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RACISMO E ECONOMIA RACISMO E DESIGUALDADE Falar sobre raga e economia ¢ essencialmente falar sobre desigualdade. Tanto para aqueles que a consideram como a ciéncia que se ocupa da escasse7, como aqueles que a vem como 0 conjunto das relagdes de produgao. A economia deve responder a uma série de questées que mobilizam muito mais do que célculos matemticos ou planilhas: como a sociedade se organiza para produzir as condigdes necessérias para a sua continuidade? Como 0 trabalho social & dividido? Qual o cri- tério para definir o pagamento de salérios? Estas questoes demonstram, em primeiro lugar, que a ideia, de desigualdade é um ponto nodal das teorias econdmicas, que terfo que lidar com ela, de um jeito ou de outro, € em segundo lugar, que a economia s6 pode tentar responder a estas questées apelando para a politica, aética, a sociologia e 0 direito. A desigualdade pode ser expressa em dados estatisticos ‘ quantificada matematicamente, mas sua explicacdo esté na compreensio da sociedade e de seus iniimeros conflitos. PIURAIS FEMINISMOS (0 QUE € RACiSMO ESTRUTUR Peguemos o exemplo dos salirios. Por meio de nimeros ;posso constatar que hé pessoas que recebem salérios menotes do que outras, ainda que com a mesma formagio, exercendo as mesmas fungdes e com jornadas superiores. A explicagio para esta distingdo tera que ir além dos nimeros, cuja impor- tincia nio se nega. Nesse sentido, a explicagao mais vulgar atribui a desigual- dade salarial ao mérito, ou seja, ao desempenho individual do trabalhador ou trabalhadora. Pode ser que exercendo a mesma fungio, nas mesmas condigdes contratuais ¢ ainda que com jornada inferior, um trabalhador ou trabalhadora seja eficiente, 0 que ia um salério maior, condizente com sua produtividade, Por este prisma, a desigualdade vista nos niimeros tem fundamento moral ¢ juridico, ja que 0 mérito, expresso na eficiéncia e na produtividade dos individuos, torna natural a desigualdade. O problema todo é quando a produtividade ea eficiéncia no podem ser invocados como fatores explicativos das diferencas salariais, E quando as estatisticas mostram que, independen- temente da produtividade, pessoas de um determinado grupo social, como negros ¢ mulheres, ganham salérios menores? Como explicar o fato de que pessoas negras € tram-se majoritariamente alocados nos pos baixa remuneragao e considerados precérios as maiores taxas de desemprego entre pessoas negras? Ha anos imimeras pesquisas tém demonstrado que a raga é um marcador determinante da desigualdade econémica e que direitos sociais e politicas universais de combate a pobreza € Adistribuicdo de renda que nao levem em conta o fator raga/cor mostram-se pouco efetivas.'™ Desde o fim da segunda guerra ial e seus efeitos devastadores, alguns pesquisadores tém Silvio Almeida buscado dar atencao ao fator racial no ambito econémico. Nos EUA dos anos 1940, portanto no periodo em que vigorava a segregacio racial naquele pais, duas obras marcantes e pole: micas se debrugaram sobre a relagdo entre raga e econo! ‘An American Dillema: the Negro Problem and the American Democracy,’® de Gunnar Myrdal, de 1944, e Caste, Class and ” de Oliver Cromwell Cox, de 1948. Em An American Dillema, Myrdal, que em 1974 viriaa dividie da sociedade estadunidense, que se divide entre a crenga nos valores liberais e democriticos e, a0 mesmo tempo, sust contra a populagio negra, Em a problemitica e limitada redugao do ismo a um dilema moral, a anilise de Myrdal é de grande ;portincia, pois conseguiu descrever de forma ampla pro- blema racial nos EUA, inclusive em seus efeitos econdmicos. Para Myrdal \ga0 da populagdo negra poderia ser explicada pelo que denominava de causas cumulativas. Um exemplo: se pessoas negras sao discriminadas na educacio, éprovavel que tenham dificuldade para conseguir um trabalho. A educagao precaria também leva a desinformagio quanto aos ccuidados que se deve ter com a saiide. O resultado é que com ‘menos dinheiro e menos inf relativos aos cuidados coma satide, a populagio negra terd maiores dificuldades nao apenas para conseguir um trabalho, mas para nele se manter. Além disso, a pobreza, a pouca educagio formal ¢ a falta de cuidados médicos ajuda a reforgar os esterestipos racistas, tais como a esdriixula ideia de que negros tem pouca propensio para trabalhos intelectuais, completando-se assim um circuito fechado em quea discriminagao gera ainda mais discriminacio. PLURAIS FEMINISMOS FEMINISMOS PIURAIS (OOUE RACISMO ESTRUTURAL? Para Myrdal, o tratamento dispensaclo aos negros pelos nor- te-americanos era incompativel com uma economia avancada e que pretendia ser democrtica, Por seus efeitos deletérios, 0 pro- blema racial deveria ser visto como também dos brancos, e de toda a sociedade dos EUA. Utilizando lentes keynesianas para olhar um mundo conformado pelo fordismo, Myrdal propde que as instituigées como 0 Estado, as escolas, 0s sindicatos e as igrejas, de maneira compativel com a crenga americana nos valores da liberdade e da igualdade, atuem para reduzir o pre- conceito contra os negros. Hi em Myrdal uma evidente crenga na possibilidade de racionalizagio da sociedade, que marca 0 pensamento econdmico desenvolvimentista. Por isso, Myrdal considerava essencial para o rompimento do circulo vicioso do racismo a integragio da populagao negra a sociedade industrial. ‘Ainda nos EUA, 0 socidlogo negro Oliver Cox em seu vul- toso Caste, Class and Race prope a tese de que o racismo ¢ erivado das relagies econdmicas capitalistas e compéem um aspecto essencial da uta de classes. De orientagéo marxista, Cox considera que 0 antagonismo racial é um fenémeno surgido na modernidade, nao verificado em sociedades pré-moder- nas, Segundo o estudioso, a exploracéo racial eo preconceito racial desenvolveram-se entre europeus com o surgimento do ‘apitalismo e nacionalismo, e conclui que [..] por conta das ramificagdes mundiais do capi 0s antagonismo racais podem ser relacionados as atitudes ds principais povos capitalisas, as pessoas brancas da Europa eda América donorte."! 0 dio racial é, para Cox, 0 “suporte natural” da exploragio capitalista.@ liver Cox foi um critico mordaz das posigles liberal-keyne- sianas defendidas por Gunnar Myrdal, a quem considerava um Silvio Almeida ita inveterado” que nao se preocupava com problemas relacionados a0 poder, mas com o problema da “regeneraco do individuo por meio de pregacbes idealistas”! Ainda que de maneiras muito distintas, as monumentais obras de Gunnar Myrdal e Oliver Cox tém em comum o fato de nao tratarem o racismo como algo exterior & economia, mas como parte integrante das relagdes socioenomicas. A sol do racismo implicaria em algum tipo de mudanga institucional € reorientacao moral - segundo Myrdal - ou até mesmo estru- tural e revolucionéria ~ segundo Cox -, que de um modo ou de outro, exigiriam interferéncias na relacéo Estado/mercado, € no apenas em comportamentos. Nesse contexto, outras teorias econdmicas da discrimina- sao surgiram para se opor & possibilidade de intervengao do Estado no mercado. Tais teorias, valendo-se dos parametros neocldssicos do pensamento econdmico,™ buscam explicar a discriminagao sob 0 ponto de vista comportamental e como tum elemento externo e estranho & regularidade da economia € suas instituiges fundamentais. A primeira de que falaremos ¢ a chamada teoria da discrimi- nagao por preferéncia ou da propensao a discriminagio, Segundo esta teoria, exposta em 1957 pelo economista G obra A economia da discrimina, de um comportamento orientado por informagoes insuficientes ou por ignorancia. Como, segundo a ética utilitarista utilizada pelos economistas neoclissicos, os individuos agem tendo como horizonte a otimizacio racional dos recursos disponiveis, um racista discrimina uma pessoa negra porque simplesmente a vé como uma desutilidade, ou seja, como algo que no Ihe dara retorno em produtividade, ow anda pior, que resulta em uma despesa, Para esta teoria, o racista é alguém que, além de PIURAIS © FEMINISMOS FEMINISMOS = PIURAIS QUE E RACISMO ESTRUTURAL? propenso a discriminagao por questies psicolégicas, nio passa de um ignorant, uma pessoa mal informada, que acredita que a raca interfere na produtividade. 0 racismo aqui nao é apenas algo prejudicial ao capitalista ¢ a0s trabalhadores negros, mas a todo o capitalismo, que o preconceito e a ignorancia impedem a otimizacio da produtividade e do lucro. O racista éaquele que deixa de con- trata alguém mais ou igualmente produtivo por conta de suas preferéncias irracionais por pessoas que se parecam fisica e/ ou culturalmente consigo. Desse modo, a discriminagio eco- némica é a soma de comportamentos individuais baseados em preconceitos e uma falha de mercado no que se refere as informagées disponiveis. Segundo este argumento, é preciso entéo que o mercado eduque o agente para que ele aprenda que nao ha diferenga na produtividade de pessoas negras e brancas, Jha teoria do capital humano assume a postura de considerar diferentes os niveis de produtividade de trabalhadores negros ¢ ‘brancos. Tira-se 0 peso dos comportamentos individuais como na teoria da propensio discriminagao e aposta-se nas falhas de ‘mercado como explicagio para a desigualdade, no caso as falhas ‘educacionais. Em suma: brancos e negros so desigualmente produtivos porque a discriminacio histérica contra os negros criou um passivo educacional que realmente faz dos brancos detentores de um capital humano diferenciado. Assim, a expli- cagio da discriminagéo pela propensao a discriminar é tida por insuficiente, j que o problema das desigualdade residiria na baixa qualidade das escolas, na discriminagdo em relagao a0 nivel educacional e, por fim, a discriminagao racial." © que se pode concluir destas duas leituras neocléssicas do problema da discriminagao? Fica evidente uma concep¢ao individualista do racismo. As desigualdades salarial ou relativa Silvio Almeida as condigdes de trabalho com base na raga ou no género sio tidas como efeitos de comportamentos irra de alguns agentes econdmicos. O uso da palavra preconceito ao invés de racismo serve para reforgar a visio psicologizante e individu- alista do fendmeno. Neste modelo, a desigualdade ¢ eticamente justificavel desde que fundada sob 0 mérito individual. A igualdade de oportuni- dades alude ao ideal de um ambiente meritocrético, em que os individuos possam empreender livremente e concorrer entre Assim, fora da meritocracia, a desigualdade salarial é uma itude, vez que violaria o principio da igualdade formal, Portanto, seria mister das autoridades competentes e do judi iério coibir tal comportamento ilegalmente discriminatério. Hé ainda uma terceira teoria econdmica que merece nossa atencéo por destacar os aspectos sistémicos da discriminagio ceaté inconscientes da discriminacao: a tearia da discriminagdo estatistica, Consoante esta teoria, a desigualdade racial e de género é fruto de decisdes tomadas pelos agentes de mercado a partir de preconceitos estabelecidos na sociedade. Desse modo, as diferencas salariais entre grupos raciais e sexuais nao surgem da intengdo deliberada em discriminar ou pela aversdo a minorias, mas pela persisténcia de priticas rotineiras, estatisticamente predominantes no mercado. Como é praxe no mercado o pagamento de saldrios menores para homens negros e mulheres negras, a decisio “racional” de um empre- sério, ou seja, de um agente econémico que queira maximizar seus lucros, é seguir a tendéncia do mercado e pagar salérios de acordo com a média ja estabelecida. A decisio de pagar 0 ‘mesmo para negros e brancos ou para homens e mulheres é irracional’, visto que com isso 0 capit considerando a média do mercado. A grande vantagem dessa PLURAIS FEMINISMOS PIURAIS © FEMINISMOS (OQUE € RACISMO ESTRUTURAL? teoria em relagao as duas anteriormente referidas é demonstrar que as desigualdades racial e de género no sio produtos da intencionalidade dos individuos e nem do nivel educacional dos agentes econdmicos, mas de um sistema que funciona a partir de perfis raciais e preconceitos. Entretanto, a deciséo de seguir a média do mercado nem sempre se mostra a mais inteligente em termos negociais, tendo em vista que as transformagdes sociais e econdmicas ocorridas nas tiltimas décadas estabeleceram a diversidade e 0 respeite 4s minorias como um “ativo” das empresas, que podem, caso no se atentem para questdes de raga, genero e sexualidade, ter sérios prejuizos financeiros e de imagem. Mas o que a teoria da discriminacdo estatistica também aponta é para 0 modo com que as decisdes tomadas com base nos parametros médios ~ e racistas ~ predominantes no mer- cado, acaba por afetar negativamente os comportamentos, @ autoestima e as expectativas dos individuos do grupo discri- minado, no que a psicologia social denominou de ameaga do esterestipo ~ stereotype treath.’® Por ter conhecimento das barreiras realmente existentes no mercado de trabalho, espe- cialmente no que se refere a carreiras como Medicina, Direito ¢ Engenharia, membros de grupos minoritarios sentem-se desestimulados a estudar e a competir por vagas no mercado de trabalho nestas profiss6es, pois ja internalizaram os estereétipos ‘que compéem a visio média que a sociedade tem acerca de seu desempenho. O que se observa neste quadro é a reproducio do ciclo de preconceitos ¢ 0 reforgo aos esteredtipos pelos quais 0 mercado se autorregula Podemos ver que as teorias neoclassicas da discriminagao, com todas as diferengas que possam guardar entre si, tém em comum 0 fato de atribuirem a desigualdade racial e de Wvio Almeida género nas relagdes de trabalho a falhas de mercado, ow seja, a insuficigncia de informagoes disponiveis aos agentes eco- némicos ou a existéncia de obstaculos politicos ou juridicos que impedem a tomada de decisdes racionais destes mesmos agentes. O excesso de intervengao do Estado, leis limitadoras da liberdade contratual e educacao insuficiente seriam os reais motivos da jgnordincia que levaria a préticas discriminatories Neste sentido, caberia ao Estado ~ desde que sem maiores interferéncias na dinamica das relagdes privadas ~, mas, prefe- rencialmente, ao proprio mercado, remover as barteiras para a tomada de decisdes racionais - leia-se, orientadas para a maximizagao do lucto e para o aumento da produtividade. Em geral, as teorias neoclissicas da discriminagio consideram muito pouco relevante o impacto da discriminacio racial ha economia, 0 que nio justificaria 0 desequilibrio que as intervengdes estatais sio capazes de provocar no mercado. ‘Todavia, o que é mais impressionante é a enorme difusio das teorias neoclassicas da discriminagao. Como a tendéncia das teorias da discriminagao neoclissicas ¢ vero racismo como um problema comportamental ~ em evidente aposta no indi- Vidualismo metodolégico — as solugdes serao sempre fixadas no aumento do investimento na formacio educacional dos individuos, visando ao mercado de trabalho. Esse argumento ‘cumpre trés fung6es importantes: 1. reduzir 0 racismo a um problema ideolégico, sem desta- car as questdes politicas ¢ econdmicas que o envolvem; desviar o debate racial para o campo da meritocracia, ja ‘que 0 racismo viraria um problema de superagao pessoal; responsabilizar o individuo pelo proprio fracasso diante de um cenério de precariedade nos sistema de educagao. 3 FEMINISMOS PLURAIS FEMINISMOS PLURAIS (0 QUE E RACISMO ESTRUTURAL? Esta questio se torna ainda mais curiosa se olharmos para 0 debate brasileiro sobre as cotas raciais. Embora acreditando que © problema do racismo ~ ¢ da desigualdade ~ é educacional, uitas pessoas foram contrarias 4s politicas de cotas. Isso se explica pelo fato de qui universidade nao é apenas um local de formagao técnica e cientifica para 0 trabalho, mas tum espago de privilégio e destaque social, um lugar que no maginério social produzido pelo racismo foi feito para pessoas brancas, O aumento de negros no corpo discente das univer- sidades tem, portanto, impactos ideolégicos e econdmicos, pois, ainda que timidamente, tende a alterar a percepgio que se tem sobre a divisao social do trabalho e a politica salarial ‘Ao mesmo tempo, ha defensores das politicas de acéo afir- mativa que partem do referencial neoclassico, H4, com efeito, ‘como se estabelecer a defesa das agdes afirmativas segundo 0 argumento da otimizagdo racional dos recursos. Se tenho dois candidatos a uma vaga de emprego, uma mulher negra € um homem branco, seria totalmente racional se eu optasse pela mulher negra. Isso porque, posso pressupor com boas chances de acerto, que em uma sociedade em que ha discriminagao de raga e género ~ seja por preferén por falha de merca- do-,uma mulher negra teve que superar muitos obsticulos € demonstrar excepcional resiliéncia e inteligéncia para chegar yesmo patamar de uma pessoa branca. Posso concluir que ela seré mais produtiva e com ela obterei mais lucro. Desde modo, optar por pessoas negras quando estas estao concorrendo em igualdade de condigoes é priv o esforco ea capacidade de sup Este argumento far todo o sentido da ética que considera a -meritocracia como o principio ético norteador das diferencas Entretanto, se observarmos por uma angulacao m Silvio Almeida ‘© que esta subjacente nesta forma de ver o problema as aces as € que é mérito, quando se trata de pessoas negras, ima espécie de condigio sine qua non, o sofrimento individual. Aqueles que por alguma razao nao conseguiram iportar o peso econdmico € psicolégico do racismo em suas trajet6rias nao se enquadrariam na logica meritocrética, UMA VISAO ESTRUTURAL DO RACISMO E DA ECONOMIA Apesar da enorme repercussio alcangada pelas concepcbes individualistas do racismo, a teoria econdmica ofereceu impor lantes contribuigGes que se ampararam em uma perspectiva estrutural, perspectiva esta que obriga a economia a voltar-se hovamente para a sua dimensio politica. Na sociedade capitalista, seu modo de bisico de constitui- do ~ a troca mercantil- nao é um dado natural, mas uma construcio histérica. © mercado ou sociedade civil nao seria possi ges, direito e politica. Como nos adverte Robert Boyer “as instituigdes basicas de uma economia mer- Fessupdem atores € estratégias para além dos atores € ratégias meramente econdmic smonstrar como 0 mercado é de fato uma construgio Boyer conta-nos como a intervengao estatal direta ou ‘a concorréncia, estipulando regras li das empresas. A concorréncia que mu consideram como da “natureza” do capitalismo s6 possivel pela mediacio entre as esferas publica e privada; liberar as forgas de concorréncia do trabalho, o que historicamente implicou na regulacao das relagies sa- iais, ora pelo direito privado - privilegiando regras PIURAIS — FEMINISMOS FEMINISMOS PLURAIS (QUE € RACISMo ESTRUTURAL? pactuadas pela negociacdo entre capital e trabalho -, ora ao denominado direito social — com imposigéo de certos mites ao contrato, Nesse sentido, a intervengao estatal | é mais evidente ainda quando referente& cobertura social 2s lutas dos assalariados pelo reconhecimento dos acidentes de trabalho, dos direitos @ aposentadria ea saide resultaram em ‘casos de avango em materia de dretos sociais ~ avangos que dlizem respeit tanto & natureza da cidadania quanto a0 modo de regulacéo."" ‘Assim como o mercado de maneira geral éforjado por relagbes historicas, estatais einterestatais, e a relagdo salarial, indepen- dentemente de quais mecanismos ju fixagdo de seus parimetros, nio é resultado de “forgas espon- tineas’, mas é decorrente de diversas mediagSes sociaise polt- tico-estatais nas quais questdes como raga e género fara parte. E nesse sentido que além das condigdes objetivas - e aqui re- ferimo-nos as possibilidades materiais para o desenvolvimento das relagdes sociais capitalistas - 0 capitalismo necessita de condigdes subjetivas. Com efeito, os individuos precisam set {formados, subjetivamente constituidos, para reproduzir em seus atos concretos as relagdes sociais, cuja forma bisica € a troca mercantil, Nisso, resulta o fato de que um individuo precisa fornar-se um trabalhador ou um capitalista, ou seja, precisa naturalizar a separacao entre Estado e sociedade civil, sua condigio social e seu pertencimento a determinada classe cu grupo, Esse processo, muitas vezes, passa pela incorpora- ao de preconceitos e de discriminagio que serao atualizados para funcionar como modos de subjetivagio no interior do capitalismo. Este proceso nao & espontineo, os sistemas de educagao e meios de comunicaao de massa so aparelhos que funcionam justamente produzindo subjetividades culturalmente adaptadas em seu interior. Nao € por outro motivo que parte | Ivio Almeida a sociedade entende como um mero aspecto cultural ofato de negros e mulheres receberem 0s piores salérios e trabalharem mais horas mesmo que isso contrarie disposiges lega No Relat6rio anual das desigualdades raciais no Brasil: 2009- 2011, Marcelo Paixao afirma que: No plano econémico, ¢discriminagao atua diferenciando, entre ‘0 grupos étnico-racias, as probabilidades de acesso aos ativos econmicos e mecanismos favorecedores a mobilidade social ascendente: empregos, crédito, propriedades, tera, educagio formal, acesso as universidades, qualficagao pr Imentos no emprego (iob-training). No plano das direitos sociais, «a discriminagao opera tolhendo, aos grupos discriminados, 0 ‘acesso a justica ea protegao pr cia, bem como ras a0 acesso aos bens de uso coletivo nos contra o outro acabam sendo expressas ins Passand a integra o corpo das les da naga experiéncia de paises como, por exempl, EUA (até os anos 1960, ‘qando comegaram a ser superadas) e Attica do Sul (até 1994, quando, socialmente, se encerrou o apartheid). Ao referir-se especificamente & economia, ou em outros ter: tos, 20 processo de acumulagao capitalista, Pedro Chadarevian faz uma sintese do que os diferentes autores heterodoxos da ia econémica do racismo entendem como sendo os me- inismos de discriminagao racial, a saber: a) adiviséo racial do trabalho; b) 0 desemprego desigual entre os grupos raci ©) 0 diferencial de salirios entre trabalhadores negros e brancos 4) a reproduséo ~ fisica e intelectual ~ precéria da forga de trabalho negra. FEMINISMOS PIURAIS (QUE E RADISMO ESTRUTURAL? FEMINISMOS PIURAIS Portanto, a anélise do racismo sob 0 ponto de vista econd: ‘mico-estrutural nos leva a duas conclusdes: 1. Oracismo se manifesta no campo econdmico de forma ‘como quando as politicas econdmicas estabele- ios para o grupo racial dominante ou preju- dicam as minorias. O um exemplo disso éa tributagao. Em paises como o Brasil, em que a tributagio é feita primordialmente sobre salério e consumo ~ que pest principalmente sobre os mais pobres eos assalariados -, em detrimento da tributacao sobre patriménio e renda, ue incidiria sobre os mais ricos -, a carga tributéria torna-se um fator de empobrecimento da populagio ne- ‘gra, especialmente das mulheres negras, visto que estas so as que recebem os menores salirios.'” Segundo 0 relatorio da pesquisa As implicagdes do sistema tributério nna desigualdade de renda, em sendo a carga tributaria brasileira regressiva, {1 pois mais da metade dela incide sobre o consumo, isto & ‘est embutida nos pregos dos bens e servgos, @ consequéncia 6 que as pessoas com menor renda (por exemplo, as mulheres ‘negras) pagam proporcionalmente mais tributos do que aquelas ‘com renda mais elevada, Com isso, pode-se concluir que a re- aressividade do sistema tributaro, ou sej,0financiamento das polticas publicas brasileiras quanto ao peso dos tributos recal sobre as mulheres eos/as negros/as. 0s dadosindicam, pati cularmente, que as mulheres negras pagam proporcionalmente, ‘em relagdo a0s seus rendimentos, muitos mais tibutos do que eshomensbrancos. Com isso, qualquer poticaecondmica, fiscal orgamentaria que merega ser levada a sério precisa incorporar co debate da desiqualdade racial [1 2, Orracismo se manifesta no campo econdmico de formal subjetiva, Como lembra Michael Reich, o racismo, de {formas nao propriamente econémicas, ajuda a legitimar vio Almeida a desigualdade, a alienagao ea impoténcia necessirias para a estabilidade do sistema capitalista.” O racismo faz.com que a pobreza seja ideologicamente incorporada quase que como um condigio “biolégica” de negros nas, naturalizando a insercao no mercado de trabalho de grande parte das pessoas identificadas com estes grupos sociais com salérios menores e condigdes de trabalho precérias. RACISMO E SUBSUNCAO REAL DO TRABALHO AO CAPITAL Poder-se-ia dizer que o racismo normaliza a superexploragio do trabalho," que consiste no pagamento de remuneragio abaixo do valor necessdrio para a reposigio da forca de trabalho maior exploragao fisica do trabalhador, o que pode ser exem- Plificado com o trabalhador ou trabalhadora que nao consegue com 0 sakirio sustentar a propria familia ou o faz com muita dificuldade, e sso independentemente do niimero de horas que trabalhe. A superexploracdo do trabalho ocorre especialmente na chamada periferia, onde em geral o capitalismo se instalou sob a légica colonialista, O racismo, certamente, nio éestranho 4 expansio colonial ea violéncia dos processos de acumulagio primitiva de capital” que liberam os elementos constitutivos da sociedade capitalista Entretanto,hé trésindagagdes que nos colocam diante de um impasse em face desta boa explicacao funcional do racismo: 4 existéncia de racismo e superexploragio nos paises desenvolvidos ou centrai tanto a nacionais como a imigrantes; © racismo que se manifesta fora das relagdes de produ- 40, como na violencia policial contra minorias; FEMINISMOS — PIURAIS FEMINISMOS PLURAIS ‘O QUE E RACISMO ESTRUTURAL? 3. 0 fato de que uma mesma formacao social possa abrigar as mais diversas formas e niveis de exploragio, podendo, ‘na mesma formagio social, 0 trabalhador assalariado com direitos sociais conviver com 0 trabalhador que produza em condigdes andlogas& escravidao, inclusive na mesma cadeia produtiva.” Propomos uma possivel resposta a estas questdes a partir da utilizagao dos conceitos de subsungdo formal do trabalho 4 capital e subsungio real do trabalho ao capital. Estes dois conceitos so utilizados por Marx na descrigéo, das fases consttutivas das relagoes de producio capitalistas. Na subsungdo formal, o trabalho, embora ja organizado segundo padrées e objetivos do capitalismo, mantém-se praticamente inalterado em relagdo a maneira de produzir nas corporagdes de oficio ou nas oficinas de artesanato do mundo medieval. 0 trabalhador, nesse caso, faré no ambiente da fabrica a mesma atividade que ele fazia em sua oficina, s6 que agora nas con- digGes formais do capitalismo. O trabalhador continua sendo ‘o dono da técnica de produgao, mas agora ele € assalariado. ia subsungao real” corresponded etapa em que a produgéo esté totalmente sob o controle do capital. Nesta quadra, néo hd espagos para a intromissio de elementos que destaquem a pessoalidade ou a individualidade do trabalhador. A automa- 40 do processo produtivo e 0 avango tecnoligico tornam 0 trabalho realmente abstrato, no sentido de que as caracteris- ticas e habilidades individuais dos trabalhadores tornam-se indiferentes & producdo capitalista. Nessa fase, pode-se trocar um trabalhador por outro que isso nao faré a menor diferenga: basta treinar outro individuo e ele fard o mesmo. A técnica da producio ja nao € mais do trabalhador,é do capital, e assim, pouco importam as caracteristicas pessoais do trabalhador. Silvio Almeida Refetindo-se & subsun¢do real, Etienne Balibar chama a aten- «<0 para o fato de que a subsungao real do trabalho ao capital {vai muito além da integragéo do trabalhador ao mundo do contrato de rendas monetérias, do direto e da politica oficial implica uma transformacao da individualidade humana que se estende desde a educagao da forga de trabalho até a formacio de uma ideologia dominante suscetivel de ser adotada pelos préprios dominados.""? A suscetibilidade a que se refere Balibar revela que a subsun (io real designa a instituigdo de um “ponto de nao retorno do proceso de acumulagao ilimitada e de valorizagao do valor’ ‘A subsungao real do trabalho ao capital s6 é compreensivel no nivel concreto das relagdes sociais, em que experiéncias sociais, das mais diversas sao integradas & dinamica do capitalismo. E neste ponto que a relagio estrutural entre racismo e capita lismo demonstra uma incrivel sutileza, visto que nacionalismo € racismo sdo préticas ideolégicas que traduzem a comunidade © 0 universalismo necessarios a0 processo de subsunao real do trabalho a capital, adaptando tradicées, dissolvendo ou institucionalizando costumes, dando sentido e expandindo alteridades, a partir das especificidades de cada formagao social na integragao & organizagdo capitalista da produgio. Ea predominancia, e nao a exclusividade, do trabalho assa- lariado que fornece o indice do desenvolvimento das relagoes capitalistas em uma dada formacao social. Isso significa que as condigdes estruturais do capitalismo estao dadas quando se constitui a predominancia - e devemos insistir, nao a ex- clusividade - do trabalho assalariado, Nesse passo, ha que se Jembrar que a subjetividade juridica ~ condigdo sine qua non ara a realizagdo das trocas ~ se exterioriza no momento da circulagdo mercantil, que, obviamente é determinada pela pro: FEMINISMOS PLURAIS PIURAIS FEMINISMOS ‘OVE € RAOISMO ESTRUTURAL? dugdo, Mas a depender das formagées sociais, da conjunturae das articulagdes econdmicas no plano interno e internacional, a producao capitalista e a exploracao que lhe ¢ inerente pode se utilizar do trabalho compulsério e de estratégias violentas, de controle da produc. sim, a existéncia de escravidio ou formas cruéis de explo- ragao do trabalho nao é algo estranho ao capitalismo, mesmo nos ditos paises desenvolvidos onde predomina o trabalho assalariado. No capitalismo dividem espago e concorrem entre si trabalhadores assalariados bem pagos, mal pagos, muitissimo ‘mal pagos, escravizados, grandes, médios e pequenos empre- siirios, profissionais liberais ete. O RACISMO E SUA ESPECIFICIDADE Ao tratar dos debates historiogrificos sobre a formacio da ‘economia brasileira, Rafael Bivar Marquese reafirma a neces: sidade de que as “telagées entre trabalho assalariado e traba. Iho escravo sejam vistas néo como externas umas ds outras, mas como estrutural e dialeticamente integradas’, E completa “Marquese afirmando que “a escravidao deve ser apreendida por -eio de sua relagao, via mercado mundial, com as outras formas de trabalho que o constituem, sejam assalariadas ou ni’ © que Rafael Bivar Marquese acusa em relagio a escravidaio serve também para dar sequéncia a andlise do racismo. Tal como a escravidao, o racismo nao é um fenémeno uniforme e que pode ser entendido de maneira puramente conceitual ou logica. ‘A compreensio material do racismo torna imperativo um olhar atento sobre as circunstincias especificas da formacdo social de cada Estado. Por isso é temerdrio dizer que todos os nacionalis- ‘mos sejam iguais € que o racismo se manifeste da mesma forma em todos os lugares, Em comum, nacionalismos e racismos tém: Silvio Almeida a articulagdo com as estratégias de poder e dominacio verificadas no interior dos Estados; 0 vinculo de relativa autonomtia com a reproduc capi- talista, Por isso, 0 racismo nazista é distinto do racismo colonial na tessitura dos discursos de justificagio que sgeram ¢ nas estratégias de poder de que se utilizar, mas, no bojo destas distingGes, essas formas de racismo se aproximam, na medida em que promovem a integragio. ideolégica de uma sociabilidade inerentemente fratu- rada, Por isso, as diferentes formas de nacionslismo e de racismo s6 ganham sentido historico inseridas no contexto da dinamica do capitalismo global, das distintas estratégias de acumulagdo ¢ da organizacéo institucional especifica de cada formagio social. A evidéncia de que por meio da conjugagao nacionalismof racismo 0 capitalismo dé origem a distintas formas de uni- dade contraditéria é a maneira como se constituiram paises como BUA, Africa do Sul e Brasil. Se nos paises europeus 0 racismo ~ ea superexploragao da forga de trabalho ~ encontra ‘uma relacdo mais direta com a condigio de imtigrante, nos mencionados paises, o processo de colonizagao imprimi sentido diferente ao racismo. No Brasil, EUA e Africa do $ por conta das particularidades do desenvolvimento capita- lista e das especificidades da colonizagao em cada um destes paises, 0 racismo nao toma como critério principal o fato de ser nacional ou imigrante, mas 0 pertencimento a um grupo <étnico ou minoria ~ ainda que demograficemente a maioria -, ‘ainda que os membros destes grupos sejam institucionalmente reconhecidos como nacionais. ‘A ordem produzida pelo racismo no afeta apenas a sociedade em suas relagbes exteriores — como no caso da colonizacio -, FEMINISMOS PIURAIS FEMINISMOS PLURAIS (QUE € RAOISMO ESTRUTURAL? mas atinge, sobretudo, a sua configuragao interna, estipulan- do padrées hierérquicos, naturalizando formas hist6ricas de dominagio e justificando a intervengdo estatal sobre grupos sociais discriminados, como se pode observar no cotidiano das opulacées negras e indigenas dos paises acima mencionados. Enquanto na Africa do Sul e nos EUA, que com as devidas distingdes, estruturavam juridicamente a segregacio da po- pulagao negra, mesmo no avancar do século XX ~ no caso da Africa do Sul, até 1994 -, no Brasil, a ideologia do racismo dda democracia racial, que consiste em afirmar a miscigenacéo como uma das caracteristicas basicas da identidade nacional. © que se pode notar & que a ideologia da democracia racial se instalou de maneira muito forte no imaginério social bra- sileiro, de tal modo a ser incorporada como um dos aspectos centrais da interpretacdo do Brasil, das mais diversas formas e pelas mais distintas correntes politica, tanto a “direita” como “esquerda” Para entender a forga desta ideia inserida no debate nacional a partir da obra de Gilberto Freyre, é fundamental que se entenda que a democracia racial no se refere apenas a questdes de ordem moral, Trata-se de um esquema muito ‘mais complexo, que envolve a reorganizacao de estratégias de dominagio politica, econdmica e racial adaptadas a circuns- tancias historicas especificas. 'No caso, o surgimento do discurso da democracia racial, que ainda hoje é tido como um elemento da identidade brasileira, coincide com o inicio do projeto de adaptacao da sociedade € do Estado brasileiro ao capi ial ocorrido nos anos 1930. Silvio Almeida Antonio Sérgio Alfredo Guimaraes nos mostra como a demo- cracia racial relaciona-se com aspectos estruturais da formacio nacional bras No caso da populagao negra, a democracia racial condensou um mercado de trabalho urbano absorveu grandes contingentes de trabalhadores pretos e pardos, incorporando-os definitivamente a classes operérias e populares urbanas. Incorporagao que foi institucionalizada por leis como a de Amparo ao Trabalhador Nato, assinada por Vargas em 1931, que garantia ue dois tergos dos empregados em estabelecimentos indus- triais fossem brasileiros natos; ou a lei Afonso Arinos, de 1951, {ue transformava 0 preconceita racial em contravengao penal Simbolicamente, o ideal moderista de uma nagdo m tos brasileros foram reconhecidas como cult raafro-brasilera, afro’, entretanto, designave apenas aorigem de uma cultura que, antes de tudo, era defnida como 1 mestiga e, como o proprio negro, crioula. A ideologia politica da ‘democracia racial, como pacto social, foi predominantemente 0 trabalhismo, tendéncia que data da Primeira Replica (ver, por ‘exemplo,aideologia de um Manoel Querino) e que foi continuada lerngas, como Abdias do Nascimento." (© Estado brasileiro nao é diferente de outros Estados capitalistas neste aspecto, pois o racismo & elemento consttuinte da politica € da economia sem o qual nao é possivel compreender as suas estruturas, Nessa vereda, a ideologia da democracia racial produz tum discurso racistae legitimador da violéncia e da desigualdade racial diante das especificidades do capitalismo brasileiro. Portanto, nao € 0 racismo estranho & formagao social de qualquer Estado capitalista, mas um fator estrutural, que organiza as relagdes politicas e econdmicas. Seja como FEMINISMOS PIURAIS FEMINISMOS PLURAIS (QUE € RACISMO ESTRUTURAL? racismo interiorizado ~ dirigido contra as populagdes in- ternas - ou exteviorizado ~ dirigido contra estrangeiros -, € possivel dizer que paises como Brasil, Africa do Sul e EUA nao sdo 0 que sdo apesar do racismo, mas sio 0 que sio gragas ao racismo. A insergio dos individuos em cada uma destas condigies formatadas pela sociabilidade capitalista depende de um com- plexo jogo que mescla uso da forga e a reproducao da ideologia a fim de realizar a domesticagao dos corpos entregues indistin- tamente ao trabalho abstrato. O racismo é um elemento deste jogo: sera por isso que parte da sociedade no verd qualquer anormalidade na maioria das pessoas negras ganharem saldrios menores, submeterem-se aos trabalhos mais degradantes, néo estarem nas universidades importantes, ndo ocuparem cargos de direcao, residirem nas areas periféricas nas cidades e serem com frequencia assassinadas pelas forgas do Estado. ‘A institucionalizacdo das diferengas raciais e de género garante que o trabalho seja realmente submetido 20 capital, ‘uma ver que o racismo retirard do trabalhador qualquer re- levancia enquanto individuo. No mundo ~ racista -, 0 negro no tem condigdo de reivindicar um tratamento igualitério ou de exigir que suas diferencas sejam respeitadas; o tratamento dispensado ao trabalhador e até mesmo as suas diferencas nio dependem dele ou do que venha a achar de si mesmo. A forma com que o trabathador sera tratado, 0 que é justo ou nao, € até onde pode ir nas suas reivindicag6es, vai depender tinica e exclusivamente das determinagdes da produslo capitalista eda replicagao da forma-valor. Assim é que 0 racismo se conecta & subsungao real do trabalho ao capital, vez que a identidade ser definida segundo os padres de funcionamento da produgao capitalista, Silvio Almeida Por esse motivo é que o racismo enquanto dominagdo convive Pacificamente com a subjetividade juridica, as normas estatais, a impessoalidade da técnica juridica ea afirmagio universal dos direitos do homem, elementos diretamente ligados ao processo de abstragao do trabalho." SOBRE A HERANCA DA ESCRAVIDAO As explicagoes estruturais para a persisténcia do racismo na economia tém, historicamente, propiciado um grande debate sobre a heranca da escraviddo. Esta questio é relevante pois € preciso colocar a questao da escravidao e do racismo sob 0 prisma da economia politica." Sobre a relagio entre escravidao ¢ racismo, hé basicamen- te, duas explicagdes. A primeira parte da afirmagao de que 0 racismo decorre das marcas deixadas pela escravidio e pelo colonialismo, C io, as sociedades contem- Pordneas, mesmo apés o fim oficial dos regimes escravistas, permaneceriam presas a padres mentais einstitucionais escra- vocratas, ou seja,racistas, autoritérios e violentos. Dessa forma, © racismo seria uma espécie de resquicio da escravidio, uma contaminagao essencial que, especialmente nos paises periféri os, impediria a modernizagao das economias e 0 aparecimento de regimes democriticos. No caso dos paises centrais as marcas da escravidio poderiam ser vistas na discriminagio econdmica itica a que so submetidas as minorias raciais, como € 0 caso da populacao negra e latina nos EUA e dos imigrantes ndo-brancos na Europa Outra corrente, apesar de ndo negar os impactos terriveis da escravidao na formacdo econémica ¢ social brasileira, dird que as formas contempordneas do racismo sao produtos do capitalismo avangado e da racionalidade moderna e nao FEMINISMOS PIURAIS © (-0UE € RACISMO ESTRUTURAL? FEMINISMOS PIURAIS resquicios de um passado que nao passa. O racismo nao é um resto da escravidio, até mesmo porque nao hé oposicéo entre modernidade/capitalismo e escravidao. A escravidao e © racismo sio elementos constitutivos tanto da modernidade quanto do capitalismo, de tal modo que nao hé falar de um sem 0 outro, © racismo, de acordo com esta posigao, é uma manifes- taco das estruturas do capitalismo, que foram forjadas pela escravido. Isso significa dizer que a desigualdade racial é um elemento constitutivo das relagdes mercantis e das relagées de classe, de tal sorte que a modernizagao da economia e até seu desenvolvimento também podem representar momentos de adaptacio dos parimetros raciais a novas etapas da acumulagdo ‘capitalist, Em suma: para se renovar, o capitalismo precisa, muitas vezes, renovar 0 racismo, como, por exemplo, substituir ‘© racismo oficial ea segregacao legalizada pela indiferenga em face da igualdade racial sob o manto da democracia. ‘O crescimento econdmico pode ser considerado o aumento da producao ¢ do lucro, 0 que nao necessariamente implica em aumento de salério, Nesse contexto, o racismo pode ser uma excelente tecnologia de controle social porque, “natura- liza” o pagamento de saldrios mais baixos para trabalhadores ¢ trabalhadoras pertencentes a grupos minoritérios, Outro efeito importante do racismo para 0 “crescimento” é servir de instrumento de dissuasdo dos trabalhadores brancos, que pensarao duas vezes antes de reivindicar aumento salarial em uma situagao em que poderiam ser substituidos a qualquer tempo por negros ou imigrantes, geralmente mais baratos e, Por serem mais suscetiveis ao desemprego, mais facilmente dis poniveis no mercado como “exército reserva de mao de obra’ Silvio Almeida CLASSE OU RACA? ‘Outra questo que tem suscitado muito debates em torno da relagao entre racismo e economia esté no dilema entre raca e classe. O problema da desigualdade deve ser visto a partir da lade da classe ou da raga? O racismo tem uma logi a diferente da légica de classe? Na luta contra desigualdade a prioridade deve ser dada a classe ou a raca? Estas questdes tém dividido o movimento negro ¢ as organizagées politicas, mas, ‘no meu entender, em torno de um falso dilema. A diviséo de classes, a divisio de grupos no interior das classes, 0 processo de individualizacao ¢ os antagonismos sociais que caracterizam as contradigées que formam a sociabilidade capitalist, tem o racis- ‘mo como veiculo importantissimo. E negar isso é simplesmente no compreender o capitalism enquanto forma de sociabilidade. Logo, 0 racismo nao deve ser tratado como uma questao lateral, que pode ser dissolvida na concepgao de classes, até Porque uma nogio de classe que desconsidera 0 modo com ‘que esta mesma classe se expressa enquanto relacao social objetiva. Sao individuos concretos que compéem as classes & ‘medida que se constituem concomitantemente como classe ¢ como mintoria nas condigdes estruturais do capitalismo. Assim, classe € raga sio elementos socialmente sobredeterminados."* A situagao das mulheres negras exemplifica isso: recebem salarios, sio empurradas para os “trabalhos aqueles que nio produzem mais-valia, mas que iais, a exemplo das babs e empregadas domésticas, ‘em geral negras que, vestidas de branco, criam os herdeiros do capital -, sao diariamente vitimas de assédio moral, da vi ica e do abandono, recebem o pior tratamento nos sistemas “universais” de satde e suportam, proporcionalmente, FEMINISMOS PIURAIS 0 QUE € Raciswo ESTRUTURAL? a mais pesada tributagao. A descrigio eo enquadramento es- trutural desta mento real da divis de classes e stitucionais do capitalismo, Para Clévis Moura a luta dos negros desde a escravidao cons- titui-se como uma manifestagao da luta de classes, de tal sorte que a légica do racismo ¢ insepardvel da logica da constituigéo da sociedade de classes no Brasil, porque [1] ap6s 0 13 de maio eo sistema de margin se seguiu, colocaram-no como seu cotidiano da sociedade competitiva (capitalismo dependente) que se crou, esse principio ou norma nao passasse de um mito protetor para esconder as desiqualdade socias, econdmicas e étnicas, 0 Negro foi obrigado a disputar a sua sobrevivencia social mesmo biol6gica em uma sociedade secularmen- Ao profssional, cultura, a€ étnica so feitas para que ele permaneca imobilizado ras camadas mais oprimidas, exploradas e subalternizadas Podemos dizer que os problemas de raga e classe se imbricam nesse processo de competicao do Negro, pis ointeresse das cases dominantes€vé-lo marginalizado para bazar as salrios dos trabalhadores no seu conjunto."” Nao existe “consciéncia de classe” sem consciéncia do proble- ma racial. Historicamente o racismo foi e ainda é um fator de divisio nao apenas entre as classes, mas também no interior das classes. Nos momentos de crise, em que ha aumento do desem- rego e rebaixamento dos salarios, o racismo desempenha um. balhadores desemprego irdo direcionar sua fi ais e sextuais, que serao respor cadéncia econdmica por aceitarem. quando nao pela “degradagio moral” a que muitos identificaréo como motivo da crise. O racismo seré, portanto, a forma dos trabalhadores brancos racionalizarem a crise que Ihes trouxe Silvio Almeida perdas materiais e de lidarem com as perdas simbélicas ~ que da luta antisracista e pela minima representatividade alcangada elas minorias raciais. A negacao da classe como categoria analitica nao interessa populagao negra, como nos alerta Angela Davis. A recusa da lasse como categoria analitica apenas serve para aprisionar a critica ao racismo ¢ 20 sexismo a preceitos moralistas, incapa- zes de questionar o sistema de opressio em sua totalidade."” Sobre o dilema classes/luta de racas”, Florestan Fernandes afirma que “uma nao esgota a outa e, tampouco, socialmente, o negro adquire uma situagao de classe proleti- ria’, embora continue “a ser negro e a sofrer discriminacGes e violéncias”, A prova disso para Fernandes é reacio das classes dominantes brasileras &resisténcia negea nas décadas de 1930, 1940 e 1950." Para Florestan Fernandes Todos os trabalhadores possuem as mesmas exigéncias dante do capital. Todavia, hd um acréscimo: existem trabalhadores que possuem exigéncias diferenciais,e&imperativo que encontrem espago dentro das reivndicages de classe e das lutas de classes Indo além, em uma sociedade mutiracial na qual a morfologia. da sociedade de classes ainda nao fundiu todas as diferengas existentes entre os trabalhadores, a raga também é um fatos ‘evolucionaio especfico. Por iso, existem duas polaridades «que néo se contrapsem, mas se interpenetram como elementos explosivos ~ a classe earaga O livro Policing the Crisis," de Stuart Hall, tem um papel de destaque, vez que demonstra como 0 marcador racial foi PIURAIS FEMINISMOS PIURAIS ¢ FEMINISMOS QUE E RACISWO ESTRUTURAL? utilizado como meio de controle social no contexto da crise do Estado de bem-estar social. Stuart Hall nos mostra como as reagdes da classe trabalhadora ao desmonte do Welfere State foram controladas com a criagao de um “panico moral que nada mais € do que a politica do medo. Para isto deve-se Construir 0 criminoso que ganharé um rosto, uma identidade, fornecida pelos meios de comunicagao de massa, O que Stuart Hall nos ensina é que a reivindicacao da identidade, que an- tes serviu como bandeira para os movimentos antirracistas e anticapitalistas foi capturada pelos racistas e até mesmo pela extrema-direita.”* O fato & que muitas pessoas passaram a exigir 0 direito de ser branco, 0 direito de nao gostar de negros,o direito de ter seu pais de volta. Querem seus empregos “roubados” pelos imigrantes, querem se sentir seguros em seu pais. Querem, enfim, a “identidade” que Ihes foi roubada quando as mino- ras passaram a ter direitos. Este quadro de panico moral iré servir como justificativa para medidas de excecio - fora da legalidade ~ contra os inimigos racialmente construfdos, 0 que se tornara ainda mais grave apés a derrubada das torres sgémeas em 11 de setembro de 2001. O Estado dard conta do nico com as politicas de lei e ordem e tolerdncia zero, que irdo aumentar 0 encarceramento ¢ as mortes efetuadas pelo Estado. Esse é 0 retrato da crise atual. No fim das contas, a identidade desconectada das questdes estruturais, a raga sem classe, as pautas por liberdade des- conectadas dos reclamos por transformagées econdmicas ¢ politicas, tornam-se prezas ficeis do sistema. Facilmente a questdo racial desliza para smo, Por isso, diversidade nao basta, é preciso igualdade, Nao existe e nem nunca existiré io Almeida as repeito as diferengas em um mundo em que pessoas mortem de fome ou sio assassinadas pela cor e sua pele. RACISMO E DESENVOLVIMENTO Ha diferentes definicdes do que ¢ desenvolvimento econdmi- 0, mas, fundamentalmente, 0s tebricos do desenvolvimentismo ‘convergem a partir da ideia de que o desen inge a crescimento - aumento do Produto Interno Bruto, as somas das riquezas produzidas por um pais em um ano - e que envolvea modernizagao da economia por meio de um processo de industrializagao que permita a um pais superar a condigio de dependéncia e subdesenvolvimento, As teorias do desenvolvimento descrevem a complexidade dos processos de industrializagao, visto que requerem mudangas sociais profundas que s6 podem ser conduzidas por pol nhacionais que fornecam as condigdes objetivas e subjetivas para isso. As condigaes objetivas correspondem a criaséo por parte do Estado de meios juridicos, financeiros e tecnolégicos para igdo de parques industria, formago de mercado in- terno, instituigio de politicasfiscais, monetétias, salariais e até de defesa nacional compativeis com o soerguimento de uma nova economia, Jé as condigdes subjetivas dizem respeito a constituigéo de mao de obra compativel com as exigéncias da indiistria em formagao e de padres de consumo adaptados a0 mercado emergente. A complexidade de um proceso como este cexige a mobilizagao de amplos setores da sociedade - governos, uuniversidades, empresas, trabalhadores, associacées etc. -,em tum projeto nacional, que s6 pode ser organizado pelo Estado, ente com poder de planejar e executar as medidas ne. cessrias & implantacdo das condiges para o desenv FEMINISMOS PLURAIS FEMINESMOS PIURAIS (0 QUE RACISMO ESTRUTURAL? Um projeto nacional de desenvolvimento nao se resume, portanto, ao campo da economia em sentido estrito, Projetos nacionais de desenvolvimento sao, sobretudo, projetos politicos, que se voltam & constituigao de um novo imaginério social, de uma identidade cultural mobilizada em torno das exigéncias sociopoliticas da industrializacao, formacio de mercado interno € defesa nacional Ha quem seja ainda mais rigoroso com a nogao de desenvol- vimento ¢ inclu a ideta de bem estar social. O desenvolvimento nao se restringiria a um projeto nacional de industrializagio, formacao de mercado interno ¢ fim da dependéncia externa, mas também englobaria a ideia de bem estar social, de de- mocracia, de distribuigio de renda e de busca da igualdade, © desenvolvimento teria, segundo esta perspectiva, objetivo central de construir a homogeneizasao social, nas palavras de seu maior tedrico, Celso Furtado, [As teorias do desenvolvimento so esquemas explcativos dos processos sociais em que a assimilacao de novas técnicas e o cconsequente aumento de produtividade conduzem a melhoria do bem-estar de uma populagao com crescente homogeneiza- {0 socal [Jo aumento persistente da produtivdade ndo condu a edugao daheterogeneidade socal, ou pelo menos nao o faz espontane ‘amente dentro dos mecanismos de mercado. Por isso, pode-se dizer que o Brasil nao experimentou 0 desenvolvimento ao longo de sua histéria, mas somente 0 crescimento econdmico. A industrializagao nao resultou em Aistribuigio de renda e bem-estar para a populacao. Sem dis- tribuigao de renda,a industrializagdo eo aumento da producio tornaram-se expresses da modernizagdo conservadora que, em nome da manutencio da igualdade e da concentragao de renda, exigiram a supressio da democracia, da cidadania e a Silvio Almeida ‘ocultagao dos contlitos so fe os de natureza racial E como jé dissemos antes, a ideologia da democracia racial teve papel fundamental no processo de modernizacio conservadora. Assim, o racismo nao é um meto reflexo de estruturas ar- caicas que poderiam ser superadas com a modernizacio, pois 4 modernizagdo é racista. Como chama a atengio Dennis de Oliveira com base no pensamento de Clévis Moura, {.1as particularidades historcasbrasileiras permitram constitu tum processo de modernizagao capitalista mantendo estruturas| arcaicas, que ndo sao anomalias, mas sim integrantes dessa légica de desenvolvimento histérico especifica."* O conceito de desenvolvimento refere-se, portanto, ao desen- volvimento nos limites da sociedade capit cerne da critica dos autores da chamada teoria da dependéncia, para quem o desenvolvimento de alguns paises esta inexora- yelmente vinculado ao subdesenvolvimento de outros. Nio existe, portanto, desenvolvimento sem subdesenvolvimento. A escolha por um projeto de desenvolvimento nacional é a escolha por entrar ou nao em um conflito interno ¢ externo por uma posi¢do de dominagao ou de subordinacao dentro do jogo do capitalismo internacional. B neste ponto que se encontra 0 cerne da critica feita por + Rodney em Como a Europa subdesenvolveu a Africa.” Neste livro importantissimo, o intelectual caribenho coloca em xeque a ideia tio comumente divulgada de que os paises africanos eram “subdesenvolvidos” antes mesmo da chegada dos Europeus, Afirma Rodney que os paises africanos eram “de- senvolvidos’, vez que possuiam as condigdes técnicas e politicas para sustentar seu modo de vida. A tese de Rodney, apoiada nna mais autorizada bibliografia sobre o tema, é a de que foi o nialismo quem retirou da Arica os meios necessérios para a FEMINISMOS PIURAIS PIURAIS ~ FEMINISMOS 0 QUE E RACISM ESTRUTURAL? sta reprodugiio material. A Europa, portant criou seu mercado interno, ¢ juridicas, sua “democracia’, sobre os cadaveres de mi de africanos ¢ africanas, que foram expropriados, torturados, escravizados e assassinados. Foi a Europa, portanto que “sub- dedesenvolveu” a Africa, 0 que também pode ser aplicado & América Latina e a Asia Para Rodney, o desenvolvimento cay ponta 0 colonialismo, como algo inevitivel. Nao ha desenvol- vimento capitalista sem um processo de subdesenvolvimento criado, fabricado, orquestrado pelo “desenvolvides”, processo ‘em que o racismo tem grande relevo. O tinico “desenvolvimento ositivo” do colonialismo, diz o autor, foi o seu fim. A tese de Rodney nos coloca diante de duas questées: 1, até que pontoo siléncio das teorias desenvolvime: sobre o racismo é uma exigéncia ideolgica, ja q modelos de desenvo , Por seu compro. fem 0 racismo como um elemento tural, mas que nao pode se revelar sem expor con- es insuportaveis, principalmente para aqueles 4 capital, formada em sua maiotia por negros e indigen se é posstvel um modelo de desenvolvimento, ainda que sta, nos paises periféricos, sem que a questio ~ que se vincula a pobreza -, possa ser tratada. Seé possivel um modelo desenvolvimentista sem o raci ‘historia ainda nao nos mostrou. Mas se os préprios desenvoh ‘mentistas acreditam que a histéria € o encontro da contingéncia com o planejamento, a perspectiva teérica por eles adotada poderia dar vazio a uma reflexio desenvolvimentista que en- globasse um projeto nacional antirracista. Em paises como 0 Silvio Almeida Brasil, nio se poderia pensar em desenvolvimento sem que 0 Projeto nacional atacasse o racismo como fundamento da desi- gualdade e da desintegragao do pais. E isto néo é uma questio somente de naturezaética, mas fundamentalmente, de natureza econémica: industralizacio sem distribuicio de renda e sem um ataque vigoroso as desigualdades estruturais - dentre is quais as raciaise de género -, inviabilizaria a ampliagdo do mercado interno sem a manutengio da dependéncia de financiamento ¢ tecnologia externos. Assim pensava Guerreiro Ramos, que chamava a atengio para o fato de que sem um compromisso Politico com o desmantelamento do r ive com @ promogdo de uma inteligéncia negra compromissada com a transformagao social e que nao fizesse do negro mero objeto de estudo ~ a construgio de uma nagio seria impossiv. No Brasil, particularmente, é curioso notar como até mesmo (os desenvolvimentistas ‘progressistas’silenciam sobre a ques- tao racial e, mais do que isso, como incorporan democracia racial e da “mestigagem” de forma acritica, Para alguns deles, portanto, falar de raga e racismo levaria a desin- tegragao social e & criagao de conflitos inexistentes iro ¢ os debates sobre ‘acial, Marcelo Paixdo conclui que uma agenda de- ansformadora e democri sariamente incluir o tema das relagd se pés, de forma resolita, ivimento de nosso pals. Nao ‘momento as novas batalhas encaminham-se no sentido de nos livrar de um atévico autorita- rismo que ainda insiste em regeras re ‘nosso meio, Assim, uma vez tendo sido realizado, 20 longo do FEMINISMOS PIURAIS FEMINISMOS PIURAIS 1 QUE € RaciSMO ESTRUTURAL? todo 0 século passado, em uma naga industralizada e modemma, agora, a nova agenda, exige a construgao de uma nagao fratern, igu cratica, Nesse sen icluir nessa pauta 0 desejo pessoas povoem todos representada pelo estivera condenado ci © povo brasileiro tera de se erquer sobre os seus prprios pes." Achar que no Bra: o, a perversidade ou a mais absoluta mé-f. 1egra constitui mais da metade da populagio conceber a pos- idade de um projeto nacional de desenvolvimento sem que o racismo seja enfrentado no campo simbilico e pratic O siléncio dos desenvolvimentistas brasileiros em relagao a questo racial chega a ser constrangedor, pois tudo se passa como se a questéo nacional/racial nao fosse o cerne dos deba- tes sobre 0 pensamento social brasileiro, ‘Talvez essa presenga isente da questao racial seja a prova mais contundente de mpreensao de nesmo daqueles que querem CRISE E RACISMO Hi dois fatores sistematicamente negligenciados pelas an tas da atual crise econdmica. O primeiro ¢ 0 caréter estrut ¢ sistémico da crise, Em geral, sao destacados como motivos determinantes da crise 0s erros e ou excessos cometidos pelos agentes de mercado ou pelos governantes da vez. O caminho intelectual dessa explicagio € o individualismo, o que reduz a vio Almeida crise a um problema moral e/ou juridico, Desse modo, a avalia. fo da crise e suas graves conseq sociais - fome, desem- prego, violencia, encarceramento, mortes ~ convertem-se em Libelos pela reforma dos sistemas juridicos, pela imposicio de ‘mecanismos contra a corrupgao ou ainda, por campanhas pela conscientizagao acerca dos males provocados pela “gandn ou pela sede de lucro. Enfim, tanto causas como efeitos recaem apenas sobre os sujeitos e nunca so questionadas as estruturas sociais que permitem a repeti¢do dos comportamentos e das relagdes que desencadeiam as crises. ( segundo fator esquecido pelos estudiosos da crise ~ in- timamente ligado ao primeio ~ &a especificidade que a crise assume no tocante aos grupos sociais que a sociologia deno: mina de minorias Assim, chega-se a duas as conclusdes: 1, aidentificagio de um grupo social minoritério deve levar em conta as peculiaridades de cada formaco social, vez que a dinamica do processo discriminatério vincula-se 8 lgica da econdmica e da politica; a discriminagio s6 se torna sistémica se forem repro- tencentes a grupo jadissemos que m face da estrutura pol ca da sociedade temportinea, formas de discriminacio como 0 racismo 86 se estabelecem se houver a partici O.QUE EA CRISE AFINAL? to estrutural na logica da so- ciabilidade capitalista.'” Deste modo, sendo a crise parte do la€,de certo modo, determinar o funciona PIURAIS © FEMINISMOS ‘OQUE E RACISMO ESTRUTURAL? mas das instituigées politicas que devem manter a estabilidade.” O processo de produsao capitalista depende de uma expansio permanente da produgio ede uma acumulacio incessante de capital. Fntretanto, a acu- ‘mulagao incessante de capital e a necessidade de aumento da producao encontram limites histdricos que se chocam com as caracteristicas conflituosas da sociedade. A crise se dé justa- ‘mente quando o processo econémico capitalista nao encontra, compatibilidade coms instituigbes e as normas que deveriam manter a instabilidade. As crises revelam-se, portanto, como a incapacidade do sistema capitalista em determinados momentos da historia de promover a integracao social por meio das regras s vvigentes, Em outras palavras, o modo de regulacao, constituido or normas juridicas, valores, mecanismos de concil ce sociedade civil, mantida, como fi visto, mediante a utilizagdo de mecanismos repressivos e de inculcacao ideolégica, comeca a ruir. O sistema de regulacio entra em colapso, 0 que resulta governamentais que passam a se voltar uns contra 0s outros e funcionar para além de qualquer previsibilidade, falta de dirego governamental ¢ instabilidade politica." Nao se torna mais convencer as pessoas de que viver debaixo de certas regras 6 normal ea violencia estatal passa a ser recorrente como meio de controle social Como assinala David Harvey, o capitalismo possui dificulda- des que devem ser negociadas com sucesso para que o sistema permanega vidvel. A primeira é a “anarquia” do mercado na fixagao de precos.** Jé a segunda, éa vio Almeida I necessidade de exercer sufciente controle sobre o emprego forca de trabalho para garantir a adigdo de valor na produgao lucros positives para o maior numero possivel de E nesse momento que os mecanismos de regulagio sio fundamentais O RACISMO E AS CRISES (0°GRANDE PANICO” DE 1873, 0 IMPERIALISMO E 0 NEOCOLONIALISMO A histéria do racismo moderno se entrelaga com a histéria das crises estruturais do capitalismo. A necessidade de alteragio dos parametros de intervengao estatal a fim de retomar a esta bilidade econémica e politica - ¢ aqui entenda-se estabilidade como o funcionamento regular do processo de valorizagao capitalista - sempre resultou em formas renovadas de violéncia € estratégias de subjugagio da populacio negra, A primeira grande crise, de 1873 - apelidada de Panico de 1873 -, resultow na alteragio brutal das relagdes capitalistas Além de modificar toda a produgdo industrial do mundo, re- definir 0 equilibrio politico militar e alterar todo o sistema financeiro e monetirio internacional, a crise de 1873 foi o ponto de partida para o imperialismo e, mais tarde, para a primeira grande guerra.™ (Oimperialismo marcouo lonial eda transferéncia das disputas capitalistas do plano interno para o plano internacional. Isso porque a crise de superacumulacao de capital obrigou o capitalismo a expandir-se além das fronteiras nacionais. Essa é a explicagdo econémica do imperialismo, mas que também teve como base um argumento ideologico preponderante: o racismo. PIURAIS FEMINISMOS PLURAIS FEMINISMOS QUE E RACiSMO ESTRUTURAL? ‘A ideologia imperialista baseou-se no racismo e na ideia ceurocéntrica do progresso. Os povos da Africa, por exemplo, precisavam ser “salvos” pelo conquistador europeu de seu atraso natural, Essa ideologia racista, somada a0 discurso pseudo. cientifico do darwinismo social - que afirmava a superioridade natural do homem branco -, imador da pilhagem, assassinatos ¢ destruicio promovidos pelos europeus no continente africano, A firia da conquista colonial, que teve em consideragdes racstas * incipal alicerce ideotigico {até setores da inte a Europa, admitiam a expansao coloni vilizadorae seus paises, ese definiam, como o alemao Eduard David, “socialimperialistas’) produzi 208 holocaustos europeus do século XX, fez também nascerem rmovimentos de ‘que, finalmente, incorporaram os vos coloniais&luta politica mundial contemporanea.* Achille Mbembe, em Critica da razao negra, apresenta 0 lagos inextrincdveis entre “mort relagio entre imperialismo, colonialismo e racismo: Est estida fora da Europa fiearé conhecida pelo termo “colonizagao" ou smo", Sendo uma das maneiras de a pretensio européia ao dominio universal se manifestar, a coloni- zag é uma forma de poder constituinte, na qual arelago com a terra, as populagdes e 0 territorio associa, de modo inédlito na historia da Humanidade, as trés l6gicas da raga, da burocracia ‘do negécio (commercium). Na ordem colonial, a raga opera ‘enquanto principio do corpo politica. A raga permite classificar (0s seres humanos em categorias fisicas e mentais especificas ‘Aburocracia emerge como um dispositivo de dominagéo; é a rede {que liga a morte e o negécio opera como matriz fulral do poder. ‘Aforga passa a ser lei, e lei tem por contetido a propria forga.*” io Almeida A bolsa de valores, 0 empreendimento colonial 0 desen- volvimento do capital financeiro s8o, ao fim e ao cabo, os fundamentos econdmicos que permitiram a constituigao do racismo e do a do capitalismo apés a grande crise do século XIX. 'AGRISE DE 1929, 0 WELFARE STATE E ANOVA FORMA 00 RACISMO Apos a grande depressio de 1929 ea segunda grande guerra, © arranjo social estabilizador resultou no regime fordista de acumulagao e no Welfare State. A pros escala ¢ 0 consumo de massa foram artic de direitos so a0 mercado consumidor. E nesmo 0 Estado Social jano ou Welfare State foi incapaz de lidar com os pro- 8 sociais que estruturam o capitalismo. A desigualdade é um dado permanente do capitalismo, que pode ser, a depender de circunstancias histéricas e arranjos politicos esp. ou menor. Mesmo na “Bra de ouro do cap sociais pelos trabal capacidade de inovagao tec protegao so. bases no fordistas de contratagao, 0 que significa que alguns trabalhadores eram submetidos & superexploragio ou m 420 trabalho compulsério, ainda que sob a égide de um Estado social e democratico." PIURAIS © FEMINISMOS PLURAIS = FEMINISMOS (0 QUE €RaciSMa ESTRUTURAL? utra importante distingio feita por Harvey para se com- preender as limitagdes do Welfare State & entre os setores “monopolista” e “competitivo” da industria, O setor mono- polista caracteriza-se por alta demanda, em que os conflitos encontravam lugar para converter-se em “direitos’.Jé 0 setor competitivo & de alto risco, baixos saldrios e subcontratagao e & rele que mulheres, negros e imigrantes estdo alocados, longe da protegdo de sindicatos fortes e da incidéncia de direitos socias. Assim que racismo e sexismo colocam determinadas pessoas em seu devido lugar, ou seja, nos setores menos prot mais precarizados da economia enorme contradigo de uma sociedade em que se pregava a universalidade de direitos e que, ao mesmo tempo, negros, mulheres e imigrantes eram tratados como caso de policia, sgerou movimentos de contesta¢ao social que colocavam em xeque a coeréncia ideolégica ea estabilidade politica do arranjo socioecondmico do pés-guerra, Ressalte-se que até mesmo o movimento sindical eas organizagdes de esquerda mostraram profundas limitagdes — assim como ocorre ainda hoje -, para a realizagao de uma critica e até uma autocritica que expusesse 0 racismo e 0 machismo que impregnavam suas proprias estru- ‘tras, A dinica forma de lidar com a dentincia dos movimentos sociais as contradigdes Welfare State foi a criminalizagao e a perseguigdo aos “radic: ameagavam as bases de uma sociedade livre.” NEDUIBERALISMO E RACISMO A crise do Estado de Bem Estar social e do modelo for- dista de producio dé ao racismo uma nova forma. O fim do consumo de massa como padrio produtivo predominante, 0 enfraquecimento dos sindicatos, a produgio baseada em alta Silvio Almeida tec logia ea supressio dos direitos sociais em nome da auste ridade fiscal tornaram populagdes inteiras submetidas as mais precdrias condig6es ou simplesmente abandonadas a prépria sorte, anunciando o que muitos consideram o esgotamento do modelo expansivo do capital. ‘Chama-se por austeridade fiscal o corte das fontes de fi nanciamento dos direitos sociais a fim de transterir parte do ‘oryamento piiblico para o setor financeiro privado por meio dos juros da divida publica, Em nome de uma pretensa “responsa- bilidade fiscal” segue-se a onda de privatizagies, precarizagao do trabalho ¢ desregulamentagio de setores da economia. Do Ponto de vista ideolégico, a produgao de um discurso just cador da destruigio de um sistema historico de protegio social revela a associagao entre parte dos proprietirios dos meios de comunicagao de massa eo capital financeiro: 0 discurso ideol6gico do empreendedorismo ~ que, na maioria das vezes, serve para legitimar o desmonte da rede de protegao social de trabalhadoras e trabalhadores -, da meritocracia, do fim do ‘emprego e da liberdade econémica como liberdade politica sd diuturnamente martelados nos telejornais ¢ até nos programas de entretenimento. Ao mesmo tempo, naturaliza-se a figura do inimigo, do bandido que ameaga.a integracio social, distraindo a sociedade que, amedrontada pelos programas policiais ¢ pelo noticidrio, aceita a intervencao repressiva do Estado em nome da seguranga, mas que, na verdade, serviré para conter 0 inconformismo social diante do esgargamento provocado pela _gestdo neoliberal do capitalismo. Mais do que isso, o regime de acumulagio que alguns denominam de pés-fordista dependerd cada vez mais da supresséo da democracia.*" A captura do orgamento pelo capital financeiro envolve a formulagio de um discurso que transforma decisdes politicas, em especial as que FEMINISMOS PIURAIS — (OQUE € RACISMO ESTRUTURAL? envolvem finangas publicas e macroeconomia, em decisées “técnicas’, de “especialistas’ infensas & participacdo popular. Oesfacelamento da sociabilidade regida pelo trabalho abs- trato e pela “valorizagio do valor” resulta em terriveis trag sociais, haja vista que o movimento da economia e da politica no é mais de integragao ao mercado ~ hé que se lembrar que na l6gica liberal 0 “mercado” ¢ a sociedade civil. Como nao serio integrados ao mercado, seja como consumidores ou como trabalhadores, jovens negros, pobres, moradores de periferia e serio vitimados por fome, epidemias ou pela climinacao fisica promovida direta ou indiretamente ~ por ‘exemplo, corte nos direitos sociais — pelo Estado. Enfim, no contexto da crise, o racismo é um elemento de racionalidade, de normalidade e que se apresenta como modo de integragao possivel de uma sociedade em que os conflitos tornam-se cada vvez mais agudos. A superagao do racismo passa pela reflexio sobre formas de sociabilidade que nao se alimentem de uma légica de con- flitos, contradigoes e antagonismos sociais que néo podem ser resolvidos, no maximo, mantidos sob control a busca por uma nova economia e por formas alternativas de organizacio é tarefa impossivel sem que 0 racismo e outras formas de discriminagio sejam compreendidas como parte essencial dos processos de exploragio ¢ de opressao de uma sociedade que se quer transformar. NOTAS FEMINISMOS PIURAIS

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