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INDIGENISMO SANITARIO? - INSTITUICOES, DISCURSOS E POLITICAS INDIGENAS NO BRASIL CONTEMPORANEO Istvan Van Deursen Varga RESUMO: Pretende-se uma revisio hist6rica da trajetéria dos servicos institucionais de saide prestados a grupos indigenas no pais, buscando explicitar os provaveis paralclismos, continuidades ou confrontagbes diretas entre sua metodologia e técnicas, seus escopos tebrcos, filoséficos e ideol6gicas, ‘com as mais expressivas correntes de pensamento presentes no cendrio dessa “trama interétnica” entre as quais as da prépria antropologia, A natureza do trabalho remete a uma reflexio necesséria acerca da multidisciplinaridade. UNITERMOS: Indigenismo - Saude Indigena - Politicas Indigenas - Politicas de Saide - ‘Antropologia da Medicina - Epistemologia da Medicina - Historia da Medicina No momento em que tramita no Congreso Nacional 0 projeto de lei que institui o "Estatuto das Sociedades Indigenas " (PL 2.057/91), volta 4 tona a discussio do papel do Estado Brasileiro na assisténcia A saiide desses povos que, como os colegas m (especialmente os -_sanitaristas- indigenistas) devem lembrar, foi um problema ‘néo _contemplado pela chamada "lei orgénica" da saiide, de 1990 Além de manifestagdes mais ou menos pontuais de entidades da sociedade civil, nossa iltima referéncia coletiva a respeito so as propostas da Conferéncia Nacional de Protegdo a Saiide do Indio, tema especifico da 8* Conferéncia Nacional de Saiide, de novembro de 1986. Outros eventos, de menor porte e repercussao, retomaram posteriormente 0 mesmo’ tema, no sentido de aprofundar as discussdes ¢ desdobrar_ as indicagdes da 8° Conferéncia em Propostas Operacionais. © Projeto de Lei ora em tramitagdo no congresso, apresentado pelos deputados Aluizio Mercadante, Fabio Feldman, José Carlos Sabdia, Nelson Jobim e Sidney de Miguel, busca resgatar e sintetizar as propostas resultantes desses trabalhos. Embora entendamos que a letra do referido projeto corresponda as diretrizes politicas para que tém apontado as sucessivas _discussdes esse Ambito, e embora parega garantir efetivamente a gestdo de um modelo de assisténcia a satide eficaz, abrangente e que reconhega e respeite a organizagio social e a especificidade cultural ‘de cada comunidade indigena, achamos ‘oportuno, nesse momento, retomar a reflexdo acerca da carga de significados sociais ¢ culturais de que a propria Cader de Carpe pratica médico-sanitaria esta permeada, sobretudo num campo (a nosso. ver) especialmente diferenciado e sensivel a ela, como esse. Iniciamos com uma revisio sintética da trajetéria histérica desse_"sanitarismo indigenista", das instituigdes que sucessivamente 0 epresentaram e de suas herangas tebrico-metodolégicas basicas para, na sequéncia, retomarmos 0 tempo © a problematica presente. O SPIE 0 POSITIVISMO A. crjagto do. Servigo de Protegio ao Indio (SPI), que data de 20/06/1910, representa’ 0 primeiro movimento’ de — incorporagio da roblematica indigena pelo’ Estado rasileiro. A transferéncia da atribuigao de “assisténcia" aos povos indigenas, do dominio missionario para o estatal, compée-se de modo coerente com a paisagem ideol6gica do Brasil na virada do século. O surgimento do SPI veio a epresentar uma das mais significativas expressdes da influéncia do positivismo no pais José Mauro Gagliardi em O Indigena e a Reptblica (Gagliardi, 1989) trata de maneira extensa e aprofundada o contetido das polémicas € dos discursos em toro da "questo indigena" que, no periodo republicano, antecederam a criagio do SPI até o ano de 1967 (data de sua extingéo). Em sintese, deste trabalho depreende-se que o' discurso positivista encontra esse campo um espaco especialmente favoravel de reafirmacio, enquanto findamentagio ideoldgica’——(e justificativa politica) para a intervengao do Estado num terreno até _entao reservado & atuagdo mission: época, predominantemente catdlica). ‘Uma —das_—_caracteristicas marcantes desse discurso é a referéncia basica_e permanente a uma suposta “historia mental” da humanidade, sujeita a "leis" que determinariam a (na 133 ‘ndigenismo samtério? *evolugéo natural” (inexoravel) dos povos: a partir de um estado “infantil” - em que predominariam, nesta ordem também seqiiencial, 0 ‘fetichismo, 0 Politeismo ¢ 0 monoteismo -, para um estado intermediario "juvenil” = filosofia € metafisica -, até 0 topo dessa escala, ‘com a culminagao no estado “cientifico positivo” - a idade adulta da humanidade, ©‘ Apostolado _ Positivista, através ea partir de Teixeira Mendes, por exemplo, propunha a intervengao direta do Estado brasileiro nas questées referentes as populagdes _ indigenas, explicitamente no sentido de elevé-las, do “estado fetichista" para o “estado positivo", poupando-as da transi¢ao para o “estado teologico" (a que seriam irremediavelmente submetidas com a continuidade da ostensiva catequese catdlica). Essa elevagio ao "estado positivo" implicaria numa integra¢ao destes povos @ comunidade mundial de uma sociedad “pacifico-cientifico- industrial” Enquanto afirma a f€ no progresso mental © material ‘cientifico" - redentor da humanidade, © positivismo pretende ser em si mesmo um sinal concreto - ¢ 0 resultado mais elevado - deste progresso historico, ja verificado no plano mental, E 0 proprio Teixeira Mendes que reconhece, no entanto: "... se 0 teologismo... esta por toda parte exausto, se 0 regime cientifico- industrial ainda nao se organizou em parte alguma, vivendo o ocidente na mais completa anarquia, que civilizagio vamos levar aos selvagens?" (Teixeira Mendes, 1989, grifos nossos), Se 0 discurso positivista instrumentaliza © legitima, em varios momentos, a retérica dos interesses das nantes na historia do Brasil classes dom republicano!, muitos positivistas (como 1. A defesa do status quo, enquanto a Caderos de Carpe bem demonstra Gagliardi), enquanto idealistas, freqientemente a cles se contrapuseram e nao raro contra eles militaram. De qualquer modo, 0 ideério desenvolvimentista, que marca em varios matizes a historia do Brasil modern, direta ou _indiretamente remete-se a0, € inspira-se 10, século progressismo positivista do XIX Extinto o SPI (imediatamente substituido pela Fundagdo Nacional do Indio - FUNAD), 0 discurso "progressista" ‘anterior é gradativamente retomado, sobretudo a medida que expoentes da _entio vanguarda do indigenismo (hoje essa “velha ——guarda"” = emblematica, representada por personalidades como Darcy Ribeiro, Orlando Villas-Boas, etc) incompatibilizava-se e abandonava © érgio. A FUNAI - inseria-se rapidamente na geopolitica do governo militar, incorporando-se a estratégias influéncias, ja de nivel continental, no contexto da "guerra fia", e dai imbuindo-se da doutrina da "Seguranga Nacional" (corolério. dos mais caracteristicos da retérica da ditadura instalada em 1964) A SAUDE INDIGENA E A TRANSICAO DE MODELOS FUNAL-SUS No que tange a assisténcia saide, 0 SPI nao dispunha de uma estrutura organizada e suficientemente abrangente; suas atuagdes limitavam-se a atender situagdes\ emergenciais surtos epidémicos. Data deste periodo a experiéneia de Noel Nutels no “ordem* que garantisia 0 “progresso", sempre foi um dos mais recorrentes argumentos para Justficar a arbitariedade, a truculéncia © os 1mega-projetos patrocinados pelo regime militar pés-golpe de 1964, por exemplo. 134 Incigamiemo rans? de Unidades —_Aero- stério da Saiide, inicialmente concebido para 0 combate tuberculose - e que posteriormente terminou por ampliar suas agdes em fungio das diversas _situagdes enfrentadas nas diferentes areas. "A primeira tentativa de sistematizagao do atendimento de saiide em areas indigenas foi a criagao das equipes volantes de saide (EVS) no Ambito da divisio de saude da FUNAI. Este esquema, que persiste, ¢ © responsivel pela maior parte das apbes de sade hoje desenvolvidas em freas indigenas. 2 Este modelo, de pouca eficacia, esbarrou em varias dificuldades, dentre as quais a falta de planejamento e de integralidade das ages; politica de remuneragio nio contempladora do tempo ‘integral; caréncia cronica de infra-estrutura ¢ Teoursos, falta de articulagio com outros niveis de atengao, auséncia de um sistema de informagdes em sade e © preparo inadequado de quadros para atuagéo em comunidades culturalmente distintas. A falta de uma estrutura adequada de atendimento & saude da FUNAI, com miltiplas atribuigdes, resultou, de forma compensatéria, em uma pletora de convénios ‘com entidades governamentais ou nio- ‘governamentais." (Confalonieri, 1989) © artigo acima citado nos parece especialmente ilustrativo quanto a0 percurso do discurso. eda argumentagao médico-sanitaria contemporanea diante do objeto indigena. No intuito de fornecer subsidios para a reflexdo a que aqui nos Propusemos, _ enumeraremos as principais ' “peculiaridades" das. situagSes-problema _colocadas aos projetos de atengio & saide de ‘comunidades indigenas, tais como tm sido consensualmente reconhecidas no meio médicosanitario. Mais ‘especificamente, langaremos mao, em varios momentos, do artigo’ de Cademos de Campo Confalonieri, que consideramos (como ja foi dito) bastante representativo de posigdes expressivas presentes nas instituigdes e nos debates travados neste campo. a) ituagao de transculturagdo" - o autor entende que no ambito eral do “proceso aculturativo", do contato com a sociedade envolvente, a "sobreposigao destas duas medicinas [a do sistema médico oficial e as representagdes. praticas tradicionais destes _ povos} envolve conflitos de compatibilizagao € aceitagao, tanto por parte _ dos eceptores como dos executores das ages" (pag. 443), Revela, assim, 0 “papel fundamental" da "intermediagao antropolégica no acompanhamento dos programas de satide e, principalmente, na formagio de pessoal de saide - indios e nao indios - para a atuagdo em comunidades indigenas, O instrumental conceitual da antropologia médica ao elucidar a concepyao indigena de ‘organismo humano, da causalidade das doengas e das terapéuticas da medicina tradicional, subsidia e possibilita 0 processo “de integragao controlada entre os dois sistemas médicos" (Confalonieri, 1989: 443), b) “Situago geogréfica’ - 0 elevado grau de dispersio dos grupos ddigenas, sobretudo na Amazonia € centro-oeste, de imediato implicaria em: grandes dificuldades de acesso a essas areas (que exigem 0 uso muito freqiiente de transporte aéreo de alto custo), dificuldade na manuteng3o dos equipamentos utilizados, inconvenientes para_a__permanéncia protongada das equipes de saiide nessas reas que, nestas situagdes, se véem isoladas de seu proprio ambiente social profissional ©) "Dinamica de perfil epidemiolégico" - apoiando-se_ em trabalhos de Young (1983 e 1988) € Rhoades (1987), 0 autor aborda 0 que seriam as trés_ principais sucessivas 135 Indignizmo tairio? de “transi¢ao de perfis logicos* destes grupos: 1- Surtos de clevada morbidade e mortalidade, causados pela introdugéo de agentes patogénicos desconhecidos até 0 momento dos primeiros contatos com a sociedade envolvente. 2- Elevagio da incidéncia de doengas atribuiveis sobretudo & mudanga de habitos alimentares e sedentarizagao gradativa em grupos que ja acurnulam algum tempo de _contato. 3 Surgimento de indices significativos de doengas crénico-degenerativas _€ mentais, resultantes das transformagdes avangadas e radicais em seus modos de vida’ e da clevada assimilagao sociedade envolvente, que os levaria, em contrapartida, a um marcado processo de —_-marginalizagao, aproximando seus “perfis epidemiolégicos" aos padrdes desta sociedade (como a situacio dos Kaiowa, entre os quais a onda de suicidios recentemente chamou a tengo da imprensa nacional). Do ponto de vista politico, os sanitaristas-indigenistas organizaram ¢ articularam-se em torno de algumas propostas que poderiam garantir o planejamento e organizagao de um programa eficiente de atengdo a essas populagdes, Trata-se, fundamentalmente, das __propostas. contidas no relat6rio da 8° Conferéncia Nacional de Saiide, em seu capitulo gspecifico de "Protegio a Satide do fadiot (de novembre. de. 1986) que cenfatizam: 1- a participagao direta dos indios no planejamento e gestdo dos servigos, 2- a criagio de uma agéncia especificamente voltada a saide de populagdes indigenas no ambito da diregio do Sistema Unico de Saude (SUS) a ser exercida pelo Ministério da Sade; e 3- 0 reconhecimento e o res} especificidades culturais de indigena, as suas tradigdes e praticas de Caderot de Campo sade. Mais recentemente, durante 0 VI Simpésio sobre Politica Nacional de Satide, Previdéncia e Assisténcia Social na camara dos deputados (Brasilia, maio de 1989), no intuito de viabilizar praticamente a'gest#o do novo modelo de atengo, foi acrescida as resolugdes da 8* Conferéncia a proposta de que 0 SUS adotasse a metodologia da chamada "distritalizagio diferenciada" para a delimitagao das _regides funcionals de atengdo & sade indigena. De acordo com a proposta do. ‘grupo de. trabalho em. saiide indigena do VI Simpésio, os critérios a ser utilizados nesta’ delimitaglio deveriam, em absoluta _prioridade, pautar-se pelo conceito de *territérios tradicionalmente ocupados", conforme disposto no artigo 231 da Constituigio de 1988. Isso significa dizer que esta delimitagao, para efeito do SUS, nto estaria " subordinada aos _ limites interestaduais ou _intermunicipais, possibilitando a adogao de critérios que se apdiem numa légica mais proxima & da ocupagio (e assimilagdo) do espago por cada grupo indigena, Esta medida visaria garantir um tratamento diferenciado para cada um destes territérios e sua respectiva problematica (ao menos no ambito do SUS), de modo a no submeté-los ou redu ‘as homogeneidades técnicas a que tendem a reduzir-se 0 planejamento e a administragio de Tecursos de sate. Tao portante quanto assegurar sua delimitagao a partir de ritérios especificos, no entanto, ¢ a Barantia da adoco de sistematicas auténomas de vinculagao na referéncia destes distritos para com as demais instancias do SUS. Caso contriio, 9 aplicagéo do principio “democratico” da descentralizagio administrativa dos servigos colocaria estas comunidades & mercé dos ditames das politicas locais, dos municipios e mesmo dos estados, 136 Indigenismo satario? ais diretamente sujeitas aos interesses de determinados grupos econémicos - ‘como na situagiio dos Yanomami e da questo garimpeira no estado de Roraima, No contexto da__ intensa e cultural, da e dos sucessivos morticinios com que a “frente de expansio" nacional tem, via de regra, brindado os grupos indigenas através da historia (nem sempre conhecida) deste pais, ¢ facil perceber como a assisténcia a satide representa um poderoso e estratégico elemento de negociagio, em qualquer mesa da qual tomem ‘parte os ditos “interesses nacionais” e os direitos indigenas, PARA UMA BREVE ANTROPOLOGIA DO SANITARISMO Do ponto de _ vista epistemoldgico, 0 discurso sanitarista pauta-se, em ‘grande medida, numa problematizacio epidemiolégica da vida e dos coletivos humanos. Esta, por sua vez, construida sobre uma percep¢io eminentemente matematica (€statistica) da realidade: a rigor, 0 Teconhecimento dos —_fendmenos morbidos, enquanto objetos, se dé a partir do. instante em ‘que sua “freqincia" ultrapassa_uma certa média “limiar" de ocorréncia - cujo papel metodolégico, esse sentido, seria andlogo ao da “normalidade" para a clinica. Talvez de modo ainda mais evidente que em sua versio clinica, em epidemiologia 0 pensamento ¢ 0 universo dos objetos médicos é representado por uma —equagio descritiva desta physis, capaz de abranger e articular’ ldgica Coerentemente todas as suas possiveis variaveis: tanto as categorias como Caters de Campo “meio ambiente", “hospedeiro", "agente ctiolégico", “vetor", etc, de uso corrente nos modelos epidemioldgicos ditos classicos, quanto, no outro extremo, as "condigdes de trabalho", de “habitacéo e nutrigfo", as "classes sociais” ¢ seu "poder aquisitivo’, as “formas de construg&o e habitagdo do espaco” entre tantas outras que sucessivamente vém ——_sendo incorporadas pela. -—chamada epidemiologia social ‘A epidemiologia social tem sido uma versio disciplinar das mais assiduamente solicitadas, nos trabalhos ¢ argumentos da vanguarda militante no sanitarismo _contemporéneo, em fungio desta fusio que promove com alguns referenciais filosdficos ¢ metodolégicos _consagrados —_pelas ciéncias sociais, Nao se pode, contudo, negligenciar 0 fato de que esses referenciais ja estavam lecidos no Ambito das ciéncias sociais ha, no minimo, cerca de um século (como no caso da obra de Marx) - 0 que implica numa significativa defasagem historica (e a nosso ver teérica) entre as abordagens tedricas dos _objetos sociais, cultivadas nesses dois campos. Nas incursdes experimentais da epidemiologia pelo campo das ciéncias sociais, os Unicos resultados palpaveis tém sido as timidas aproximagées em relagio a sociologia, economia e histéria, mais precisamente, no ambito da problematica —marxista. «A. antropologia social e cultural, por exemplo, permanece distante do que parece ser, até 0 momento, 0 raio de alcance possivel desta empreitada ‘A. construgio. disciplinar - historica - da epidemiologia coloca-a no contexto de um percepeao homogénea ¢ linear do tempo. Um tempo que ordena e interliga uma sucesso cumulativa (leia-se evolugao) de eventos na historia, tanto na historia da doenga do individuo, quanto na historia das doengas coletivas (as 137 Iindigentomo santo? endemias_e epidemias), como na Historia Geral humana, das sociedades e das cigncias. Expresso do que seria como uma "vocagdo” —_essencialmente transformadora da presenga humana no universo, trata-se da historia de um dominio’ adquirido pelo homem, em primeiro lugar, sobre um meio ambiente hostii, a ser submetido as suas necessidades, bem como sobre sua propria natureza, entendida como predominantemente biolégica’, social um tanto psiquica. Mas mesmo o ico € 0 social ja teriam, como vimos, seu _regisiro assegurado enquanto “varidveis" ou “fungdes” equacionaveis. na “physis" médico- demioldgica, De qualquer modo, da estaremos muito distantes dos “fatores culturais” No plano da militincia politica, © sanitarismo galvaniza essa amalgama tedrica através de um discurso engajado, de esquerda, comprometido com as lutas das classes populares. A historia do sanitarismo exibe varias passagens em que estes intelectuais profissionais de saiide destacaram-se em movimentos politicos de Tepercussio nacional. A propria questio da justica social é reconhecida como deierminante de primeira grandeza no quadro geral de satide das populagoes. ‘Os discursos sanitaristas5, via de regra, reificam uma grade conceitual que se expressa_por uma série de terminologias e figuras de linguagem caracteristicas da corporagao, para cujas origens ainda ndo se tem voltado as atengoes dos debates politicos tao cultivados nesse meio. Vale lembrar que é principalmente no inicio deste século, com Oswaldo Cruz, que o sanitarismo propriamente dito’ afirma-se como fenémeno social e poder institucional no Brasil, As entio denominadas “campanhas* (chamamos a atengao Caderos de Campo para a terminologia) de "combate" & febre amarela e & variola, nas atuagdes fulminantes da "policia sanitéria', ‘por ele lideradas, faziam parte de um rojeto coerente de "modernizagao" Ravia que se colocar o porto ea cidade do Rio de Janeiro em condigdes de dar vazio & produgio cafecira e de atrair 0 comércio € os _investimentos internacionais. Como resposta truculéncia do exercicio pratico de sua inspiragao militarista, a reagdo popular (caracterizada como "obscurantista") que passou a ser conhecida como a Revolta da Vacina (Sevcenko, 1984), atingiu as dimensdes._ de uma insurreigo armada que sitiou 0 Palicio do Catete e quase pds abaixo o governo de Rodrigues Alves, em novembro de 1904. De modo geral, os sanitaristas hoje consideramos que nosso métodos “evoluiram" — muito entdo, experiéncia “historicamente superada'’ inadequagdo de métodos mas nio de principios, chegamos a fazer a critica de Oswaldo Cruz (no que concerne a truculéncia militarista), de modo que esse nome, depurado - 0 génio emblematico da cigncia médica -, permanece um marco para_ a posteridade da modemidade brasileira em instituigdes de ensino e pesquisa, hospitais, pracas, grémios estudantis € papel moeda, Hoje, —_nossas__campanhas enfatizam © componente "educaco em satide" - entendida enquanto processo em que “agentes de sauide", profissionais ou populares, sto treinados para ensinar nogGes de sade e higiene para a populagdo. Trabalham- se sobretudo as estratégias da cooptagao, como métodos para vencer a resistencia da ignorancia popular as condutas sanitérias requeridas_ adequadas para cada situagao. Enquanto categoria. _profissional 138 indgenismo sarsrio? permanentemente a0 _encalgo. da *modernizagdo", _continuamos a cultivar um " saber tido como “esclarecido” sobre o adoecer coletivo (como 0 faziam Oswaldo Cruz e companhia), com a diferenca que o avango de nossa modernizagao (da qual a educagdo em saiide seria mais um sinal), desde entao, permitiu-nos adotar estratégias mais adequadas de intervengio na vida e no espago social Nosso conhecimento, como ciéncia do adoecer coletivo, é sobretudo um saber que ¢ exercido sobre a sociedade, sobre 0 espago que ocupa, sobre suas representagdes, sobre seus: interlocutores, sobre seu cotidiano. Munidos da ascendéncia de nosso saber, entendemo-nos, portanto, atuando sobre a sociedade e nao exatamente a partir dela - 0 que, em Ultima andlise, tende a caracterizar a postura do sujeito em relagio aos Objetos sociais em qualquer saber dito académico, uma vez que cultivado por corporagdes especificas e diferenciadas no interior da propria sociedade. Voltemos a argumentagdo de Confalonieri: “Por outro lado, oo fortalecimento destes sistemas’ locais [referindo-se 4 —_"“distritalizagaio diferenciada”] através do treinamento, nas proprias comunidades, de alguns membros como agentes’ de sade capacitados para desenvolver cuidados bisicos e educagio para a saide, garantiria maior autonomia¢ Continuidade das agdes de saiide nele desenvolvidos, bem como a redugio dos custos operacionais" (Confalonieri, 1989: 446). sanitarismo também chega a admitir, como. ja vimos, ainda que numa perspectiva tedrica ou ideal, a convivéncia © mesmo o estimulo (tido como “estratégicos") da polifonia das chamadas priticas tradicionais de saude dos grupos indigenas. Embora nao- cientificas, estas poderiam ‘cadernos de Campo complementar as ages e programas de sauce institucionais, conferindo-Ihes legitimidade cultural dentro da chamada "populagao.alvo", 0 que 25 tornaria mais a eae hae grupos, pelo simples expediente de ‘manté-ias revestidas da ritualidade e da Jinguagem tradicional de cada grupo. Com ~ isso, _contorna-se _ possiveis resisténcias culturais e a explicitagao da descontinuidade entre os respectivos universos: "A. sobreposigéo destas duas medicinas envolve | conflitos de compatibilizagao e aceitagao tanto por parte dos receptores como dos executores das agdes. Neste contexto, tem papel fundamental =a intermediagao antropolégica _(..." que, atuando na formagao especifica de pessoal de saiide para este trabalho, "(.) subsidia e possibilita 0 proceso de integragio controlada entre os dois sistemas médicos. (..) O que confere um carater especial a estas Areas, além das barreiras linguisticas, é a necessidade de se organizarem os sistemas de saiide de modo a permitir: a manutengio complementar das praticas tradicionais de cura (..). E importante enfatizar que 2 saide dos rupos tribais € expresso direta das Eines tradicionais’ de ocupacto do espago territorial que assegurem a reprodugao biolégica e cultural dos grupos; da integridade de seus sistemas de crencas e valores responsaveis pela coesio social, bem como das relagdes de contato com a sociedade branca envolvente _¢, portanto, da politica indigenista desenvolvida no pais, [20 referir-se & participagio comunitéria:) (..) sendo uma das premissas para melhor controle © plangumeno" dot sevigos torna-se especialmente importante para os Direitos Sanitarios Indigenas na medida em que os membros da comunidade conduzem 0 processo de integracio das priticas da medicina 139 Indgenismo samtério? oficial aos valores culturais do grupo, 0 que reforgaria a sua auto- estima e autodeterminacdo.”" (pag. 445- 446, grifos nossos). E_notavel que a proposta de integragio" destas praticas de saide supde mais que uma "compatibilizagao" = jf de inicio colocada apenas no nivel estratégico, na medida que visaria garantir a coesio social indispensével 4 sobrevivéncia destes grupos -, uma continuidade possivel entre ambas, vislumbrada como resultado de projetos "educacionais" dirigidos para a produgio desta. modernidade, necesséria para a verdadeira autonomia no campo dos cuidados & saiide: "Deve ser lembrado que os esforgos de reorganizagao institucional propostos, com 6 objetivo de melhorar © atendimento de saiide para os indios, vvisam basicamente superar 0s aspectos biologicos adversos das fases iniciais da transigao da_morbi-mortalidade, pela protegdo contra agravos de maior Importancia, notadamente os de natureza infecciosa. A etapa seguinte, mais dificil, e que nfo se resolve com a simples meihoria da qualidade e acesso aos servigos de promocoe recuperagio da saiide, envolve uma verdadeira "profi implica —_assegurar-se comunidades a possi direcionarem € proceso geral mudanca em seus controlarem 0 de aculturagio ¢ itos e estilos de e a conseqiiente Progressiva’ na sécio-econdmica (pig. 445-449, grifos 1n0s08), Parece-nos que © problema que se coloca, fundamentalmente, & 0 da conciliagio do exercicio ' médico- sanitario - tradicionalmente voltado para a intervengdo sobre os “desvios", necessariamente definidos em fungdo de “padres” estatistico- epidemiologicos previamente Ccaderoe de Campo estabelecidos - com uma situagdo de trabalho na qual se esta a reafirmar a alteridade, a diversidade extrema Como cultivar e alimentar alguma atitude de valorizag’o e de sincero respeito para com concepgdes, percepgdes ¢ praticas ao que tudo indica radicalmente divergentes das nossas, que nada parecem compartilhar com modelos matematicos, estatisticos, fisico-quimicos _e comprovagbes laboratoriais? Como abdicar da seguranca das técnicas ¢ procedimentos previamente testados, conhecidos ¢ compreensiveis, como abdicar da cientificidade na busca das solugdes problemas de ordem uutivelmente "sanitaria"? Como desvincular a idéia do "saneamento” da idéia da modificagdo da habitos e atitudes tradicionais tides como “nocivos" a saiide? Por outro lado, até que ponto promover a modificagao de *habitos nocivos" n&o representaria, portanto, uma contribuigdo ao "processo geral de aculturagdo" © a — “conseqiiente participa¢do progressiva na formagao sdcio-econémica” (e acrescentariamos cultural) dominante, a que se refere - ¢ que parece defender - Confatonieri? De qualquer modo, nfo ha como negar que a contemplagio do tipo etnografico, _pretensamente passiva, da alteridade cultural € incompativel com a evidente - e em muitos casos, urgente - demanda de intervengdes médicas no cotidiano dessas sociedades, _frequentemente ameagadas por graves situagdes epidémicas. MULTI-PROFISSIONALIDADE E O CONViVIO EM CAMPO. Se partirmos do principio que, embora pertencentes a categorias profissionais distintas, os emblematicos € genéricos personagens "médico" ¢ "antropologo" pertencem basicamente 140 Indigenismo tamtario? a0_mesmo universo social (mundo ocidental moderno, meio académico), Diriamos que (militancias a parte) se 0 oficio do médico é eminentemente interventivo - no sentido de que cabe a ele submeter as situagdes adversas, vividas por individuos e grupos, aos padrdes diagnésticos e as rotinas terapéuticas conhecidas de sua Cientificidade -, 0 oficio antropolégico & —eminentemente —reflexivo delimitador - no sentido de que o antropdlogo, voltado ao estudo do outro" sécio-cultural, empenha-se em, implicitamente, estabeiecer a identidade como condigio basica para o reconhecimento objetivo e explicito da alteridade, Se a transposicao das fronteiras entre esses mundos é 0 pressuposto que institui o indigenismo, e que motiva, tanto a presenga do médico quanto a do antropélogo nesse campo, parece- nos que, de imediato, compete em primeira’ instancia ao antropélogo Gircunscrever_e conferir limites de vigéncia 4 identidade. Evidenciar a fromteira, explicitar _transposigdes inadvertidas e dissimuladas, despertar a atengao do médico ¢ seu interesse (via de regra, nem to esponténeo), acima de tudo, o antropélogo pode e deve tomar assento onde se planejam as agdes, se estabelecem os objetivos, as metas, o roteiro e as expectativas dos trabalhos —médico-sanitdrios nas ‘reas indigenas, Antes de "intérpreie" devidamente autorizado das sociedades e culturas indigenas em questo, o antropélogo é acima de tudo um "gedgrafo" de sua propria cultura e sociedade, estando_naturalmente munido de pelo menos uma das metades do "mapa" do terreno onde devera se desenrolar a trama interétnica, Diversamente do senso comum sanitarista (e académico, de modo geral), nfo esperamos que o antropélogo venha —definitivamente Caderos de Campo “elucidar a concepedo indigena do organismo humano, da causalidade das doengas e das terapéuticas da medicina tradicional" (Confalonieri, 1989: 443). Como também no consideramos imprescindivel que se chegue a qualquer “formulagéo a priori de “modelos”, tanto para a solugao objetiva das situagdes de confronto entre os procedimentos —médico- sanitarios e as praticas e representagdes indigenas no que toca a "satide", como para a cooperacao multiprofissional na delimitagio estanque de atribuigdes especificas entre antropdlogos equipes de saiide nos trabalhos de campo. Assim como néo entendemos que seja de competéncia exclusiva do profissional de saide definir as estratégias e os procedimentos médico- sanitérios mais adequados, em cada situago, também nfo entendemos que de jigdo exclusiva do antropol6gico a “interpretagao" cultural Embora reconhegamos que sejam fatores muito importantes nesse mérito, no nos parece que a condigao de legitimidade do intérprete de determinado grupo indigena resida necessaria ou exclusivamente no tempo de convivio, no dominio maior ou menor da lingua, ou da_literatura etnografica a seu respeito. Parece-nos wwe quem efetivamente define a jegitimidade ‘do interlocutor & a propria comunidade em questdo, ‘simplesmente a partir da amizade e da confianga nele depositada. Nese aspecto, abandonamos explicitamente 141 Indigenisno ranuanio? 0 dmbito das atribuigdes e identidades académicas, jo da individuali idade", ‘como queiram), encontramo-nos diante da postura ¢ da experiencia pessoal, insubstituivel no chamado “contato interétnico" direto. Este nos parece ser, em iltima instancia, 0 "“fato social total" do indigenismo: pessoas que se relacionam e convivem com pessoas € que, eventualmente, podem vir a representa-las e falar em seu nome. Para aquém desta perspectiva sé nos resta procurar garantir. a equivaléncia de prioridades entre estas duas perspectivas disciplinares de trabalho, médica e antropologica, ‘mesmo em se tratando do planejamento € execugdo de programas tidos como estritamente técnicos", como os de saade. A diferenga daqueles _nossos personagens imaginarios, 0 sanitarista ¢ © antropélogo “tipicos", cremos, no entanto, ser possivel" conceber_ a imagem de um profissional que reserve em seu repertério de competéncias habituais, 4 parte padres, procedimentos e solugdes conhecidas, um espago para o inusitado, uma chance para o assombro. Um tipo talvez nem to raro, mas certamente ainda pouco reconhecido e respeitado fnas corporages e instituigdes que construimos, que vivemos sustentando e legitimando. Cadernos de Campo Indigenisna santrio? BIBLIOGRAFIA BARATA, R. C. Barradas: "A historicidade do conceito de causa" in: Textos de Apoio- Epidemiologia 1, Rio de Janeiro, PEC/ENSP-ABRASCO, 1985 CONFALONIERI, U.: “O sistema tnico de satide ¢ as populagSes indigenas: por uma integragao diferenciada", in: Cadernos de Saiide Piblica, Rio de Janeiro, out/dez 1989, 5(4) Conferéncia Nacional de Protegio a Saiide do indio (tema da 8* Conferéncia Nacional de Sade) - relatorio final, novembro/1986 GAGLIARDI, J.M.: O Indigena e a Repiblica, Sio Paulo, HUCITEC - EDUSP, 198 GONCALVES, R. B. Mendes: *"Reflexio sobre a articulagdo entre a investigagao gpideriogica ea prtca métia apropésio das doeneas crdnico-degenerativas", in: fextos de Apoio - Epidemiotogia 1, Rio de Janeiro, PEC/ENSP-ABRASCO, 1985 MARSIGLIA, R. G.; BARATA, R. C. Barradas, SPINELLI, S. P.: "Determinagao social do processo epidémico", in: Textos de Apoio - Epidemiologia 1, Rio de Janeiro, PEC/ENSP-ABRASCO, 1985 RHOADES, E. R. et al.: "The organization of Health Services for Indian People”, in: Pub. 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