abertura, Tres Andamentos, intercalados por Intermezzos, Finale ¢ Posfécio (que reune notas dispersas). Esta divisio do romance favorece a leitura distanciada, uma vez. que tais de- signagdes, a0 causar estranheza, obrigam o itor a assumir <€ medida que se aproximava, eu distinguia uma atitude mais eritica do que se a divisio fosse a tradicional, em capftulos, com ou sem titvlo. No infcio do livro deparamos com duas epigrafes (uma do Roteiro do Descobrimento da India por Vasco da Gama, sé XY, ¢ outra de Kuth Ad-Din An-Nahravali, Hist6ria da Con- quista do Yémen pelos Otomanos, séc:XVD que, por opostas, ao a medida exacta da relatividade da focalizagao hist6rica oficial. A transcrigdo de ambas pareceu-nos digna de interesse, até porque elas condicionam o tom de todo o romance: "Catherine Clément, A Senhora, tra, de Maria do Rosirio Mendes, Port, Ast, 194 (ed. fancess, 1992), p20 48, «Na era de 1497 mandou el-Rei dom manuel, o primeiro deste nome em portugal, quatro navios, os quais iam em busca dda especiaria, Partimos do Restelo um sébado, que eram oito dias do més de Julho. Que deus nosso Senhor deixe acabar 0 ‘nosso caminho em seu servigo. Amen.» «Foi nos primeiros anos do décimo século que teve lugar entre 0s acontecimentos desventurosos dignos de mensio a vvinda dos malditos portugueses, nagao dos franges, amaldigo- ados sejam eles, as terras da india.» Estes dois relatos do mesmo acontecimento estéo subjacentes & leitura da narrago da viagem e da actuagio dos tripu-lantes. De igual modo, cada uma das partes ossui também duas epfgrafes: uma do roteiro acima in cado e outra de Os Lusiadas. O excerto do roteiro é sempre mais factual e fun-ciona como uma espécie de resumo do capitulo que antecede: as estancias do poema de Camées correspondem ao episédio ou as circunsténcias referidas, na linha da glorificagdo épica, embora, por vezes, também incluam uma visio Kicida do softi-mento do povo, como € 0 caso da citagdo de passagens do epi-sédio do Velho do Res- telo. A referencia a Os Lusiadas niio se limita as epigrafes, aparecendo, também, veladamente no corpo do texto. O episé- dio do Ada-mastor representa, como é do conhecimento geral, ‘uma das passagens mais célebres da epopeia ¢ que tem servido como hipoterto de numerosos poemas ¢ romances. No poeta (Miguel Medina, Além do Moar, Verela Nova, Bertrand, 1994.1 0 de Cames, 0 Adamastor entra em didlogo com 05 portygueses, predizendo-Ihes desgragas, mas também se humaniza, contan- do seus desgostos amorosos. A figura de Vasco da Gama € a de um heréi corajoso ¢ temente a Deus (estrofes 39 60 do Canto V): «NGo acabava, quando /ua figura Se nos mostra no ar, robusta e vélida, De disforme e grandissima estatura; 0 rosto carregado, a barba esquélida, Os olhos encovados, ¢ a postura Medonha e mé € a cor terrena e pélida; Cheios de terra e crespos 08 cabelos, ‘A boca negra, os dentes amarelos. (9) E disse: “ © gente ousada, mais que quantas No mundo cometeram grandes cousas, Tu, que por guerras cruas, tais © tantas, E por trabalhos vos nunca repousas, Pois os vedados términos quebrantas E navegar meus longos mares ousas, Que eu tanto tempo hé jé que guardo e tenho, Nunea arado de estranho ou proprio lenho: wo) ‘Yerio morrer com fome os filhos caros, Em tanto amor gérados e nacidos; ‘Verio os Caftes, ésperos © avaros, Tirar & linda dama seus vestidos; 50 Os eristalinos membros ¢ preclaros a calma, ao frio, a0 ar verio despidos, Despois de ter pisada, longamente, Cos delicados pés a areia ardente. (en) Assi contava; e, cum medonho choro, Suibito de ante 08 olfios se apartou. Desfez-se a nuvem negra, e cwn sonoro Bramido muito longe © mar soou. Eu, levantando as milos ao santo coro dos Anjos, que tio longe nos guiou, A Deus pedi que removesse os duros Casos, que Adamastor contow futuros.»" No romance de Miguel Medina, a referéncia € muito mais reduzida e de sobremancira irénica: «Nesse dia ndo encontraram nnenhum ser descomunal, deus ou gigante adamastor, que nestas coisas do medo sto © mesmo, e um 96; isto, apesar do que ‘afirmou alguém de génio, que anos mais tarde compds um poema sobre aquela viagem, para espanto da gente. Jogo nunca chegou a ler este livro.»!® A conscigncia da relatividade da focalizagio leva 0 narrador, Iiio S6 a apor notas vérias no final do romance que mostram perspeotiva diferentes das dos portugueses, mesmo se degredados Lats de Cambes, Os Lusiadas, oro, Porto ed. st, pp184, 185, 1866 190, "8 Aléndo Maar, pp. 116-117, 31 cu simples marinheiros, ¢ a comentar, nesse apéndice, as circuns- tincias que levaram & criago da Jenda: «E assim: religiio, povo, cultura, usos costumes benditos, que sio os nossos; ¢ religiGes, ‘povos, culturas, usos e costumes malditos, que so todos os outros. , a provérlo, hd homens valorosos, abnegads, sinceros, leais ¢ devotas, que somos nds; e cobardes, preguigasos, pérfidos,traigo- eios © pagios, que s80 os outros, mouros ou bagos, pardos ou negros, ruivos ou amarelos.»" 0 proprio narrador quem afirma, nas anotagGes citadas, {que se ignoram hoje muitos dos reais acontecimentos passados a bordo, o que torna natural o aparecimento de vérias versbes, «patriménio onde a lenda e a verdade histérica se confun- dem»! Ao longo de todo o livro, ‘somos confrontados, por um lado com a destraigdo do mito épico e, por outro, com a re- alidade que Ihe esté subjacente: & chegada a India, € Martim, um degredado por acusagées de magia, que vai a terra; a re- cepgao dos nativos é muito diferente da habitualmente relatada, chegando até a amaldigoar os portugueses © considerar os seus presentes como insignificantes; Tristio, o cronista, € proi- bido por Vasco da Gama e seu irmio, Paulo, de falar na diver- sidade da f6 entre cristios ¢ indianos. ‘Um didlogo entre dois marinheiros, defendendo pontos de vista opostos, representam inequivocamente a multiplicidade dos discursos da Hist6ria: > dem, p70 © Iden, 9.582 32 «<< Hoje, nés somos como esse santo homem, que beio até agui espalhar a palabra de Ctixto... disse Benedicto, num trans- porte de ongulho. ~ Temos a ovrigagao de repor tudo outra bez no seu debido lugar; relemvrar a forma dos ritos; as ovrigagdes da crenga; a ovediéncia ao irmio-santo da Capital-da-fé... Ba razio primeira dos perigos que passdmos. Tristdo e André entreolharam-se a sorrir, ~ 0 ouro...0 dpio...a pimenta...sso sim — trogou 0 meirinho. ~ So eles que nos movem.'t! ‘Apesar de teoricamente referencial, apoiado em docu- rentos varios, todo 0 discurso de Além do Maar &, antes de ‘mais, uma dentincia bem clara das formas de fazer Historia ¢ dda importéncia que essas formas tiveram na elaboragdo de um inconsciente colectivo nacional: «Bra ali, sobretudo, durante as préximas horas, que iriam comegar a ser construidas as est6rias fabulosas sobre a primeira estada do capito-mor em terras de Qualecut, no distantee térrido veriio de quatrocentos e noventa € oto; quando chegassem ao cais de Ulissia, estariam: t20 distorcidas e cheias de efabulagGes, inocentes ou premeditadas, aque falvez nunca se conhecesse 0 que sucedera, verdadeira- ‘mente, naqueles quatro ou cinco dias. Os manijos ndo costu- mavam deixar 05 seus eréditos por mos alhcias, ¢ ja iam imaginando, no segredo dos seus coragées, episédios ainda mais sangrentos, inesperados, inslitos, improvaveis e maravi- Ihosos do que a verdade do sucedido.»" 1 que, como diz dem, 409, "= Her, 380 38 Benedicto da Anunci j0 a0 escriba Tristo, «um nauta frange nunca sentia medo ou angéstia (...) um comando frange nunca falhava nem desaparecia do convés,¢ (..) toda aquela grande empresa, na qual ambos participavam, nao estava suficiente- mente honrada, enaltecida, exaltada, no seu texto, Além disso, 36 por mé vontade se poderiam considerar certas atitudes do ‘comando como humithagdes propositadas, crueldades desne- cessétias, ou ignorncia pacévia; os fidalgos eram gente de valor, conhecedores dos mistérios da Fé e da corte; e, se assim agiam, faziam-no unicamente para bem de todos ¢ da sua missdo.»>", representando, o porta-vor da censura, do discurso o poder, oficial, que permanecers a0 longo dos séeulos. Uma prolepse do narrador demuncia essa mudanga que é praticada por um discurso voluntariamente elogioso do passa- do: «Os marujos vociferaram-lhes os piores palavrdes que sabjam, com quantas forgas tinham, e ninguém do comando se atreveu a mandé-los calar. Fra assim sempre que s bombardas chamavam ao combate. Estes treze meses de viagem tinham acumulado muitos rancores. Porém, quem sobrevivesse a0 regresso seria um novo homem a chegada; honrado e respei- tado por todos; talvez mesmo com o nome inscrito nas décadas da hist6ria, ou nos poemas, romances, ¢ epopeias que muitos haveriam de compor!* As realidades, em geral, escamoteadas ou idealizadas, siio referidas no romance de Miguel Medina com crueza digna Hen, 9558 dem, 464 54 de nota, como € © caso das doengas que acometiam os mari- nheiros, de que,o escorbuto € talvez. 0 exemplo mais flagrante, ou da ignordncia dos portugueses em relagdo a religiao profes- sada pelos indianos. A implacabilidade de Vasco da Gama e dos outros capities para com os natives é demonstrada em vérias passagens, destacando-se a do velho vendedor de fruta que ¢ atiraclo a0 mar por nao responder cabalmente as pergun- tas que the fazem. A atracgo que a cativa Fatma exerce no marinheito Jodo 4 azo a indnicas referéncias As aparigées de Nossa Senhora, em Fatima, mais de quatrocentos anos depois, 0 que acentua 1 nogio de relatividade do tempo e da sta possivel reversi bilidade: 7 ‘<0 Joto diz que teve um sonho, Uma espécie de visto. E qu’andou & volta da terra abracado a ela. ~A virgem ou & Fatima? ~ perguntou jocosamente André Peres. Os outros riram, = Diz. qu’andou abragado as duas. Que no fundo era uma 86, que se misturavam. (..) — Ble garante que foi o senhor que a colocou no caminho da gente para nos salvar das pestes. Que ela Ihe apareceu sobre as dguas, vestida da mesma maneira da imagem 1é da terra dele, © que Ihe disse trés segredos que no pode revelar..(..) = Quer dizer que ele teve uma visio, que ha mais uma vvirgem para venerarmos, esta negra, € que ele conhece trés segredos divinos...- exclamou André Peres. Irrt..Jsso nem a ‘um pastorinho da Judeia.. 58 ~Temos um grumete visiondrio a bordo— ironizou Tristio, rindo-se. ~ E quais serdo os tais segredos? = Ora, se calhar é sobre a conversio da seita mourisca — exclamou André Peres.— ..0t dos pagtios do oriente, Dond’é le? — perguntou a Gil. ‘Ali duns reguengos que ficam para Ié da cova da Iria. A caminho da vila de Ourém, conhecem?>" A diversidade de focalizagdes, que apontémos, destina-se priottariamente a desirur a versio tinica ¢ consagrada da viagem de Vasco da Gama & india, como aliés ja repetidamente enun- cidmos, Contudo, ¢ apesar da referéncia a um ou outro exem- plo, ainda nfo nos debrugdmos sistematicamente sobre este problema que nos pareceu dos mais aliciantes de todo romance ‘O narrador tanto assume uma focalizago extema («Estes alvos da ‘rota tinham outras vides, € parecia ndo conseguirem entender-se ‘com 05 mouros»!") como ostenta um saber decla-radamente om- nisciente («Nenhum deles sabia, mas tinham diante de si a grande deusa Kali, esposa de Xiva-o- destruidor»"”). Esta alterndncia reflecte-se também na parcialidade de perspectivas que vio sendo apontadas: os nativos discutem os estranhos modos dos alvos (portugueses); Nuno Castro (co- mandante da Bérrio) focaliza negativamente Vasco da Gama e seu irmio Paulo, que sao igualmente perspectivados por um dos padres; Tristdo focaliza o médico, Luis Vaz, assim como "dem, p-208-208. idem, p75, "Hem, p30, as histérias contadas por Hemando Pacheco, bombardeito; 0 ‘grumete Jodo visuatiza a cidade de Mombaga; a opinido sobre a existincia das varias classes sociais é-nos dada através do ‘mordomo Xavier; uma visio dos portugueses € apresentada ‘nos pensamentos do soldiio Omar; ete, ete. Como facilmente se verifica, a focalizagio & priotitaria- mente atribuida & gente mitida de bordo ou aos indigenas das vvésins regides. O ponto de vista de Vasco da Gama ou do irmao munca € referido e estes, curiosamente munca so chamados pelos respectivos nomes, mas sempre como “o comandante” € “o inmio do comandante”, funcionando as perifrases como ate- rmuantes na atribuigo da consagrada heroicidade, Além do Maar & pois, um dos casos mais curiosos de ‘iltipla focalizagio e de desvio do ponto de vista conservador, na tentativa de desmitificar 0 passado, passado que determi- nados interesses nacionais tomo mais lendétio do que refe- rencial Mario Ctiudio, Peregrinagdo de Barnabé das Indias Publicado em 1998 (no quinto centendrio da viagem), este romance de Mario Cléudio apresenta uma viséo bem diferente das até agora abordadas. Nao hi propriamente a reconstituigo de uma época histérica ou a proposta de uma sequéncia alter- nativa & cientificamente comprovada. HA sim uma espécie de reflexio sobre verdades intemporais, incluindo a passagem inexordvel do tempo ¢ 0 seu tiltimo significado. 37 A viagem do descobrimento da India, visionada por ‘Bamabé, um marinheiro judeu, falsamente convertido, © por ‘Vasco da Gama, com 0 qual possui varios tragos identificativos, assume-se como um percurso iniciético, j4 antevisto na propria epigrafe, de um Documento cisterciense do sécwlo XII: «De ti se servem, 6 morte inimiga nossa, para alcancar a alegria, tu, que é a mie do infortinio; adverséria da gloria, a0 servi- 0 da gloria € que te colocam; de ti se servem, porta do In- femo, para entrar no Reino; de ti, abismo da perda, para atingir a salvagio» ‘Comegando a narrativa “in ultimas res”, Vasco da Gama ‘e Bamabé estio velhos e recordam 0 passado («um lugar de imobilidades, tio deserto de linhas e tio oco de sons"), desde a juventude até 2 oélebre viagem. Querendo significar a vetus- tez do almirante, 0 narrador apresenta-o ". ‘Anos mais tarde, em Lisboa, quando ainda jovem, observa © Tejo € as naus € consegue 6 destringar o significado oculto das navegagdes que aparentemente visam 0 comércio ou a expansio da fé: «Eram naus e batéis, galés e pinagas, algumas rareantes caravelas, ¢ barinéis e canoas ¢ barcagas, navios que tinham acabado de transpor a barra, ou que se encontravam prestes a zarpar rumo a uma distancia que niio cabia no deva- neio. E outros muitos se iam construindo, e tomava-se Barabé de susto manso, considerando que 0 Reino de si préprio se evadia, roido pelas feridas que expunha no escadério dos tem- pilos, buscando uma allemativa & sua arrastada podtridéo, con- sumindo-se na tessitura de um imenso sonho salvifico.»" ‘Tomando Vasco da Gama e Bamnabé como focalizadores, © narrador oscila entre a 3* pessoa e as I" pessoas de uma ou outra personagem. Por vezes, os periods so enormes e com "1 fdem, p53. "dem, ps idem, ps. 59 pouca pontuagio, 0 que certamente prefigura a linguagem oral dos respectivos protagonistas, tendendo a intensificar a impor- tancia das duas focalizagdes em confronto. Se hé passagens onde nitidamente deparamos com o ponto de vista do almirante («no esqueceria Vasco 0 vulto daquele amaldigoado rei Joao 1b», outras ha cujo visualizador é, sem dtivida, Bamabé («E apercebia-se Bamabé, desvanecido com o que Ihe ia surgindo, (..) de como distintos se tomavam os negros de semelhante zona [Cabo Verde] dos que, ajoujados & bruteza dos carretos, ‘ou compelidos a apajar 0s respectivos amos, povoavam as ruas de Lisboa, desprendendo dos costados 0 transpirado rango da sua miseranda condigzo.»"®). Nao € até dificil sentir a estra- nheza que a visio de Bamabé favorece, quando ela se torna demasiado eridita, para um grumete de tio humilde condi apesar do evidente percurso inicidtico que a viagem represent «(..)¢ persistiamos na nossa singradura, ¢ imaginava eu [Barna- bé] a “Sto Rafael” como um presidio no meio da extensdo da mais vasta liberdade, e fantasiava que por cordas ¢ cordas se tinham substituido os ferros que nas janelas dos cérceres soem, de se cravar, ¢ que para além de tamanha fartura de cordame multiplicadas grades se plantariam, a despeito de totalmente invisiveis serem elas ¢ resultavam dos ardis de Natureza (..)>™ Como se poderé verificar na tiltima citagio ¢ em muitas outras, que seria indtil transcrever, 0 condicional contrafactual Idem, p23. "dem, pS. Idem, pp. 128-129. 60 assume um importante papel no discurso romanesco. O condi cional, ao impor uma condigéo, levanta a hipétese plausivel, légica, segundo 0 desenrolar da narrativa. a Hist6ria possi- vel, provavel, que ndo vem nos manuais, mas que s6 se poderia ter passado assim, Mas 0 condicional é também a certeza futura ‘modalizada, sem a arrogancia que o futuro simples implica. Ao usar este modo, 0 narrador situa-se num tempo de certa forma contrafactual que, apesar de todos os artificios, o torna ainda ‘mais omnipotente ¢ omnipresente: «Ao longe, encobrindo-se no pudor das méquinas de passageira vantagam, “reparariam” ‘08 curiosos na barcaga que constituia mero armazém de ma- teriais heterdclitos, e que, esvaziada da utilidade, irremissivel- mente “haveria” de se incendiar.»™. Jé referimos vérias vezes que a viagem aqui evocada se estrutura como um percurso iniciético (que os diversos elemen- tos assinalados ajudam a completar), mas ainda ndo analisamos convenientemente 0s processos de que o narrador se serve para justificar ¢ corroborar tal percurso, Comegando pelo indice do romance, que naturalmente corresponde ao nome dos capitu- los, verificamos desde logo que os termos empregues (um substantive antecedido pelo artigo definido, no plural) podem ser interpretados como as vérias etapas necessérias para se atingir a “Verdade” (A.“Lu2”): «As Neves; Os Deménios; As Chagas; Os Loucos; As Cordas; Os Peixes; Os Anjos; As Cidades; As Pombas; As Luzesy. "Idem, p.115, 0 sublinhado € nosso. 61 Os primeiro ¢ segundo capttulos, assim como os peniilti- ‘mo € tltimo comegam com definigdes, que indiciam o tom que. preside A apresentacdo das personagens Vasco da Gama Barnabé, Descritas como fazendo parte de um grupo etitio ef ‘ou profissional, elas acabam por se pasticularizar, dentro da generalizagio que 86 aparentemente existe: «Um velho [refere- se a Vasco da Gama] no Invemo & a morte soprada, o tempo dorido, os fantasmas que a paciéneia esfarrapou.»!; «Um pomar de Cister (lugar onde evolui Bamabé] € 0 desejo da fartura que © Senhor fertliza, 0 labor das estagdes entre o sol e a chuva, a dimenso apropridvel do Parafso perdido»'®; «Um pedinte [Barnabé] no Inverno € 0 percurso retomado, 0 bordio que se deixa cair, a magoa que nfo amoma no lume que esmore- coun"; «Um olhar de marujo [Bamabé] é 0 caminho dos en- _ganos, a esperanga que as nuvens adiam, a manga que se abstém de a tristeza enxugar'! Ao longo dos vérios capftulos vao surgindo diversos por ‘menores que marcam 0 universo de profecia e premonigio que se vive em todo 0 romance. Durante a infancia de Bamnabé, 0 afogamento de um amigo, André, iré ter grande importncia na ‘medida em que ele aparece em momentos importantes para guiar 0 marinheiro no décalo de sinais que se Ihe deparam. ‘Todo 0 percurso do rapaz é marcado, desde a referéncia a uma "Idem, 13. "Iden, ps Edom, 9.235 Idem, p.258, a doenga venérea, até a escolha que sobre ele recai pata integrar ‘armada da fndia, ¢ que se reveste de inimeros sinais incontor- naveis: ndo s6 se alude ditectamente a uma salianga com 0 Se- rnhor»"™, como se transcrevem as profecias que o tio judeu pro- ‘ere aquando da partida ou as do anjo S. Rafael, que sistema- ticamente Ihe aparece, quando aterrorizado, Bamabé se vale de rezas judias: «E estendeu para ele Bamabé os bragos desimpe- didos, ¢ tomou-o a visto que se ampliara até ao firmamento, ‘e na capa enfunada o abrigon, protegendo-o como se infante ‘osse 0 mancebo, e contra as fias disparadas. E uma cintilan- te planicie se espraiava, € nfio correspondia a oceano, mas aragem fresquissima do que ndo alcanga termo e em si se dis- solve, ¢ na docura de que se compée. E pelos espagos 0 arre- batava a entidade que o socorrera, atrastando-o para um furaro ‘onde 0 tempo se extinguia, ¢ desdobrava-se a Asia como 0 império sem limites, tio achegada & alma que nela se ia engas- tando, tio fecunda das preciosidades que formam a coroa dos ‘conquistadores da gléria da promissfo. B voavam a par, ma- tinheiro € arcanjo, reunidos na maquina que 0 Espirito sustém, ¢ desgrenhavam.-se no azul os cabelos de ambos, ¢ um Iuzeiro se thes incrustara nas érbitas, e em sua esteira de cen- telhas flutuavam os que pelo Planeta tinham vagueado desde © prinefpio do Mundo, € na unidade se congregavam, ¢ nem Jhes pertencia 0 rosto, porquanto Ihes retirara Rafael a mascara ‘que os corrompera.»” fem 999. "Eder, 9p.199-200, 63 A teans-relatividade que claramente se entrevé na passa- ‘gem transritaimprime a Bamabé uma natureza mais conceptual do que fisica, ao atribuir-he poderes préprios de um Deus, como o de curar ou de percebero titimo significado das pombas ue sobrevoam as caravelas. Ciente de que «dobrara 0s cabos, «€ vencera os remoins, ¢ contornara as mongées, de uma tra- vessia interior», 0 marinheiro consegue aprender o signifi- cado iltimo do Mundo («um livro descerrado onde inumeré- veis sinais se leriams'), ao dar-se conta do seu poder curativo ¢ a0 entender a transsubstanciagdo dos companheiros mortos, nas pombas que o abordam. A india deixa assim de ser apenas uum pafs onde os portugueses foram buscar mais baratas as es- peciarias de que necessitavam, para se tomar num espaco de iniciaglo, cujo verdadeiro descobridor é Bamabé: «S6 ento assentou nele a vista Vasco da Gama e, tendo-the pedido que 6 libertasse da bota que o inchaco do pé esquerdo lhe compri- mia, eis que, amochando o de Ucanha (Barnabé, natural dessa terra] para satisfazer o seu amo, um brando toque sentiu nos cabelos encanecidos, e a roufenha voz que estas coisas the ‘murmurava, "Deus te abengoe, meu rapaz, que foste tu, foste tu, e mais ninguém, quem essas Indias na verdade desco- Driv.» fio deixa de ser interessante 0 facto de ser umn judeu, mesmo se converso fingido, o detentor dessa sabedoria interior "5 dem, p85, "Idem, 287 "Idem, p278. 4 € 0 motor iltimo da viagem. Como nao deixa de ser signifi- caliva a identificagio entre o grumete e Vasco da Gama, iden- tificacdo que se inicia pela solidariedade que 0 medo comum institui € termina na velhice partilhada: «E nfo se apertava o bbucho do mogo no medo de que Ihe inferissem o judaismo, porque terror mais vasto aprendera ele no semblante de Vasco da Gama, 0 que os tomava idénticos nesse plano onde de modo Sinico as razdes da fraternidade se exprimem.»™” ‘Medos que oscilam constantemente entre a realidade ¢ 2 ficgdo, os temores das lendas ¢ os perigos que realmente se deparam. A figura da hidra significa o terror sempre renascido, © monstro de que se ndo pode fugir, porque 0 sonho e a sua representacdo referencial raramente correspondem: «(..)eom- preendi [Vasco da Gama] que nao equivalia a [cidade] avistada de bordo & minha povoagdo de fantasia, (..) e cada regio achada em regio dissipada se converte, e cada viagam em nova decepeio (..)», daf que 0 almirante chegue a afirmar ‘que «em sonho, ¢ em nada mais, singraram as armadas em que [sle metfeu>™. No entanto, ¢ num aparente paradoxo, 0 livro no se esgota na visio iniciética a que temos feito referencia, Entrelagados com ela, surgem segmentos cuja referencialidade no pode deixar margem a diividas ¢ que inegavelmente retratam a con- juntura da época, numa perspectiva critica e objectiva. Frases "dem, p11) "fen 208, Ede, p233. 6 como «os navios abarrotados da cobiga de Portugal»" ou sparecia-the (a Bamabé] a empresa em que se alistara uma doideira varrida»™’, aliadas a uma focalizagio critica de D. ‘Manuel 1, que s6 para si quer a gl6ria, a uma auto-anélise que ‘© Gama faz do seu préprio discurso encomidstico sobre 0 rei Portugués, ou a uma pormenorizagao narrativa dos ambientes © costumes, desdle 0 equivoco religioso até a orgenizacdo por ceastas, concorrem para estabelecer 0 dificil equilfbrio entre o real do passado ¢ a sua leitura no presente. Se 0 romance oscila entre 0 factual e 0 contrafactual, a verdade & que hi a preocupagao em omitir a repetigao exces- siva de razSes e motivos, apostando-se numa economia narra- tiva que sugere mais do que afirma, ao perscrutar 0 intimo das dduas personagens em confronto. Ao receber de D. Jogo III 0 convite para governador da India, assistimos ao dilema interior de Vesco da Gama, que se prefigura nos medos ancestrais («E por detrs da sua imagem ressurgia a sereia ¢ 0 grifo, a harpia € 0 dragio, e eis que estremeceu de ftio pasmo, e sobre tudo isto um aguaceiro desabou»'®) e nos coneretos medos do pre sente (4B laborando depois nas suas fragilidades, as quais, no fisico se reflectindo, mercé de enjoos e de arrepios, de espas- ‘mos e de comichdes, de mégoas das cruzes e de apertos da cabega (..)>!), Nao é dito expressamente que Gama aceita, Fem, pa. fem: 123. 9 fem, 282. " fdem. pp 280-281, 66 ‘mas quando se 1é «E juncava-se 0 soalho de arcazes e de bats € de fardos, os quais a outros muitos em Lisboa seriam acres- cidos, porque de parciménia se nfo revestia a viagem»", adivinha-se facilmente a resposta, mesmo que a nfo saibamos através do discurso oficial, de que os historiadores se encarre- garam. Romance que niio contesta a versio consagrada, mas que enriquece, imprimindo-Ihe um tom profético e premonitério que no anda longe do significado que o inconsciente colectivo nacional the atribuiu, desde Os Lusfadas. Idem, p28) o Antologia Pinheiro Chagas, A Descoberta da india Contada por um Marinheiro 1891. “Na noite seguinte, Gaspar Correia, sentado no seu ei- rado, tendo mandado por uma garrafa de bom vinho do reino ‘a9 alcance do narrador, ouvia em siléncio a continuagio da sua historia. = Haveis de saber, st. Gaspar Correia, que o st. Vasco da Gama, que muito se aconselhara com os mareantes que ti- tnham dobrado 0 cabo da Boa Esperanga, resolvera afastar-se ‘o mais possfvel da costa, ndo s6 para escapar as calmarias da Guiné, mas também para ir direito ao cabo, que entrava rauito pelo mar, ¢ que dobrarfamos com mais facitidade indo do mar de onde soprava quase sempre 0 vento, do que indo encos- tados & terma, e por conseguinte contra 0 vento. Estévamos todos bem dispostos. Passimos por Cabo Verde, ¢ depois 0 mar te valha! Mas qué! jé todos 0 conhecfamos, e, como havia comida com abundancia ¢ gua nao faltava e © tempo cera bonangoso, nfo nos ralavamos muito. O servigo a bordo fazia-se com um tigor que no vos digo nada. O st. Vasco da Gama Ié nisso no brincava; mas no mais mostrava~se pra- zenteiro e folio. As naus as vezes aproximavam-se tanto que conversavivamos de um lado para 0 outro, ¢ eram risos € festangas que de certo os peixes se espantavam daquela folia Quando famos longe uns dos outros, cada um se entretinha como podia. A noite, nos quartos de vigftia, era tudo contar 8 hist6rias, ¢ lembrarmo-nos das nossas terras ¢ das nossas fa- rilias, ¢ narrarmos © que nos sucedera em Lisboa. Muita vez aparecia o st. Vaseo da Gama, ¢ calava-se tudo. Mas ele, em vendo que 0 homem do leme estava no seu posto, e prontos para a manobra, era o primeiro a dizer-nos que rissemos & folgéssemos, que gente merencéria ndo era para aquelles tra- balhos. E uma vez que elle disse isto respondeu-Ihe o Femao Veloso, que era homem engragado: ~ Tendes raz, st. eapitio-mor, eu também s6 em terra € que estou triste... por causa dos credores. = Ralam-vos muito, Ferntio Veloso? — Nao me ralam nada, mas, como tristezas ndo pagam dividas, en fago uma cara muito triste, que € 0 mesmo que dizer-Ihes: «Nao apanhais nem um maravedic» Quando pareceu que j4 estarfamos na altura do cabo, virémos para terra, e no tardémos a encontrar a costa, mas qual! era costa conhecida, ¢ que corria para o sul. Tornmos 0 mar, indo pela bolina quanto podiamos, mas © mar é que estava j4 mais carrancudo ¢ 08 navios bailavam que era um regalo. Assim andémos ainda muitos dias, ¢ jé se nao folgava tanto nos quartos, e 4 havia longos siléncios, e jé se dizia: ~ Bste cabo dobra-se ou no se dobra? ‘Tornamos a enfiar para terra, € todos olhévamos com softeguidio para ver se ela seguia outro rumo. Mas qual! ‘Terra desconhecida era, que nunca ali tinham chegado as nossas caravelas, mas seguia 0 mesmo rumo que a outra de modo que parecia que esbarrévamos sempre com um muro que nos no deixava passat: o EB aqui fomémos na volta do mar, sempre pela bolina, & fazenco forga contra 0 vento que era rijo, ¢ 0s marinheiros diziam: — Entio nés andamos toda a vida a jogar a péla com a costa’? pior € que o mar é que jogava a péla conosco. Sal- vamos que era uma coisa por demais, ¢ as vagas temerosas € altas sacudiam.-nos como 0 chouto de um macho pode sacudit uns alforges. Ah! que tempo aquele, st. Gaspar Correia, ¢ que duro que estava 0 mat! De noite era um infemo. Rugiam as ondas que parecia uma trovoada formidavel e incessante. Quando estévamos de quarto era um trabalho continuado. Andévamos sempre a escomer, alagados em agua e em suor. Deitivamo- nos a ttitar com frio, ¢ quando dormiamos, tinhamos sempre no ouvido aqueles roncos espantosos do mat, de forma que nem © sono nos fazia bem. A mim o que me fazia bem, era que sonhava com a Pedemeira, ¢ aquele bramido das ondas que me zumbia nos ouvidos parecia-me o clamor das vagas da nossa costa, ¢ parecia-me que estava em casa, com a minha boa velha a fazer a ceia, ow de dia, a consertar as redes, ¢ eu, de papo para o ar, na praia, a ver lé a0 longe o monte da Na- zaré e 0 sitio da gruta onde esté a milagrosa Senhora. B quan- do acordava em sobressalto ¢ que via as tébuas do navio © percebia que estava no mar alto, no mar ignorado, dizia comi- -g0: «A minha vetha esté a rezar por mim. E a Senhora da Na- zaré nido se esquece de me proteger.» Onde iam jé as historias do quarto de alva, e os descantes da tarde? Tudo andava calado ¢ triste, e, se Fernfo Veloso 70 dizia algumas pilhérias, ninguem se ria. $6 0 st. Vasco da Gama é que Ihe achava graca, sempre de cara prazenteira, ¢ dizia: ~ Va, rapazes! que isto esta por pouco © que ele pensava quando se via sozinho na sua cémara nfo o sei eu, mas diante de nés estava sempre sereno, que pa recia to seguro do caminho da India como eu do caminho dda Pedemeira para Peniche Andivamos jé havia um més naquela faina © naquelas angiistias, quando tomsémos a demandar a terra. Ah quando a ‘mos apaecer, julgémos que tinhamos chegado ao fim dos nossos trabalhos. Mas apenas observmos que a terra continuava sem- pre no mesmo rumo, e que vimos os pilotos a fazer sondagens a abanar a cabeca, sentimos um deselento tamanho, que houve alguns que comecaram a chorar, ¢ a dizer que queriam volta para a sua terra, que era tentar a Deus ir mais para diante Mas Vasco da Gama, que os ouviu, deu-Ihes um berro que estremeceram todos ~ Eh Ja! Marinheiros! que se algum fala em tomar a Lis- boa, vai, mas é a nado! Entio com que gente estou eu meti- do? Trouxe meninos de mama que choram com medo? © pri- meiro que me abra o bico vai a ferros para 0 porto, E era capaz de 0 fazer, por isso todos se calaram, ¢ nds 14 fomos a tera para ver 0 que aquilo era e para desemibrulhar as pernas, Mas qué! tudo areia, sempre areia e deserto, deser- to que nem uum animal aparecia, E eu, quando vi os pilotos e capitdes reunirem-se na cfmara do st. Vasco da Gama, nfo me pude ter que nio fosse escutar & porta m = Senor, dizia um deles, a esta terra nunca os nossos chegaram, e 0 cabo nao aparece. E que o passémos j4; mas a costa, se ia algum pedago para o norte, volta depois a sul, € segue até a0 fim do mundo, cortando o mar como um pareddo que se no pode romper. ~ Thiste piloto sois, amigo! respondeu-lhe com azedume ‘Vasco da Gama. Nao ha paredes nem paredées. Eu informei- me com 0 judeu Cacoto que, sem ter navegado, sabe mais do que vs todos que andais no mar desde pequenos. E v6s, Pero de Alenquer, também sois da opinido dos outros? — Bu, senhor, ndo ereio que no haja cabo. Pois se eu mesmo o dobrei, se a terra in subindo, subindo, subindol... Mas quem sabe li se depois de subir descial... Hé tanto tem- po que andamos nesta volta que é impossivel que hé mais de cito dias pelo menos niio tenhamos dobrado 0 eabo ... cabo da Mé-Esperanga, que de boa nfo a foi ele para nés, Neste momento senti que se dava um murro na mesa ¢ ouvi a vor agastada do sr. Vasco da Gama, que dizi: = Por Deus vos juro que hei-de dar volta ao mar, € que vos levarei arrastados pelas barbas, se tanto for preciso. Ah! que se Cristovao Colombo tivesse gente assim, nunca teria feito ao rei de Castela 0 servigo que Ihe fez! ~ Senhor, disse Pero de Alenquer, sois injusto ¢ cruel. Quando a gente de Cristovdo Colombo se viu em transes afligdes, quis voltar para a Espanha, e s6 nio voltou porque dai a trés dias viram os gageiros a terra, E nés andémos hé tum més nesta faina ¢ nestas angtstias, ¢ ndo é muito que a ‘gente principie a descorogoar € a queixar-se. Se me quereis, n arrastar pelas barbas, st. Vasco da Gama, fazei-o embora, mas sabei que essas barbas encaneceram dé muito batidas que tém sido pela escuma destes mares. Pedistes 0 meu voto, eu dei- (9; mas agora, como quando para este lado vim com Bartolomeu Dias, dou de barato @ mina vida, e, se Deus Nosso Senhor quiser que eu morra nestas aguas, nio me da sendo 0 timulo que eu merego e que eu desejo. Vamos dar volta a0 mar. Meu velho Pero de Alemquer, disse Vasco da Gama em tom brando, nunca de vs duvidei. Companheiros seremos, ou na morte, ou na gléria, Vamos. Senti que se levantavam. Eu escape joethos @ um canto do navio, murmurei: = Nossa Senhora da Nazaré me valha! Ait minha velhi- tha que te no tomo a ver () ‘Ah! sz. Gaspar Correia, que noites e que dias aqueles! Noite parecia sempre, tio densa era a escutidio, ¢ tio pouco tempo se demorava o sol no horizonte. O mar estava proce- Joso como nunca o vi, mesmo depois que ja por ali passei cinco ou seis vezes. As vagas eram duma altura que pareciam ‘montanhas que ameagavam desabar em cima de n6s, a cer- ago era medonha, 0 bramir do mar pavoroso. Houve um dia, sobretudo, em que nos julgémos perdidos sem remédio, ‘e mais ainda, em que os velhos terrores do mar nos entravam na alma ¢ nos ensandeceram quase, ne, e, caindo de Era ao anoitecer. O mar estava bravo como nunca. 0 vento soprava rijo. Q navio fazia 4gua que era uma dor de al- ‘ma, Os mastros iam amarrados. Nés, rendidos de fadiga, esten- 2B didos na tolda, nem fazfamos caso da chuva fria que nos rege- lava até a0s 0350s. O nosso desejo era morrer_para zcabar com ‘aqueles tormentos ¢ com aquelas tormentas. Talvez. Nosso Se- inhor se compadecesse de nés, e nos daria um lugar no P-rafso em paga do muito que tinhamos softido pela sua santa causa, Nisto um relémpago formidével ilumina 0 céu jé som- brio com as primeiras trevas da noite, ¢ mostra-nos vivamen- te 0 especticulo medonho daquelas ondas enormes, que se estendiam por todos os lados, brilhantes de espuma, que pareciam os dentes anavalhados duma alcateia de lobos furi- sos que vinham sobre nés para nos devorar. As outras naus, 4 pouca distancia, bailavam como nés em cima das vagas, ¢, com o balango da nau, parecia que as estrelas, que principi- vam a aparecer, cotriam na ponta dos mastros nuina cazreira doida. Depois estalou um trovdo medonho, que se fez ouvir no meio do rugido incessamte do mar. = Santa Barbara! exclamaram todos. A noite cerrou-se, € a trovoada continuos, Nao era uma {tovoada, eram umas poucas que estalavam em todos 0s pontos do horizonte. O vento largou a soprar com uma fiiria pasmo- sa. Corremos & manobra, uns a estancar a égua do navio, outros a ferrar as velas, a segurar mais os mastvos, a reforgar © leme. Mas as trovoadas cada vez se aproximavam mais, as ondas cavavam-se de modo que pareciam sorver-nos ou le- vantavam-se de tal forma que nos atiravam ao céu forrado de preto como um atatde. A cada instante 0s raios cortavam a noite, e mostravam- ‘Ros sempre os navios a saltar como pélas, a espuma a correr m € a alastrar-se por todos 0s lados, ao passo que até onde os olhos podiam alcangar no se avistavam sendo ondas sobre ‘ondas que galgavam por cima umas das outras, como feras que se atiravam esfomeadas em perseguigo do viajante, A luz do raio como que acendia em todas elas olhos esbraseados, e parecia que as viamos arreganhar os beigos em que brangue- java a espuma. Num desses momentos estévamos bem pré- ximos da nau do capitiio-mor, para podermos ver, @ sua alta figura no meio dos marinheiros aterrados, Estava descoberto, de espada na mao, ¢ 0 vento desgrenhava-lhe 0 cabelo, ¢ en- funava-Ihe @ capa. Ah! st. Gaspar Correia, que me pareceu ver 0 diabo a arrastar-nos ao inferno! ‘Também levantou-se um clamor em toda a nau, € um de nds bradou! = Isto € morrer, como gente bestial que vai por suas ios tomar a morte que @ hé-de levar ao inferno! = Que se percam as nossas vidas! bradou umm, mas que se no percam as almast — Estamos no mar das trevas! acudiu um terceito, © in- emo comega aqui, que bem 0 mostram 0s raios ¢ 08 coriscos. ~ Valei-nos, Senhor, por vossa infinita misericérdia! ~ Para Portugal! para Portugal! bradaram todos em alta rita. ~Caluda, rapazes! bradou Nicolau Coelho. Que é li isso? Nio se trata de saber para onde vamos nem para onde vamos. Trata-se de cuidarmos das nossas vidas € das nossas almas, e para isso 0 que se faz é trabalhar como uns homens € no gritar como criangas medrosas 0 75 Mas 0s trovbes abafavam-lhe a voz, ¢ 0s raios cafam em tomo da nau, como para nos mostrarem bem claramente 0 abismo que 0 mar cavava aos nossos pés — Jesus! bradei eu de repente, quando um relampago envolveu numa larga fita todo 0 horizonte ~ 0 que é? exclamou Nicolau Coetho, espantado com 0 tom apavorado da minha voz, ¢ ele bem sabia que eu no era dos que se assustavam mais. Nao péde dizer sendo estas palavras: — A estétua! a estétua! Respondeu-me um grito imenso de terror: Ab! st. Gaspar Correia, nfo sei como se formara aquela visio na minha alma: 0 que cu vi, juro pela alma de minha mie, 0 que eu vi quando o raio iluminou o céu ¢ 0 mar foi para o lado de leste uma sombra imensa que me pareceu uma figura com o brago estendido, uma daquelas estatuas que 0s nossos diziam que se levantavam como sentinelas no mar para proibirem a passagem. Todos olhavam ansiosos ¢ trému- los para o sitio que eu indicara; mas, quando veio outro relmpago, no vimos ja para esse lado sendo as montanthas de agua a encavalarem-se por cima umas das outtas. — Estds doido! acudiu Nicolau Coelho. O que tu viste foi © que tinhas na cachiménia, de assustados que vés andais sempre todos com essas visdes de Satanés que nio pensa sendo em perder a nossa alma, arredando-nos do sitio onde Ihe iremos arrancar muitas almas que artebanha. Olha, af vem ‘lua, e bem vinda seja ela, que vai afugentar as visbes de mé ‘morte com que Satanés vos persegue. 76 Bifectivamente a lua, nesse momento, rompia mansa € clara no céu em que as nuvens se rasgavam. Com 0 naseer da lua amainara o vento, ¢ 0 mar aplacava as ondas. A sua luz serena espalhou-se por todos os pontos do horizonte, & no deixava lugar aos pesadelos da tormenta. Era t20 boa, tio rmeiga aquela nossa companheira, que assim parecia vir tra- zer-nos saudades de Portugal, que todos ficémos a olhar para cla embasbacados e agradecidos. A todos parece que acudiu 4 ideia de que na lua vinha, como num andor de prata, a Virgem Senhora Nossa, a nossa santa salvadora, porque, apenas fr, Jodo cain de joelhos, exclamando: — Ave Maria, cheia de graga. ‘Todos caimos de joclhos, ¢, de mios postas, voltados sem saber porqué para a lua, braddmos em cheio: 0 Senhor ¢ convosco, bendita sois vés entre as mulheres. E fr, ToXo tomnou: = Bendito é 0 fruto do vosso ventre, Jesus. E nés solugantes, com o rosto banhado de ligrimas, a ‘pensarmos nas nossas mies, € nas nossas mulheres € nos rnossos filhos, que essa hora talvez rezavam por nés na nossa terra, dissemos: ~ Santa Maria, mie de Deus, rogai por nés pecadores. Eo frade murmurou: — Agora e na hora da nossa morte. Amen Jesus! (© mar mais manso, mas sempre rugidor e encapelado, fazia-me lembrar 0 orgio da igreja de Alcobaga, quando acompanhava também, a vésperas, as rezas dos frades € do povo. E a lua subia que parecia mesmo uma héstia que as 7 ios do padre levantavam, no levantar a Deus. E por toda 4 parte se espalhava uma claridade branda e meiga que nos consolava de tantas angiistias, e nos fazia ter outra vez. espe- inga, Eu € que nfo me esquecia da figura horrenda que um stante me pareceu ver, e ainda hoje estou em dizer, sr. Gaspar Correia, que aquillo nao era seno 0 monte do cabo da Boa Esperanga, que vi confusamente ao longe, e que nés dobri- mos, sem 0 saber, nessa noite terrivel” Aatur Lobo @Avila, A Descoberta e Conquista da fndia los Portugueses. (1898), “Raiou finalmente 0 dia designado para largar do Tejo a armada que ia descobrir a india, sdbado 8 de julho de 1597, dia de Nossa Senhora. © povo de Lisboa comia pelos campos que separavam a cidade do lugar do Restelo, em que ficava a capela da invo- cago de Santa Maria de Belém, mandada construir pelo infante D. Henrique, para nela os mareantes, que partiam para as descobertas maritimas se prepararem como bons cristéos, na hipétese da morte, facil de encontrar em to arriscadas em- presas, confessando-se e tomando os sacramentos, Era por todos sabido, que dessa capela sairiam em pro- cissio os frades da ordem dos Jerénimos, a acompanhar Vasco da Gama e as guarnigdes dos navios da sua armada, e que el- rei D. Manuel viria ao Restelo dizer-Ihe o dltimo adeus, nao 78 se dando por satisfeito com a despedida oficial que Ihe fizera em Evora, entregando—Ihe o estandarte com a cruz de Cristo, destinado A nau S. Gabriel, no acto de Ihe serem apresentadlos por ele os capities das duas outras naus, S. Rafael, eS. Miguel, Paulo da Gama e Nicolau Coelho. Estas naus, ¢ a barca que as seguiria carregada com man- timentos, a cargo de Gongalo Nunes, servigal da casa de Vasco da Gama, balangavam-se no rio, niio muito distante da praia. Nelas estavam apenas os homens indispensdveis para as guardar, Todo o resto das guarnigées, que no seu total niio excediam cento e sessenta homens, entre soldados © mari- heiros, achava-se na capela do Restelo, onde os capities haviam passado a noite, velando ajoelhados diante do altar da Virgem. Chegaram em luzida cavalgada el-rei e a corte, para ali centrarem em pequenas embarcagOes que acompanhariam a armada até & barra, ‘Terminada a ceriménia religiosa, comegaram a sair proces- sionalmente da capela os monges, de cruz algada, entoando cfnticos religiosos. Seguiam-se-Ihes as guamigdes dos navios com os seus chefes subaltemos, e logo © que hoje chamat amos 0 seu estado maior: os capitiies jd mencionados, € no meio deles 0 capitio-mor; depois os pilotos, Pero de Alenquer, aque com Barto-lomeu Dias passara o Cabo da Boa Experanca, Joao de Coimbra ¢ Pedro Escobar. Vinham em seguida os escrivaes dos navios, Diogo Dias, irmio daquele navegador, Alvaro de Braga e Joto de Sé, Catminbavam apés os lingua, ¢ ao mesmo tempo pilotos, Femando Martins de Lisboa ¢ 79 Marti Afonso, ¢ por iltimo 0 confessor frei Pedro Cobilones, religioso da otdem da Santissima Trindade. Seguiam depois el-rei e a corte, ¢, fechando o presto, mais frades dos Jerénimos. Quando chegaram & beira-mar, aqueles que iam partir © tinham uma graduagio, vieram beijar a méo de el-rei, ¢ no fim de todos, os capities das naus, sendo o iltimo, Vasco da Gama, a quem el-rei ergueu, de ajoelhado que estava, ¢ abragou. Nesse momento solene, em que a comogio era geral, ergueu--se na multidgo um murmiirio de respeitosa admira- ‘eo pelo nobre carécter do chefe da armada, vendo numa ascencdo lenta a tremular a0 vento e estacar-se nitidamente do azul espléndido do céu, o estandarte com a grande cruz de Cristo vermetha, que o monarca entregara em Evora a0 ca- pitdo-mor, até topetar na gavea do masiro grande da nau do comando de seu irmao, Paulo da Gama. ~ Tendes um grande coragdo! Vasco da Gama! Disse-Ihe 1D. Manuel. — Deus vos far a mercé de serdes descobridor da India Antes porém que 0 futuro her6i tivesse tempo de respon- der, uma nota extraordinariamente discordanie quebrou 0 respeitoso siléncio que se seguira as palavras do rei = Oh! gléria de mandar! Oh! va cobiga dessa vaidade a que chamamos fama! néo abriga decerto em seu coraco Vasco da Gama. Grande coragao tem na verdade! que bem mal arriscado vai nesta empresa que tantas mortes, perigos e tor ‘mentas, fardio experimentar a0 reino! 80 ‘Todos se voltaram, e com espanto viram que tais pala- ‘ras tinham sido proferidas por um anciéo de venersvel aspecto, com longas barbas a alvejarem-Ihe sobre 0 peito, ¢ ‘que apertava ainda entre as suas as mfos de um jovem sol- dado de quem acabava de se despedir, abragando-o repetidas vezes, Conseguiu ele desprender-se daquela carinhosa cadei que parecia querer impedi-lo de deixar a patria, e vindo junto de Vasco da Gama, disse para el-ei = Perdoai Senhor! Aquele veterano de Africa, que agora falou mais como pai do que como soldado por- tugués. ‘Vasco da Gama fixou esse jovem soldado que ja conhe- cia dos mais diligentes nos tltimos aprestos da armada, e, aproveitando o ensejo para parts, disse-Ihe: ~ Embarcai no meu batel, Rui da Cunha, e vamos para as naus, se vés senhor! — concluiu para el-rei — dais licenga ue partamos... D. Manuel respondeu-lhe com uma inclinagdo de cabega afirmativa, em quanto insistentemente seguia com a vista 0 anciio que de tal modo falara, ¢ @ quem uma jovem parecia arrastar em direcedo a ermida do Restelo, como para o furtar ‘4 mais dolorosas despedidas. Vasco da Gama estava ja de pé dentro da embarcacao que 0 ia conduzir & nau S. Gabriel, na qual se viam distin- tamente os marinheitos prontos a soltarem as velas logo que © capittio-mor chegasse, esperando s6 a ordem para parti, gue D. Manuel the ditigiu com um timo adeus, jé também embarcado no batel real, dizendo-Ihe: 81 — Ide com Deus e Nossa Senhora, que seu dia € hoje! Poucos momentos depois, a mastreagdo das naus cobtia- se de pano, ¢ as pesadas naves,libertas da amarragao, singra ‘vam direitas & barra com as velas cheias. No rio, o batel rea, seguido por outros em que ia a corte e os misicos com que D. Manuel se fazia sempre acompanhar nos seus passeios pelo Tejo, estava sob os remos, ¢ puderam ainda todos ver que, logo a0 passar a barra; Paulo da Gama fazia arriar a bandeira, que s6 deixara arvorar na sua nau por obediéncia 0 capitiio-mor”. Lourengo Cayolla, O Despertar de um Sonho. (1898). “Calecut era uma das cidades mais ricas e poderosas de todo 0 Oriente, Rainha da costa do Malabar, 0 seu soberano usava 0 titulo de Samorim ou imperador, prestavam-the vassalagem os rajés de Tanor, Coulo, Travancor, Cranganor, Chembé, Cananor, Cochim, Repelim e Poreé. A cidade, situ ada esplendidamente para servir de chave a todo 0 comércio do sul da india, espreguicava-se por ondulados outeiros, cercada duma vegetago luxuriante e ubérrima, As suas hor- tas, palmares e arequais estendiam-se nas dltimas dobras das fraldas dos Gates, cujos pincaros se levantavam em frente, quase a topetar as nuvens, Era jé quase noite quando as naus entraram na ampla bafa. Chegavam por fim ao limite do seu louco itinerério. A bordo, uns cantavam, outros choravam de contentamento. 2 Esqueciam-se todas as amarguras do passado, as horas angus- tiosas de luta com a morte, os instantes de cruel desalento, para confraternizarem numa alegria comovida ¢ entusidstica. Os mais frios, mesmo, nao se furtavam ao contigio dessa alle- aria, Os que tinham qualquer ressentimento, adquirido em tantos meses de viagem, abragavam-se felizes e reconciliados. ‘Vasco da Gama meditou toda a noite na politica que devia seguir em frente do Samorim, orguihoso do seu enorme poderio. Entrava naquele porto com duas naus quase desman. teladas e com uma pequena guamicio, visto que dos cento ¢ setenta homens, que haviam safdo de Lisboa, no mais embria- gante sonho d gléria, muitos tinham ficado ja sepultados nas ondas, em sacrificio a esse sonho, envoltos na mortalha da bandeira sacrossanta das quinas. ‘Ao seu carécter altivo repugnava qualquer acto, que se pudesse tomar como uma humilhagio. Resolven portanto aguardar 0 procedimento do Samorim e, nas conversagdes travadas pelos marinheiros com os indios, que vinham nas almadias negociar com as naus, eles, por indicago do capi- téo-mor, afirmavam constantemente, que nao poderiam de- sembarcar, sem prévia autorizacio do soberano de Calecut. Ao fim do terceiro dia apareceu finalmente uma almadia conduzindo um emissério do imperador. Era um Naire, per- tencente & casta guerreira e nobre, to ciosa das suas prerro- gativas que os seus membros se sentiam maculados com 0 simples contacto de qualquer individuo de casta inferior, carecendo de passar por mil ceriménias purificadoras para ovamente merecerem a consideracio dos seus pares. O ca- 8 belo muito comprido caa-lhe solto sobre os ombros nus. Elegante, com a cor da pele de um escuro intenso, cingia a0 lado esquerdo uma adaga, delgada, redonda, com punho de madeira € no direito uma espada muito curta, sem ponta nem bainha. Perguntava da parte do imperador 0 que iam ali fazer aquelas naus. Vasco da Gama repetin 0 que dissera ao rei de Melinde, Os portugueses desejavam conhecer um soberano tio poderoso como 0 de Calecut; negociar com ele; levar os produtos daquela terra aos titimos confins do mundo, e, em nome do seu rei, o mais forte do universo, estretar amizade com os povos que iam visitando, © Samorim nao respondeu logo. O capitao-mor tinha de lutar ali com dificuldades andlogas as que o haviam quase aniquilado em Mogambique, Quiloa e Mombaga, © comércio do Oriente achava-se entio monopolizado pelos mours, mescla dos povos mais diversos, como os érabes, persas, turcomanios € outtos, mas todos wnidos no interesse supremo de mercadejarem com os indigenas, que enriqueci- ‘am esses exploradores sem escripulos, continuando eles sem- pte numa vida errigada de misérias © privagbes. ‘A chegada das naus, que, pela primeira vez, faziam flu- tuar, naquelas dguas, a gloriosa bandeira vencedora em mil batalhas, enchen-os de justificados receios. Homens, que vinham de tio longe ¢ to temerariamente se apresentavam, € que possufam qualidades de coragem ¢ tenacidade, capazes de vencer as empresas mais dificeis. Guiara- ‘08 até A india um interesse essencialmente mercantil. Assim 0 Ey afirmavam lealmente, Era preciso portanto travar-lhes © pas- 80, inutilizar-Ihes 0 ambicioso propésito e fazer-Ihes pagar bem caro 0 temerdtio projecto. Os mouros tinham a seu fa- vor 08 direitos adquiridos duma antiga soberania comercial ¢ © dinheiro suficiente para comomperem os que mais catos se fizessem pagar. Os portugueses apresentavam-se em duas frdgeis embarcagdes, que haviam arrostado com a tempestade dos mares, mas que sossobrariam na rede de inttigas e trai- ‘Ges que eles iam entretecer Os dois conselheiros mais intimos do imperador foram ‘98 primeiros corrompidos pelos nossos inimigos. E das suas sugestdes resultou demorar-se o Samorim a responder a Vasco da Gama, fazendo-o s6 alguns dias depois, mandando-the ento dizer que enviasse delegados seus para conferenciarem com ale, © capitéo-mor, querendo honrar um potentado, de cujo favor tanto carecia, escolheu para essa missio 0s trés homens, em que mais confiava, depois de seu irm@o. Eram eles Nicolau Coelho, Rui Pereira e D. Pedro da Cunha, Nessa escolha, obedecera também ao desejo de lisongear o invejoso fidalgo, porque hé muito the lera no rosto descontentamento € tris- teza, Ao mesmo tempo, sabendo ja que o Samorim era muito ambicioso e vido de riquezas, mandara colocar, quando avistara o emissésio do imperador, na tolda da S. Gabiel, as pecas de veludo ¢ cetim, barretes bordados, uma cadeira guamecida de brocado com botées cravados de prata doura- da, almofadas de cetim com borlas de fio de ouro, um cris- talino de Veneza e cinquenta facas de Flandres de punhos de 85 marfim, embebidas em riquissimas bainhas douradas e fabricadas em Lisboa, artigos que constituiam o presente, que tencionava oferecer ao imperador. Caleulou que 0 Naire no deixaria de descrever a seu amo a beleza o esplendor de tudo 0 que visse e contava antecipadamente, como quem muito conhecia as paixdes dos homens, com a influéncia que essa descripeao teria na benignidade do autocrata ‘Apesar disso, 0 Samorim nao se prestou a receber nesse ddia os portugueses. Felizmente um pobre espanhol, Alonzo Peres, natural de Sevitha, transmigrado, mercé de mil aventu- ras, para aquelas longinguas paragens, sabia das maquina- ‘ees, que se moviam contra os nossos, das intrigas, com que se assediara 0 espitito do Samori e pudera falar a Nicolau ‘Coelho pedindo-the que tivesse resignagio ¢ prudéncia. Realizou-se por fim a recepgao. O palécio, em que o im- petador habitualmente residia, estava situado no centro da ci- dade, a duas léguas do extremo em que mandara construir a vivenda, a que citara os portugueses. Essa vivenda nfo se media em sumptuosidade com o palicio régio, nao se distin- ‘au, como ele, pelas belezas que resultam da alianga do estilo 4rabe, tao ele- gante na sua simplicidade, com as opulencias exuberantes € os rendilhados do estilo indiano, mas ainda assim tinha grandeza bastante para deslumbrar 0 espitito dos nossos ingénuos marinheiros. (0 imperador achava-se deitado numa camitha, verdadei- ra preciosidade, digna das magnificéncias orientais. Cingia-o uma larga tinica de tecido de ouro e a cabega tinha-a recama- da de magnificas pedras, que o estrelavam de raios faiscantes. 86 Um Bramane, ajoelhado ao pé dele, servia-the, de quan- do em quando, uma folha de betel, que 0 poderoso soberano mastigava sem cessar. Os portugueses curvaram-se respeitosamente, admirados dessas maravilhas, com que 0 Oriente os comegava a destum- brat. Pela boca de Nicolau Coelho expuseram o desejo de ne- ‘ociar tratados de paz com o imperador, pedindo-the permis- io para poderem comerciar desde logo e trocarem 0s seus produtos pelos que ali desejavam adquisi. O Samorim era ex- cessivamente ambicoso de riquezas. Sorria-the, portanto a ideia de vero seu comércio alargado para povos téo afastados. Mas 25 insinuagdes dos seus ministros tormavam-no prudente. B, por isso, mandou retirar Nicolau Coelho, os dois fidalgos ¢ © intéxprete, prometendo enviar-Ihes resposta pelo seu Vedor da fazenda. O imperador cedia ao pedido dos portugueses e para prova registava o seu compromisso numa fotha de pal~ meira seca. Nicolau Coelho beijou a folla, que encerrava a promessa imperial. No seu regresso, Vasco da Gama mandou tocar as trombetas, embandeirar as navs ¢ salvar a artilheria, em demonstracéo de regosij. Os indios enxameavam na praia e a0 ver as velhas naus, bojudas ¢ disformes vomitarem fogo e bombardas, experi- mentaram um terror pénico por essas méquinas que pareciam imis6rias e ridiculas, mas que eram, no fundo, instrumentos teriveis de destruigao. ‘Comegaram logo as relagdes comerciais. Os feitores por- tugueses adquiriam pimenta, gengibre, cravo, noz moscada, canela ¢ mais especiarias, dando em troca coral, vermelhio, “7 azougue, cobre e outros produtos ou moedas portuguesas de ‘ouro € tostdes de prata aos que antes preferiam dinheiro. Nessus transacgdes, 08 nossos marinheiros, nem disputa- vam 0s pregos exigidos pelos indios, nem a qualidade dos séneros, que eles apresentavam, 0 que causava a maior ale- gvia ao Samotim, encantado porter ocasidio de aumentar ainda mais as riquezas, que to opulento e invejado 0 tomavam jé entre todos 0s rajés do Oriente”. Campos Ninior, Guerreiro e Monge. (1898). “A viagem cotria bonangosa. De todo se apagara a dolo- rosa impresso da partida. 1 ninguém pensava sendo na fndia, Quanto demoratiam ala chegar? Quantos alcancariam vé-a? AA vista de Sagres os navios salvaram, disparando os bercos. Era a comevedora homenagem tradicional Aquele pedago de terra santa da civilizagéo humana. Eram naturalmente alegres © expansivos os portug- Uueses daquele tempo. Nas horas tranguilas da ‘marinheiros ¢ 08 soldados, em volta de algum tangedor de viola ou de guitarra, cantavam alegremente os modilhos ¢ ri- ‘mances, as cantigas € vilancetes que de pequenos tinham aprendido. A noite, enquanto no chegava 0 sono, os mais velhos conta-vam histérias ¢ lendas de outros tempos e algumas até a india. oy iagem os 88 A 15 de Julho, um sibado, pairava a frota nas éguas das ‘Canarias, depois de ter passado a sotavento de Langarote. Estava ‘em calmaria. As velas cafam das vergas enrugadas e flécidas. Sem poder avangar, a frota por ali se deteve cerca de duas horas. As tripulagées foram passando o tempo na pesca. Daria uma excelente refeigdo 0 peixe fresco. Era interessante 0 entusiasmo e o alatido com que a ma- ruja festejava 0 pescador feliz que trazia para as celhas algum peixe de maior valto, prateado, colorido, a saltar desespera- damente nas aflig6es do morte. Conversavam animadamente os que pelas suas condi- «ges a bordo se néo podiam entreter naquele itil passatempo. Mais desanuviado de espirito, Jodo Afonso contou a pro- Pésito da pescaria 0 caso extraordindrio das dguias da india que pescavam bois no mar. — Aguias que pescam bois! ~ exclamou incrédulo fr. Pedro de Cobilones, benzendo-se. Bssa agora c& me fica! — Por esse andar, ¢ se tudo por Id vai ao invés de cé - acrescentou 0 fanfarro do Veloso, cofiando a bigodeira ~ bofé que pode 0 nosso gentil Leonardo ir & caga das sereias ¢ das tubaréas pelas terras dentro da fodia, ~Talvez nao vé — replicou o alfenim do Leonardo, fa- zendo-se muito vermelho. Valera pena aguardar que as dguias ‘ragam no bico os bois que haveis de abater de um golpe com esse espadagio, que nas mis de vosso trisivé esbarrigava a moirama toda do Algarve. Riram doidamente os do grupo e o Veloso, embezourado, ps em pé os pelos do bigode, hirsuto como as sedas de um javali enfurecido, 89 = Nao vos amofineis por tio poueo - disse brandamente Joao Afonso, procurando acalmar os dois. Eu também nao cereio nos bois pescados pelas guias dos mares da India. Mas lai que a fibula a ndo imaginei eu. Li-a em certo livro antigo de um jude navarro, muito sabedor, que se chamava Benjamim de Tudela e que por terra foi até ao Oriente. = Demais a mais navarro!-observou Pero de Alenquer, sor-tindo ¢ olhando de soslaio para fr. Pedro de Cobilones — Porém judeu, 0 que nio € a mesma coisa que ser de ‘Navaira ~ obtemperou 0 capeldo, percebendo o remoque aos cexageros da gente espanbola. ~ Grande viajante foi - prosseguiu Jodo Afonso — e othai ‘que andou por todas as terras do Oriente, bé coisa de trezen- tos € tantos anos. Mal empregado. ~ Pregar tantos carapetdes — Alenquer Mas a interrompeu Pero de 6s pregaram todos os viajantes que andaram por aquelas paragens. Conts 0 judeu que sdo terriveis os mares indianos e que neles se perdem navios sem conto. Receosos de tantos naufrégios — ¢ Benjamim de Tudela quem o diz ~ ‘65 mareantes levam a bordo avultado niimero de peles de boi, ‘uma pelo menos para cada homem, Se 0 vento, um medonho vento a que nenhum navio resiste, ameaga afundar 0 pobre baixel, cada um que se quer salvar mete-se em uma pele, cose-a de modo que os bragos Ihe fiquem libertos e atira-se ‘a0 mar, Entdo as tais 4guias, as quais chamam grifos, supon- do que sto bois & tona de agua, descem sobre eles, er guem-nos consigo nas garras possantes € vio com eles 20 90. cimo de alguma montanha ou ao fundo de algum val os devorar. — Boa pega apanham as Aguias! ~ comenton o piloto. para ~ Apanham certamente, pois que o homem que vai me- tido dentro da pele, puxa da sua faca, mata a éguia, que nfo conta com um boi de faca, sai para fora e pée-se a ca- minbo em busca de povoagio que lhe d® agasalho. Conta Benjamim de Tudela que muitos deste modo se escaparam da mort! = Hein! st fr Pedro Cobilones? — perguntou 0 piloto agracejando. Se os mares so tais, muitas peles de boi hemos de requerer ao capitio-mor, ou néo chegamos a india = hiio-de ter chavelhos e cauda para melhor enganarem as tais éguias — comentou a ri 0 escrivlo da nau, Se 0 nau- frégio fosse certo, bonita figura haviamos entio de fazer entrando na fia vestidos de bois, salvo sejat ~ Se tal suceder, por minha f€ vos aconselho sr. eapelo que dentro da pele vos niio ponhais a rezar alto © vosso latim — acrescentou gracejando Pero de Alenquer. Desconfiaria da coisa @ guia que vos fosse a pega, e deixar-vos-ia naqueles rmedonhos mares = Eu por mim vou aprender a mugir ~ aerescentou 0 esctivio. E que se nfo houver dguias que cheguem para todos, ser preferido na pesca o que melhor Fingir de boi E dizendo destes gracejos se foi passando uma parte da tarde, sem ninguém dar crédito a0 grosseiro caraps de Benjamim de Tudela, certamente colhido nas lendas in- oy F tendo percortido a armada espacos de pesada cerracio, 4 qual no oferecia tréguas a que entre si se avistassem as nnaus, ergueu-se 0 mar de repente como que puxado por forga sobrenatural, unindo-se ao céu pejado de negrume. E a toda a volta da gigantesca coluna estrugiam as aguas em torveli rnhos que para trés e para a frente giravam, e que pela haste descomunal iam sendo absorvidos. Tomaram-se os homens de extraordinario susto, suspeitosos de que significasse aque- {a alterago da comum engrenagem dos elementos, surgida do que se Ihes afigurava o breu das regides infernais, artimanha dos deménios, determinados a impedir-Ihes a difusto do ‘evangelho de Nosso Senor Jesus Cristo, mostrando-Ihes que do além que demandavam Ihes pertencia 0 poder soberano. E em grandes brados, e em vozearia desconexa, reclamavam os embarcadigos 0 auxflio da divina luz que os guiasse, ex- traindo-os & perdigo que se thes antolhava fatal. Viam em desmesura engrossar 0 mostrengo que tudo chupava, alimen- tando-se de quanto oceano existia, € pareciam acrescer as proces & violéncia que se desencadeara, e comegavam a pre- sumir os mareantes que formaria ela pretexto de que se ser- visse a Providencia, a fim de os testar na estabilidade da f ena tenacidade da missio de que os incumbira. 119 Deu-se 0 caso de que, encontrando-se achegada a raiz do tronco liquido a «S%o Rafael», mui intenso fosse nela o efeito que 0 fenémeno produzia, metendo-a em desastrado balango que até ao afundamento ameagava fazé-la adomar. E agarra- vvam-se 05 nautas & base dos mastros, e desenfiavam-se as ve- Jas do cordame, e nem os gritos que langavam se ouviam no estrondo do redemoi-nho das espumas. Um pinico pior do ue 0 dos outros, e do que quantos haviam assaltado, descom- punha Bamnabé, e ora pressentia ele que o engoliria o inclas- sificdvel colosso, ora antecipava gue Ihe pararia 0 coragio. Rasgara-se-lhe a encortigada pele dos dedos com que furio- samente se ia apegando a uma corda que nem percebia a que parte da mastreagao cortespondesse, quando sucedeu que uma espantosa vaga, nascida do abaixamento do cilindro turbilhante, de chofie se abateu sobre 0 navio, de ponta a ponta Ihe lamben- do 0 convés. De roldio foi projectado o de Ucanha, e sem acertar se a bordo se tebolava ainda, se jé no leito das arvias. Volveu a tona, € cobrou félego, ¢ reimergiu, e nao atinava com luzeiso, nem com chamamento, ¢ era numa salina cata- dupa que se despenhava, e encharcavam-se-lhe os pulmdes, sem remissdo 0 sugando a fundura Proveniente dos serdes da infancia alded, tio Tonginquo € to préximo que se tornava necessério perdé-lo antes de se fruir da béngio de o reviver, aflorou-Ihe um marmtitio, ¢ eis, que irreprimivelmente se deitou o infeliz a recitar, chodou lado-naye ki tob, ki Iéolam hasdo, yodou ladondi hasdo véni- fAéotav libuné adam». B de novo mergulhou, ¢ de novo re- sgessou a tona, e havia aquele imenso arruido proporcionado 120 entretanto lugar ao siléncio dos vastos templos vazios. Sere- nava 0 Atlintico como se sobre ele tivesse baixado a miio do Ciador, impondo a ordem onde a desordem reinara, ¢ 0 s sego onde 0 desassossego se estabelecera, e atenuava-se 0 vvalto do espectro sem rosto, nem pernas, nem bragos, que no estonteamento precipitara a tripulagio de Portugal. Para as estremas da planicie marinha, na qual se tinha mudado a dita espécie de convulsio de agonizante, alongavam-se 0s rolos 4a espuma, reclamados por um império a que no era posst- vel desobedecer. E abria-se o manto nebuloso, © por ele se Geixavam coar os raios do sol, ¢ uma esteira se prateava, cla- ramente apontando o sudoeste a seguir. Reequilibrada na sua cestrutura, arfava a «Sao Rafael», derrotado que fora o inimigo imprevisto, ¢ divisava a «Bérrio» primeiro, e a «S80 Gabriel» logo depois, € desprendia-se dos cimos um orvalho que re- temperava da turbag#o, ungindo os mareantes, exaustos da batalha em que se Ihes deparara adversério invulnerdvel &s armas € ao engenho de que se apetrechavam, Numa diligen- cia de recuperado vigor, apelando ao entusiasmo que brinda os que a sorte teima em recompensar dos padecimentos, baldeavam a viscosa inundacio que estorvava os que pela nau, ¢ no exterior ou no interior dela, principiavam a cirandar, Ajustavam as enxércias, endireitavam 05 cabos, e um vento que nio pecava por excesso, nem por defeito, arredondava © velame impelindo-os na rota certeirissima, E extasiava-se Bamabé, flutuando de costas, tio vivo ‘como nunca, esperando os companheiros o socorro de que se achava seguro, iluminado por essa placidez que substitui a 12 inicial wavessia dos territ6rios da morte, Tetminada a im- precagio a Tahvé, colhera-o da vertigem de sombras um anjo perfeitissimo, e atentando na face que defronte se Ihe postava, entendera 0 rapaz que no era senéo 0 da figura de proa, representativa do glorioso advogado da sua barca. E susten- ‘ando-o num abrago vestido por uma tinica escarlate, ¢ bei- jando-o nos beigos de moribundo que se julgava, nestes ter ‘mos Ihe falow a tranquilizadora aparigdo, «nada temas, irmao ‘© amigo, pois que venceste agora mesmo a inicial das prova- ‘ees com que deseja o Altissimo experimentar-te, ¢ fica sa- bendo que, no bastando descer por uma vez as trevas do exterminio a que sujeita ficou a condigdo do homem, de futuros combates haverds tu de sar triunfante, ¢ nem tera sido 0 pre- sente 0 de valia maior, nem 0 de mais alevantada dificuldade, © gozaris da paz que se sobrepde 20 temporal, se bem que diversas tentagoes te revisitem, e suprema sera a que te con- duzir a por momentos duvidar da miserieérdia do Senor, ¢ afirmo-te eu que alguns que superiores te so na ciéncia e na autoridade, e que nesta viagem se comprometeram, nao mais, imunes se manifestam go temor que corr6i as entranhas, e que amarra os artelhos, e que abafa os movimentos da respiracdo, ¢ isto sem que de tal os humildes como tu desconfiem, aspira o alento do Absoluto que & Sua imagem e semelhanga te amanhou, ¢ que do fulgor do Espitito se te preencham os rmiisculos, pois que neste instante preciso terds sido maravi- thosa ¢ realmente baptizado», E retomando 0 seu posto no topo da quitha o que assim o interpelara, arrearam os da em- barcagiio um escaler, e vieram ts camaradas robustos arre- 122 batar Barnabé as fauces do cardume de tubardes que 0 para- lisado corpo sinistramente the rondavam, co) Das fndias retinha Bamabé uma corola gigante de cores ¢ de perfumes, no centro da qual o significado da existéncia se Ihe inseria, passados os abismos que 0 separavam do fencontro consigo mesmo, E um rumor de lama pisada pelas patorras dos elefantes juntava-se-lhe na meméria & continua reza dos bramanes, incutindo-the a simplicidade que resulta do ctimulo das sensa-gdes. Nao fora para aprender, nem para ensinar, mas brindara-o a sorte com a sageza que dispensa a igo, ao desprové-lo dos obstéculos que levanta a inteligén- cia As certezas que sobem como mancha de azeite numa vasilha de gua quietissima. E voltava da aventura com um tesouro que em riquezas de trato do comércio se nao formulava, mas {que nos medos resolvidos fora amassado, € nas decepedes que se aceitam pelo valor facial. Se bem atentasse no que The sucedera, baveria de coneluir que mais se alongara daquilo ‘que possufa do que se aproximara do que no compreendia, operando a entrega que torna atingivel o mistério do ser, nisso acabando por ancorar a finalidade que raramente se atinge. E herdara o eco de um tanger de eftara, 0 relance do desenho com que no presente se imobilizam os palmares, 0 toque de um ombro onde escorteu a ungio diéfana do benjoim. E acreditavam os mareantes, transposta a reticéncia pri- meira que envolve o portador da diversidlade, que fora 0 rapaz abengoada com os dons subsequentes & infuste do Divino Espirito, Examinavam-lhe a palma das milos, porque a con- 123 sideravam susceptivel da realizagdo de prodigios varios, nela buscando a réstia de luz que redime, ¢ que se sobrepde a ‘mecanica das leis codificadas. E quando a violenta soalheira das calmarias varava os miolos deste ou daquele, arrastayam- -n0 até A beira do enfermo, capacitando-o dos carismas que se ditia ele proprio ignorar. Capitulava 0 de Ucana em face do que Ihe pediam, afagando a testa dos desassossegados, tomando o sofrimento que como um vapor deles se ia des- prendendo, ¢ eis que espontaneamente aos beigos the aflorava ‘uma antiga ladainha, expressa em lingua que nfo havia na frota quem pudesse interpretar. E ao esfaquearem-se numa rixa dois grumetes borrachos, apartou-os Bamnabé como quem desvia 05 juncos do caminho que leva, descreveu uma cruz, sobre 0 golpe das navathas, ¢ logo estuncou a hemorragia, & as feridas cicatrizaram, © ndo se cansavam os homens de render gragas a Deus pelo guia com que os contemplara. Go) Afoitamente rumavam a Lisboa quando nfo sabendo decidir donde houvessem surdido, & popa vieram pousar, a cuja amurada se debrugava Barnabé, quatro daquelas pombas imaculadas que de instante a instante Ihe apareciam. E aca- riciando-thes a cabega © as asas, a decifrarthes os arrulhos com o entendimento que t0-86 08 participes dos mistérios alcangam, deduziria 0 rapaz que figuravam elas as almas de igual nimero de companheiros que durante a viagem se ti- ham entregado ao Senhor. E correspondendo a primeira a ‘um certo Pero Mendes, natural da Atouguia da Baleia, como raros prazenteiro € amigo de reinar, assim o interpelou 0 124 grumete com profunda e demorada afeigfo, «que na socieda- de de Deus e dos anjos te aches tu, meu imo, que assassi- nado foste pelos guerreiros do xeque de Mogambique, os quais dos zambucos que remavam sobre nés tanta flecha despediam que chuva parecia aquilo, e a tiltima expresséo que em ti prosenciei foi a da golfada de sangue que & boca te montou, e nas penas da agonia ias tu ensaiando proferir «minha me», © 2 sepultura te erguemos junto a um macico de drvores que se chamam acdcias, e da vermelha sombra delas se tingia a cruz. que no chito espetémos» E tomando contra 0 peito a pomba segunda, assim Ihe falou o de Ucanha com particularfssima ternura «e neste corpo palpitante, Leonardo, te reconhego, que to achegado vivias fantasia dos sentidos, inventando mulheres de formosura que A noite, e pelo escuro, avangavam, a entreter-te, ¢ ha dias deste tu de amalucar, com uma ilha empreendendo que nin- guém distinguia, ¢ juravas que nela se andavam divertindo magotes de ninfas nuas, nas nascentes se banhando, ¢ rindo de todos nds, e a uma do conjunto ofereceste © coragiio, € a cada hora a assediavas com discursos que nilo percebfamos, de sobremaneira Ihe gabando o redondo das mamas, ¢ a quebra dos quadris the enaltecendo, entretanto se te esgotava a vontade de comer, € nos trapos do teu ninho te rebolavas como se num prado verdejante te deleitasses, ¢ a uma Cléris te dirigias na tua imaginagfo, ¢ de ti escarneciam os mareantes velhotes, porque nfo aceitam o amor os que 0 amor jé nfo visita, e cboravas na cobranca do teu prazer de homem famin- to, de tudo tio destacado que te taxavam de sandeu, & Rs desarvoradamente corendo pelo convés da nau, isto numa tarde de douda ventania, a ondas te arremessaste em busca do que afirmavas que te fugia, e houve quem para te salvar mergulhasse, € te no descobrisse, ¢ apenas apontando nés & itha de Zanzibar, com o teu corpinho topamos, ensarilhado no leme, ¢ de fei¢do tal que impossivel se nos avultava que lograsse a barca de quejando modo navegar, e igando-te para te conferirmos funeral cristéo, verificdmos que a flor de es- puma nos labios se te rompera, e que nela se iam reflectindo (08 matagais, e alimpando-te 0 rosto com paixio, concluimos que como da tua propria famflia nos ias arrecebendo, e que duas légrimas de vidro pelas faces te escorriam», E prestando atencao a terceira das pombas, estendeu-lhe ‘© moco um dedo, ¢ logo ali se empoleirou a ave, e nestes ter- mos se botou ele a falazar, «Ferno Gongalves, a nds regres- saste, e haverei de conti & tua filha o lencinho que Ihe legas, © que esclarecias tu que de moda se tornou atar 20 pescogo nos reinos da Europa, © com ele pretendias que se apresen- tasse ela na romaria que louvavas, a qual era de nao sei o qué, «nas bandas da Loutrinhi, ¢ triste fim te adveio, bem descon- forme ao que por tua rectidio diante de nds merecias clara- ‘mente, mas foi o caso que a moléstia te assaltou, € com muito mais fmpeto, © com maior infimia, do que aos restantes acometera, ¢ as veias se te rebentaram por debaixo da pele, € com paciéncia assistias ao adiantamento da morte, ¢ as mancheias se te soltavam os cabelos, € nos vémitos em que as tripas se te dissolviam cuspias os dentes podres, os quais, como seixos das gengivas se te escapavam, € no gemias, 126 nem te lastimavas, unicamente te atrevendo a pedir-nos que 6 lencinho que, guardavas na caixa dos pertences prometés- semos nds levar & tua primogénita, porque macho néo engen- draras que como tu acabasse atirado & bartiga do mar. E 8 quarta pombinha ia achegando Barnabé as migalhas que do interior da camisa extrafa, 0 seguinte brandamente observando, «desejoso delas como tu, Martim Eanes, ¢ come tu atido aos encantos de toda a fémea, outro nenhum eonheci eu, que garantias que aos nove anos muito capaz, te denun- ciavas de desvirginar as meninas, ¢ que sempre te queixavas que, por téo longos meses padeceres da exclusiva conviven- cia de vardes, se uma bruxa centendria avistasses, posto que marreca e ressequida, haveria 0 pau de se te levantar, ¢ di- ferente escolha no se te facultando, ali mesmo a derrubatias, se preciso fosse, e conforme asseveravas, & frente do capi- tGo-mor, ou de quem quer que adregasse, porquanto se te rmordiam as partes de abstinéncia tamanba, e para te aliviares te nfo sobravam as maos, e escassa se te mostiava a mana ‘em que contigo no folgéssemos, 20 ver-te de calgbes enchat- cados dos sonhos que te arrasavam, e sem reparar adonde te metias, nfo entestivamos n6s com mulerio que atrés de si te no arrastasse, € nem 0 fedor te reprimia das pretas da aguada de Sio Bris, nem te assustava a hediondez das que imitavam o cenho da deusa Kali denominada, ¢ em copioso cono penetrando, quer se te abrisse de bom grado, quer a acolher-te 0 forgasses, irias buscar tu os vermes que a gaita te roeriam, ¢ de dores te estorcendo, e basto pus expulsando pelas vias por onde antes o leite jorrava, balias come cabrito 27 desmamado, ¢ eis que nfo nos continhamos que as gargalha- das nos no desfizéssemos, ao escutarte dizer, «pobre de ti Brigida Aires, que em Amarante me esperas, ¢ de pernas ‘escancaradas, que nao te consolarei como ainda me apetece, ‘mas por outrem te defendo que me troques, que hei-de descer do Além, se S. Gongalo mo consentir, ¢ enfiarte 0 prego Jimpo nos folhos da buraquinhay.

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