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tio Maneltesean, Arlt neler es str motel jaa” cree, eto e Aeumertate is, (em —Revsta 00S MisténoPUuico, 2012: TTP://ame.sMime.er/we- ‘CoNTENT/vPLORDS/2012/07/3.RMP_N130_ANTONIO_MANUEL_HESPANHAPOF) Abstract. Causada pelo desmantelamento da moldura normativa — juridica ou néo juridica — da atividade econdmica (partcularmente, fiaanceia), 0 “crise” econdmica do “mundo ocidental” tem vindo @ ser tratada com uma pandplia de medidas ingpirada na mesma filesofia social neoliberal que tinha estado na sua origem. A precarizagto das situagdes juidcas acelerou-se ainda, pela invocagio do cordter apocaltco da crise, cuja magnitude e iminéncia jusifcoriam um estado social e politico “de necessidade” que autorizaria a suspensdo ou cancelamento dos direltos,o inobservincia das “formalidades”, a subaleernizagdo de regras bem estobelecidas do vier palitico come, intemnamente, 0s processos democriticos e, externamente, o respeito pelos tratedos. Com isto, € 0 “modelo jurldco” de decisBo, caracterizado pelos seus garantismo & {formalism (due processo of law), que est basicamente em causa. NBo se toma partido sobre se isso se justiica ou no — desde logo, porque 0 texto tem intencBes descritivas, e no hormativas. Mos salienta-se que a substituigéio da “justca” pela “oportunidade” é dfiimente Iegitimavel = por eair na arbitrariedade, uma categoria “natural” do gaverno politico, no nosso modelo civilizacional - se néo valer em todos os planos e para todos os grupos e pessoas. ras chave: crise, neoliberalisma, argumentacdo, direito, direitos adquirides. Em 31 de Janeiro de 2011, colebrou-se em Lisboa a ceriménia de abertura solene do ano judiciario. Foi, como de costume, uma ceriménia formal e pouco interessante. Um pouca surpreendentemente, suscitou, porém, nos comentaristas e nos meios de comunicagio social, uma reaco negativa que, pouco a pouco, se foi concentrando no discurso do Presidente do Supremo Tribunal de Justiga. © que nele causava escandalo era 0 aviso das consequéncias negativas dle um ataque aos direitos adquiridos dos trabalhadores, dos reformados e dos beneficiérios de prestacdes socials do Estado, ataque que vinha constituinds um tema central dos defensores de uma politica radical de austeridade. Na sua alocusao, 0 Conselheiro Presidente chamava atencio, basicamente, para dduas coisas. Primeiro, para o facto de que a estabilidade social e @ confianga dependiam de se continuar 8 proteger situagdes juridicamente estabilizadas. Depois, para a ideia de que direitos subjetivos havia muitos mais do que os direitos aos salarios e as prestacdes sociais, pelo abrir essa “caixa de Pandora”, colocava também em cheque outras situagtes, sendo bastante claro que se referia sobretudo as dos que tinham firmado com o Estado contratos de obras publicas, de concessao ou de parceria, de financiamento, etc. 0 processo revolucionério em curso. Era, justamente, essa referencia a generalidade da categoria de direitos adquiridos que desagradava aos fundamentalistas da austeridade, que, aparentemente, se viam como herdis de uma revolugdo social que reconstruiria a patria sobre os destrasos de privilégios corporativos e de situacées, de favor injustamante adquiridas & custa dos contribuintes e das novas geragBes. Na verdade, tratava-se de um t6pico importade dos discursos revolucionsrios radicais dos anos setenta, quando ~ diga-se de ppassagem - alguns destes fundamentalistas da austeridade militavam em partidos da esquerda radical (marsistas-leninistas). 0 que tinha mudado, entretanto, era a composiggo tanto dos grupos dos explorados como a dos exploradores. Contribuintes @ jovens tinham substituido “operarios © camponeses” ¢ “trabalhadores"; beneficidrios de prestagées sociais do Estado (reformas, penstes, subsfdios de desemprego, servigos de salide e de educago) tinham ocupado o lugar dos “burgueses" = “capitalstas", Neste quadro revolucionario e redentor, o direito e os direitos representavam a forma que garantia as situacées ilegitimas. Por isso, a sua destruigo pelo reformismo estrutural e radical constituiria a tarefa de refundacso da sociedade, superando a crise e restaurando um modelo natural @ justo de relagBes socials. Tratava-se de “partir de nova", restaurando © homem primordial, desafiado pela necessidade e precariedade natural da sua existéncia, dependente apenas de si e empreendedor, para quem a adversidade © a necessidade constitulam oportunidades de realizacio e de desenvolvimento, Nada de novo no pensamento revolucionério, em que as utopias de regeneraco do homem so habituais e em que o direito e os juristas aparecem como os baluartes do conservadarismo, por oposi¢ao & politica © aos “comissarias” ‘ como protagonistas da mudanca e da construsao de uma sociedade originéria, sem direitos adquiridos e sem direitos a adquirir, formada por construtores quotidianos do seu futuro, audazes dindmicos. Este otimismo revolucionério, que exalta o empreendorismo como a mais nobre qualidade do homem, casa-se bem com o pessimismo antropolgico que vé no homem um ser decaldo e corrupto, cuja redenco assenta no sofrimento e na sua superagio pelo estoicismo e pelo trabalho, um tema que Max Weber se ocupou no seu estudo sobre as raizes religiosas do capitalismo e que foi hoje retomado por algumas correntes do integrismo cristao, Esta animosidade contra o dlreito e o seu garantismo manifesta-se também noutros t6picos que tém sido bastante correntes em Portugal nos dltimos anos. Por exemplo, na questo do tratamento 2 dar a escutas de altos cargos polities, a solucio garantista prevista na lei protagonizada, também, pelo Presidente do STI— deveria ceder perante as exigncias de um julgamenta publico, sendo com base Risto que se arrastou um longo conflite na ambito da préprio poder judicial, com momentos de inegavel dlesrespeito pelo direito,E, como se verd, 0 tépico de que a situagio politica justfica ano observancia do direito ~ das suas “formalidades” — foie instalando paulatinamente, pando em causa as préprias exigéacias de forma preseritas na canstituigto, ou as garantias nea fxadas 6 que, ainda de acordo com uma légica revolucionsria, nem todo o direito e nem todos os direitos seriam “lixo carporativa”. Nao o eram, nomeadamente, as direitos das contribuintes, que, em nome da sua contribuicdo, estarlam legitimados para exigir do Estado, no apenas o fim dos gastos supérfluos (das “gorduras”) do Estado, mas também o cancelamento ou redugo das despesas com as prestagées socials. Ndo 0 eram, depois, os novos proletarios, jovens e pessoas em busca de (primero) femprege, que, em nome de uma solidariedade inter-geracional, esperavam que os mais velhos © os lempregados fossem expropriados dos seus “direitos adquirides” para poderem adquirir para eles esse espélio. Finalmente, no eram “corporativos” os direitos dos credores do Estado ou, mais em geral, os direitos protegidos pelas “leis do mercado”. Pelo contratio, estes direitos deviam ser protegidos como “naturals” ou “cagrados” (the sanctity of contracts)’, tanto que a sua violagio desencadearia automaticamente sangées durissimas, de acordo com uma ordem juridica que escapava ao cantrolo do Estado e se impunha a este, amparada por jurisdigdes no estaduais, como os tribunais arbitrais, 0 Tribunal de Justica da Unido Europela e outras instancias jurisdicionais, formais ou informais, ligadas a0 mundo dos negécios. A sancio para o descaso destas regras de direito natural proviria também dos mecanismos naturais @ automsticos da economia: a crédito externo desaparaceria, a quebra da confianga dos invastidores aniquilaria o investimento, os capitais fugiriam, as retaliagbas dos mercadas multiplicar-se-iam. Estes raciocinios esto cheios de inconsisténcias. A maioria dos contribuintes so também credores de prestagSes salariais ou sociais do Estado, pelo que o que beneficiam com uma baixa de impostos a custa de salarios e de subsidios do Estado perdem-no com a reducio destes ultimos. Muitos dos desemprogados sio-no por nao se terem respeitado os seus direitos de (ex-Jempregados, pelo que © enfraquecimento dos direitos dos empregados gera, justamente, desemprego, como os dados empiricos continuamente t@m mastrado. Os efeitos sistémicos e forcosos do descaso dos direitos dos intervenientes no “mercado” (credores internacionais, agentes financelros, empresas) existem também na debilitagse ou cancelamento dos direitos de trabalhadores e reformados: desemprego, fempobrecimento, queda do consumo interno, queda da procura, recessio econémica, queda das receitas fiscais. Estas inconsisténcias revelam-se jé como factos observaveis “ch. arthur Koester, The yog! ond the comisor, 1946, . ct ° ecenvohimento eos argumencos dlisios em ofsz0contractss201nss20EeglshSsZ0Law pd 0 argumento de "sentdade dos contratos” (0 earater Segrado da promise fo poy) tam tido um extensssimo, mas seletvo, dominio de aplcagto acordos de “saWvagHo fnencera”,contrates de concessto pelo Estado contrat dehipotecas de compradores de cass [perente a ameace de edict fovgada,cramdow), et reforganso 9 formalsmo nagotal ¢ exclundo 2 invocegéa de figuras tradilonsls do dieito dos conttoe, como a imposttiidede Superveniente,« eteraclo das dicurstinias, a boa-é, © mesmo alguns vicos de vntade. Coma tem tido um dominio de ro splcagie as situagBes contretuals ou para-contratuls 2 que o Estado se cbrigou no dominio das prestagSes socials 0s contribulintes que ganham com esta revolugio sto aqueles que pagam mais impostos e que recebem menos prestag6es salariais ou sociais do Estado (os mais ricos); os que perdem sto os que agam menos impostos e que recebem mais presta;Ges (os mais pobres). Ao mesmo tempo, ganham 03 jovens em busca de primeiro emprego, 2 custa dos mais velhos, dos empregados, dos desemprogados ‘ou dos pensionistas. Ou seja, o modelo assents sobre uma escolha politica de um certo rearranjo da sociedade e do poder e no sobre um equilibrio natural dos grupos sociais. Com esta escolha, pode-se concordar ou no. Seja como for, é preciso ter presente que se trata de uma escolha, com uma consequente reparticSo social das vantagens e dos custos, endo de uma opeso sem alternativas, natural, e socialmente neutra 0 discurso de ataque 20s “direitos adquirides” tem sido protagonizado por arautos # corifeus do nove liberalismo ', muitos deles pouco conscientes das dificuldades deste tema, nomeadamente para os juristas. Apesar disto, a deniincia de direitos adquiridos como privilégios corporatives aparece também om intervengées de juristas. € 0 caso da alguém to craditado como Vital Morcira, nomeadamente em textos de intervencio publicados no seu blog Causa Nossa ‘. Em geral, a sua tese &a de que a garantia dos direitos adquiridos tem sempre que ser proporcional a outros valores constitucionalmante garantidos, nfo podendo, por maioria de razio, ser esgrimida no caso do impossibilidade factica de satisfazer tais direitos, nomeadamente quando se verifica a falta de meios financeitos. Adiante se voltara a este tema da “impossibilidade” relativa 8 satisfaclo de direitos. Arevolugde neoliberal A revolucao que subjaz a este modelo politica de cancelamento seletive dos direitos adquiridos 6 a revolugio liberal, tal camo tem sida praposta desde os anos Reagan-Tachter pelos defensores de um hiperliberalismo ou neoliberalismo. Esta qualificacao do liberalismo (como hiper- ou neo-) € necesséria, para perceber o que ela tem de novo face ao liberalismo classico. No séc. XIX e no séc. XX anterior 8 ideia de Estado Social, predominou um liberalismo apesar de tudo bastante regulado. Contava, por um lado, com uma importante regulaco estadual, jd que o mercado necessitava de uma maldura regulativa externa que garantisse certos valores estratégicos: a propriedade, a verdade © transparéncia, a confianga e a igualdade. O Estado garantia estes valores ao exigir a publicidade dos atos negociais e 0 registo comercial, a0 proibir 2 publicidade enganosa, a fraude e a contrafagéo, 20 regular a faléncia, punindo pesadamente a fraudulenta, a0 dificultar 0 falseamento do mercado por préticas monopolistas.. Complementarmente, no mundo das negocios vigoravam eédigas deontolégicos bastante estritas, uns correspondantes a ética liberal, outros espelhando uma ética profissional ainda mais antiga, orientada por valores de honorabilidade © de responsabilidade ”. Em relagio a este liberalismo classico, 0 neoliberalismo caraterizou-se por propor uma dosregulacio muito mais radical, atingindo tanto a regulacdo estadual coma outros niveis de autorregulacao, Realmente, o timo liberalismo acredita radicalmente num jogo do mercado liberto de todos os constrangimentos exigidos pelo interesse piiblico, pelos interesses comuns dos agentes do mercado ou mesmo pelos interesses no imediatos de cada um dos agentes, Assim, os mercados no teriam que responder nem perante a comunidade em geral, nem perante a comunidade dos negdcios, nem mesmo pelos interesses mais estratégices dos préprios agentes. Num mercado voldtil, em continuo e répido movimento, os objetivos s8o as vantagens 2 curto prazo, jé que 0 médio e longo prazo se tornam imprevisivels e, por isso, aleatérios. Isto quer dizer que a regra passa a ser exploracdo ilimitada da conjuntura, maximizando as suas vantagens para cada um dos agentes e exonerando-o das responsabilidades para com os outros. E isto que autoriza a comparago do mercado com um jogo de azar, em que o risco e indeterminacso dos lances futuros & tal que s6 interessa o ganho egoista @ imediato na presente jogada. Nem interessa a ponderagso do mediato ou mets-conjuntural, como nos jogos de “estratégia", nem se punem demasiadamente os Uma bos amostra é, no funda © na forms comentanda 0 diecurco da Preidente do SU, “Or ah radical sertencioss,pretensior},€0 artigo de José Manuel Femandes itor adquvidos» dor teavaqustar anima” (Pablco, 32.2012, om INOTAMEI\O1 frigos\02 Dirsto\Direto e crse\Fernandes, Jose Manuel Fernandes, Os direitos adquiidos dor cavenvitas ndrimes" [+ Facebook php. rah ou hitp/blesferis.net/evcavaqustes enSsCSHSSnsnosSacarcheubmit-Procurt). ss nase blogspot pt/2004/09 /nem-tado-s-dreor-edauiidon him! (26-06-2042), ‘CE. por exemplo, Thomas Mann, Buddenbrooks. Verfl einer Fomile, 1902. lances ilegais ou imorais (como, por exemplo, a criag3o de realidades ficcionais e enganosas", uso da pressdo ilegitima, da fraude, da corrucSo |) este padro de liberalismo ~ em que o modelo de negdcio se assemelha pragressivamente ao do mais permissivo cendria de jogos de azar ~ se tem aplicado a designag3o “economia de casino”, cunhada por duas prestigiadas economistas'’, e que tem feito curso. © modelo econémico neoliberal tem muitos pontos de contato com a mundividéncia neoliberal. Em geral, uma das vertentes desta 6 um relativism absoluto de valores, tanto no plano gnoriologice, como no plano axiologico: no ha valores absolutos e, mesmo quo houvesse, nso so poderiam conhecer. Mas mals ainda. Se orelativismo se pode compatibilzar com a existenca de regras estabelecidas pela comunicagdo Intersubjetiva (contrato, cédigos comunicativos estabelecidos), 0 neomodernismo realga a ideia de uma continua trensformagio, progressive diferenciacio © contextualizagio desses cédigos. A arbitrariedade do sentido junta-se agora a sua continua “ocalizago” @, por isso, 0 sou carster estruturalmente singular. HS uma grande homologia entre este carster conjuntural ¢ efémero do sentido © a mobildede do velor das coisas e das regras de transacio no mercado. O novo mercado nao esta regulado por qualquer estrutura normativa transcendente as proprias ransagées. A regra de cada transagdo & imanente, decorre do seu préprio microcontexto. Por isso, © necliberalismo deveria ser sempre libertério e adversirio de velores permanentes. Mas nem Sempre & assim. Muitos neoiberaiscontinuam a achar que as posigBes decorrentes do mercado devem ser respeitadas e que essa obrigac3o de as respeitar decorre da necessidade natural de respeitar as “leis do mercado”. Também no plano moral demonstram frequentemente uma crenca nos valores que correspandom 30 espirito do agante no mercado (empreanderisme, come combinacso de inicitiva, aceitagdo do risco, determinagdo, assetivismo), um espirito proprio da bourgeoise conquérante (Charles Morazé, 1957) Neoliberalismo e direito. Do ponto de vista do direito, o estado do mundo dos negécios, que esta na origem da crise que se iniciou em 2008, pode caraterizar-se pelos seguintes tragos: - desregulacao legislativa; - enfase na exclusiva regulago dos negécios pelas regras praticadas no mundo dos negécios; ~ enfase na ilimitada liberdade negocial; - énfase na resolucio dos conflitos apenas pelos diretamente interessados, nomeadamente por meio da arbitragem, disponivel e desregulada; - desconsiderago dos interesses de natureza comunitéria (nomeadamente, dos trabalhadores, dos consumidores, da massa dos contribuintes @ do ambiente); - tendencial desconsideractio dos interesses gerais dos acionistas em favor dos interesses dos gestores e dos acionistas hegeménicos; - desvalorizacio da publicidade e transparéncia das operacées, relativamente ao Estado, a0 pablico em geral, aos destinatérios dos negdcios e & massa dos acionista - uso intensive de meies juridicos para tomar apacos e “seguros” (“blindados", inatacdveis, pelos principios juridicos que ratificam as boas praticas) os negécios, = uso intensivo de meios juridicos para garantir em absoluto os direitos dos agentes (contra 0 interesse publico, contra as expetativas dos destinatérios, contra a arguig&o de abuso de direito, dolo ou fraude, contra as cléusulas gerais que protegem a ética dos negécios). 0 Banco de Pagamentes Internacional OS), cago de “realdade” econdmica clonal (produtos“deradoe” over the counter) stings cares de 16 veret © produto mundial (1B), cendo 0 cretcimento do sster fnanceiro ainda agora exponencal fem rola 8 “economia ea”. t/a bs org/publ/apatarz01 10 pl, Em vies paces, as leis antcorrupro esto 2 ser potas em causa, em nome da iberdade de ago no mercado. Um bom vem €0 dos EUA * ane davies, The Evolution of U.S. Finance Federal Reserve monetary pole, 1915-1935 (val. Th Evolution of US. Finance: Volume Il: Restructuring Institutions and Markets), New York M. & Sharpe, 1994 entrevista em (hat youtube com/wateh’\=PNogwybe); Susan Stange, Casino capitalism, asl eleckwell, 1986; Nerchester, Manchester University Press, 1987. No plano da regulacao estadual, a primeira década do século XXI prolonga @ tendéncia que ja vinha de tras para a chamada “retirada do Estado da economia"; que, projetada sobre a relacdo entre Estado sociedade, exigiré também uma reducdo ao minimo das funcBes sociais do Estado (Estado imo, emagrecimento do Estado}, reduzidas 4 manutengSo da ordem externa e interna, mesmo estas suscetiveis de ser confiadas 8 iniciativa privada * Isto deveu-se a conjunturas politicas iberais, tanto nos EUA como na Europa, bem como ao refluxo das ideias reguladoras e intervencionistas provocade pela queda do “muro de Berlim” ¢ a consequente crise das ideias de socialismo, de planificacdo e de regulacio estacual. Mas relaciona-se também com a hegemonia de uma ideologia de recuo da normagiio e da justica do Estado, na qual a cultura jurfdica hegeménica desempenhou um papel importante, Na verdade, a cultura juridica contemporanea vem adotando modelos de regulagso que enfatizam os alegados artficialismo e inconvenientes da regulagdo social e econdmica pela Estado. Embora com fundamentos teéricos diferentes, tem-se gerado entre os juristas um largo consenso em torno da ideia de que a normacio do Estado é inadequada 3 complexidade e globalizacio das sociodades contemporneas e, por isso, ineficaz ou injusta. A ela se contraporia a regulagio esponténea gerada pelo proprio funcionamento dos setores mais dindmicos e compatitivas da economia, regulagao que seria eficaz, justa e libertadora da sociedade civil, Este modelo adequava-se aos programas politicos dos governos liberais, mas influenciaram muito, também, as chamadas “terceitas vias” dos governos sociais democratas, trabalhistas e liberals. Nas vésperas da crise de 2008, a generalidade dos paises europeus © americanos seguiam politicas do direito avessas a expansdo da regulacao do Estado @ apostando em formas cada ver mais soltas de autorregulacao. © papel dos juristas na difusto planetaria destes modelos estd muito bem estudado, por exemplo para a América Latina. Mas esta influéncia notou-se também na tibieza com que a administraco publica aplicou alguma legislag0 dos inicios do novo século que visava sujeitar a um controlo mais apertado préticas financeiras, contabillsticas e fiscais lesivas do interesse publico (nomeadamente, fraude evasio fiscal), da verdade contabilistica e da transparéncia dos produtos financeiros; camo, nos EUA, 0 Financial Institutions Reform, Recovery, and Enforcement Act, de 1989 (FIRREA), que colocava sob custédia mais apertada o mercado de crédito, ou o Sarbanes-Oxley Act, de 2002, também conhecide como Public Company Accounting Reform and Investor Protection Act ou Corporate and Auditing Accountability and Responsibility Act, que visava aumentar a transparéncia ¢ verdade da contabilidade das empresas. Nos dois casos, a efetividade das medidas legislativas era muita baixa, ou porque 2 administracgo nflo perseguia os delitos nelas previstes, ou porque se tinha desenvolvido uma eficaz engenharia juridica para evitar 0 sucesso da sua aplicagao. Igualmente muito importante tem sido a engenharia juridica na elaboragao de técnicas figuras dogmaticas que permitem construir uma armadura juridica de garantia de uma liberdade radical ‘no mundo dos negocios; mas, mais do que isso, que dificultam a efetivacio de medidas de cantralo das ppraticas negociais, de responsabili2agio civil por condutas irresponsaveis, arriscadas e danosas, (incluindo as que sao arriscadas e danosas para os prdprios acionistas) e de represséo penal de fraudes, burlas e outros crimes contra o patriménio de terceiros. Doreen Mac Barnet (Edinburgo, Oxford), que investigou durante duas décadas 0 mundo da consultoria juridica em matérias financeiras, fiscais & Aentregs 2 provados de tarefas militares fol corente na guerra do raque; no plana interno alse na privatzasdo das prstes © recorese fequentemente 4 outsourcing nes mleséer de seguranga. A elaborapSo leave & cad vez male tencomendads 3 exritrios de adhogados, o mesmo acontecendo com o aconeahamento jurisco do Estado e com + defers [eles dos interesees pblios. *¥, Terence Halliday & Lucien Kerik (ed) Lomyers andthe Rie of Western Police Liberal: Europe and North Amarca from the Eightserth to Twentieth Centuries, Oxford, Oxford University Press, 1996; wes Dezalay,& Bryant Garth, The Incernationalzation of Place Wars. Lawyers, Economists, and the Cootest to Transform Latin American States, Chicago Seles a Low and Society, 2002; d & Id. Global resertions: the production, exporttian, and importation of a new legal athosadey, Ann Herr, The Michigan Univesity Press, 2002; Yves Dezalay, Marchants du dot la restructuraon de Vordre juridique Internationale par les multinationals du dro, Pals, Fayad, 1902; vee Dezalay & Bryant G Garth, Deoig in Vitve International Commercial Abisatcn and the Construction of a Transnational Legal Order, Chicago, Unversity of Chicago Press, 1995; Yes Deraly,, and Alain Bancoud, Des grands preter’ du drit au marché de experts jraique: Transformations morghologiques st recompasiion du champ des producteurs de doctrine en droit das cffeves", Rewue de Potique et Monagement Pub, 122 (2998); contabilisticas “, concluiu, num texto recente em que estuda os varios expedientes criados pelas firmas de consultoria juridica para “securizar" ” os produtos financeiros © para “legalizar” més praticas contabilisticas e comerciais *, que “a crise financeira demonstrou que a manipulacSo inteligente da lei 2 fraude 2 regulaco tiveram cursos devastadores, gerando uma consciéncia crescente da injustiga que representa o facto de aqueles que tém recursos para tal poderem escapar a0 controlo da lei custa dos que 05 n3o tem” “ (p. 16). Neoliberalismo e “modelo jur © impacto do neoliberalismo manifesta-se também no plano, mais profundo, da fungio do “modelo juridico” na regulaggo social. Por “modelo juridico” entende-se aqui o conjunto de critérios, de procedimentos intelectuais e formais © de agentes convocados para legitimar e processar a regulago social. No “modelo juridico”, a regulagSo social é orientada pela protecdo de certos interesses como direitos, dotados de garantias e de permanéncia, ou seja, como situagBes que ndo podem ser modificadas senio por atos tipificados pelo direito (rule of law], obedecendo a formalidades também fixadas pelo direito (due processo of law]. Dai que toda a mobilidade das situagdes juridicas se localize, (ou no dominio das situacées no garantidas como direitos (meras expectativas, interesses “nus"), ou como resultado de uma ponderacao reciproca de direitos protegidos mas incompativels. Estes garantismo e formalismo fazem com que os julzos de mera oportunidade (utlitarismo) tenhiam uma legitimidade muito limitada no dominio do direito. A técnica intelectual (epistemolégica) exigida é a ponderacSo — a que os antigos chamavam quoestio (disputato) -, que se traduz numa avaliago reciproca da atendibilidade dos interesses protegidos em conflito, de modo a decidir, argumentadamente, num dos sentidos, ou num sentido que corresponda a uma “justa propor¢ao” entre eles, A intervengo dos juristas legitima-se por ser um juizo de especialistas, neutral (geral, abstrato, adversarial), formalizado (envolvido em procedimentos formais que condicionam a eficécia juridical, respeitador do status quo e das regras estabelecidas. Estes especialistas garantem, em nome de um interesse superior que os inspira (sacerdotes justitie), solugées prudentes e equilibradas, geradas por um modelo especifico de calcula (céleulo jurdico, célculo de direitos) Este modelo de regulaco no correspond, de modo algum, aa modelo de decisto ecanémica que cultiva © dinamismo, a maxima explorac3o da oportunidad, 0 aproveitamento dgil de efémeros momentos favordveis (as ditas “janelas de oportunidade”), a rentabilizago de equilibrios conjunturais propicias, tendo em vista a maximizacio das vantagens, sem consideraco de outra coisa que nfo seja a analise dos beneficios e das vantagens préprios (trata-se de um madelo egolsta, no adversarial nem altruista de calculo), Num mundo organizado segundo esta logica, © modelo de deciso mais adequado ser, portanto, 0 oposto ao modelo juridico. O “calculo ecanémico” era, originariamente, aquele que 0 chefe de familia seguia ao dispor livremente das suas coisas para obter o mais vantajoso para a sua casa (cikos+nomia, oeconomia}; como o mundo doméstico era “totalitario” ena casa no havia dualidade de Interesses, 0 paterfamilias no tinha constrangimentos na prassecucao dos interesses familiares. Dal que 0 “modelo econémico” da célculo no tenho que ponderar interesses adversos entre si, mas apenas que calcular 0s custos e beneficios dos atos de gesto do tinico interesse relevante, Também do ponto de vista de cada agente econdmico, pensando economicamente, ndo existem constrangimentos externos & prossecugdo dos seus interesses. A técnica intelectual é também a da andlise custos- beneficios. E a questio do respeita dos direitos dos outros também decorre apenas de uma anslise deste tipo, que ditaré (ou no) a sua conyeniéncia ou oportunidade, considerando interesses préprios mais longinquos © mediatos (“Nao fazer aos outros aquilo que no quero que me fagam a mim"; “Aquele que procura evitar danos prafere sobre o que pretende obter vantagens”). v,inancial Engineering or Legal Engineering? Legl Work, Legal integrity andthe Banking rise" (February 2, 2010). Inin Mac and lust O'Bhan, ed, The future of fnanea ragultion, Oxtore Har 2010; Uf Edinburgh Schoo a Law Working Paper No, 2010/02. isporivel em htp:/ssn.com/abstract=154646 or htp//exsdo.rg/20.2138/ssn.1S46486, [18.03.2012] Le para 05 garantir contra as elusulas lgais de proterdo de interesss gers ou de terceros, © controle des reguladores; as normas fecal, as dspsiges de defess da concornci, ee. Offtolance sheet ancing (OBS), uso de special purpose entities (SPE) ou vehicles (SVE tape 6, * Doreen Mac Barnett, “Financial engineering [= Qualauer que tenha sido a origem conjuntural do mercado desregulado, a partir dos anos '80 do séc. XX", 0 certo é que ele levou também a uma substituigio de modelos de legitimagdo, saberes © técnicas de célculo, comunidades epistémicas @ grupos profissionais. Ao primado da economia estratégica, do empreendorismo, da gestio do risco, da engenharla financeira e fiscal, correspondeu a ascensio de economistas, contabilistas gestores e, 20 mesmo tempo, o declinio do direito, 2 no ser como saber ancilar dos anteriores, destinado 2 garantir contra legislagao intervencionista ou contra adversarios de negécio, a inventar técnicas de blindagem dos ganhos negociais, técnicas de desresponsabilizago criminal e civil, técnicas de ocultamento de vicios negaciais ou de riscos que onerem titulos. Por outro lado, © cardcter global dos grandes negécios exigia saberes também slobalizados, independentes das particularidades especificas de cada pais. Também isto suportava mal 0 saber juridico tradicional, muito vinculado, ndo apenas 20 direito dos Estados nacionais, mas ainda a tradigdes doutrinais locais, bem como a fortes lealdades reciprocas entre as elites juridicas e as elites politicas e econémicas de cada pals. Estas vinculacties no so igualmente fortes em todo o lado; mas na Europa tém sido consideradas como particularmente resistentes . Finalmente, tendo sido a regulacdo estadual enfraquecida ¢ feita conviver com ordens normativas globais de atividade dos negécios (lex ‘mercotoria ou mesma leges mercatoriae|, a nova regulagso tornou-se estruturalmente mais indeterminada, porque aos problemas tradicionais da equivocidade das normas soma-se agora o problema suplementar da determinacio qual é a ordem normativa que deve valer, de entre varias ordens normativas concorrentes *. Este complexo, mas coerente, cenério projota-se sobre ao ambiente do saber técnico-juridico © sobre o lugar social dos juristas. Promove, em primeiro lugar, a hegemonia dos saberes empresariais sobre os saberes juridicos no discurso sobre a regulacdo, agora concebida como dependente dos mecanismos autnomos dos mercados e no do mundo heterénomo do Estado e do direito. Esta hegemonia manifesta-se no plano da legitimacio da regulacdo, no plano do tipo de argumentos do discurso sobre ela (utilidade vs. estabilidade) e no perfil profissional dos agentes de regulacio. No plano ideolégico-discursivo, gera aquilo que ja foi referido camo uma “dependéncia irreversivel [da regulacio] em relacso aos mecanismos de gesto © de decisio da produgio econémica |... A pratica profissional deixa de ser legitimada por referéncia 40s principios da equidade © da justica. Em contrapartida, fica sujeita as cexigencias do célculo, produgdo de resultados e da eficiéncia: todas tipicas das transacdes econémicas ditigidas ao lucro” ". No plano dos agentes profissianais,jaga a favor das grandes firmas globalizadas de auditoria e consultoria contra o mundo das profissées juridicas, mesmo quando estas tentam adotar uma organizacao também internacional, como fazem as grandes firmas internacionais de auditoria juridica (law firms). Mesmo estas, nunca atingem o Ambito de intervencéo, a escala e a “agilidade profissional”’ "das primeiras. Em segundo lugar, esta hegemonia dos saberes relatives aos negécios {microeconomia, gosto, contabilidade) provoca uma recomposicgo da logica da decisio juridica sob a égide de estratégias discursivas organizadas em torno da légica dos valores econémicos da oportunidade ou da compettividade, oposta 3 légica do modelo juridico [estabilidade ¢ intangibilidade dos dlrcitos, formalism). Trta-se de mais do que de uma desforra de Bentham sobre Kant, uma ver que 0 calcul vis quem e eelacione com e sards de poder do capltalome lgsco & producto ara o captallma fnencere: outros relaclonam esta substtul¢ée de hegemonis com a entrada nos grandes negécos de grupos especulativas ou mesmo ligades 3 negécios Ngai (éroga, armas, matlas). CE. Yes Dezaly, “Professional competion and the sorlal construction of transnational markets, em Yver Dezalay & David Sugerman, Professional competition and Professional power. Lowyers, accountants and the {lo eonstracton of martes, London # Nat York: Routledge, 2005, 9, Ci. Yves Deralay, “Professional competition andthe socal cantructian of ranenatonal markets’, m Ywos Dealay & David Sugerman, Professional competion and Pofessonal power. Lawyers, accountants and the soci! constuction of markets, London © NY, Routledge, 2005, 14; Vitoria Ogi, “Procear and pabey of legal profersionalztion in Europe The deconeruction| of #normathve order”, en em Yves Dezaay & David Sugerman, Profetsiana eompetiian [170-208 CF. Viterlo Olt, “Process and policy of legal professonelization in Eu order, cy 181. The deconstruction of nocmative Cr vero Olin, “Process and policy of legal pafessonalzation in Europe, The deconstruction of a noxmative order’, 17L 50. |e, « decvinculso deontolgles, presse como tendem a estar eo: residues publicists das profes juries, 2gora que “a juisdicha profsional tona-se num Simples mercado pare prestaglo de um tipo determined de seruigo” (eV. Olgas, "Process and policy [172 juridico de Bentham continha ainda referéncias 20 publico que desaparecem do mundo dos negécios do neocapitalismo. Neste, o interesse supra-individual ~ a satisfagdo dos consumidores, a estabilidade social, etc. —constitui apenas um objetivo tético, um elemento “externo™ (de contexto}, que tem que ser considerado no ambito do célculo geral dos custos-beneficos. Agora, o que se dé uma abertura do dlscursojuriico 2 valores que pertenciam ao discurso da economia eda gestdo -o interesse egofsta dos agentes, a eficiéncia na prossecus8o desse interesse, a légica da oportunidade e da produtividade -*, a0 asso que sdo cubalternizadas valores de natureza “geral", “publicistica” ” que tinham dado 20s profissionals do direito um tom de guardibes de algo mals (e mals elevado) do que interesses puramente privados, objeto de avaiagdes e cdlculos funcionalizados a objetivos particulares(judex non calculat, in corpore hominis iberinon fit estimatio). A perda desta dimenséo “publica” do direito torna as profissbes juridicas em mals um simples negdclo de prestacdo de servigos", que no merece qualquer cautelas ou prviégios da parte do Estado, devendo acomodar-se, sem restecBes, 2s lis do mercado. Esta poltica de combate aos privlégios das “pequenas repilblicas” caraterizou es politicas neoliberais ce Margaret Tachter e, agora, esta muito viivel no chamada “memoranda da Troika” ”. Para além de faciltar 2 dissolucio das profissdes juridicas no seio de outras elites profisionais”, estas medidas espelham a dissolucéo do “modelo juridico” em modelos que antes contrastavam abertamente com ele Em sentido aparentemente contrério joga a crescente indeterminag8o do direito provocada por um novo quadro de fontes do direito neoliberal , pois o reconhecimento de direito nao estatal acrescenta 8 equivocidade das normas a pluraidade das ordens normativas. Neste contexto, o poder de arbitrar 05 confltos juridicas ganha um maior impacto, porque a margem de incerteza do direito € maior. E, com isto, ganham poder as elites juridicas que ocupam as inst&ncias jurisdicionais dos setores hhogemdnicos da economia, No entanta, isto nifo contradiz o que se disse antes. O que é decisivo ¢ saber qual é o modelo de deciséo que estas elites vo seguir. E, como se disse, este modelo tende a deixar de sero “modelo juridico", Com isto, se € certo que as profissGes juridicas estdo 3 ganhar um maior espago * olga “Process and policy oT" 182 Cr, enquadrando isto num medele luhmanriane, Joseph MeCahery and So Peitto, "Create lawering and the 4mamies of business reguleion", 261 55. ste rule of law has become # new raving ry for global misionaies. “Money doctors sling competing economic expertise continue to bw vary ative an the pobal pre [ut the 1980s have alto witnessed = tremendous erwth In “rule doctors" armed with thelr un competing prescriptions for legal reforms and new isttutions at national and transnational level", Bryan G. Garth & Yves Dezalay,Inroducton", em Yvas Dezalay and Bryant G, Garth (corde), Global Bresrptons: The Production, Exportction, and Imaertaton of ANew Lege! Orthodoxy, cp. 1 * por exemlo, estar abert sem restiies & concorrncis (mesmo de extrangeirs), nfo ter limites de scesso (por texempo, provas cu tracini de admissdo), adits todos ax patie do mercado (= publicidad, alive isso dos presen [Mesmo o requisita de uma certs forrarSoorévia fica abla. Na verdade,sio novidades destas que leila neoliberal tendo 2 impor 8s orders profisionals dor urstas.V, para @ Reino Unido, — Miche! Burrage, “hrs Thatcher Against the ‘Ute Republi’: eolagy, Precedents, and Reactions”, om Terence C. Halday & Lucien Kap ede], Lawyers and the rire of wortom ‘ola iberasm Europe and North America from the Eighteenth toTwenteth Centuries, Oxford, Clarendon Press, 1897, 125.165, Para Portal cf. os'sainte atiges co wemorande “de tla. S31. Eleinor ay retigien 8 wifi de carmmicartex comerdais (publicidad), em profisesreguamentadar, como €exigido pala Deca relative ar servigos(3T 2033) 5.32. Rever f redurr o nimero de profes regulementadas «, nomendamente, iminar as reserves de actvidedes sabre as profusBex reguamentadas que js no se justieam. Adoptar 3 lel para as orofisses no regulamientadss pelo Parlamento (ST 2011) © presenter a2 Periamente sei para aquelas que aa regulementedos pela Patlamenta (3¥ 2081) pare atx aprovade até (4T 2012}. 5:3, Adotar medidas para liberaizsr © acesso e evercicio das profssdes rezulamentadss por pofissionais qualifcados © tetabelacdos na Unido Europea. Adoptr all pare ae profiees nfo regulamentades pelo Parlement (37 2014) e apraentar ao Parlomento lel pars aquelar que sia roglamentador polo Parlamerta (ST 2021) para aor sprovads td (27 2012) 536 Continuar a melhorar funcionamenta do Sector des proistes reglamentadas (tals come contabiistas,edvogedes, tos, realzando uma revsio abangente dos requisitos que afectom o exstcio da athidede aliminar aqueles que ro estfo |stiieadas ou nfo so proporionals. &T 2021). Sobre a pla eletnamerte as orden rofsionals dos juss, .V. Olt, "process and pelicy [2 probigle no Tratade de Rome do glebelaagto de edvocada astvaligade ® suo implcagfo com © Interesse plea: as 59, 60, 51.1 Also coresponde também um decréscimo da presenge dos urstas nos cumesadminstativos dos stores piblco @ privedo, V2, Dezalay. "Professional compton and the social constuction of transnational markets, ct, 9.15, 'V.0 meu Caledescdpo do crete, 0 dee e. ustiza nos dase no mundo de hole, Colmbra, Almedn, 2008, cap. 12, de determinacao da normagio social, elas movem-se & sombra do "modelo econdmico”, ou seja sob a 6gide da legitimacao e da epistemalagia de outras grupos profissianais Todos os anteriores fenémenos tém levado a uma recomposigao dos equilibrios internos da profissio juridica. Primeira, entre setores vinculados a praticas e jurisdicdes internacionals e outros Vinculados a praticas e jurisdig6es nacionais, privilegiando os primeiros em relaco aos segundos. Esta ascensio das elites profissionais globalizadas corresponde 20 prestigio profissional crescente dos especialistas de direito comunitério, do direito dos grandes negocios globalizados, do direito da arbitragem. Esta acumulagio de prestigio - que corresponde, também, @ uma oportunidade muito maior de fazer crescer os rendimentos profissionais "- no aproveita igualmente a todos os grupos das protissies juridica, N30 aproveita aos profissionais cuja formagao, experiéneia, localizacio periferica (fore de Lisboa ...), os impedem de participar na elite da “advocacia de negécios’ ~ advogados de provincia, especialistas em setores tradicionais do direito - direito civil “classic”, direito criminal” -, académicos “puros", juristas ao servico do Estado (magistrados). Esta projegao desigual da atividade de das profissées juridicas é visivel, no apenas no seio da comunidade académica e na propria estratégia do ensino juridico ", mas também nas politicas profissionais conflituais e nos despiques entre grupos de interesses na Ordem dos Advogados. A ascenstio desta nova elite tende a ter uma expresso institucional, com 0 aparecimento de associagées profissionais que poderdo funcionar como manifestagées organicas de uma prética juridica ligada aos negécios; seré 0 caso, em Portugal, da Associago Portuguesa de Arbitragem ". No plano académico, apontam para um perfil correspondents alguns cursos de pés-graduaco no ambito das Faculdades de Direito da Universidade Catélica e da Universidade Nova de Lisboa", Afastados da nova elite profissional esto ainda os juristas vinculados 0s pontos de vista estaduais, pela carreira ou por solidariedades grupais. O caso mais tipico é o dos magistradas, frequentemente acusados pela nova elite de conservadorismo e de nacionalismo, confrontados com a concorréncia (profissionalmente desmotivadora e simbolicamente corrosiva) da justiga arbitral" © com a perda progressiva do seu capital simbélico, muito dependente do carater Bos andlse, Joseph MeCahery and Sel Pleclott, “Creative lawering andthe dmamies of business regulation” ct, aoa. Come ¢ natural, nfo hi muitos elementoe empirees deponivels. Mas s oporunidade de nagéelo do slreto ficbalzado ~ europeu, mas cada ver mals, brasler © angoleno, € multo visvel para quem frequents as eftes juries fScadlémleas ov forenses. Entre o urs acadmiene, gerou-re una apettnes sve pelo “ret asstona” pouco expisve em ‘ermos meramente acedémices, plano em que esta speténcla nfo tem gerado um aumento slgnfictivo de produce teri. 0 “tireko lusdfona” € um campo emergente de nagéclorjuridicos(pareceres, consults, arbitragens), mats do que um campo seorcendogmético amergerte. Ate parse, de alguma forma, um dasarto dogmétise (le, m camnoo dogmatcsmenta nal indetermingd) dé mals iberdade para o mercado de servis consol A nova ll das ordens profisionas — abertura a prcistonalsestrangelros. A concovrtnca internacional © modelo ine Vers Oe “Proceso acy gal eiestrelaon Ha Esp. Th cotton of a re ce", 18255) onde se nota uma tensto entre um perfl que prilegia as componentes académices, © uso pica do dato, 0 envalzemento democrstco do drt as prspetvas tedceasectias, @ um outro que apesta na aprosimacto da economia eda esto, que valor @ profsionlzagto 0 entalzamento pétio do dist as parceras ene as excolas emai dos advogades de arbitrage (mas ndo to ativamente com a magistratura pubis). Ambos os perf falam de interneconalag2o; mas vatese de aierentes.internacionalizagSes: 2 internecionalizagio pela relexdo tabvice de uma respublico academica ou a Internaciongiego pela prtiaglabalizada de uma lex mercator * que se apresente como a ciao de“ um grupo de destacados académlcos, avogados © magetrados’,visando fomenter #arbtragem voluntara, Interna = Intemacional come matode de rezolucto Jorelconal de Inigios sobre evetos lzponivae, bam come promover asus utl2agéo em teritsi nacional] una strnstvewidvel @ uma Justis estacual que n#0 sth em condgées de assegurar a celerdade, @ adequasio ¢ 2 previslildede reclamedes pela vida Juridcs, em espacial nas falagees contretuslz O fomento de arotragem voluntera assume assim meler importineis pare alviar sobrecerge doe ‘vlbunasestaduals,proporcionar slugBes mals ustase tempesivas para as controvérsis Juris e, por est vi, car condigbes mals favordvls para a retoma da economia” (hto//arbltragem.st/ap/Index.oh). Nomeadamente, © Mestad em Direito © Gestdo (que vise dar “as respostas adequadas 3 reaidade de gestio da ‘empress © pata uma interagio efeaz com o: gestores, formando expecialtas para Advocacia de egos e de empress (em Jessi Wr fie), it ta ac rng derail, Sioecrs'b cl se prone” (hut: .sboa up p/site/customy/template/ucpiplac.asp?sspagelO=2266Rlang=2); 0 programs Catéic Globe School of Lau hits/ auf icboa up p/ste/zutom/templat/ucptpfar srpPexpsg0i0=3293Blang-2); 0 Master in Law and Management (Siigdo a Juretse que dasenvolvemn “a ua ecvidade num contexta de profunda gegde aoe melas ecandmicas empreranis, quer como avopader de empress, quer coma erpocalitar om eciedader de adopador hep fory..un pt/Anexes/2281 pa com menos impacto, mesmo confiento entre FuncBes jueas plies e pivadas deu-se nos notivios, hd uns anos, com 2 lage de um netarado pivado, no qual nm todos podtam na pte, também iegssar piiblico das suas fungées, cada vez mais cantonados a conflitos entre pessoas individuais ”. Por um leque ampla de razées, mas também pela facta de personificarem um direito estatal, garantista © formalista, os magistrados da justica estadual sao 0 exemplo facil de um grupo corporative, pauca dinamico, bloqueador da revolucéo neoliberal. £, por Isso, nao ¢ de estranhar que estejam a ser um alvo da animosidade dos neoliberais, ou instalados no poder politico, ou influenciando a discussie publice, ‘ou mesmo dominando as novas elites juridicas. Concluindo. A ascensée do neoliberalismo afeta o direito a niveis muito profunde, com efeitos estruturais sobre a legitimacdo juridica, a “racionalidade” do “modelo juridico”, a caraterizacdo e lugar social das profissBes juridicas. Mas afeta ainda mais coisas, Neoliberalisme e direito demecratico. A ctise econémica e financeira terse transformado numa crise da democracia e do direito democratico, No plana politico-ideoldgico, a legitimaca democratica tem manifestamente recuado face a uma legitimago tecnocrdtica. A bondade das decisties politicas tem deixado de se aferir pela sua cortespondéncia com a vontade do povo expressa pelo sistema democratico, para ser progressivamente avaliada pela sua conformidade com a sua adlequacéo financeira e econémica, esta medida pela opinido dos tecnocratas ou pela reagdo dos mercados. A manifestagdo porventura mais chocante desta tendéncia foi o escandalo suscitado pela intenc3o do ex-primeiro-ministro grego G. Papandreou de submeter a referendo o segundo plano de resgate para a Grécia, como se essa decisio, decisiva para futuro dos gregos, competisse mais aas analistas financeiros e aos politicos europeus do que as pessoas sobre as quais iam cair 05 seus efeitos. Mais recentemente, alguns comentadores avaliavam a vontade dlos franceses expressa nas eleigées presidenciais & luz das reacées dos mercados, aos quais compete, portanto, uma ltima legitimagso das opobes populares. Ou dos gregos, de acordo com critérios de “aceitabilidade” pelo governo alemao. Necessitas facit legem (a necessidade faz o direlto) ou Nemo ad Impossibilla cogi potest (ninguém pode ser obrigado a fazer o impossivel). Por detras desta sujeicéo da politica democrética & tecnocracia esta a ideia de que ha lets inevitaveis da economia € que, portanto, as questdes de politica ndo dependem da opinio e da . politica, mas da “ciéncia” e da opinio dos técnicos. O direito teria, nestes casos, que ceder perante a inevitabilidade. O que equivale a dizer que, nas determinagées jurdicas - mesmo quando se trate do direito constitucional - esta naturalmente incluida uma “reserva do possivel” (Vorbehalt des Méalichen)*, Esta & uma idela que hoje colhe um sufrdgio alargado entre os constitucionalistas portugueses * Isso ndo & manifestamente assim, desde logo, porque a ideia de “exigéncia dos factos", de *império das circunstancias’, tem dois pressupostos metodologicamente muito problemsticos. 0 primeiro é 0 de que os “facts” estdo al, como uma realidade objetiva e que fala por si, Isto no resiste a rnenhum de varios principios basicos da teoria contemporanea dos saberes: que os “factos” so apenas "leituras", que a “observacio” & sempre contextual do estatuto do “observador”, que a "realidade” comporta sempre “indeterminacso" e “probabilidade”. Em suma, constitui uma chocante ingenuidade ‘ou uma descarada falicia pretender perceber ou controlar indiscutivelmente a “realidade dos factos".. *Factos" so ... 0 que 0 homem quiser. E, “exigancias dos factos", @ mesma coisa. O segundo pressuposto metodolégico é o de que os factos (mesmo que se pudessem identificar de forma objotiva) ‘Que tém um recorte profsional «até pscolglco diferente dos confts “corporstivos" ck. Joseph MeCshery and Sol iota, "Creative lnvering and the dynamic ef busines epulation” ct, 28% ct tub Jasuim Gomer Canattha, rite canttuconal«teoria de consti, Csimbrs, medina, s/t (7 el) jorge Bacelar Gouveia admite que “oe direitos extlo sempre cubmetidas & racarva do postive”. € serascents Reconheso que # medida de sstisay80 descesdlvetos pode varar perante e skuagfo do pat, Se extivermes er cee tem de haver ai condielonelismos perante ume situaglo econémica.” Mas Bscelar Gouvea também defende que, ultrapasada @ cise, dave ser epastos todos os cretos que foram retiados ‘no seu bojo contém normas. Ora - como se insiste desde David Hume — do ser (to be, Sein) no se pode inferir dever ser (ought to, Sollen). Por iss0, a sujeicdo das normas constitucionals as circunstancias socials e econémicas é uma proposicio mal fundamentada do ponto de vista teorico. E, do ponto de vista prético, constituiria um pprocessa pouco passivel de contralo metddico, sujeito as diversas leituras de que os “factos” podem ser objeto e as diversas possivels respostas sobre 0 que é que 0s factas exigem. Por isso é que os técnicos ‘no so unanimes quanto @ solugdo boa, para além de no ser evidente para quem é que uma solugo clove ser boa, jd que nas sociedades se exprimem interesses diversos @ contrapostos. Invocar os factos é, assim, um argumento falacioso que visa dar & politica a inevitabilidade da natureza. Apesar disto, 0 discurso hogoménico tom insistido na existéncia de uma Unica solugdo, na fata do alternativas as politcas soguidas, na reducio das questdas polticas a questées de facto. Foi o que quis dizer 0 ministro Vitor Gaspar quando, em Conselha de Ministros, respondeu sacamente a um colega seu que propunha alternativas para a sua politica de austeridade: “No hé dinheiro | Qual das trés palavras ¢ que nao percebeu 7". Com isto, reduziu um problema politica (de escolha) a um aparente ndo-problema (por falta opcdes alternativas). Mais em geral, & também o que esta implicito quando se dia que “n3o ha alternativas" para a politica de austeridade. Na verdade, se nao ha alternativas, Porque a politica seguida nio 6, ela também, uma (de varias) alternativas. E uma necessidade. Isto, naturalmente, dispensa a justficacao das medidas, favorecendo uma atitude de autossuficiéncia, de falta didlogo e de desvalorizacdo do consenso. £ 0 mesmo tipo de argumento que esté por detrés da afirmagio do "super-ministro informal” Ant6nio Borges: "Diminuir salarios no @ uma politica, é uma urgéncia" ", De novo, a inevitabilidade de uma urgéncia retira o carater discutivel, € logo, politico, @ uma proposta que, na verdade, é eminentemente poltica. Aparentemente, mals do que a insensiblidade democrética ou a falta de dominio das técnicas de comunicagdo, ¢ esta convice8o acerca da necessidade naturalidade das medidas tomadas que explica o autoritarismo e “impiedade" ("falta de sensibilidade social") do governo na definigo e execuco das politicas financelras, econémicas e socials. Outro argumento pertencente & mesma constelagio retérica € 0 de que a impossibilidade desonera 0 devedor, cancelando os direitos do credor (Nemo ad impossibilita cogi potest). Apesar de contrastar com o principio do direito privado de que nas prestacdes de um género (dinheiro) nunca ha lugar 8 impossiblidade (genus nunquam perit, art? S40 do C.C.) e, portanto, exoneracéo do devedor pela impossibilidade do objeto, 0 argumento da impassibilidade do cumprimento pelo Estado das suas obrigacées (de prestasées pecunisrias) por falta de meios tem estado muito presente na discussio em tomo da intangibilidade das prestag6es sociais, Para além de outros argumentos técnico-juridicos, tern- se invocado que a falta de meios financeiros (atual ou previstvel) exoneraria 0 Estado da obrigaco de satisfazer as prostacdes sociais estabelecidas, mesmo que estas configurassom direitos adquiridos. A falacia da argumentaco é supor que a falta de meios 4 absoluta ("No ha dinheiro I"), quando ela 6 apenas 0 resultado de opcdas politicas quanta hierarquia das despesas do Estado. A impossibilidad= verifica-se, de facto, no quadro de uma certa politica orcamental. Mas 0 argumento apresenta mais dificuldades. A primeira é 2 de que, no plano da teoria constitucional, a introdug3o de uma implicita reserva do possfvel nas direitos sociais e econdmicas ~ que tem origem numa disting3o, feita por Carl Schmitt na sua Teoria do constituieBo (de 1923), entre direitos fundamentais inerentes a liberdade dos cidadios @ diteitos econémico sociais ~ tem uma base tedrica problematics, que € 0 de supor que # garantia de liberdade nao pressupde, também ela, a disponibilidade de meios do Estado, por vezes muito avultados, sobretudo se se entender que o Estado deve garantir esses direitos fundamentals no apenas contra a ‘sua propria ago, mas também como contra a ago de terceitos. A segunda & a de que, em direito, as obrigagdes genéricas ~ mormente as obrigac&es de entregar dinhelro ~ nunca so impossiveis, como antes se disse. Mas, se este principio juridico nao for aceite no caso de obrigagies do Estado, geram-se entéo outras questées também elas muito relevantes numa situago de crise, a mais importante das quais 6 2 de que, entdo, a falta de meios financeiros (a falta de dinheiro, a pobreza) exoneraria também 0s particulares das suas obrigagSas. Ou seja, admitida a impossibilidade de prestacBes pecuniarias para * entevsts Jornal de esécoe (1.62022) lem dsto,afirmar que nko hd alternatives (posivels fcazs) dlspensa de provarapossbiidade ou ei do SolugSe .. para = qual fo h akermathes. Ore, do ponto de vstaIdgleo-2rgumentative, todas as altemative, mesmo a considerada como slugdo nic, tém que ser comprovademente posses efcazes. © Estado, teria que se admitir também para os cidados, muitos dos quais, num tempo de crise, esto justamente num estado de suprema caréncia (pobreza). Finalmente, o direito exige que o estado de caréncia de meios seja declarado segundo certa forma, conduzindo a uma liquidagdo do patriménio do devedor, 20 pagamento aos credores por uma ordem pré-estabelecida, a um plano de pagamento dos debitos subsistentes e, s6 depois de um certo periodo, 8 exonerasao do devedor quanto as dividas que no puderem ser pagas. Admitir a impossibilidade de invocacgo unilateral pelo Estado da impossiblidade de pagar significaria o mesmo que autorizar os devedores a, por si s6s, se declararem impossiblitados de cumprir, podendo ainda escolher aqueles credores a quem queriam satisfazer. Também aqui, a ndo generalizago das solucSies juridicas, 0 seu uso seletivo, equivale & arbitrariedade. Aconstitulgo da crise é 0 estado de excecfo (0 Estado de nfo-direlto). A mesma ideia de inevitabilidade das politicas pbe em causa o direito como produto de uma escolha comunitaria, como resultado da ponderacio na esfera pilblica de diversas interesses em presenca, de diferentes leituras das situagées e de varias alternativas da solugio. Par isco, a desvalorizacio do direito © da propria constituicdo perante a inevitabilidade ou 2 urgencia da situacao tem sido uma constante, Com raras excegées, 0s juristas e constitucionalistas mais creditados t8m sugerido ou declarado expressamente que, perante magnitude e urgéncia do context econémico‘financeiro, 2 lei constitucional deve ser substituida por uma constituigSo ditada pela gravidade © urgéncia dos problemas nacionais geradas pela crise, uma ver que a salvagio coletiva é a lei suprema ("salus populi suprema lex est”). Numa entrevista radiofénica (Antena 1, 19.10.2011), por ocasifo do encerramento de uma vida académica brilhante consagrada 8 promogio e defesa do Estado constitucional e da Constituig#o portuguesa, Joaquim Gomes Canotilho declarou, ainda que algo dubitativamenta, que, em condigbes extremas, 2 constituigso teria que ceder poranta a suprama necessidade publica “A necassidade pablica é a lei superior [..] A reviséo [da Constiuicio] acaba por ser substitulda por certa ideia de necessidade piiblica, de satide publica, que obriga os governos a ultrapassar certas formalidades constitucionais para responderem ai as exigéncias, digamos assim, aos desafios que nos so colocades [..] A eliminacSo de algumas garantias - sobretudo relativamente a algumas leis do trabalho, que ha alguns anos nés diriamos que eram claramente inconstitucionais - hoje, como ve, acabamos por ver ave hé outras forgas superiores & prdpria constituigso” *. Jorge Miranda, por sua vez, admitiu ® que alguns direitos sociais pudessem ser afetados, acrescentando que esperava que essa suspensio fosse apenas uma “suspensio" e uma no ume perda defintiva de direitos. A evolucdo posterior da situago veio a demonstrar que a distingo entre suspensdo e perda definitiva no garante nada, uma ver que as suspensdes temporsrias (por exemplo, as que constam das leis do orgamento) podem ser indefinidamente renovadas. J a suspensio do direito privado parece que escaparia sempre constructio dogmatica do estado de excecdo. 0 direito privado parece permanecer como uma norma permanente da sociedade, como um continuum natural das relacdes humanas. Por isso é que as estruturas juridicas da vida privada Segundo os relatos publicedos, 2 sua pesicfo tera sido diferente em unho de 2011 (stp lure com st eaceco/aplomas/gcoedeestado tr). utras delaras sobre'© mesmo tema: “[x] quando se colocou s questéo das imposicbes da Troika ainda estava no Governo 0 Eng José Secrates © era um Governo dembido, portato, com poderes redusides, e colocou-se o preblema de sabersese um Gaverna demitdo mitado 30s atos necessiios para o gover do Pals, poder ou no negociar esse acordo com Trola, Eu enna Imprert#o ue fl dos poucor #dser que nfo pocis tends sco muito exieado ness stra, © hoje parece ime claro que um Governo de gestio no poderia assumir esses compromiseos. E porque & que ele o fe (x)? Bem, porave ha uma rixima que vem deste a Antguidade que [di que 2 necestdade, slgamos, 3 ltima le. Portanto, como nés dizemos, asad bles, digamor anim, 2 flciade ples, da lei ruperor.E portanta, quando = saide pubes, = neceridade publics, = faleidede pobie, dz ieea mesmo, no podemos ohare grendes rigoras nomativos & 2 rigorasconstnucionale porque & preci tomar decides, precio vineularmo-nor [-[,ehtrevsta = Ricardo Alexandre (Antena 3) (huff rp plantenet/indes php2t-Enwevstaa- Gomes-Conotiho rpBartile-417iuisyal=118tm=16Bheadlne= 13) iip//v4 sip pA /antonal/PtsEotrevsts's Gomes Conotlho ipBartclew417 Bvaual-13Bim=16Bheadline=13, Comentario sou, fem condigbes menos conjunturas, sabre o tema (2 propésto do ar® 19 da CRP): J. |. Games Cenatho e Vitel Moreira Cansttuigaa da Repiblca Portuguesa Anctode, 3 a, Cimbre, Combe Etre, 1993, pp. 154 x. * Comela da Monhd, 54.4.2012; Expresso, i ~a propriedade, o contrato — continuam a ser creditadas como respeltavels, mesmo nesta sociedade de 1ngo direito (constitucional. [sto corresponde a uma deslocacdo da norma fundamental da constituigo para os cédigos civis, tipica do direito liberal do século XIX. A questio latente dos contornos |uridicos do estado de excegéo: hé limites para a suprema salvagso publica ? 0 estado de excecdo esta previsto na Constituigo da Repiblica Portuguesa, num artigo que (art2, 19) se refere a suspensio do exarcicio de direitos. Ao contrario do que acontece com algumas constituiges contemporaneas, a constituico no prevé a declaracio de um estado de excacto por razBes econémico-financeiras““. Embora seja bastante complacente quanto @ competéncia para declarar o estado de excecio, ha exigéncias quanto a forma (n®. 5) e quanto aos resultados, restringindo estes & suspensio temporaria de certas direitos e impedindo-a em absoluto relativamente a outros (ns. Se). ‘A admissao de um estado de exce¢io fora destes limites — que nao incluiriam sequer, nos seus pressupostos facticos, a situagso que se vive hoje — implica um consideravel salto fora da lel constitucional e a adooo de excego “doutrinal", varldvel com 0s autores e, por isso, inseguro e nada garantista Ficou famosa a concecdo agonistica e paradaxal do estado de excacso elaborada por Carl Schmitt nos anos 20 de século passado: perante um estado de suprema anormalidade, a salvaguarca da constituiggo, como garantia em ultima instancia da salvagao da comunidade, exigiria a suspensao da lei constitucional e a entrega absoluta do poder nas maos de um magistrado extraordinario que, nos termos de uma constituicgo fundamental implicita adotaria as medidas requeridas pela situac3o de facto, A politica ~ como escolha das medidas requeridas pela necessidade ~ Impunha-se ao direito ordinario ®. Hoje, porém, costuma prevalecer uma concecdo mitigada, que - retomando 2 distingso terminolégica de Schmitt — incorpora na “constituicéo” certas normas, formais ou matérias, irrevogaveis, mesmo neste estado de suprema necessidade publica. Sobre quais sejam estas normas, ja as opiniées no so unanimes. Para uns, so as normas daquele direito que é indispensavel para regular o processo de sair da crise, Ou seja, supdem que uma resolucdo profunda e sustentada ha-se restaurar 0 equillbrio (o bem) do ‘todo, © que apenas se conseguiria por meio de uma deciso regulada (de um iudiciur). Isto exigiria que 2 constituigo de crise incorporasse 0 respeito pelos direitos aduiridos ou, pelo menos, do processo estabelecido para 0 cancelamento destes: nos termos do constitucionalismo norte-americano, a undertaking clause @ a due process of law clause (substantial formal *)“*. No diteito europeu Na const base, v- At. 34:1- mente a nteridade nacional: I-repeli vaso estrangeraou de uma unidade da Federacto em outs Ile term grave comprometimenta de ordem pubis: IV -gaantro Evie exerci de qualquer dos Poderes nes unidedes da Federacio; V~reorgenzar [em certascircunstncias] 2s Ranga plas: VI- provera execuczo de el federal, ordem ou decsto judicial Vi ~sesagurer a observdnca dos seguites princpios consttucionae fundamentals, Bige Sempre a ratfcsrzo por parte do legislate. “a iteratura ¢ vestssima. Em Portugal, ¢ monografa mals completa & Gouvela, Jorge Bacelar, Estado de excepsto ro drat constuclonl Coimbra, Aimed, 1955, \V.a interpreta mois ravente em Giorgio Agamben, stots a ercsione, Bela Bornghien, Torna 2003 ed. port Lisboa, Edie 70, 2010] (que analiza o paredoxo de uma tforms legal [a constituiciol di cid che non pub avere forma lero [segundo 2 lel consttuclonals). Testos rgiais de C Schmit: Der HUter der Verfasung, 1925 (trad. port, © guardido da CanettugZo, Belo Horizonte, Del Rey, 2007); Verfaesungelabre, 928 (tad. cat, Tearia del constnicién, Machi, lanes, 183); Poltsche heolage, 1922 (va. por. TeolegiaPoliza elo Horizonte, Del Rey, 2005. iM tho cbligations of = contract shall not be impaired’; “ao private property shall be tak for publ ure without compensation "00 ponto de vets substantive, 2 cliurua corresponds 3 undertaking claure. Do ponte de vets procorsual, corresponde a forma como 0 dista & sdminitrado ou spliced, poibindo uma privagSo eritéria de intaresees partcleres protegidos (vg, inesperade e sem contradic). hp legak-dicionery thefreditionery cam/Substentive Duet Proce) AZo) “rachard Epstein, Criss & the Low with Richard Epsteln, (ta /unw.goutubs.com/ watch continental, sto corresponderia & salvaguarda do “principio da confianga”, ou ao respeito dos direitos fundamentais ”. Para outtos, este niicleo constitucional corresponde a constituig4o “cosmopolita-civilizacional”, ‘ou seja, 20s. principios constitucionais estabelecidos no didlogo entre ordens constitucionals cosmopolitas Outros, finalmente, acham que 2 constituigdo de crise incorporaré ainda 2 garantia do progresso humano e civiizacional, vedando a adocSo de normas que fagam recuar aquisigBes progressistas“***. Esta posigdo teve acolhimento na jurisprudéncia constitucional portuguesa A constituiglo portuguese, no art. referido, subordina o estado de excesdo a trés regras: ser declarado na forma prescrita na constitu, ser temporério, no afetar, nem temporariamente, os ‘direitos a vida, a integridade pessoal, 3 identidade pessoal, 4 capacidade civil e & cidadania, a no retroatividade da lei criminal, o diceito de defesa dos arguidos e a liberdade de consciéncia e de religido”, e “respeitar 0 principio da proporcionalidade e limitar-se, nomeadamente quanto 38 suas extensBo e draco © aos meios utiizados, ao estritamente necessério ao pronto restabelecimento da rnormalidade constitucional”. Embora nfo tenha havido, nem porventura pudesse haver, nenhuma declaragdo de estado de excecio, a analse dos acordios do Tribunal Constitucional que avaliaram da constitucionalidade de leis alegadamente invasivas de direitos constitucianalmente garantidos induz a ppensar que, embora nunca refiram 0 estado de exceco, 0s seus requsitos substanciais (.e, no formais no orgénicos, nem também os genéticos) ~ carter tempordrio da suspenséo de direitos, ressalva de certos reitos “fundamentalisimos", proporcionalidade das medidas, ocorréncia de algo tdo perturbador da vide da comunidade como as circunstincias do n? 2 do art‘, mas de natureza econdinico-financeira "- estavam presentes no esprito dos julzes, Esta presenga muda de um estado de excecio doutrinal ainds explicaria a insisténcla do tribunal no caréter extremo das circunstancias geradas pela crise. Porém, reconhecer isto seria transferir 0 padcio de constitucionalidade da constituigdo positiva para uma constituigfo doutrinal (que legtimava a derrogagio da primeira), Perante esta dficuldade, restava a0 tribunal a via de considerar que a leis sindicadas no violavam situagdies constitucionalmente garantidas, Foi o que fez. © que alguns constitucionalistas tém dito sobre a primazia da crise sobre a constituigo, sendo normativamente muito sério, pode estar descritivamente correto. Ou seja, embora isso no soja Ae, Tent 396/2011, “ume conerstinagdo recente © som especial eferincia ao consttucienalleme ports, P. Habare, "Novos Horitontes © Novor Desafior do Consthucionalismo”, Dreito pubic, 19(kl-Ago-Set/2006), 99. (chitpy/ snmeitopubles dp. edu brfindes php /dreitopubic/ til viile/417/35%), man, 102 ee: cigidade da home, democracia pluraists, dietor fundamentals, visio de poderes, independénca dos tibunsis ule of low, transparénca da fdminietacSo,plralime organizcional Teorando ezta Ila © os seus mites, Marcelo Neves, Tronsconstivetonalioma, S80 Paulo, WME, Marti Fontes, 2008: José Joaquim Gomes Canotiho, Constiuis drigente © vicuacSo do Legitlador. Coimbra, Coimbra Eltora, 2001, 2° ed. Prefécio,p. IKK; Giberto Bercovl, “A prablemten da Consuicio Dirigente:elgumes consideragSes sobre o caso brasileiro”. Revista de nformario Legislative, n. 142\abr/un, 1998), Basia, Senado Federal. * tala Roberto Fuhrmenn Souza, “Principio da pribiche do rtrocesso so © constituclonaieme digente, A problemitce da defeza dos dear fundamentein. sors norco raat (ntp/way pers. pucrs/es/unfpoa/creto/greduecefic/tce2/trebahs2008, tft roberto. pl "0 principio de democraca ecandmica e soil instituctonalza uma prob de etocesso soda. [com iso quer se daer que os dete sciase ecanémices (ex dette dos wabahadores, deta & assistencl, deo @ educacHo, ec), uma ver alcangados ou congustadoe,patsam a consti, simultanesmente, uma garantie netRucionl e un die subjetvo. Dest forma, ¢ledepancentemente do proviams “tacico” da rreveriilcede dae conguletss soca o piciolo ds Gamocrecis sla ‘condi fundamenta uma pretens¥o imediata dos ddados contra as entdades publics sempre que o gru de realizado dos seus detos econémicos e sodas for afetado em seu sentido nagativo,e estabelece uma proibicdo de “evolugdoreaclonri" ( Packachittsverbot) digs sos érgdos do Estado, Esta proibgdo jstficeré a sengao de inconstRucionaldade celatwamente & rnormas manifestamente aniquladoras das chamadas conguistessocies” (José Joaquim Gomes Canctiho, Dreto Consttelonal Coimbra, Almedine, 1986, ¢ ed, p. 393). Porém, este principio poderd estar sujeto & “reserva do posivel”(Vorbehott des Mepichen CF Ae TC 39, de 11.04.1984 (rl Vital Moreira) [retrocasto do SNS}; Ae. TC n# $09/2002, 18122002 (rl. Lie Nunes de Almelés (declrando inconsttuclona #exlusto pessoas de Idode entre 18-25 anos do beneficlo do rendimento minima dda ineree) Ambor refers aura tung normal” Fearn dino SFE untificer err eaten por anloga dene nop eee Porém, perente esto opcto, lgumas das questBes cscutidas nos aces parecem encresctncias: a do cardter provcdria des medides legals, 2 de proporcinaidade das medidas, do carster extreme da siuagSo, Se no havieofenca de sSuagdesconsttuconalmente grantdas,olegisladorordndro conservevso seu poder de Eve conformaszo do dito. Justificével dentro do paradigma do Estado democratico constitucional, pode estar a ser (infelizmente} interiorizado pelos guardides da constituigo que esta apenas ordena sob a reserva da possibilidade. Porém, como a “possibilidade” ndo pertence realidade, mas 8 construsao (politico-ideol6gica) sobre a realidade, isto significa subordinar a constitui¢go aquilo que certa conce¢o do mundo e da sociedade considera como possivel/desejavel, Ou seja, subordinar 0 direito & oportunidade, Naturalmente que a invocago do estado de necessidade pode ser estendida da constituigo para a democracia. No debate gerado pelos resultados das eleicdes gregas de Maio de 2012, alguns constitucionalistas tém realgado que, perante a eminéncia de bancarrota do Estado, os gregos “votaram mal”, pois a maioria (teérica] que deram a partidos que se opem a0 programa de austeridade conduz a uma solugo que eles ndo podem querer. De modo que, ou as eleicBes t2m que ser repetidas — mesmo que fosse possivel encontrar uma solucio parlamentar apoiada na “maioria de esquerda” -, ou 0 resultado eleitoral teria que ser reinterpretado de acordo com “as possibilidades’, au seja, de modo a impor uma soluggo favordvel ao acordo de “resgate”. Perante os resultados das eleices francesas do mesmo dia, foi insistentemente ventilada a ideia que, mais decisiva do que © programa politica escolhido pelos franceses, havia de ser a “realidade das finangas e da economia", quando 0 novo presidente "calsse na real”. Porque, afinal, os franceses tinham votado uma coisa to impossivel como fazer dos quadrados circulos. Assumindo, claro, que ha apenas uma geomettia, Uma contextualizagao mais radical das normas constitucions ‘Menos radical, mas conduzindo & mesma desvalorizagao do direito constitucional é a ideia de que este teré que ser especialmente contextualizado em tempo de crise. Ou contextualizado em fungao das circunstancias de facto. Qu contextualizado em fungio de outras constituiges da contemporaneidade, que conviveriam com a constituigéo formal da republice. Em entrovista recente, Miguel Poiares Maduro, defende, com raxdo, que esta adaptacSo das normas corresponde a uma regra inevitavel da hermenéutica juridica “, pondo, no entanto, a quest#o das limites da adaptagio. Todavia, o facto de se insistr na questo da contextualzacio em tempo de crise, sugere que ela tem uma importancia especial, que merece maior destaque neste contexto: ou no sentido de que 0 contexto agora pesa mais, ov no de que os argumentos contextuais devem ser majorados nomeadamente no julzo de proporcionalidade; ou na de que os limites & contextualizag#0 «40 agora menores do que na contextualizaglo ordinara, Seja qual for © sentido em que se tome este argumento, 0 seu uso n80 garante muito os elementos objetivos da interpretago constitucional (intengao do povo constituinte,tradigdo interpretative da consttuicdo, expectativas partilhadas sobre o sentido da constituido}, de modo 2 salvaguardar adequadamente 9 natureza constituinte da constituigio contra interpretagSes oportunistas ("Uma norma juridica nfo pode permit toda o tipo de interpretagBes. Tem que ter sempre limites. Muitas vezes 0 que acontece & que esses limites no esto definidos ex ante. Resultam do processo de interagdo entre essa norma jurdica ea realidade econémica e social. Nem tudo € permitido na interpretacio constitucional tal como nem tudo esta previamente definido” ... *). Digamos que s80 limites ... pouco limitativos. Um recurso especial a0 argumento da contextualizago 6 ~ como disse Canotilho na entrevista antes citada ~ mais sofisticada, integrando-se na deriva globalizante do direito constitucional atual. A constituigia da repablica teria que ser acomodada com outras constituigées a que Portugal se submeteu com © ingrasso na UE ou com a adesto ao modelo politico-civilizacional da democracia liberal e da economia de mercado. Nao se tratando, teoricamente, de uma desconstitucionalizaco, mas antes de um alargamento do universo normativo constitucional, ele acaba por enfraquecer muito 0 fundamento demacratico da ordem constitucional e de a tornar mais permedvel a principios flutuantes e opinativas. De facto, as tais constituigdes concorrentes no 40 um conjunto fechado e expressamente definido de principios, nem foram objeto de decis6es democraticas, como @ que deu origem & constituigao formal. Foram indiretamente induzidas por atos dos governos, nunca referendados pelo povo, no caso da UE. E, * so princpiogconsthucionaic xd fazem zartido adoptedor 20 conterta. O dicta a5 é bem interpreted quando § silaptado ao contarto econémico # saciel que vai mudando ao longo do tempo As constiuighes mais duradourae © que onsoguem tor um papel mais efecvo nar it re ie, are ta cL © tual ta cnt em Ouubvode 208, or cord ene a Mat Ele Anna do Ports de LUsboa. Cconoogia muito complet hito/uetesoug/iscont. afetaria gravemente a “confianga dos mercados”. F, na verdade, essa negoclacao, muito reclamada pelos partidos do governo, quando estavam na oposicdo, levou tempo a formalizar na lei. &, quando 0 foi ™, inesperadamente veio ainda garantir a inalterabilidace de contratos ja celebrados e, com isso, a permanéncia de situagdes criadas @ sombra deles, por lesivas que sejam do interesse publico. Ultimamente, alguns dos setores que defendiam a renegociagao das parcerias ” parece que esto a optar por outro meio de dar satisfacio a opiniso publica, que nao ofende os direitos adquiridos dos privados: a instauracio de aces crime contra os responsaveis politicos que prepararam ou assinaram os contratos de parceria ~ Em contrapartida, outras prestagbes do Estado — nomeadamente, as que decorrem das pollticas piblicas do Estaclo Social, ou mesimo os salérios do funcionalismo — esto fora desta drea de garantia, ficando sujeitas 2 precarizago. Segundo a jurisprudéncia recente 0 Tribunal Constitucional, teriam esta natureza os vencimentas e subsidios das funcianarios piblicos, hem como as pensées dos reformados. Entre as duas categorias de situagSes subjetivas, hd um espetro gradativo, que se pode ilustrar com os “direitos” da EDP, satisfeitos pelos consumidores, Ai ha direitos contratuais (correspondentes acs custos da producéo/distribuicdo © lucros) e diversos subsidios © rendas que o Estado garante, como contrapartida dos contributes da empresa para a realizacdo de pollticas publicas, de varia tipo. Na légica da anterior disting4o, algumas destas prestacées seriam inatacdveis (03 custos 05 luctos}, caindo a5 outras (rendas e subsidios} na esfera das situagdes de privlégio (abusivas} que a revolugdo neoliberal visaria corrigir. O facto é que, com 0 atgumento de que umas e outras ficaram contratualizadas entre a empresa e os consumidores ©, por isso, se converteram globalmente em prestages contratuais, se tem afirmado ser inevitavel respeitar a composicSo contratualizada do preca dda energia, por esta constituir uma expectativa cuja frustragdo violaria 0 principio da confianca. Em suma, neoliberalsmo e situacio de crise traduzem-se num regime dualista relativamente & salvaguarda de situagbes juridicas ja constituidas. Em relaco a umas—as privatisticas, que decorrem do funcionamento do mercado -, assiste-se a um reforco da sua securizacéo, protegendo-as do risco polttico (alteracdo pelo Estado fundada no interesse piblco), do risco fiscal (novos impostos ou taxes), do isco econémico (alteracées das circunstancias ou base negocial) e aumentando 0 formalismo negocial pela restricdo dos regimes de protecdo da parte contratual mais fraca, usvais no direito do trabalho, do consumo e da inquilinato, todos eles em fase de acentuada liberalizacgo. Isto quer dizer que, na pratica, os agentes negociais mais poderosos se livram de um duplo controlo estadual: por um lado, ficam imunes & invocacdo do interesse publico para modelar ou alterar as cldusulas contratuais; por outro lado, recuperam a stuaco original do capitalismo selvagem, com uma quase pena liberdade de se valerem da sua posicgo de vantagem perante contrapartes mais fracas. O mito da igualdade negocial parece triunfar de novo sobre a realidade da desigualdade de facto, mesmo no pais da EU em que essa dosigualdade social 6 2 maior. fsta procarizagdo da situaclo juridica dos direitos adquiridos sociais pode seguir-se na evolugio da jursprudéncia do Tribunal Constitucional Recentemente, lel gerantu expressamente as posites contratuals das empresas que tenham celebrado com 0 Estado contatos de parceriapublco-privede, mesmo quando estes contratesforem gravemente lasvos do lteresse piblco. Embors nf, 2 0 art, dB leponha que “o regime s6) apis |.) # todos or processce da parcels, ands que jf tanham sd Celebrados os respativos coniats’, on. 5 determina, inesperedamente @ em apatete collsdo com o entrar, que da epics do diploma “no pedem resulta aleractes aos contratos de parceras Jé celebredos, ou derrogagBes des regres neles fertbslerdes, nam modcapbes 8 procecimentas de garearalangades a & cata os us entrada em vigor. Decrete-al ne 11/2012, de 28.05 (htpl/dcet/estin/2012/05/10000/0270202712.p4). Este ciploms tem ums misteroseressave: das “conoessSes de sistemas muftmunleipas de abastecimento de agua para consumo humano, de sanesmento de aguas residuals de gesio se resduoesolidos urosnos presets no Dereto-Lein€379/93, de S de novemr, com a radaeso ds pela Dereto len 95/2009, de 20 ce ares" ar. 2, lb), ‘Os entZo partidos da oposiclo foram muito enfitcos na deninci do carter lsivo das parcariae, quer em zeral por sscrficarem geragdesfuturaee forentarem a iresponsablidade nos estos, empurrando estes para. futra, quer no coneret, ‘pinecone coterie reuntrit, ansub Ueno Haro Esc ke fl elitr pr wa recat Suditere 60 Tabunel de Cantas 20° modelo de gastfo,fanciamenta © regulate do satorradoviro Relate de AudRovia ni 35/2012 2 SecySo iti fama scontaeptpA/acos/el audterin/2012/2e/audit dg el01S-2012-2e shim, 30.05.2022) nesmente, apenas cartes dos cntratos, de responsablidade de certs respansivels patios € 0 caso da inusitada Iniatve do Automével Club de Portugal que, em nome dointeresse dos contributes, aianou membros do anterior governo socilsta por gestio dancse na clebrasBo deses contrets. As PP esto visblzadas pelo Decreto-eln# 85/2003, de 26.04 (et. hp fon dg pt pareericspubles-rivades/s5pop-em-7-questoes) Fro gowerno Duro Barrose que sic a contvatacko de PPPs na érea de said. No governa lose Srates,seguese, com forge 2 rea des ransportes. Enquanto que até ha cerca de trés anos, a sua orlentago mals seguida era, por exemplo, a de salvaguardar os direitos as pensdes da seguranca social ", tem prevalecida, desde 2011 ", a orientag3o posta, adatando um entendimento mais restrito do conceito de direitos adquiridos, aio tanto pela madificagdo dos termos da disting¥o, mas por uma diferente avaliagdo da situac30 de facto, Tem-se ultimamente insistido, nomeadamente, em que no € razodvel que os particulares criem expectativas fortes, estruturadoras, de planos de vida, ou de que as condides de atribuigdo das pensbes socials se manterdo, pois nem sequer se poderia dizer que essa manutencdo tenha sido a regra. Assim, poucas veres se geraria aquela confianca prudente e determinante de planas futuras que é protegida pelo principio da confianga. Por outro lado, tem-se insistido em que a garantia destes direitos nunca seria proporcional ao sacrificio de interesses piblicos emergentes, como 0 saneamento das financas ou da situacdio financeira da seguranca social * O contexto da argumentacéo de crise, A secgio final deste texto 6 dedicada, nao ao direito “de crise", mas ao discurso de crise, na medida em que ele continue a ser um discurso argumento. Aideia de crise contém elementos que blogueiam a argumentay0. Os mais importantes destes elementos so, como se disse, o tépico da inevitabilidade (necessidade) das solucées e o do cardter supremo da situacio. Perante 2 inexisténcia de alternativas e/ou a urgéncia das solucées (salus publica extrema et iminens}, a discussio tornar-se-ia ou impossivel ou absclutamente inconveniente. Apesar da continua insinuagdo destes topicos, o discurso juridico de crise continua a ser argumentado. Todavia, a pertinéncia e eficacia dos argumentos tende a sofrer, neste contexto, importantes deslocacdes. Esse é 0 tema dos pardgrafos seguintes. No seu famaso tratado da argumentacio™, Chaim Perelman destaca que 0 contexta da argumentago ~ o problema sobre o qual se argumenta, mas também a moldura cultural, politica © social da argumentago — influi o elenco dos argumentos, bem como 0 peso relativo destes ", Faz, por isso, sentido verificar de que modo este contexto macrossocial de crise se reflete na argumentacao juridica A ctise a que nos referimos tem uma complexa caraterizagao e um perfil evolutivo no tempo. Nao preciso que a caracterizemos detalhadamente aqui, pois nos basta uma breve referéncia ao seu impacto no direito. Ela nasce de um contexto que também ¢ relevante, a da anda liberalizante dos anos 80 do séc. XX. © socidlogo do direito José Eduardo Faria, num texto importante publicado ha uns anos, caracterizou muito bem “as transformacSes qualitativas no direito positivo provocadas pela reestruturago do capitalismo € o impacto sobre os tribunais da integracéo transnacional dos mercados, de consumos, bens, servicos e capitais’. A sua anélise, feita sobre a situago brasileira, pode ser estendida a outros cendrios, como o portugues: “K politica econdmica na América Latina, durante a thima década do século 20, foi monotemstica. Independente de suas origens ideoldgicas ou vertentes partidatias, praticamente todos ‘0s governos da regio converteram a estabilidade monetaria em premissa de suas respectivas gestées, tomando-a como base e justificativa para promover a abertura comercial, revogar monopslios piiblicos, privatizar servigos essenciais, institucionalizar a “responsabilidade fiscal” © implementar projets de desconstitucionalizacéo de direitos [..] Com isso, 0 Judicidrio brasileiro permaneceu como na década ‘Weantes note 65, ‘Veantes nota 6» note 6, v. Porecer de FSR, (PcRr00000471, ero/ono des pe/pgrp.nst/7eOnds2c6tSed5at02568c0003HbAt0/6e47do8Ste025959802565170041eKES?OpanDocumart: NE Vis "Na verdode, ‘a cidsdo deve poder prever 3s intervensBes que © Estado poderd lvar a cabo sobre ele ou erante ele © repererin pera ou adrym ‘sks! *Dies poe elie agin wm acing we recon pa order permanega em todas asst corsequéniasjrdicarenterelevantes.Eetaconflanga& volads sempre que © legsladr live 3 Stuagéer defacto conrtituidar @ derenvalies no pareado consagquiecia jursicas male deefaveriveis do que aquclae com gu 2 atinido posi e devia contr Chaim Perelman Luce Olbrechts-Tyeea, Tate de Farpumentotion - la nouvelle rhéterque, 1958. Ed usade Trottote de'agomenterone. La nuove retorica, com prefécia de Norberto Bobbio, Torna Einau,1989. *v.t9ss, 2015s anterior, sendo cada vez mais procurado por quem foi atingido por todas essas medidas. E, a0 continuar decidindo favoravelmente a esses litigantes, em detrimento das medidas fiscais do Executivo, voltou a ter sua legitimidade sistemeticamente questionada pela burocracia governamental e pelas “forcas de mercado” com base num argumenta simples: como pode almejar ter o direito 2 altima palavra uma stituicdo que controla de modo quase total o acesso aos seus quadros e em cujo ambito os valores da independéncia e da autonomia se sobrepSem a outros com os quais deveria compor, como os da eficiéncia, transparéncia e equilibrio das financas publicas? [..] “Quanto menor a estabilidade macroeconémica, maior a crise de governabilidade - este seria, segundo os governantes, 0 efeita imediato que 0 “idealismo formalista” da magistratura as impediria de nautralizar. Quanto maior @ discricionariedade dos governantes, menor a certeza juridica - este, segundo a magistratura, seria 0 feito corrosivo de uma “razio econémica”, situada fora do dominio das determinacies juridicas © dleixada sem um efetivo controle constitucional” “. Faria refere-se apenas & fase inicial de desregulac3o, que levou a crise. Por isso, as suas cbsorvagées tém que ser complementadas com uma referénci 8 fas0 de crise propriamente dita, em quo a terapéutica neoliberal nao £6 no desaparacou, como ainda foi potanciad pal idcia de quo, face a gravidade da crise tinha que ser aprofundada e acelerada. Realmente, por muito ilégico que isto possa parecer, © senso comum dos analistas econémicos parece ter seguido a velha méxima homeopitica *simila similibus curantur”, segundo a qual um mal se cura com 9 mesmo principio ativo que causou ess0 mal. No ofereco grandos duvdas 2 ningusém quo, na origem da criso do 2008 - que js se podia antecipar uma década antes, quando foram ensaiadas algumas medidas de regulacio dos mercados (sobretudo, dos financeiros) -, estava a desregulac8o radical da atividade econémica, a desprotecao tanto dos agentes mais fracos no processo produtivo (trabalhadores, consumidores, pequencs aforristas) como do interesse puiblico na transparéncia, con‘ianga € salde da economia de mercado. Ora, face & erse, 0 receituério neoliberal fei o de tomar 2 sensiildade dos “mercadas” como 0 elemento decisivo de diagnéstico e de terapéutica,identificando como “mercados", no o equilirio de todos os agentes econémicos, mas exclusivamente os interesses e pontos de vista dos grupos financeiros especuladores, que se manifestavam por meio dos movimentos da bolsa, das grandes ‘empresas de consultoria e de auditoria contabilisticas (the Big Four) " e das agencias de notacto, Daf que as mudancas estruturais da economia com impacto sobre o direito, a que se refere Faria, tenham permanecido, sendo ainda potenciadas na sequéncia da crise. De facto, o que hd de novo em relagdo 8 anélise anterior é que, no contexto de crise, emergiu uma outra ideia com impacto no direito: a ideia de crise, como perturbago extrema. 18 pela sua etimologia, crise refere um momento final e supremo de desarticulagio global, ponda em causa a sobrevivéncia do todo e justificando medidas supremas e urgentes para o salvar ™. Isto veio, em primeiro lugar, revestir de cardter de urgéncia © de imperiosa necessidade piblica as medidas do desregulacio e de ataque a expectativas que jé vinham de tras, mas cuja realizago juridica agora se v8 facilitada pela possibilidade de invocar a “suprema salvaco piblica". Na verdade, 0 novo elemento central do senso comum estabelecido, no seu confronto com o direito, é este da iminéncia e urgéncia ~ ‘ou mesmo, da inevitabilidade - das medidas anticrise de recorte neoliberal Podemos, portanto, organizar a analise do contexto da argumentacio em torno de dois eixos: 0 impacto sobre a argumentagao juridica (i) da cultura neoliberal e (i) o impacto da cultura “de crise”. José Eduardo Faris (2 outro) soords “Direto © jigs no abs HK» eres da ustlen no Bese” apresentagso no ‘Semindro “Dieta e justice no sé XK", CES, 292 31 de Malo a 1 de Junho, 2003) (em Independencia dos jlzes no Basi ospetos relevontes, cota! e recomendortes, Rect, ‘G2, Bagaco, 2005, hp: gslop.org.b/arqulvs{publiccoes/independercia dos_llzes no Bresi-porcugues pf), pp- 23,28. Alina ales deen ta Real compatriot diverts pla modo income ou fatblast oi cslram a stuagio de grandes empresas finenceras nore-americanae: vejece 0 que sa paseou com ae audtorias de Est & Noungae lehman Brathen’helding eximologa: do atm ue, do grego Wiss, de Krnen, separa, jlga:Indo-ewropeu hel, eutua,ruture stémlca (tipscrates: um ponta de evolugto de uma daengs em cue o pacente ext entre cure [renqulfrio] ea more [rutura definitive do desequifvo), aqui, ume segunda nha da sentido: um momento da decs¥o[logo, © momento do juBo, da deseto entre ios opests, da explcagdo da dedstol; cme, rtura da erdem, eepesclo da order (gene, pues, prego do sangue). Em sem, "hrsaln, que 6 aparece impessoalmente "es lise extéiminante eameasadore uma cise, dice dacive, O contexto argumentative neoliberal. J antes se disse que 0 contexto neoliberal tem um tom revoluciondrio, de subversio de InstituigBes e posigbes adquiridas que impediriam a plena liberdade dos mercados. Estas situagves no so aquelas que o liberalism cléssico protegia — as posigdes adquiridas pela ldgica dos mercados e garantidas pelas instituigées préprias destes (propriedade, contrato) - , mas as posig6es garantidas pelo Estado na vigéncia do modelo de Estado Social. Dai que, como ja se disse, este radicalismo revoluciondrio seja seletivo em relagio &s situagBes garantidas, concretizando-se na garantia de certos direitos e na precarizaco geral de outros. Paralelamente, © principio da confianga abrange 2 propriedade e os direitos provindos de contratos entre particulares, mas nio as prestagBes sociais do Estado, O contexto argumentative “de crise’ J8 antes so disse que © conceito de crise remete para a ideia de perturbagio suprema dos equilfbrios. Isto promove as idsias de que a crise representa uma situacdo tinica nunca experimentada @ irrepetivel no futuro (ou porque se supera, ou porque destréi tuda). E, com isto cria um ambiente argumentativo favordvel Squilo que Ch. Perelman chama o “lugar da qualidade”™, ou seja, uma constelaglo de argumentos que se tiram a partir da natureza diferente, nova, da situaglo. Os argumentos tirados da qualidade apontam para 0 carater revolucionério da situagdo de crise e das medidas que Ihe visam responder. Estas destacar-seiam da normalidade, do estabelecido, do habitualmente consensual, realcando que, perante a excecionalidade da situagao, a resposta tem que abandonar 0s formatos estabelecidos pelo maior numero, repousando na auteridade dos (poucos) melhores. Em cantrapartida, o lugar da quantidade destaca a preferéncia pelo normal, pelo que acontece o mais das vezes, pelo estabelecido e permanente, o consensual, 0 previsivel, aquilo em que se confia, Estes dois lugares tém protagonizado a argumentacio jurdice “de crise”. Normalmente, os que argumentam a favor das solugées juridicas ordindries usam argumentos produzidos a partir do lugar da quantidade. insistem na justiga cistributiva, no que ela tem de observancia do principio da igualdade, encarada sincranicamente (*tratarigualmente as situagies atuaisiguais") ou encarada diacronicamente ("nao akterar 0 estabelecido”, *respeitar o adquirido”, “agir de forma provisivel", “no frustrar a confianga") Por sua vez, os que defendem solugies extraordinsrias para o momento de crise saientam como esta é qualitativamente diferente, no podendo ser comparada (equiparada) 3 situagdo ordinéria, exigindo solugdes desiguais, novas, imprevitas. O principio da justiga ndo desaparece totalmente; mas, aqui, a justica que se evoca ¢ a justia distributiva, muito préxima da “graga", cuja Unica franteira felativamente & injustiga € que, embora no deva obedecer as ragras da justica ordindria (ou distributiva, simplificando um pouco), no pode ser completamente desregrada, ou arbitréria. Esta 6, sem divida, a grande diferenca tépica entre as duas posigées do discurso “de crise”. Note-se que, também aqui, a argumentacio a favor da crise utiliza seletivamente os dois lugares. De facto, o lugar da quantidade, sobretudo o argumento da habitualidade e da conflanga, sto usados para defender as posigbes daqueles que tem posigbes formalizadas em contratos. Neste dominio do formalmente contratado, os que defendem medidas excecionais de precarizacSo para posicBes estabelecidas previsiveis mas no formalmente contratadas (v.g, prestazdes ou garantias sociais” do Estado}, ja argumentam com a quantidade (previsiblidade, confianca) para situag6es fixadas por contrato. AQui, todos os argumentos se baselam na “santidade dos contratos’, na ‘conilanga dos parceitos privados do Estado”, na inaterabilidade da “base negocial”. Esta dualidade de usos do lugar da qualidade dé, por sua vez, lugar a0 recurso, pelos adversérios, a um segundo nivel do ugar da quantidade: tem que haver um Uso consistente dos argumentos; se se usa um argumento nuns casos, ele deve ser usada também nos outros casos em que & igualmente pertinente * pars ests questio na berazme sitacntct, Wiliam Novak, People’s welfare. Law and ragulaton in 19° century's “Amarce, The North Carolina Univesity Pres, 1996, Para Portugal, AM Hespana, Gulando a mia invswel Dreitos,Estogoe lei noliberalam monérqice portugués, Coimbra, medina, 2008 * como a garenta de salvos miamos, de pevodos de descanso, deindemnizaBes por despadimento A estrutura interna dos argumentos “de crise”, Detalhemos um pouco este contexto argumentative, bem como alguns dos “lugares” argumentativos os argumentos que af tam a sua sede (a) O lugar da estabilidade e da confianca. Podemos antecipar que a emergéncia de uma situagio imprevista e extrema afetard, em primeiro lugar, 0s argumentos que se podem tirar a partir do “lugar da quantidade” *. Por um lado, a percesio da volatiidade das situagées converters a estabilidade de situagdo normal em situaglo anormal e, com isso, tenderé a circunscrever o ambito da previsibilidade e da confianga, Assumindo que se est numa situagio de crise, inverte-se o dnus de argumentar, recaindo agora, no sobre quem invoca a qualidade anormal da stuagio, mas sobre quem pretende que se esté numa situagdo ordinaria, da mesma qualidade do que a anterior. Assim, todos os argumentos que assentam na presungdo de normalidade ou continuidade tendem a enfraquecer. € o que acontece com a argumentag&0 a partir + Dabondade de manter as situagBes; '* Da consolidagdo das situagtes perfeitas (adquiridas [direitos adquiridos|, julgadas [caso julgado], estabelecidas [estabilidade das coisas decididas, forca normativa do habitual, do costumado]});, * Da assimilacao entre o real € 0 previsivel; * Dorespeito alargado pelas expectativas Mais indiretamente, esta degradacio da “normalidade” desvalorica os argumentos a partir da forma, a partir da generalidade, a parti das regras e dos princpios, Pois as situagBe de crise tornam mais importante 2 substancia concreta de cada situag#o, a sua particularidade ou diferanca, 2 sua singularidade. Em geral, perder os argumentos tirados do principio da confianga e da igualdade. Em contrapartida, a percecio de que o imprevisto e o extraordindrio se tornaram na regra leva a dar mais peso aos argumentos a partir: * Damudanca; # Da imprevisibilidedes © Da singularidade. Mais indiretamente, a crise valoriaa os argumentos a partir da substancia, a partir da equidade como juizo concreto, a partir das circunstancias do caso, a partir da inovagao (da revolucao). Em principio, ganham forca os arguments tirados do principio da proporcionalidade, coma comparag0 dlinamica da substancia das stuagées. © lugar da igualdade, que inclui o argumento da confianga, pertence categoria dos lugares meta-legalstas, porque pressupde que o direito obedece @ principios essenciais, que escapam & vontade do legislador. Um destes principios seria o de que devem ser respeitadas as espectativas juridicas existentes, para certas pessoas, no momento da constituiggo de um estado juridico Independentemente da ulterior determinag3o do conteido de duas cléusulas (certas pessoas, j0 ™) deste enunciado, o principio autoriza argumentos como “o que vale em geral deve valer no particular” (argumento a genero ad speciem), “o que valeu antes deve valer depois” (argumento ab iudicato ad iudicandum), bem como os argumentos a simile, a pari, ab exemplo. Estes argumentos podem ser qualificados (restringidos) pelas clausulas ceteris paribus, vebus sic stantibus © mutotis ‘mutandis. Ou seja, pode ser estabelecida uma condicso de validade do argumento, que consiste ou (i) fem que ele sé é valido se 0 contexto factual (da hipdtese) se mantiver igual (ceteris paribus, rebus sic stontibus); ou (i) que a estatuigSo deve ser modificada em correspondéncia com as modifcagées que ocorram na hipétese (mutatis mutandis). S8o estas cldusulas ~ que abrem para a consideracio da qualidade ~ que slo potenciadas na situaglo de crise. * Lugater © argumentor oconceit de trica, caja sentido ce pode confeicna ctada obra de Ch, Perelman. ‘ch Prsiman, Tot. ci, p91. * 0 que quer dizer momento de sua constitu ? Em que se geraram expectativas ? fm que se team gerado ipectativas para uma pesioe prente ? Em que se adqulram direitos (contrtualmente, por ato consttutva de dvetos Divetos ign (fundamentals? © lugar da confianga ¢ um lugar conservador e meta-legalista (anti-decisionista). Na sua formulacdo mais forte, consolida as solucbes juridicas (estatuigdes), pois ndo prevé ou desconsidera a relevancia das alteragdes dos factos (da hipdtese). Na sua formulag3o mais fraca, especifica que a estabilidade da hipétese foi pressupasta, apenas proibindo a alteracio do conteddo normative, ao proibir, como arbitraria, a modificacéo da relacgo existente entre os factos e @ solugdo juridica. Supondo, porém, a alterag3o da soluc3o juridica se os factos mudarem: a estatuicgo seré diferente 6 e sempre qu a hipétese for diferente, Ejustamente esta imutabildade do conteddo normative que limita 6 legslador, a0 impedir que possa ser considerada uma madificagdo da norma por um ato imprevistve, arbitririo, de vontade do logislador. Na sua formulagao forte, o argumento é formalista, pois considera que a categoria formal que define a hipétese é fixa (ou insensivel as alteragdes do contexto). Na sua formulacso fraca, o argumento 6 substancialista, pois a realidade concreta (o contexto) é relevante para a definicdo da hipétese. No primeiro caso, o ambito (dominio da fung0) da estatuiggo é insensivel ao contexto; no segundo caso, pelo contrério, 6 sensivel a este. Na formulacio forte, o principio da confianca nao é hoje aceite. Em contrapartida, caracterizava os direitas formalistas, como o lus civile romana. No qual, por exemplo, a actio ex stipulatu era concedida independentemente das circunstancias concretas da declaracao nnegocial (stipulatio: metus, dolus, error), tendo sido apenas o diteito pretorio que introduziu expedientes (v.g., exceptiones) que permitiam tornar relevante o contexto para negar, em funcao dele, a concessii da ago, No cantexto de uma situaga de crise, o principio da confianga favorece a manutencio do diteito e das solugfes juridicas anteriores 3 crise, pois seria nessa base que as pessoas tinham definido 9s contetidos © consequéncias das situagées juridicas em que estavam. Na formulago mais fraca, as, expectativas tém por base a manutensdo do contexto, mas jé do a sua alteragdo anormal = imprevistvel, pelo que, ocorrendo uma alteraco extraordindria das circunstancias, a alteracéo da solugéo juridica ndo ofenderé essas expectativas. Tal alteragdo corresponder até a uma das formulagées do principio (versio mutatis mutandis): uma alteragio (grave e nia previsivel) das circunstancias provoca uma alteracio da solucio. (b) O lugar da igualdade. (© lugar da igualdade também é um lugar meta-logalista, que pressupde que o dircito obedece a principios superiores 8 vontade do legislador, um dos quals seria o respelta pela igualdade. O respeito pela igualdade determina que as situacbes iguais (hipéteses) tenham a mesmo solugo Juridica (estatuigSo) e, a contrario, que (sé) situagées diferentes tenham (sempre) solucbes diferentes. Deste principio decorrem as argumentos a pari, a simile (analogia), bem como o argumento a contrario. Neste principio existe @ indeterminagao quanto a0 que é igualdade, ou seja, sobre qual o conjunto dos atributos relevantes para determinar a igualdade de situacSes. Como a igualdade implica a definigao de uma espécie (dentro da qual as situacées concretas slo iguais), a formulacgo antecedente equivale a dizer que a determinagdo do sentido de igualdade consiste em definir a identidade da espécie de hipoteses a que deve corresponder a mesma estatuicso. principio da igualdade relaciona-se com o principio da confianga na medida em que as expectativas também assentam na igualdade das solucées para hipoteses iguais, Por isso, também & um principio conservador que impede que, por razdes conjunturais ou de oportunidade, de politica,

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