HARAWAY, Donna - RAÇA - Doadores Universais de Uma Cultura Vampira - in - Relações Multespécies em Rede.2017

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Marjotto Tavares, Projeto grfico/diagramagio: Marcos Kazuyoshi Sassaka Capa - criagdofimagem: Elisa Riemer (foto cedida pela artista Fernanda Magalhies) Capa - foto: imagem da organizadora Patricia Lessa, fotografada pelo Estéfano Lessa (Capa - arte final: Marcos Kazuyoshi Sasaka Ficha catalogrifica: Marinalva Aparecida Spolon Almeida (CRB 9-1094) Fonte: Minion Pro, Calibri ‘Tiragem - versio impressa: 500 exemplares Dados Internacionais de Catalogagao-na-Publicagao (CIP) (Eduem - UEM, Maringé ~ PR,, Brasil) [R3K2Kelaoes mniespécles em sede feintmos,animalisos vega / Patri ‘Adans: ady Datiel de Alesda Pato Kiar Maing: Ber, 2007 05 pci Lesa, Dolores Gallo onganizadoraspreficio Car ISBN 97H 5 7608-7155 2. eminismn 2 Animaismo. 3. Vegans. 4 Arte 5. Conporeidae, ess, Patricia, ng, Galind, Dolores ong Adams, Carol pe IV Kajce, Danie de Alka Po, adh. Tl, Editora filiada & tears inna ce Eduem - Editora da Universidade Estadual de Maringé ‘Av. Colombo, 790 -Bloco 40 - Campus Universtério '87020-900 » Maringi-Parana - Fone: (44) 3011-4103 ‘wovweduer.uem.br -eduem@uem.br SUMARIO PREFACIO Carol Adams. Daniel de Almeida Pinto Kirjner (tradugo)...... rar Stancuromree 9 APRESENTAGAO DOS NOVOS DESAFIOS FEMINISTAS Patricia Lessa, Dolores Galindo .. wv PARTE! NOVOS DESAFIOS DOS FEMINISMOS: TRANSITOS ENTRE TEORIAS E ATIVISMOS. 1 NARRATIVAS VISUAIS EM CAMPANHAS DE CERVEJA! SEXISMO, ESPECISMO B RACISMO Patricia Lessa, Sarah Mendes Toso 2a 2 MAS COMO TODA OPRESSAO ESTA CONECTADA? Tatiana Nascimento dos Santos... o z — 37 3 Raga Donna Haraway. Sandra Azeredo (tradugao). a7 PARTE II ARTE, ANIMALISMOS E FEMINISMOS 4 ALIANGAS MULTIESPECIE E SUBJETIVAGGES TRANS-HUMANAS: LEITURAS CRUZADAS A PARTIR DA PERFORMANCE “QUANDO TODOS CALAM’, DE Berna REALE, Dolores Galindo, Danielle Milioli, Wiliam Siqueira Peres ... camara 95 RELAGOES MULTIESPECIES EM REDE 5 A LITERATURA DE PROTESTO VEGETARIANO-FEMINISTA NA OBRA FRANKENSTEIN, DE MARY SHELLEY Wesley Felipe de Oliveira 6 ENTRE A. GUA DE MIKOLKA’ & A VENUS HOTTENTOT: RELAGOES DE GENERO E ESPECIE NAS CRIAGOES SOCIAIS DA VIDA E DA MORTE Daniel de Almeida Pinto Kirjner ...... 7 Patricia Giseli ~ Texto Elisa Lucinda PARTE II 0 VEGANISMO EM CONEXAO COM Os FEMINISMOS 8 AS RELAGOES (TRE O SEXISMO E A ALIMENTAGAO NA INDIA, Natalia Fernanda Ramos de Oliveira, Eduardo Simées Florio de Oliveira .. 9 VEGANISMO, LIBERTAGAO ANIMAL E FEMINISMO: CONEXGES ENTRE DISCURSOS E MOVIMENTOS DE LIBERTAGAO Lorena Monteiro, Loreley Garcia... 10 Raizes DO ESPECISMO: UMA ANALISE COMPARATIVA ENTRE 0 RACISMO EO PRECONCEITO INTERESPECIES: Maria Izabel Vasco de Toledo... 119 137 147 155 165 191 SUMARIO 11 Escriros Angela Donini PARTE IV ECOFEMINISMO E ANIMALISMO 12 FILOSOFIA ECOF WARREN Daniela Rosendo. 13 ECOFEMINISMO EA COMPLEMENTARIDADE ENTRE AS VOZES MORAIS NAS BIOETICAS ANIMAL E AMBIENTAL Tania A. Kuhnen. 14 OUTROS DOCES BARBAROS: INVASOES NAO HUMANAS DE UMA SOCIOLOGIA DOS AFETOS Laura Luedy 15 INJUSTICIA, IDENTIDAD, DEMANDAS ¥ ACCION COLECTIVA - MOVIMIENTO ANIMALISTA DE MEDELLIN, COLOMBIA 2012 : A ETICA SENSIVEL AO CUIDADO, DE KAREN J. Daniela Garcia Cano, Verdnica Espinal Restrepo SOBRE OS AUTORES 205 219 239 263 279 301 3 Ra¢a: DOADORES UNIVERSAIS EM UMA CULTURA VAMPIRA‘* Donna Haraway. Tradugo: Sandra Azeredo DOADORES UNIVERSAIS EM UMA CULTURA DE VAMPIROS: TUDO EM FAMILIA. CATEGORIAS BIOLOGICAS DE PARENTESCO NOS ESTADOS UNIDOS DO SECULO XX Sea face humana é a obra prima de Deus aqui entio ela aparece em mil fatidicos registros (SANDBURG, 1955, p. 3, grifo nosso) Raga é um trauma que produz fraturas no corpo politico da nagao ~ © nos corpos mortais de seu povo. mata deliberada ¢ desigualmente; © raga privilegia indizivel e abundantemente. Assim como a natureza, raga tem muito a que responder; ¢ a etiqueta ainda é valida para ambas as categorias. Raga, assim como a natureza, ¢ 0 coragio de estérias sobre as origens e propésitos da nagao. Raga, ao mesmo tempo uma quimera fantastica e uma presenga inevitavel, assusta me; € nao estou sozinha nessa patologia histérica paralisante do corpo e da alma. Assim como a natureza, raga é 0 tipo de categoria sobre a qual ninguém é neutro, ninguém ¢ ileso, ninguém esta certo de seu chao, se é que existe um chao. Raga é um tipo peculiar de objeto de conhecimento e de pratica. Os significados da palavra sao instaveis ¢ proteicos; o status do referente da palavra oscilou ~ e ainda oscila -entre ser considerado real, com raizes no corpo natural, fisico, e ser considerado ilusério € totalmente construido socialmente. Nos Estados Unidos, raga imediatamente evoca as gramaticas da pureza e mistura, combinacio e diferenciagao, segregagao e ligagdo, linchamento e casamento. Raga, assim como natureza € sexo, sao repletos de todos os rituais de culpa e inocéncia nas estérias da nacio, familia e espécies. Raga, assim como a natureza, é sobre raizes, poluigao e origens. Uma nogao inerentemente duvidosa, raga, assim como sexo, é sobre a pureza da linhagem; a legitimidade da passagem; e o drama da heranga de corpos, propriedade e estérias. 1A tradugio trata-se do texto: Race: universal dons ina vampire culture incluso no capitulo 3 da obra: Modest Witness@Second_Millennium. FemaleMan©_ Meets. OncoMouse™: feminism and technascience (HARAWAY, 1997). CIES EM REDE LAGOES MULTIES Acredito que, assim como a natureza, raga assombra a nés que nos denominamos americanos/as. ‘Todas nossas negagGes racionais apenas aprofundam o corte na ferida supurada de uma historia racializada do passado e do presente. Herdando 0 furacdo que ela semeou, tendo como sementes fundadoras a escravidao, o desapossamento e 0 genocidio, assim como a imigragao, a democracia a liberdade, a reptblica dos Estados Unidos é uma sociedade consumida por za racial e negagao racial. Portanto, os Estados Unidos sio também ideias de pur repletos de fascinagéo com mistura racial e diferenga racial. Fascinac mistura e unidade é um sintoma da preocupagio com pureza e decompo E, como qualquer sociedade capitalista em expansao que precisa continuamente destruir o que constréi e se alimentar de todos 08 seres que percebe como naturais ~ para que suas estratégias de acumulagao de riqueza possam continuar a expulsar © invélucro de catastrofe -, os Estados Unidos se consomem com imagens de decadéncia, obsolescéncia e corrupgao. Nao é de admirar que seus parques naturais © suas estérias de jardins ¢ selvas tenham sido mais terapeuticamente cruciais no tratamento da inocéncia nacional do que quaisquer outros de seus sacramentos civis, 0 com Ao. Como mulher branca, profissional, de classe média nos Estados Unidos, tomada pela fascinagio com a rede de fungos da natureza, nagio, sexo, raga € sangue na historia dos EUA, por tris do que escrevo ha uma negagao, um encantamento, um alibi, um tique ou sintoma. Por tras de uma lista de adjetivos qualificatives pessoais ~ branca, crista, apéstata, profissional, sem filhos, classe meédia, de meia idade, bidloga, tedrica cultural, historiadora, cidada estadunidense, do final do século XX, fémea ~, escrevo sobre o universal, isto é, sobre ‘o humano. O humano é uma categoria que faz uma luminosa promessa de transcender o trauma do despedagamento do particular, especialmente aquele particular nao coisa denominado raga. Como todos os sintomas, minha lista neurética faz uma falsa promessa de me proteger da confusio da categoria, do medo irracional que impulsiona 0 tique, e da corrupgao. Cambaleando além dos sintomas dos primeiros parigrafos, entretanto, reconhego que uma figura especifica anima este ensaio. A figura é 0 vampiro: aquele que polui linhagens na noite de nuipcias; aquele que efetua transformagées de categorias por meiode passagens ilegitimas de substancias; aquele que bebe e introduz sangue num ato paradigmatico de infectar 0 que se arvora como puro; aquele que evita 0 culto do Sol e faz seu trabalho 4 noite; 0 que é morto-vivo, desnaturado e perversamente incorruptivel. Neste ensaio sou ensinada pelo vampiro e minhas perguntas sao sobre os vetores de infeccao que perturbam as categorias raciais nas construgoes bio-cientificas da humanidade universal no século XX. Para o mal ou para o bem, vampiros sao vetores de transformagao de categoria num inconsciente nacional histérico racializado. Uma figura que tanto promete como ameaga a mistura racial e sexual, 0 vampiro se alimenta do humano normalizado, e 0 monstro considera tal alimento contaminado nutritivo. 48 3 RAGA O vampiro também insiste no pesadelo da violéncia racial por tras da fantasia de pureza nos rituais de parentesco*. Bimpossivel ter um julgamento estabelecido sobre vampiros. Definidos por sua ambiguidade categorial e mobilidade perturbadora, vampiros nao ficam facilmente nas caixas rotuladas de boas e mas. Sempre transportado e deslocado, 0 solo nativo do vampiro é mais nutritivo e mais apavorante do que isso. Profundamente moldadas por ideologias assassinas desde sua popularizagdo moderna nos relatos europeus do final do século XVIII - especialmente racismo, sexismo e homofobia -, estérias dos monstros-vivos também excedem e invertem cada um daqueles sistemas de discriminagao para mostrar a violéncia infestando vida e natureza supostamente saudaveis e a promessa revitalizadora do que se supe ser decadente e contra a natureza, Assim que a pessoa se sente segura em condenar 0 monstro dentuco pelas violagées da integridade do corpo e da comunidade, a histéria a forga a se lembrar de que © vampiro é a figura do judeu acusado do crime de sangue de poluir as nascentes do plasma germinal europeu e causar tanto a praga do corpo como a decadéncia nacional, ou que ele é a figura da prostituta doente, ou o pervertido do género, ou os alienigenas e viajantes de todos os tipos que langam duvidas nas certezas dos autoidénticos ¢ bem enraizados que tém direitos naturais ¢ lares estaveis. Os vampiros sao os imigrantes, os deslocados, acusados de chupar 0 sangue dos proprietarios de direito da terra e de estuprar a virgem que deve corporificar a pureza da raga e da cultura, Entéo, numa orgia de solidariedade com todos/as os/as oprimidos/as, a pessoa se identifica firmemente com as/os proscritas/os que devem ter sido os vampiros nas imaginagées ardentes dos membros honrados das comunidades organicas sélidas, naturais, verdadeiramente humanas. Mas entdo a pessoa é forgada a se lembrar de que o vampiro é também a figura saqueadora da reprodugao desnaturada do capital, que penetra todo ser sélido e 0 chupa até secar na produgao luxuriante e acumulagao amplamente desigual de riqueza. No entanto, a conjungio de judeu, capitalista, queer e alienigena é carregada com genocidio literal demais para permitir que mesmo o lamento contra 0 capital transnacional transmita a velha convicg¢ao de certeza moral e verdade histérica. O vampiro é 0 cosmopolita, 0 que fala linguas demais e nao pode se lembrar da lingua nativa, e o cientista que forga a abertura de dogmas paroquiais dos que estao certos de que sabem 0 que a natureza é, Em suma, uma vez tocada pela figura desse monstro, a pessoa é forgada a habitar 0 campo semantico agitado das estérias de vampiro’. Raga, natureza, género, sexo parentesco devem ser pensados juntos. Pontos iniciais para se entender 0 discurso sobre 0 parentesco nos Estados Unidos incluem Schneider (1968) ¢ Zinn (1978) entre outros. O nexo de raga é fortemente trangado com propriedade, tanto em termos de transmissao de substincia corporal como de transmissio de bens ¢ privilégios mundanos, Para um argumento hist6rico e legal exaustivo sobre © status racial branco como uma forma persistente de propriedade ainda reconhecida na lei dos Estados Unidos, ver Harris (1993), 3. O primeiro romance de vampiro em inglés foi publicado em 1847. Para a identificagio do vampiro com judeus, estrangeiros, capital, mobilidade, cosmopolitismo e muito mais, ver Gelder (1994). Comegando sua est6ria em 1879, Geller (1992) discutin as ligagdes entre antissemitismo politico, sifiise seu estudo médico 49 RELACOES MULTIESPECIES EM REDE Nessas zonas, associag6es € dissociagées nao convidadas vao certamente desfazer © senso de si mesmo, que é sempre pré-rotulado caprichosamente para impedir 0 escrutinio moral, epistemoldgico e politico. Assim, preciso da figura morta-viva ¢ nao inocente do vampiro para entrar nas construgGes carregadas da unidade humana e diferenga racial nos Estados Unidos do século XX. Pintado em interagdo com uma versio anterior deste capitulo, o quadro Transfusions de 1995, de Lynn Randolph’, estabelece 0 procedimento de meu texto visual. O corpo vestido de azul de uma bailarina est prostrado sobre uma mesa de operagio branca e nua, seu pescogo sendo penetrado por um morcego vampiro cujos vasos das asas pulsam com 0 sangue vermelho dela. Um saco de transfusdo num suporte médico mistura a circulagio da mulher e a do morcego, que se ligam, rodando em repetigdes fotograficas (do tipo time-lapse) até a camara do teleoperador no quadrante superior direito do quadro. Dentro da camara, operando seus controles, esta a figura dentuga do Conde Graf Orlock, de Nosferatu, o filme mudo de EW. Murneau, do expressionismo alemio, de 1922, que foi o primeiro filme de vampiro®. As unhas das maos do doutor-vampiro louco sio garras, € a camara esta envolta na luz esterilizante de azuis, roxos e ultravioletas. O campo preto do quadro é dividido transversalmente pelo branco brilhante da tébua e pontuado pelas reticulagées e pogas de sangue vermelho. O trafico surrealista de informatica e biologia nos fluidos circulantes dos cabos e alavancas da maquina de controle remoto, os morcegos dangando e a mulher prostrada insuflam 0 campo visual. Lembrando-me do coquetel téxico do organicismo, antissemitismo, anticapitalismo e anti-intelectualismo que se filtra por meio das estérias de vampiro, néo posso ver 0 quadro de Randolph como uma simples afirmagao da mulher e acusagao do tecnovampiro. Ao invés disso, a partir de sua pratica de realismo metaforico, Randolph usa a mitologia do ciborgue vampiro para interrogar as mortas-vivas zonas psicanaliticas, espirituais e mundanas para onde convergem a biomedicina, a tecnologia de informagao e as estérias tecno- (e dermatologia), doutrinas de hereditariedade, crengas sobre reprodugio de doenga, género e sexualidade, aculturagéo/assimilagao ¢ separagio étnica, prostituigio e pobreza entre as populagdes deslocadas da Europa Central, medo e fascinagio relacionados as artes miméticas e mascaradas, praticas de passing, ritwais contestados de circuncisio, trifico de dinheiro e acusagées de idolatria, poluicao de sangue atribuida a judeus ¢ leituras aterrorizantes de Mein Kampf, de Hitler, eo clissico Volkish, de Dinter (1917 apud GELLER, 1992), bem como os tropos anticapitalistas e antissemitas de vampiros de Marx. Geller (1992, p. 23) argumenta que [uu] as representacdes tanto da sifilis como dos judeus sio informadas por construgoes particulares de género e sexualidade. Na verdade, nenhuma marca de identidade ~ tal como doenga, raga, género, sexualiciade pode ser determinada sem o reconhecimento de como ela interconecta com as outras’, Para localizar © ‘vampiro por meio do discurso queer eo problema da representagao lésbica, ver Case (1991). 4 Para conhecer o trabalho de Lynn Randolph indicamos o site: htip://wwwlynnrandolph.com/. 5 Nosferatu foi ligeiramente baseado no romance Dracula, de 1897, de Bram Stoker, a fonte dominante da imagem do vampiro na cultura popular do século XX. O pantano antissemita, sexualizado de imagens em {que as estorias de vampiro floresceram silenciosamente, empapot 05 tecidos de Nosferatu, desde o conde Orlock de dentes de rato, que controlava os roedores que trouxeram a peste a Bremen, até a palavra Nosferatu, derivada de uma palavra eslava, ligada a conceito de transportar a peste, até a venda ilcita de propriedade alema,significando a ameaca ‘estrangeira' de uma cidade alema “inocente, um perigo mediado pelo trifico de dinheiro, até a mobilizagio do Volk para cagar 0 monstro, atéa virgem de coragio puro que deve se sacrificar para salvar 0 povo (GELDER, 1994; MELTON, 1994), 50 3 RAGA orginicas de parentesco. Esse é 0 sistema de intercambio de parentesco em que género, raga e espécie — animal e maquina - estao todos em jogo. Juntando os fluidos pulsantes de sangue e dados, Transfusions nos guia por meio da interrogacao de doadores universais. Abordo o universal por meio de um discurso particular, a ciéncia da biologia. A tarefa epistemolégica e técnica da biologia tem sido produzir um tipo historicamente especifico de unidade humana, a saber, membros de uma tinica espécie, a raga humana, Homo sapiens. A biologia estabelece discursivamente ¢ atua naquilo que sera considerado humano em dominios poderosos de conhecimento e técnica. Um produto impressionante dos primérdios do discurso da biologia, raga, assim como sexo ¢ natureza se referem aos aparatos para fabricar e distribuir vida e morte nos regimes modernos de biopoder. Como a natureza ¢ 0 sexo, pelo menos desde o século XIX, a raga se constituiu como um objeto de conhecimento pelas ciéncias da vida, especialmente a biologia, a antropologia fisica e a medicina. As instituigdes, projetos de pesquisa, instrumentos de medida, praticas de publicagao e circuitos de dinheiro e pessoas que moldaram as ciéncias da vida foram as ferramentas de maquina que fabricaram ‘raga’ como um objeto de conhecimento cientifico nos uiltimos 20 anos. Entao, no meio do século XX, as ciéncias bioldgicas e médicas comegaram a renegar suas realizagdes mortais e a trabalhar como Sissifo, rolando morro abaixo a pedra da raga, tirando-a das vizinh: as Nos tempos présperos de pés-Segunda Guerra para alojar as novas categorias da boa ciéncia natural. Tudo previsivel demais: 08 novos universais, assim como os subtirbios ¢ os laboratérios, eram todos brancos demais. A biologia nao € © préprio corpo, mas um discurso sobre o corpo. ‘Minha biologia, uma expresso comum na vida cotidiana dos membros da classe média branca estadunidense, nao é a prépria suculenta carne mortal, mas um signo linguistico para uma estrutura complexa de crenga e pratica por meio da qual eu e meus/minhas concidadaos/as organizamos uma grande parte da vida. A biologia nao é também um discurso universal livre da cultura, pois ela tem consideravel poder cultural, econdmico e técnico para estabelecer 0 que sera considerado como natureza por todas as partes do planeta Terra. A biologia nao é 0 discurso de todo mundo sobre carne, vida e natureza humana, animal e vegetal; na verdade, ‘carne, ‘vida’ e ‘natureza’ nao esto menos enraizadas em histérias, praticas, linguas e povos do que a prépria ‘biologia. Bidlogos/as nao sio ventriloquos/as falando para a propria Terra ¢ todos/as seus/suas habitantes, relatando 0 que a vida organica realmente € em toda sua evoluida diversidade e ordem embebida no DNA. Nenhum mundo-objeto natural fala sua verdade livre de metéfora e livre de estéria por meio da objetividade sébria da ciéncia livre da cultura e, portanto, universal. A biologia nao alcanga, voltando por meio das brumas do tempo, Aristételes ou além dele. Ela é, ao invés disso, uma rede complexa de praticas semiéticas-materiais que emergiram em torno dos iiltimos 200 anos, comegando em ‘o Ocidente’ e viajando globalmente. A biologia emergiu no meio das principais invengdes e reformulagées das categorias de nagao, familia, tipo, civilidade, espécie, sexo, humanidade, 51 SPECIES EM REDE RELAGOES MULT natureza e raga. O fato de a biologia ~ em todas as camadas da cebola - ser um discurso com uma histéria contingente nao significa que seus relatos sejam meras questées de opinia ou meramente estérias. Significa sim que os tecidos materiais- semiéticos estejam_ inextrincavelmente interligados. Os discursos nao. sao apenas palavras; eles so as praticas materiais-semidticas por meio das quais sao constituidos tantos os objetos de atengdo como os sujeitos cognoscitivos. Hoje um discurso transnacional, como as outras ciéncias naturais, a biologia é uma pratica de produgio de conhecimento que eu valorizo; quero participar dela e torna-la melhor; ¢ acredito que seja cultural, politica e epistemologicamente importante, E importante lutar por uma biologia adequada para a vida, assim como por uma natureza adequada para a vida. Ambas as lutas requerem que pensemos longa e fortemente sobre as permutacées do discurso racial nas ciéncias da vida neste século, Este capitulo é uma pequena contribuigio nesse sentido. Nos Estados Unidos do século XX, as categorias da biologia frequentemente se tornam doadoras universais nos sistemas circulatorios de sentidos ¢ praticas que conectam a familia, o Estado, 0 comércio, a natureza, a diversio, a educagio ea industria. Aparentemente, as categorias livres de cultura séo como 0 tipo sanguineo O; sem um marcador indicando sua origem, elas viajam por meiode muitos tipos de corpos. Quando ¢ feita sua transfusio para o corpo politico, essas categorias dao forma ao que milhées de pessoas consideram como o senso comum no pensamento sobre a natureza humana. Neste capitulo, presto atengio a trés configuracées do pensamento biocientifico do século XX sobre as categorias de unidade e diferenga que constituem a espécie humana. Afirmando ser incomodada por categorias claras e distintas, entretanto, trabalharei nervosamente com uma tabela cheia de palavras, um artificio taxondmico grosseiro para manter minhas colunas cuidadosamente divididas e minhas linhas sugestivamente ligadas. A tabela é um esforgo de mapear as categorias de parentesco bioldgico do século XX que acredito serem criticas no discurso racial das classes médias profissionais nos Estados Unidos, mas as categorias tem poder muito além desses circulos. Deixando a maioria das categorias no quadro sem desenvolver, vou trabalhar para controlar uma linha narrativa trangada. A estoria ressoa de imagens de faces racializadas, que sio membranas esticadas, estendidas transversalmente no andaime de relatos de evolugao biolégica e tecnoldgica conjunta. A estéria caminha da familia de primatas, renascida por taxidermia nos dioramas do Museu Americano de Histéria Natural em Nova York na década de 1930; para a primeira familia universal vista na década de 1960 vivendo seu modo de vida compartilhado na savana africana na aurora da espécie humana; para a multicultural SimEve, gerada pelo computador na capa da revista Time (THE NEW FACE OF AMERICA, 1993), Tentarei mostrar como as mutagées das catego! biocientificas de raga para populagao para o genoma codificam 0 que pode contar como humano, e, Portanto, como progressivo, nos corpos civis e pessoais de americanas/os dos Estados Unidos no século XX. 52 3 RAGA RACA O ponto de partida para minha estéria é 0 discurso racial que acontece no fim do século XIX na Europa e nos Estados Unidos. Como afirmou o historiador George Stocking: “...] © sangue era para muitos um solvente em que todos os problemas eram dissolvidos € os processos misturados |...) Raga significava diferengas culturais acumuladas trazidas de alguma maneira no sangue” (STOCKING, 1993, p.6,grifo nosso). A énfase estava em ‘de alguma maneira, pois, o sangue se mostrava um fluido muito expansivo ¢ inclusivo. Quatro correntes discursivas principais se jogaram no caldeirao em que o discurso racial cozinhou em fogo lento bem até as primeiras décadas do século XX, incluindo as tradicdes etnoldgicas, lamarckianas, poligenistas e evolucionistas. Para cada abordagem a ideia essencial eram as ligagées entre linhagem e parentesco. Nao se podia manter uma grande distingao entre ressonancias linguisticas, nacionais, familiares ¢ fisicas, implicadas pelos termos parentesco € raga. Lagos de sangue eram os fios proteindceos langados pela passagem fisica ¢ hist6rica de substancia de uma geragao para a proxima, formando os grandes coletivos aninhados organicos da familia humana. Nesse processo, onde estava raga, sexo também estava. E onde sexo e raga estavam, preocupagdes com higiene, decadéncia, satide ¢ eficiéncia orginica ocupavam as melhores mentes da época, ou pelo menos as melhores publicadas. Essas mesmas mentes estavam uniformemente interessadas nos problemas de progresso e hierarquia. O nivel orginico e o estigio de cultura do primitive para 0 civilizado estavam no coragao da biologia, medicina ¢ antropologia evolucionirias. A existéncia do progresso, eficiéncia ¢ hierarquia nao estavam em cheque cientificamente, apenas sua representagao apropriada nos dramas naturais- sociais, onde raga era o coloide ou matriz narrativa que resultava quando o sangue congelava. O pleno da evolugio orginica universal, indo do macaco ao europeu moderno com todas as ragas sexos apropriadamente distribuidos no meio, era preenchido com os corpos e instrumentos de medida, préprios das ciéncias da vida. Craniometria e 6 exame de materiais sexuais-reprodutivos focavam nos 6rgaos principais da vida mental e generativa, que eram as chaves da eficiéncia orginica e social. Cranios eram também tecidos sexuais, ¢ Orgios reprodutivos eram também estruturas mentais. Além disso, a face revelava 0 que 0 cranio ea gonada comandavam; a fotografia diagnéstica mostrava isso. A evolugio da linguagem, 0 progresso da tecnologia, 0 aperfeigoamento do corpo e 0 avango de formas sociais pareciam ser aspectos da mesma ciéncia humana fundamental. Essa ciéncia era constitutivamente fisiolégica e hierérquica, organismica ¢ holista, progressivista e desenvolvimenti E certo que no inicio do século XX Franz Boas e a antropologia sociocultural estavam langandoamplamente as fundagées de uma ordem epistemoldgica diferente para se pensar sobre raga. Mas, anexando politicas de imigragao, avaliagdes de satide mental, recrutamento militar, padrées de trabalho, conservagao da natureza, design de museu, curriculos de escola e universidade, praticas penais, estudos de 53 LAGOES MULTIESPECIES EM REDE campo de animais selvagens e de laboratério, avaliagao literdria, industria musical, doutrina religiosa e muito mais, raga - e suas infecgdes venéreas e ligagées com a higiene sexual — era real, fundamental e sangrenta. Se o/a cético/a da anilise pés-estruturalista ainda precisa se convencer por meio de um exemplo do tecido inextrincavel da realidade discursiva, cientifica e fisica historicamente especifica, raca é 0 lugar para ser olhado, O discursivo nunca foi vivido com maior vitalidade do que no sempre morto-vivo corpus da raga e do sexo. Para muita gente nas primeiras décadas do século XX,a mistura de raga era uma doenga venérea do corpo social, produzindo uma prole condenada ao fracasso, cujo assunto reprodutivo era tao manchado como o das lésbicas, sodomitas, judeus, mulheres com instru muito superior, prostitutas, criminosos, masturbadores ¢ alcodlatras, Esses eram 0 sujeitos, literal e literdrio, do discurso espagoso da eugenia, em que a higiene intrarracial e a taxonomia inter-racial eram duas faces de uma mesma moeda’, Mesmo radicais e liberais, nomeando-os anacronicamente, que lutaram contra a narrativa reprodutiva e as equagées sociais nomeadas no pardgrafo anterior, aceitaram raga como um objeto significative de conhecimento cientifico. Elas/ eles tinham pouca escolha. Esses/as escritores/as e ativistas trabalharam para remodelar raga em um quadro diferente da saide humana coletiva (STEPAN; GILMAN 1993)’. O discurso racial cientifico — no sentido que nao insistia na separagao do fisico ¢ do cultural ¢ falava 0 idioma da satide organica, eficiéncia ¢ solidariedade familiar - acomodava escritores/as desde grandes libertadores/as americanos/as tais como W.E.B, Du Bois (1971, 1989) e Charlotte Perkins Gilman (1979) até o meio do caminho, na Era Progressiva, racistas declarados tais como Madison Grant’, Du Bois (1989) é particularmente interessante porque mais consistentemente ele rejeitava 0 biologismo em sua abordagem a raga e ao racismo, mas 0 discurso amplo que assimilava sentimento racial a sentimento de familia e convidava a discussao sobre infincia e maturidade dos grupos humanos coletivos, denominados de raga, era inescapavel. Embora em torno de uma década mais tarde ele tenha se retratado pelo uso dessa linguagem, em 1897, Du Bois escreveu que 6 A-cugenia é um discurso de higiene da raga e de melhoria da raga, Para a historia da eugenia, os classicos incluem Haller (1963); Kevles (1985); Chorover (1979); e Cravens (1978). desenvolvimento da genética mendeliana apés 1900, no contexto da interpretagio dominante da escrita do bidlogo alemao, August Weismann, no fim do século XIX, que separou a passagem de caracteristicas adquiridas da continuidade genética do plasma germinal, gradualmente corroeu muito do discurso racial e engénico que discuto aqui. ‘Mas muitos cientistas da vida nos Estados Unidos nao se apoiavam consistentemente nessa distingao em sua abordagem da evolugio e de raga até cerca de meados do século ¢ eles certamente nao usavam a genética mendeliana para desenvolver uma posigio ciemtifica antirracista. Se cles insistiram, sim, na separacio entre natureza e cultura, o efeito provavelmente foi o endurecimento de uma doutrina genética com base em tragos ainda menos abertos a uma contestago ambientalista liberal. Para significados de raga ver Stocking (1968); Stepan (1982); Barkan (1992); Harding (1993); Gould (1981) e Goldberg (1990). 7 Para configuragées do discurso racial para mulheres afro-americanas, inclusive dout do século XIX e inicio do XX, ver Carby (1987). 8 Herland, de Charlotte Perkins Gilman (1979), seriado no O Precursor (forerunner), € cheio do racialismo branco sem autocritica que machucow tanto o feminismo americano. A escrita de Grant (1916) é repleta de superioridade nérdica sem adulterasio ¢ de condenagio do cruzamento de raga. Advogado de corporagio, Madison Grant era um lider em eugenia, restrigdes de imigragao e politica de conservagio da natureza ~ todas as atividades preservacionistas, nativistas, de supremacia branca, Ver Haraway (1989), 1as clentificas, no final 54 2 RAGA a histéria do mundo era a histéria das ragas: “O que é raga? £ uma familia vasta. geralmente de sangue e lingua comum, sempre de histéria comum” (DU BOIS, 1971, p. 195 ver também APPIAH, 1985, 1990; STEPAN, 1982; GILMAN, 1979). O breve retrato de George Stocking (1968, 1993) sobre o Sistema de Marcagio Social, desenvolvido pelo socidlogo estadunidense, Franklin H. Giddings, em torno de 1900 a 1910 retine as maneiras como raga € nagao, pasando por meio de parentesco de muitos tipos ontoldgicos e graus de proximidade, foram mantidas juntas num continuum de diferengas sociobioldgicas. “O elemento essencial do conceito de raga era a idéia de parentesco... Raga ¢ nagéo eram simplesmente ‘os termos aplicados a diferentes niveis de uma tnica pirimide” (STOCKING, 1993, p. 7-8, grifo nosso). Giddings tentou estabelecer uma nota¢ao quantitativa para distinguir graus de parentesco, alinhados por meio de oito tipos diferentes de relacao. Tipos tais como 0 hamitico, 0 semitico, 0 céltico etc preenchiam os espagos taxondmicos. As especificidades da classificagio de Giddings sio menos importantes aqui do que sua ilustragao da exuberancia da taxonomia racial nos Estados Unidos. Nessas taxonomias, que sao, afinal de contas, pequenas maquinas de clarificar € separar categorias, a entidade que sempre escapava a classificagio era simples: a prépria raga. O tipo puro, que animava sonhos, ciéncias e terrores, continuava a escorregar, infinitamente se multiplicando, por meiodas taxonomias tipolgicas. A atividade racional de classificagio mascarava uma historia retorcida e negada. A medida que as ansiedades desenfrearam por meio da prosa sébria da biociéncia categorial, as taxonomias nao puderam nem localizar com preciséo nem conter seu terrivel produto discursivo. Para completar minha breve caricatura de raga com um objeto do conhecimento biocientifico no periodo antes da Segunda Guerra, volto-me para um retrato de familia que inocentemente incorpora a esséncia do meu argumento. O retrato escorrega na corrente do desenvolvimento do ser abaixo, rumo ao supremo outro e parente intimo da humanidade urbana racializada, 0 gorila in natura’, Trata- se da imagem de um grupo de gorilas que se encontra no Museu Americano de Historia Natural. A imagem mostra uma reconstrugdo taxidérmica de um grupo de gorilas, com um impressionante macho de costas prateadas batendo no peito, a mie, ao lado, comendo calmamente e¢ um filhote. Um jovem macho de costas pretas esta no diorama, mas fora da fotografia, O macaco primal na selva é 0 duplo que assombra e 0 espelho da masculinidade branca civilizada na cidade. A cultura encontra a natureza no espelho na interface da Idade dos Mamiferos e da Idade do Homem. Preservada apés a vida que nao muda, essa vibrante familia de gorilas é mais morta-viva do que viva. Os membros dessa familia de gorilas (super)natural foram cagados, montados ¢ animados pela arte da taxidermia de modo a se tornar o tipo perfeito de sua espécie, Estérias dramaticas sobre povos, animais, ferramentas, jornadas, doengas e dinheiro sio inerentes em cada cadaver precioso, desde o macho que bate no peito, denominado de Gigante de Karisimbi, 9 Aest6ria completa da Sata africana, de Akeley, écontada por Haraway (1989, p. 26-58, p. 385-388), RELACOES MULTIESPECIES EM REDE até o filhote de macaco, atingido pela lanca, gritando de terror na costa ingreme da montanha vulcinica. O sangue foi drenado; mascaras das faces, tiradas dos cadveres; as peles, retiradas e preservadas, viajando de navio pelos continentes, ¢ esticadas sobre manequins leves. Acesos por dentro e circundados pelas vistas panoramicas tornadas possiveis pela pintura de cenarios de Hollywood e as novas cameras da década de 1920, 0 grupo natural perfeito - a familia organica inteira emergiu num Eden fabricado a partir de reconstrugées detalhadas de folhas, insetos ¢ solos. Desses modos, 0 gorila renasceu dos acidentes da vida biolégica, um primeiro nascimento, até uma perfeigao epifanica, um segundo nascimento, num diorama na Sala Africana Akeley no Museu Americano de Historia Natural, em Nova York. Por tris da recriagio dioramica da natureza acha-se um elaborado mundo de praticas, O aparato social e técnico do safari cientifico colonial africano e 0 sistema de trabalho da construgao do museu urbano, estratificado por raga, classe ¢ género organizaram centenas de pessoas em trés continentes e duas décadas para tornar possivel essa cena natural. Para emergir intacta, a natureza reconstruida exigiu todos os recursos de armas de fogo avangadas, cameras patenteadas, viagem transoceanica, preservagao de comida, estradas de ferro, autoridade burocratica colonial, grandes acumulagées de capital, instituig6es filantrpicas e muito mais. A producao tecnolégica de uma natureza culturalmente especifica nao podia ser mais literal, O intenso realismo do diorama foi uma realizacao epistemoldgica, tecnoldgica, politica € pessoal-experencial. O parentesco estava assegurado na pureza da visio atingida. Os esttidios de Walt Disney ea National Geographic puderam fazer melhor nas décadas que se seguiram, mas precisaram da magica das filmagens. A realizagio do diorama de historia natural de antes da guerra se apoiou mais numa sensibilidade escultural que estava também presente nos bronzes elegantes, colocados bem na entrada da Sala Africana, do ‘homem natural primitivo, os cagadores de lees Nandi, da Africa Oriental. Sua perfeigao foi buscada pelo mesmo cientista-artista, Carl Akeley, que desenhou os dioramas para o Museu Americano. O organicismo ea tipoldgica governavam soberanos nessas praticas, em que os grandes dramas raciais da terra, construidos numa estrutura branca, imperial, naturalista e progressiva, foram exibidos como pedagogia, higiene e diversao para um publico urbano. Depois do sucesso da cagada cientifica ao espécime perfeito, a nobreza superior de cacar com a camera foi solicitada, numa doutrina conservacionista que restringia a continuagao da caga com arma de fogo. Para sustentar 0 argumento conservacionista, mulheres e criangas brancas vieram na cagada final de gorilas do museu para provar que o grande drama violento da virilidade em confronto por meio de espécies podia dar lugar a um conto mais gentil. Em parte, pelos esforgos dos membros da expedigdo em 1921-1922 e os oficiais do Museu Americano, a drea onde o Gigante de Karisimbi morreu tornou-se um parque nacional belga, 0 parque Albert no Congo Belga, onde a natureza, inclusive 0 povo ‘primitivo’ como 56 a RAGA fauna na cena eterna, devia ser preservada para a ciéncia, aventura, edificagao e restauracao moral como prova contra a decadéncia da civilizagao. Nao ¢ de admirar que a natureza universal nao tenha sido uma entidade atraente para aqueles que nao foram seus criadores e beneficidrios. Desfazer esse dilema herdado nunca foi tio urgente se as pessoas ¢ outros organismos devem sobreviver muito mais tempo. A caga ao Gigante de Karisimbi ocorreu em 1921, 9 mesmo ano em que o Museu Americano de Histéria Natural sediou o Segundo Congresso Internacional de Eugenia, cuja programagao foi intitulada; Eugenia na Familia, Raga e Estado. O comité de imigragio do Congresso de eugenia mandou sua exposicao sobre imigragao para Washington, D.C., como parte de seu lobby para cotas raciais. Em 1924, 0 Ato de Origens Nacionais Estadunidenses restringiu a imigragio com base numa légica que ligava raga e nagao, Para os oficiais do Museu Americano, a preservagio da natureza, a protegio do plasma germinal e o trabalho de exposigao eram uma s6 pega. Exibigdo, conserva > € eugenia eram parte de um harmonioso. todo. Raga ficava no centro dessa configuracio natural e o discurso racial, em toda sua diversidade proliferativa e apavorante mesmice, atingia profundamente ia da nacido. POPULAGAO A comunidade de raga, nagio, natureza, lingua ¢ cultura transmitida pelo sangue ¢ parentesco nunca desapareceu do racialismo popular nos Estados Unidos, mas essa ligagao nao foi significativamente sustentada pelas ciéncias biolégicas durante meio século. Ao invés de me estender nos processos cientificos e politicos que conduziram a reversio das biociéncias sobre a realidade ¢ importancia de raga para a explicagao evolucionéria, genética, fisiolégica, terapéutica e reprodutiva nas décadas intermediarias do século XX, pularei para o outro lado da divisao, onde o Magico de Oz mudou 0 cenario no teatro da natureza. A principal diferenga é que uma entidade denominada de populagao é agora critica para a maior parte da agao dramatica. Uma populagao, um grupo relativamente permedvel dentro de uma espécie, diferia em um ou mais genes dos outros grupos. Mudangas das frequéncias de genes dentro das populagées eram processos evolucionarios fundamentais e 0 fluxo de genes entre populagdes estruturava o trafico que mantinha as espécies ligadas. Ocasionalmente ainda uma nogio conveniente, raga era geralmente um termo enganador para uma populagao. A frequéncia de genes interessantes, tais como aqueles que codificavam os marcadores imunolégicos nas células do sangue ou as diferentes hemoglobinas carregadas de oxigénio, podia diferir mais entre individuos dentro de uma populago do que entre populagdes. Ou podia nao diferir; tratava-se de uma questao empirica que exigia uma explicagao que incluia a consideragao da variagio randémica, complexos de adaptagao e a historia do 57 RELACOES MULTIESPECIES EM REDE intercimbio genético. A historia das populagdes da mutacao genética randémica e do fluxo de genes, sujeita a selegio natural resultante da adaptacao, constituiu a histéria da espécie. As populagdes nao eram tipos organizados hierarquicamente, mas conjuntos dinamicos que tinham que funcionar em ambientes mutaveis. As medidas tinham que ser de estruturas importantes para complexos de adaptagao relacionados a fungao corrente. Por exemplo, a craniometria, produzindo valores do volume do cranio numa suposta corrente hierarquica do ser, levou a criagio de medidas criticas para a ago dinamica na vida, tais como regides faciais criticas para a mastigacao e sujeitas a estresse fisico e funcional durante o desenvolvimento do organismo, Populagées naturais, altamente varidveis e permedveis, pareciam ser © tipo certo de objeto cientifico de conhecimento, e o tipo racial parecia ser um residuo de um mau pesadelo. A construgéo da categoria de populagéo ocorreu no curso de varias décadas. Exerceram papel importante os naturalistas que estudaram variagao e speciagao geogralica; geneticistas que aprenderam que mutagdes eram herdadas de modo mendeliano distinto; geneticistas de populagéo que construiram modelos matematicos, mostrando como a mutagio, a migragéo, 0 isolamento € outros fatores podiam afetar a frequéncia dos genes dentro das populagées; e experimentalistas que demonstraram que a selegio natural podia operar sobre variagdes continuas para alterar as caracteristicas de uma populagao. A sintese dessas linhas de pesquisa ~ que foi efetuada entre o final da década de 1930 e 0 final da década de 1940 pelo geneticista estadunidense, Theodosius Dobzhansky, imigrante treinado na Russia; o herdeiro inglés do cla cientifico de Huxley, Julian Huxley; © crudito sistematista estadunidense Ernst Mayr, imigrante treinado na Alemanha; ¢ o paleontélogo estadunidense George Gaylord Simpson, entre outros ~ mudou a face da teoria evolucionaria dominante. O resultado foi denominado de sintese moderna ou teoria evoluciondria neodarwiniana". Varios dos homens que trabalharam na sintese moderna eram também escritores populares, que 10 A disciplina de genética populacional ~ em oposigao a biologia populacional, mais voltada para a ecologia ~ tem tendido a excluir 0 desenvolvimento de organismos de suas hipdteses explanatorias e se apolar quase cexclusivamente na mutacio e outras formas de alterar a frequéncia e produtos dos genes individuais para explicar a mudanga evolucionaria em todos os niveis, ‘Trabalhando contra esse foco muitissimo limitado, Scott Gilbert argumenta que, para a evolusao acima das subespécies ou nivel populacional, mudangas nos padrdes de desenvolvimento sio essenciais. Bascando-se na andlise molecular dos genes para as trilhas de desenvolvimento homélogo em uma ampla variedade de organismos ~ procedimentos analiticos apenas possiveis depois do final da década de 1980 ~ Gilbert, Optiz.e Raff (1996) discutem a ideia de homologias de processo, bem como ade homologias mais antigas de estrutura, no contexto de uma nova sintese evolucionéria que da énfase, diferentemente da genética populacional, & embriologia, macroevolugio ¢ homologia. Nessa nova sintese, 0 campo de desenvolvimento, ou morfogenético, é"[..] proposto para mediar entre o gendtipo e © fendtipo, Do mesmo modo como a célula (e nde seu genoma) funciona como unidade de estrutura e fungao orginicas, assim também o campo morfogenético (e nao os genes ou as células) ¢ visto como a unidade principal da ontogenia, cujas mudangas trazem mudangas na evolugio” (GILBERT; OPTIZ; RAFE, 1996, p. 357), Penso que esse tipo de sintese evolucionaria, no contexto dos argumentos muito mais comuns do ‘gene individualista’ no discurso gendmico ¢ biotecnolégico na década de 1990, € revigorante e cientificamente excitante. No tipo de trabalho que Gilbert sinaliza e para o qual contribui nem as formulagdes sobre os genes dominante/populagao nem as formulagdes sobre o genoma/banco de dados conduzem ao centro das questées evolucionarias. As propostas de Gilbert, Optiz.e Rat devem lembrar ao/a leitor/a que meu mapa simplifiea seriamente os debates que estio acontecendo hoje em biologia, desenvolvimento e evolugio molecular, 58 3 RAGA publicavam nas principais editoras universitarias e desenvolveram um humanismo antirracista, liberal e bioldgico que teve influéncia até a década de 1970". Esse era um humanismo cientifico que dava énfase em flexibilidade, progresso, cooperagao e universalismo. Esse era também precisamente 0 humanismo assumido por M. F. Ashley Montagu, que foi aluno de Franz Boas ¢ foi organizador das declaragées sobre raga da Organizacao Educacional, Cientifica ¢ Cultural das Nagées Unidas (Unesco) em 1950 e 1951 (UNESCO, 1952). Empoleirado entre a vitéria dos aliados sobre os poderes do eixo, a contestagao ideolégica para definir a natureza humana travada pelo socialismo e capitalismo na Guerra Fria ¢ as lutas pela descolonizagio do Terceiro Mundo que se intensificaram depois da Segunda Guerra, os documentos patrocinados pelas Nagdes Unidas pretendiam cortar 0 lago biocientifico entre raga, sangue e cultura que tinha alimentado as politicas genocidas do fascismo e ainda ameagava doutrinas de unidade humana na cena internacional emergente. Jé que os bidlogos tinham que aguentar tanto da responsabilidade por terem, antes de mais nada, construido raga como um objeto de conhecimento cientifico, parecia essencial ordenar a autoridade dos arquitetos da nova sintese para des: a categoria e relega-la aos escombros da pseudociéncia. Nao teria sido suficiente que os autores da declarago da Unesco fossem cientistas sociais. A fabr das declaragdes da Unesco sobre raga proporciona um estudo de caso tinico para a reconstituigéo discursiva de um objeto epistemoldgico ¢ técnico critico para politicas e pesquisa, em que ciéncia e politica, no sentido oposicional desses dois termos escorregadios, formam um trangado dos mais apertados possiveis. fazer © conceito de populagdo estava em primeiro plano, pois os autores argumentavam que a plasticidade era 0 trago mais proeminente do Homo sapiens. Embora a forte afirmagao de que a extensao do talento mental fosse a mesma em todos os grupos humanos nao tenha sobrevivido 4 controvérsia sobre a versio de 1950, permaneceu 0 argumento negativo de que a ciéncia nao prové evidéncia de desigualdade racial herdada da inteligéncia. A polémica declaragao de 1950 de que a fraternidade universal é sustentada por um traco inato de toda a espécie de um impulso para a cooperagao também nao sobreviveu na reescrita de 1951, No entanto, esse tiltimo documento ~ assinado por 96 expertos cientificos internacionalmente preeminentes antes de ser langado ~ permaneceu intransigente nas ideias-chave de plasticidade, educabilidade, invalidade da ligacdo raga-e-cultura ¢ importancia da biologia evoluciondria de populagio". Moldar diferengas entre grupos em termos de tipologia era fazer ma ciéncia - com todas as penalidades em empregos, poder 11. Para uma visio geral desses desenvolvimentos complexos, ver Mayr € Provine (1980); Kaye (1986), Dobzhansky (1962) e Keller (1992). 12 Nio se pediu a0 antropélogo fisico afro-americano, Ashley Montagu Cobb, da Universidade de Howard, um dos muito poucos doutores negros no campo, para assinar o documento, No contexto da hegemonia cientifica banca, internacional, constitutivamente autoinvisivel, sua assinatura parecia implicar favoritismo racial & nao autoridade cientifica universalista, culturalmente livre, Num espirito de paz, no vou nem mencionar 0 ‘engendramento do novo homem universal plistico ~ até que ele comece a cagar numa adaptagio que produz a espécie, o que derrotara minha contengio presente. 59 RELACOES MULTIESPECIES EM REDE institucional, financiamento e prestigio que acompanham tal rétulo. Nao é preciso dizer que racialismo biolégico nao desapareceu da noite para o dia, mas um golpe palaciano tinha ocorrido na cidadela da ciéncia"® Saindo andando da Casa da Unesco em Paris, 0 novo homem universal apareceu fossilizado na Africa Oriental quase imediatamente. Em homenagem a esse aparecimento geolégico oportuno, 0 Harvard Lampoon dublou Olduvai Gorge, que tinha se tornado famoso pelas investigagées paleoantropologicas da familia Leakey, 0 Oh Boy! Oh Boy! Gorge por seus excelentes fdsseis de hominideos € og relatos associados da aurora da historia humana e das caracteristicas da natureza humana definidoras da espécie, Profundamente em divida com a sintese moderna, a nova Antropologia Fisica se desenvolveu a partir da década de 1950 para se tornar um ator principal em identificar 0s complexos adaptativos que ‘nos? fizeram humanos ¢ em instalé-los tanto na pratica pedagégica como na pritica s piblicas ¢ intradisciplinares, novos curriculos de cientifica. Palestras antirracist graduagio © pos-graduagao em antropologia fisica, mantidos pela prosperidade institucional em expansio da era pés-guerra nos Estados Unidos, estudos de campo de populacées primatas naturais e programas maiores de pesquisa sobre fosseis hominideos africanos cram todas do programa da nova antropologia fisica. Seus objetos de atengao nao cram taxonomias tipologicamente construidas, mas sistemas de agio que deixaram residuo nas duraveis estruturas duras das rochas de f6sseis ou sob a pele de animais ainda vivos. O comportamento adaptative era © que interessava a esses antropélogos bidlogos, quer olhando os ossos pélvicos, nio, Macacos ¢ primatas vivos ou os modernos cagadores-coletores. Na nova primeiras expedigoes do s totalmente modernos, armagao, as pessoas que eram tipicos ‘primitivos’ para Museu Americano de Historia Natural eram de humano exibindo claramente os complexos adaptativos fundamentais que continuam a caracterizar todas as populagdes da espécie. Na verdade, nao sofrendo o estresse da abundancia excessiva do Primeiro Mundo, os antigos ‘primitives’ assim como os modernos cagadores-coletores, tornaram-se seres humanos ‘universais, especialmente reveladores. O complexo adaptativo mais importante para meus objetivos neste capitulo é 0 modo de vida compartilhado, definidor da espécie, originado na caga e na familia nuclear heterosexual. O Homem Cagador, nao 0 irmao urbano do Gigante de Karisimbi ou o langador de ledes Nandi, incorporava os lagos da tecnologia, lingua e parentesco na familia humana universal de pés-guerra. Pai da tecnologia e semiologia ~ das ciéncias naturais e ciéncias humanas - no mesmo. comportamento adaptative, o Homem Cagador fabricou os primeiros objetos bonitos e funcionais ¢ falou as primeiras palavras criticas. A caga nesse relato nao 13. Este relato & urna caricatura ilustrativa de processos ¢ pritieas muito mais contraditérios em que os documentos da Unesco foram produidos. Para um relato mais completo, mas ainda inadequado, ver Haraway (1989). A versio para histéria em quadrinho do modo de vida compartilhado na préxima segio deste ensaio é detalhada sobriamente em Haraway (1989) 60 2 RAGA era sobre competi¢ao e agressio, mas sobre uma nova estratégia de subsisténcia possivel para proto-humanos bipedes, caminhantes com uma coordenacao mao- olho épica. Adquirindo cranios grandes e partos dolorosos no proces desenvolveram cooperacao, lingua, tecnologia e uma avidez pela viagem, tudo no contexto de dividir os saques com as parceiras, as criangas € entre si. Os machos eram certamente © motor ativo da evolugdo humana na hipotese da caga nos anos 1950 € 1960, mas a légica nao foi muito forgada nos anos 1970 pela posigao preeminente da Mulher Coletora ¢ umas poucas reformas familiares tteis, tais como orgasmos femininos e a escolha de parceiros que favoreciam machos que se faziam de titeis com as criangas"*. De qualquer forma, suspensérios para carregar bebés, bolsas de carregar raizes e nozes, fofoca cotidiana entre adultas e conversas com criangas mal podiam competir pelo drama originario com elegantes projéteis, viagens de aventura, oratéria politica ¢ ligagéo entre machos em face do perigo™. So, esses seres Dois documentos fotogrificos poderosos da familia humana universal concluem minha meditagio do esperangoso, mas fatalmente invalidado, humanismo biolégico de meados do século XX: a pintura intitulada ‘ossil footprint makers of Laetoli, do final da década de 1970, pelo ilustrador anatomico, Jay Matternes, e a publicagdo do Museu de Arte Moderna de Nova York de sua exposigio épica de fotografia em 1955, intitulada A fuilia do homem. Ambos 0s documentos encenam as relagdes da natureza ¢ cultura mediadas pela familia nuclear heterossexual reprodutiva como a figura da unidade ¢ diversidade humana Ambas as representagées da estéria humana estao inteiramente sob o sinal visivel ameaga de destruigo nuclear, e ambas sugerem uma saga de unidade, perigo e resiliéncia que permearam relatos da ciéncia, progresso ¢ tecnologia na era pos- Segunda Guerra, Acompanhando uma exposigéo internacional de museu de fésscis hominideos na década de 1980, a pintura de Matternes mostra a primeira familia hominidea andando pela savana africana sob a nuvem de um vulcao em erupgao, 0 sinal de destruigio pelo fogo'’. Essas figuras transicionais entre primatas ¢ humanos modernos lembram a familia de gorilas no Museu Americano de Historia Natural. Mas, para terrdqueos nos tltimos gélidos anos da Guerra Fria, a grossa nuvem de pé vomitando na diregao do céu para obscurecer 0 sol na reconstrugéo de Matternes nao pode evitar a evocagio da sombria ameaga do inverno nuclear. A expulsio do Eden tinha ressonancias narrativas particulares na cultura nuclear. Na era dos superpoderes nucleares se enfrentando em rivalidade fraternal, as ameagas vinham em pacotes 14 A infame gema de teorizagdo sobre o Homent cagador foi de Washburn € Lancaster (1968), Detalhes foram acrescentados nela em ‘Tanner e Zihlman (1976) 15. Se alguém esti cansado/a do drama narrativo © suas tramas universalistas mio marcadas psicanaliticas, politicas e cientificas, a teoria feminista é o lugar a se buseas, Ver de Lauretis (1984); Le Guin (1988); Kim € ‘Alarcon (1994). 16 © Sr. Matternes recusou a permissio para publicar sua pintura neste capitulo. Fossil footprint makers of Laetoli pode ser vista no National Geographic (NATIONAL GEOGRAPHIC, 1979). 6 RELAGOES MULTIESPECIES EM REDE apocalipticos centralizados. Na Nova Ordem Mundial da era pés as ameagas nucleares, como tudo o mais, tem uma estrutura mais dispersa e em rede de oportunidade e perigo ~ por exemplo, o contrabando criminal de pluténio da antiga Unido Soviética ¢ 0 apocaliptico mineral de plutonio envenenando os suprimentos urbanos de gua ou sujas minibombas dando suporte a disputas politicas. A pintura de Matternes é uma reconstrugio de eventos vitais que podem ter sido responsaveis pelas pegadas de 3,7 milhdes de anos, encontradas nas cinzas vulcanicas em Laetoli, perto do Desfiladeiro Olduvai por Mary Leakey e outros no final da década de 1970. Os descendentes da primeira familia viajando no espaco deixaram suas pegadas no pé da lua em 1969 em um ‘pequeno passo para a humanidade, como disse Neil Armstrong, assim como os desbravadores Australopithecus afarensis, na aurora da hominizagao, abriram seu caminho por meiodo pé vulcanico da narrativa de viagem humana. juerra Fria, Os grandes mitos de nascimento e morte, comecos ¢ fins estio em toda parte nessa pintura. Os hominideos reconstruidos sio membros de uma espécie de candidatos a ancestrais, altamente publicizada e que esteve no centro dos debates cientificos do que conta como humano. Talvez o féssil mais conhecido nesse combate cientifico e de midia tenha sido 0 esqueleto de uma fémea diminuta, cujo nome, Lucy, foi dado por seus descobridores adamicos por causa de Lucy in the sky with diamonds, dos Beatles. A planicie africana na pintura, cena da passagem dos parentes de Lucy, 6 a0 mesmo tempo rica de sinais de vida animal abundante e densamente incrustada com a cinza sufocante que deve ter empurrado todos os animais, inclusive os primeiros hominideos, a buscar comida. Os trés membros da familia dramatizam vividamente os complexos adaptativos centrais que ‘nos’ fizeram humanos. Os elementos para o modo de vida compartilhado universal sio inconfundiveis. O macho anda a passos largos a frente, carregando um instrumento pratico, embora nao seja exatamente o futuro elegante projétil que foi critico para a hipdtese da caga, bem como para o filme de Stanley Kubrick, 2001: Uma Odisseia do Espago. Os Australopithecus afarensis teria de esperar umas cabegas um tanto maiores até melhorar seu senso estético, Os universais antirracistas do drama evolucionario, escrito segundo as doutrinas humanistas da sintese moderna, 10 sexual do trabalho, deixaram intocados os essenciais duraveis da divi familias heterossexuais chefiadas por machos e fémeas carregadas de criangas — aqui pintado ‘sem’ o suspensério de carregar bebé que muitos antropélogos argumentam ter estado provavelmente entre os primeiros instrumentos humanos. Na imaginagao adamica de Matternes, a fémea carregando uma crianga segue atras, olhando para o lado, enquanto 0 macho lidera, olhando para o futuro. O germe da socialidade humana era 0 casal e suas crias, nao um grupo misto procurando por comida, um grupo de fémeas aparentadas com suas criangas, dois machos com um deles carregando uma crianga ou qualquer 62 3 RAGA uma das muitas possibilidades para aqueles pequenos primeiros passos para a humanidade (mankind), deixados na poeira em Laetoli". Se a mesmice entorpecida e hegeménica do modo de vida universal é 0 que resisto na nova antropologia fisica, inclusive muitas de suas versdes feministas, ¢ na pintura de Matternes, entao talvez um documento anterior, 0 popular livro de mesa de centro da exposi¢ao fotografica de Edward Steichen intitulado A Familia do Homem, possa aliviar meu ataque dispéptico de correcao politica. Se eu detecto © etnocentrismo sem constrangimento daqueles que fabricaram 0 objeto de conhecimento natural-técnico, intitulado A Primeira Familia, e 0 modo de vida hominizante universal, talvez 0 escopo global do documento de 1955 permitira um campo mais capaz de imaginar a unidade e diferenga humana. Porém, uma vez tendo aprendido a ver a ‘sagrada imagem do mesmo’ e os relatos de viagem edénicos de tanta narrativa histérica ocidental, tenho muita dificuldade de abrir mao dessa visdo critica que talvez seja monomaniaca, 0 que pode ser pior do que 08 objetos de que ela reclama. Minha prépria habilidade perversa de ler a mesmice de minhas préprias estérias culturais herdadas em tudo é um dos sintomas que impulsiona este capitulo. No entanto, acredito que essa capacidade de reproduzir © ‘mesmo, em inocéncia culpavel de sua especificidade historica, carregada de poder, caracteriza nao apenas a mim, mas as pessoas formadas como eu, que s liberais, cientificas € progressistas — exatamente como aqueles oficiais do Museu Americano de Hist6ria Natural que mandaram sua exposigdo sobre imigragao eugénica para Washington em 1921, Estou preocupada que muito pouco tenha mudado no discurso biocientifico hegeménico sobre natureza, raga, unidade e 1m do moderno Homo sapiens & outro esforgo de rastrear as viagens da ro da controvérsia, Desde o final da década de 1980, as hipoteses alternativas principais sio o relato de origem multirregional, baseado em estudos anatémicos comparativos, & a teoria da origem-na-Africa, apoiada na anilise mitocondtial-DNA (mtDNA) que sio interpretadas como significando que o ancestral comum mais recente de todos os humanos vivos & uma fémea que viveu na Alrica talvez to recentemente como hi 112,000 atris (GIBBONS, 1996). O esperma nio contribuiia com nenhuma mitocéndria (uma espécie de célula organela) para o ovo fertilizado, ¢ entdo 0 mtDNA é herdado apenas através da linha fémea, Provendo uma espécie de reldgio, as mudangas genéticas acumulam com 0 tempo. O mtDNA das populagdes testadas que viviam na Arica, um imenso continente em si mesma, mostra a maior variagio, quando comparada com todos os outros mtDNA estudados, tirados de povos modernos vivendo em diferentes éreas geogriticas principais. Esse fato deve dar margem a uma pausa gigantesca em face de quaisquer argumentos genéticos generalizantes sobre povos de descendéncia africana, inclusive a ideia de que as ragas modernas tém muito sentido genético, se tem algum ~ se tal lembrete & nece para se manter uma atitude cética diante de afirmagbes de que bases genéticas justiticam classificagbes raciais contemporineas, Esse (ema deve ser mantido firmemente em mente ao tralarmos de afirmagies que ressurgem sobre hereditariedade de Ql eassociayao de diferengas de Ql com grupos étnicos/raciais. Aagitagao em torno da publicagio de ‘The bell curve éa controvérsia recente mais importante. Ver Herrnstein e Murray (1994) ¢ Jacoby © Glauberman (1995). O fato de que © maior reservatorio de variagio humana exista na Arica deve também fazer os organizadores de bancos de dados de DNA nuclear humano pensar mais como desenvolver padroes compostos de referéncia para a espécie, Mostrando qui proftindamente embutida a {deta de raga ainda esta presente na antropologia fisica, Brendan Brisker (1995), um estudo de pos-graduagio no Programa de Antropologia da Universidade da California, em Santa Cra, analisou 0 uso inadvertido de tipologias raciais em procedimentos amostrais geogrificos e argumentos centrais nos primeiros estudos paleo-antropoldgicos do mt-DNA. Um miimero especial de Discover em novembro de 1994 esquematiza 0 debate renovado na década de 1990 sobte arealidade cientifica de raga, e Lawrence Wright (1994) descreve a controvérsia nos Estados Unidos sobre tipologias raciais que faziam parte do censo estadunidense, que nao refletem as categorias raciais/geogrificas multiplas atuais e as misturas reivindicadas pelas pessoas. 17 O debate em andamento sobre a ori humanidade, coma Africa novamente no ce 63 RELACOES MULTIESPECIES EM REDE diferenga, mesmo diante de mudanga aparentemente grande. Assim, deixem-me continuar com minha suspeita de que a Imagem Sagrada do Mesmo nao é apenas um problema meu, mas é também um dos tiques que reproduz imaginag6es racistas sexualmente carregadas mesmo nas praticas mais conscientemente dedicadas ao antirracismo. Nesse estado de animo, nao me surpreendo que o album de fotos de Steichen de 1955 nao tenha aliviado minha dispepsia. Meu enjoo nao é s6 com o titulo e seu tropo familiar convencional de juntar a humanidade com todas as ressonancias que essa metafora evoca de parentesco, linhagem e lagos de sangue. Ha muita coisa para gostar em A Familia do Homem, inclusive suas vividas fotos de trabalho, jogo e luta. Velhice, doenga, pobreza nao sio barreiras para animagao aqui. Até © cenario de todos e tudo em uma narrativa grandiosamente descontextualizada, que culmina nas Nagdes Unidas ¢ esperangas de paz. em tempos nucleares apds as devastagdes da depressio, do fascism, e da guerra, pode quase ser perdoado. Afinal de contas, A Familia do Homem é muito menos sanitaria do que a maioria das versées do multiculturalismo da década de 1990. Apesar de décadas de teoria visual critica, sou sensivel, até agora, as imagens desse livro. Isso ajuda porque é uma regra, para mim, nao voltar um olhar desintegrador para problemas insignificantes, nao desconstruir aquilo em relago a que eu também nao esteja vulneravel emocional, epistemoldgica e politicamente. do Homem se pauta por meio de seus tecidos organicos por uma versio de unidade que repete a estéria ciclpica que junta o povo na familia nuclear reprodutiva, 0 plasma germinal potente para a Sagrada Imagem do Mesmo. As fotos de abertura mostram variados jovens homens e mulheres fazendo a corte; depois 0 casamento; depois todo tipo de mulheres gravidas e no parto; depois o nascimento (mediado por um homem, doutor, médico, cientifico), amamentagao, bebés e criagao de filhos/as por ambos os géneros. O album de fotos entao se abre para cenas fora, cultural e nacionalmente variadas no campo e nas fabricas. Comida, musica, educagao, religido, tecnologia, tragédia e piedade, velhice ¢ morte, raiva alegria, fome ¢ sofrimento ~ tudo acha seu lugar no livro, Os icones da guerra nuclear e de outras guerras, assim como imagens de racismo e fascismo, langam uma sombra profunda. O manto é levantado por imagens de democracia (eleiges) ¢ internacionalismo (as Nagées Unidas), que situam a esperanga para essa estéria de familia solidamente nos significantes do ‘mundo livre. As tltimas paginas da exposi¢ao sao cheias de criangas com multitonalidades, as sementes do futuro. A tltima foto (antes da infeliz onda do mar de dentro da ultima capa) é de um menininho e uma menininha se afastando de quem vé, andando de maos dadas numa natureza silvicola em dire¢ao a luz solar do futuro possivel. Esse livro sobre universais humanos é veementemente antirracista e simultanea e profundamente emaranhado numa estoria teleolégica etnoespecifica que continua a fazer o coletivo humano sangrar, ou pelo menos faminto por outras estérias sobre o que significa ser membros de uma espécie e comunidade. O que nao se junta a uma estéria familiar reprodutiva nao conta finalmente como humano. Apesar de toda a énfase 64 3 RAGA nas narrativas fotograficas da diferenca, essa é uma gramitica da indiferenga, da multiplicago da mesmice. O desejo por um/a filho/a, por um futuro na potente imagem que permeia A Familia do Homem é pelo menos tao feroz quanto a ansia que sustentou as Novas Tecnologias Reprodutivas das décadas de 1980 e 1990. A imaginagdo genética nunca diminuiu a intensidade sob 0 signo da populagao. O desejo genético nao seria menor quando 0 genoma se tornou o significante da coletividade humana. GENOMA Se a humanidade universal era plastica sob 0 signo da populagio na metade do século, entéo a natureza é mais bem descrita como virtual nos regimes de conhecimento ¢ poder bioldgicos presentes, do final do milénio. Especificamente, a natureza humana é incorporada, literalmente, numa coisa estranha denominadabanco de dados genéticos, contidos numas poucas localidades internacionais tais como os trés grandes bancos de dados do mapa genético e dados sequenciais: 0 U.S. GenBank®, 0 European Molecular Biological Laboratory e 0 DNA Data Bank of Japan. O Genome Data Base na Universidade de Johns Hopkins € um repositério central massivo de toda informagao de mapeamento de genes. No mundo da sequéncia genética os direitos de propriedade intelectual competem com 0s direitos humanos pela atengao tanto de advogados/as quanto de cientistas. Advogados/as criminais e corporativos/as tém interesse na representagao material e metaforica dos genomas. Financiamentos ¢ politicas dio grande suporte ao acesso ptiblico répido aos bancos de dados de genoma no interesse de pesquisa € desenvolvimento, Por exemplo, em 1993, 0 pesquisador francés, Daniel Cohen, do Centre d'Etude du Polymorphisme Humaine, em Paris, fez seu primeiro esbogo completo de mapa do genoma humano disponivel na internet. GenInfo, desenvolvido pelo U.S. National Center for Biotechnology Information, da Biblioteca Nacional de Medicina, é uma espécie de banco de dados que contém dados sequenciais tanto de proteina quanto de acido nucleico “...] no qual outros bancos de dados podem adicionar, referir, anotar, interpretar e extrapolar” (CORTEAU, 1991, p. 202)'*. Em parte, pelo tremendo poder fisico de computagao e expertise humana que resultaram da pesquisa com armas nucleares, 0 desenvolvimento da informatica no Projeto Genoma Humano (Human Genome Program - HGD) dos Estados Unidos comegou sob os auspicios do GenBank® nos Laboratérios Nacionais dos Estados Unidos em Los Alamos, New Mexico. Foi lé também que havia a expertise ¢ as maquinas que construfram a matriz para o florescimento da pesquisa sobre vida artificial no vizinho Instituto de Santa Fe 18 A segio especial para ser destacada desse niimero anual da revista Science sobre o genoma foi dedicada a bancos de dads. Ver também Nowak (1993). 65 RELAGOES MULTIESPECIES EM REDE Um banco de dados 6 uma estrutura de informagio. Os programas de computador s&o os habitats das estruturas de informagao, e um genoma do organismo & uma espécie de parque da natureza entre os bancos de dados. Assim como a higiene e eugenia racial estavam comprometidas com a ciéncia e€ © progresso e as doutrinas populacionais dos universais humanos estavam sem nenhuma ambiguidade do lado do desenvolvimento ¢ futuro, o genoma esta aliado a tudo que se atualiza a todo minuto. No entanto, algo peculiar aconteceu com ‘0 gen mendeliano estavel, amante da familia, quando ele passou para um banco de dados, onde tem mais em comum com fotografias LANDSAT”, Sistemas de Informagao Geografica, bancos internacionais de sementes e 0 Banco Mundial do que com as moscas de 'T:H. Morgan na Universidade de Columbia na década de 1910 ou populacées da Unesco na década de 1950. Bancos e mapas parecem ser 0 nome do jogo genético num ritmo acelerado desde a década de 1970, na corporatizacao da biologia para fazé-la adequar-se 4 Nova Ordem Mundial, Inc”. Se a sintese moderna, ideologicamente falando, tendia a tornar todo mundo o guarda de seu irmao, entio nas suas versdes de selegdo de parentes e estratégias inclusivas de maximizagao da boa forma, a sintese sociobiolégica corre no sentido de fazer todo mundo o banqueiro de seu irmao ou sua irma”', Biotecnologia a servigo do lucro corporativo é uma forga revoluciondria, para refazer os habitantes do planeta Terra, desde virus ¢ bactérias, subindo na hoje repudiada corrente dos seres até 0 Homo sapiens e além. A pesquisa bioldgica globalmente é progressivamente praticada sob os auspicios diretos de corporagées, desde os gigantes multinacionais farmacéuticos e do agronegécio até companhias de capital de risco que fascinam os escritores das segdes de negdcios dos jornais didrios. A biologia molecular e a genética molecular se tornaram quase sindnimo de biotecnologia como engenharia e disciplinas de redesenho. Seres como O Homem Cagador e A Mulher Coletora reaparecem para desempenhar seus papéis no palco da natureza empresariados como Homem" e Mulher* ~ com direitos autorais (copyrighted); registrados para 0 comércio; e, acima de tudo, altamente flexiveis*. Num mundo em que o artefato e o natural implodiram, a 19 NT: O programa Landsat é 0 mais longo empreendimento em funcionamento para a aquisigao de imagens da Terra do espago. O primeiro satdlite foi langado em 1972; 0 mais recente, o Landsat 7, fot langado em 15 de abril de 1999, O Landsat foi eriado para ser capaz. de monitorar € realizar 0 mapeamento das feigdes da superficie terrestre a partir do espaco. O Landsat tem uma resolugao de 30m e a rea imageada é de uma faixa de 185 km, recortada em cenas de 185km x 170km. O satéite esti a uma altitude de 705 km. Velocidade: equivalente a 7,7 km/seg no solo, em uma érbita polar heliossincrona (LANDSAT, 2009), 20 Fazer da vida uma forsa de produgio e reorganizagio da biologia para a conveniéncia corporativa pode ser lido em Yoxen (1981) e Wright (1994) 21. O cetitico incisivo da sociobiologia é Kitcher (1987). Sobre os debates da selegio de unidades, ver Brandon € Burian 1984. Desafiando a classificagio como técnica ou popular, Dawkins (1976, 1982) sio as melhores exposigées da légica da luta compettiva feroz para permanecer no jogo da vida, apelando para estratégias, de acumulagio flexivel que estranhamente parecem to basicas também para 0 capitalismo pés-moderno. Para a teoria da acumulagao flexivel na economia politica, ver Harvey (1989). Para o trabalho feminista multinivelado do tema da flexibilidade no corpo biomédico americano, ver Martin (1994) 22 A ideia de natureza ¢ cultura ‘empresariadas’ & tomada de empréstimo de Marilyn Strathern (1992), um tratamento de concepgio assistida e parentesco inglés no periodo do thatcherismo britanico, 66 3 RAGA propria natureza, ideolégica e materialmente, foi patentemente reconstruida. O ajustamento estrutural no demanda menos das bactérias ¢ arvores do que das pessoas, dos negécios e das nagées. O genoma é a totalidade da ‘informagao’ genética em um organismo, ou, mais comumente, a totalidade da informagao genética em todos os cromossomos no nticleo da célula. Convencionalmente, o genoma se refere apenas ao acido nucleico que codifica alguma coisa, e nao a estruturas e processos dinamicos de multipartes que constituem as células e organismos funcionais reprodutores. Assim, nem mesmo as proteinas criticas para a organizagio cromossémica nuclear ou estruturas DNA tais como os cromossomos mitocondriais fora do nticleo sao parte do genoma, muito menos a célula viva inteira. A informagao incorporada com uma estrutura temporal complexa é reduzida a um cédigo linear num arquivo fora do tempo. Essa redugao dé lugar a uma metéfora mista curiosa, ubiqua de mapear 0 cédigo, aplicada a projetos de representar toda a informagao no genoma. O DNA nessa perspectiva 6 uma molécula master, 0 codigo dos cédigos, a fundagao da unidade ¢ diversidade. Muito da historia da genética desde a década de 1950 é a historia da consolidagao e elaboragio da equagdo de gen = informagao no contexto de metaforas de moléculas master. Considero essa pritica de representagio para pensar sobre a genética como a que constitui uma espécie da propria pesquisa de vida artificial, em que 0 habitat paradigmatico da vida ~ 0 programa ~ nao guarda nenhuma relagao necessaria a organismos densos e bagungados. soal, bem imensas A convergéncia da genonomia ¢ informatica, em técnica © pe como na teoria basica e tropos compartilhados, tem consequénci: para as construgdes biocientificas da natureza humana. A habilidade técnica para manipular informagao genética, em particular para passi-la de um tipo de organismo para outro de maneira regulada no laboratorio, ou sintetizar e inserir novos genes, cresceu exponencialmente desde os primeiros experimentos de engenharia genética bem-sucedidos no inicio dos anos 1970. Em principio, nao ha nenhum genoma que ocorre naturalmente que nao possa ser redesenhado experimentalmente. Isso é uma questo muito diferente em comparagio ao trafico genético entre populagées de uma espécie estudada pela sintese evolucionaria do meio do século, muito menos em comparagio aos tipos raciais naturais genéticos que habitaram 0 mundo bioldgico no inicio do século. A engenharia genética nao é a eugenia, do mesmo modo que 0 genoma nao faz, 0 mesmo tipo de relato de uma espécie como 0 faz o discurso racial organico”, Do ponto de vista dos anos 1990, 0 genoma é uma estrutura de informagio que pode existir em varios meios fisicos. O meio pode ser as sequéncias de DNA organizadas em cromossomos naturais no organismo inteiro. Ou o meio pode ser 23. No pensamento eugénico, o bem da raga é o valor ideolégico central. E dificil enfatizar excessivamente 0 aspecto coletivo. No discurso biomédico genético dos anos 1990, a raga~ seja a humanidade como um todo (ou uma categoria racial particular tal como pessoas brancas~ no desempenha quase nenhum papel, mas as decis6es dos investimentos reprodutivos individuais e a satide genética individual sao centrais, 67 RELACOES MULTIESPECIES EM REDE varias estruturas fisicas construidas, tais como cromossomos artificiais de levedura (yeast) (YACs) ou plasmideos bacteriais, desenhados para pegar e transferir genes clonados ou outros estiramentos interessantes do Acido nucleico. O genoma inteiro de um organismo deve ficar numa ‘biblioteca’ de tais estruturas artificiais de informacio bioquimica. O meio do banco de dados pode também ser os programas de computador que administram a estrutura, a conferéncia de erros, 0 armazenamento, a recuperacao e distribuicdo da informagao genética para os varios projetos de genoma internacionais que esto em andamento para o Homo sapiens e outros modelos de espécie criticos para a pesquisa genética, desenvolvimentista imunoldgica, Essas espécies incluem ratos, cachorros, bactérias, leveduras, nematédeos, arroz e algumas poucas criaturas mais, indispensaveis para a pesquisa técnico-cientifica internacional. Projeto Genoma Humano dos Estados Unidos teve inicio oficialmente em 1988, sob a diregdo do Departamento de Energia ¢ os Institutos Nacionais de Saude. Como um todo, o Projeto Genoma Humano global é um esforgo multinacional, em longo termo, competitivo e cooperativo, de multibilhdes de délares (ienes, francos, marco etc.) para representar exaustivamente — em mapas genéticos, fisicos € de sequéncias de DNA ~ a totalidade da informagao do genoma da espécie”. Os dados todos entram em bancos de dados computadorizados, a partir dos quais a informagio é disponibilizada através do mundo em termos que ainda estéo sendo muito reformulados. O desenho dos bancos de dados computadorizados esta na linha de ponta da pesquisa gendmica. As decisdes de desenho sobre esses bancos de dados enormes modelam o que pode ser facilmente comparado, ¢ assim determinam 0s tipos de usos que podem ser feitos dos dados originais. Tais decisées estruturam os tipos de ideias da espécie que podem ser mantidos. Os corpos nacionais da ciéncia, as universidades mantidas por impostos e fundagées, organizagGes internacionais, corporagées privadas, comunidades, povos nativos e muitas configuragées de ativistas politicos e cientificos, todos tomam parte na saga. Questes sobre agéncia ~ quem é um ator ~ abundam no mundo do genoma, bem como nos mundos da tecnociéncia em geral. Por exemplo, no discurso da informatica do genoma, os dados sao trocados entre agentes e mandados para usuarios/as de bancos de dados. Essas entidades podem facilmente ser computadores ou programas assim como pessoas (ERICKSON, 1992)". Nao resolve o problema dizer que as pessoas sao as usuarias finais. Isso acaba sendo uma decisio de desenho contingente e técnica - ou uma forma de representar fluxos de informagao continuos ~ mais do que uma necessidade ontoldgica. As pessoas estao no loop da informagao, mas seu status é um pouco incerto no mundo da vida artificial. Comparado ao humanismo biolégico da sintese moderna, 0 tecno- 24 Um bom local, para se comegar a ler sobre 0 tema, é Kevles e Hood (1992). Flower e Heath (1993) mostram como a definigio semidtico-material da espécie humana nos bancos de dados genéticos «lo mundo funciona por meio de processos miitiplos e heterogéneos que constroem uma sequéncia de referéncia, ou sequencia ‘consensual de DNA, como ogenoma humano. 25. Sobre agéncia nos habitats da internet, ver Waldrop (1994). 68 a RAGA humanismo teve de fazer uns poucos ajustes oportunos. A genonomia nao é nem taxidermia nem as praticas de reconstrugao da nova antropologia fisica, eas técnicas emergentes de animagao ocupam mais mentes do que as de programadores/as de efeitos especiais de Jurassic Park na Industrial Light and Magic. Questées de agéncia permeiam praticas de representag’o em muitos sentidos de ambos os termos: quem, exatamente, no Projeto Genoma Humano, representa quem? Uma questao anterior tem de ser um pouco diferente, entretanto. Quem, ou o qué, é o humano que é para ser exaustivamente representado? Os geneticistas moleculares sio consumidos pelo interesse na variabilidade das sequéncias de DNA. Seus bancos de dados sao construidos para alojar informagao sobre regides estaveis e também variaveis de genes ou proteinas. Na verdade, para atores, desde designers de remédios até criminologistas forenses, a singularidade de cada genoma do individuo é parte da fascinagao técnica dos subprodutos dos projetos do genoma humano. Mais fundamentalmente, entretanto, os projetos do genoma produzem entidades de um tipo ontolégico diferente do que organismos de carne € sangue, ragas naturais, ou qualquer espécie de ser organico normal. Arriscando- me a me repetir, os projetos de genoma humano produzem coisas ontologicamente specificas, denominadas bancos de dados, como objetos de conhecimento e pratica. O humano a ser representado, entio, tem um tipo particular de totalidade, ou de ser da espécie, bem como um tipo especifico de individualidade. Em qualquer nivel de individualidade ou coletividade, de uma tinica regiio de gene extraida de uma amostra até o genoma da espécie inteira, esse humano é cle proprio uma estrutura de informagao cujo programa deve ser escrito em acide nucleico ou na linguagem de programa da inteligéncia artificial, denominada Lisp”. Portanto, variabilidade tem sua propria sintaxe no discurso do genoma também. Nao ha ilusao nos anos 1990 sobre genes singulares do tipo selvagem variados desviantes mutantes””. Essa era a terminologia da genética mendeliana no principio do século XX, quando as linguagens do normal e do desviante eram muito mais sanitarias. Higiene racial sintaxe tipoldgica nao so sustentadas pelo discurso do genoma, ou pelos discursos da vida artificial em geral. As estratégia de investimento genético, no sentido da teoria evolucionaria e também da pratica de negocios, sido sustentadas. O pensamento populacionista da sintese moderna explodiu uma caixa inteira de ferramentas de recursos para acreditar em normas ¢ tipos. Flexibilidade, com suas gramaticas especificas de unidade e diversidade humanas, é 0 nome do jogo no final deste milénio. Entretanto, mesmo com todo © seu compromisso com a variabilidade, a maioria dos geneticistas moleculares 26 NT: LISP ~ List processing (processamento de lista). Designayio de uma linguagem de programagio desenvolvida em 1960, destinada 4 manipulagdo de dados nao numéricos, baseada no processamento de listas (de dados, de instrucdes) e que se tornou uma linguagem padrio para pesquisas em inteligéncia artificial (PROCESSAMENTO, 2001), 27. O suplemento do Oxford English Dictionary situa o primeito uso do termo genom nos anos 1930, mas a palavra nao significava entao uma estrutura de banco de dados. Esse sentido emergiu da consolidagio da a como uma ciéncia de informagao e especialmente desile os anos 1970. 69 RELAGOES MULTIESPECIES EM REDE nao é treinadaem biologia evolucionaria de populagéo ou mesmo em genética de populacao. Esse fato disciplinar deu lugar a um projeto dos mais interessantes, levando a uma controvérsia para os propésitos deste capitulo. Pegaremos as questées de agéncia e representacao, bem como o de unidade e diferenga que perpassam o Projeto de Diversidade do Genoma Humano (HGDP”). Se os bancos de dados do genoma humano séo exaustivamente para representar a espécie e prover informagao a usuarios/as que demandam esse tipo de conhecimento, em sonhos de totalidade bem como em projetos praticos, 08 repositérios devem conter dados fisicos e eletrénicos sobre a constituigio molecular especifica e frequéncia dos genes numa escala verdadeiramente global. Os geneticistas populacionais eram criticos dos protocolos de amostras dos bidlogos moleculares para o material genético humano e também da sua compreensao estatistica calamitosa da estrutura, distribui¢do, historia e variabilidade das populagées humanas. Os geneticistas populacionais também se preocupavam com que muitas populagdes humanas no mundo inteiro estavam se tornando extintas — literalmente ou pelo intercruzamento e inundagio de sua diversidade em populagées vizinhas maiores - com a consequente perda de informagao genética, empobrecendo os bancos de dados da espécie para sempre. O que significa ser humano teria falhas de informagao irresgataveis. Haveria uma perda de informagio da biodiversidade no mundo de vida do genoma. Assim como 0 desaparecimento de um fungo ou samambaia da floresta tropical, antes que as companhias farmacéuticas pudessem pesquisar a espécie para medicamentos promissores, o desaparecimento de reservatérios de genes humanos é um desastre para a tecnociéncia, A colecao genética répida e minuciosa e procedimentos de sim como a preservagio da fonte de variagao, se possivel, ¢ a solugao. banco, Estou sendo um pouco mordaz na minha leitura neste relato, pois os organizadoresdo Projeto de Diversidade do Genoma Humano eram em grande parte humanistas bidlogos liberais da velha guarda. Além disso, continuo simpatizando com 0 desejo de produzir um banco de dados da espécie humana que se baseie no conceito mais amplo possivel de humanidade. Quero que haja uma forma de reconfigurar esse desejo e seu humanismo concomitante. Entretanto, foram precisamente as doutrinas de diferenca, representagio e agéncia do humanismo universal que colocaram 0 projeto e seus organizadores bem-intencionados em uma encrenca bem merecida”. Comegando em torno de 1991, os organizadores do Projeto de Diversidade do Genoma Humano propuseram melhorar 0 pensamento (ou falta de pensamento) populacional evolucionario do Projeto Genoma Humano principal por meioda coleta de amostras da raiz dos cabelos, célula sanguinea branca e tecido das bochechas de mais de 700 grupos de povos indigenas em seis continentes para 28 NT: Human Genome Diversity Program. 29 Agradego a Cori Hayden (1994a), estudante de pos. graduagio em antropolo nao publicado, Ver Rafi (1993, 1994) or seu manuscrito 70 3 RAGA serem colocadas na Colegio da Cultura do Tipo Americano. Em mais de cinco anos, 0 custo seria de 23 a 35 milhées de délares (comparados aos mais de 3 bilhdes do total do Projeto Genoma Humano). Infelizmente, perspectivas modernistas, sem constrangimento, distorceram a definigéo das categorias das pessoas das quais seriam tiradas as amostras, levando a uma visio de grupos humanos dinamicos como eternos ‘isolados de interesse histérico. Da mesma forma, outras comunidades étnicas potencial e geneticamente distintas nao apareceram na lista de amostragem. O planejamento do projeto nao envolveu membros das comunidades a serem estudadas em nenhum tipo de formagio na ciéncia. As pessoas que faziam parte da amostra deveriam dar ou nao permissao, serem mais ou menos cuidadosamente procuradas e minuciosamente explicadas sobre 0 estudo, mas nao foram vistas como parceiras na produgao de conhecimento, as quais deveriam ter fins e meios proprios em tal empreendimento. Suas verses da estéria humana, articuladas de forma complexa com a ciéncia genética das/os visitantes, nao fizeram parte da agenda da pesquisa. Permissio nado éo mesmo que colaboracao, cesta tiltima poderia levar a mudangas fundamentais em quem/o qué contaria como ciéncia e cientistas. Nao obstante, as armadilhas da ciéncia universal, querer emendar um banco de dados é algo bastante culturalmente especifico. Por que exatamente outras pessoas, especialmente gente denominadade ‘isolados do interesse historico ajudariam tal projeto? Essa nao é uma pergunta ret6rica ¢ pode haver respostas muito fortes, vindas de pontos de vista contraintuitivos e dbvios. A questao é uma questio fundamental sobre a retérica de persuasao e os processos priticos por meiodos quais as pessoas —inclusive cientistas e todas as outras — se reconstituem como sujeitos ¢ objetos em encontros. Como poderiam os muitos discursos em jogo intra € entrepessoas como os Guaymi do Panamé e as/os geneticistas populacionais da California se articularem umas com as outras num modo sensivel ao poder? Essa uma pergunta ética, mas é muito mais do que isso. E uma pergunta sobre o que pode contar como conhecimento moderno e quem sera contado como produtores/ as desse conhecimento”. Nao é de estranhar que ocorreu que povo indigena estava mais interessado em se representar do que em ser representado na estéria humana. O encontro certamente nao se deu entre povos tradicionais e modernos, mas entre pessoas (e povos) contemporaneos com discursos ricamente entrelagados e divergentes, cada qual com suas proprias agendas e histérias, Funcionando como objetos fronteirigos, 30 Aprendi com Giovanna Di Chiro (1995s, 1995b) sobre o qu também a Tsing (1993a, 1993b) e Cussins (1994). As trés analistas problematizam categorias herdadas de corpo e tecnologia, natureza e cultura, selva ¢ cidade, centro e margem ~ que sio toda parte da produgio da distingio ideoldgica entre moderno e tradicional que torna estranho para pessoas indigenas serem ustiirias ¢ produtoras priticas do discurso do genoma, Para uma anilise excelente dos discursos problemiiticos da diferenga racial no ecofeminismo, parcialmente originada na continuada separacio entre natureza e cultura se voltando para mulheres ‘nativas’ como recurso contra as violagdes da cultura industrial, ver Sturgeon (1996) quem contard como ciéncia e cientistas. Recorro 1 S MULTIESPECIES EM REDE genes e genomas circularam entre as muitas linguas em jogo". Os membros das comunidades a serem amostradas, assim como outros/as palestrantes, tinham varias preocupagées. Alguns/mas estavam inflexiveis quanto 4 questo de os genes © outros produtos derivados do material indigena nao serem patenteados e usados para lucro comercial. Outros/as estavam preocupados/as que a informagao genética sobre povos tribais e marginalizados fosse mal utilizadas de modos genocidas por governos nacionais. Alguns/mas argumentavam que as necessidades médicas sociais das comunidades poderiam ser tratadas com o dinheiro que financiaria a amostragem genética, e o HGDP nao dava beneficios em troca para as pessoas. Alguns/mas concordavam bastante que se usasse 0 material genético indigena para contribuir para um fundo de conhecimento mundial medicamente util, mas 86 se fosse sob os auspicios das Nagées Unidas ou similares que impedissem a exploragao ¢ a promogio de lucro. Os membros do comité de ética do HGDP tentaram assegurar aos/as céticos/as que o projeto nao tinha interesses comerciais ¢ que o HGDP tentaria certificar-se de que quaisquer beneficios comerciais que resultassem do material amostrado retornariam as comunidades. Mas no todo, 0 assunto geral foi a questao da agéncia das pessoas que ndo se consideravam um recurso de biodiversidade. A diversidade dizia respeito tanto a seu status de ‘objeto’ como a seu status de ‘sujeito. Em maio de 1993, num encontro de uma conferéncia nao governamental paralela 4 Conferéncia de Direitos Humanos da ONU, em Viena, a Rural Advancement Foundation Internacional (RAFI) e os povos indigenas ir HGDP: laram o [..] suspender os esforgos correntes de coleta, preparar um encontro com 0s povos indigenas para tratar de assuntos éticos e cientilicos, incorporar organizagoes indigenas em todos os aspectos do HGDP e conceder a elas poder de veto, ¢ colocar 0 HGDP sob o controle direto das Nagdes Unidas, com a delegagio de tomada de decisio a um comité diretivo dominado por povos indigenas (Rafi, 1993, p. 13) Os lideres do HGDP tentaram tratar das objegdes, mas no outono de 1993 nao tinham estabelecido mecanismos aceitaveis pelos criticos de incluir povos indigenas na organizagao do projeto. O Conselho Mundial de Povos Indigenas monitorava 0 projeto, de maneira cética. Para mim, ¢ importante notar, entretanto, que o HGDP era um esforco minoritdrio no Projeto Genoma Humano (HGP) e nao ficava no centro da acao de prestigio. Mesmo conseguir que a pesquisa fosse feita em face da ortodoxia genética molecular nao populacionista que conduzia a pratica cotidiana no HGP ja nao teria sido facil. Acabou que foi mais facil diminuir ou parar o HGDP, uma espécie de esforgo oposicional, do que questionar 0 préprio poderoso HGP. 31 Ver Star ¢ Giriesemer (1989) sobre o desenvolvimento do conceito de objetos fronteirigos. 72 3 RAGA Isso torna a encrenca com a diferenga, embutida nesse potencialmente positive projeto cientifico, mais perturbadora ainda ~ e importante. Inescapavelmente, independentemente do HGDP, mas fatalmente colado a cle, aconteceu o excessivamente previsivel escandalo. Como todas as patologias, 0 escandalo revelouaestruturado que se passa como normal nosregimesbiocientificos de conhecimento e poder. O povo Guaymi transporta um virus muito especial e seus anticorpos que poderiam ser importantes na pesquisa sobre leucemia. O sangue tirado em 1990 de uma mulher Guaymi de 26 anos com leucemia, com seu ‘consentimento oral informal, nos termos do Centro Estadunidense de Controle de Doengas em Atlanta, foi usado para produzir uma linha celular ‘imortalizada, depositada na Colegio Cultural do Tipo Americano. A Secretaria de Comércio dos Estados Unidos prosseguiu arquivando uma reivindicagao de patente da linha celular. Par Moony, da Fundagio de Desenvolvimento Rural Internacional, soube da reivindicagao em agosto de 1993 e informou Isidoro Acosta, o presidente do Congresso Geral Guaymi. Considerando a reivindicagio de patente como francamente biopirataria, Acosta e outro representante Guaymi foram a Genebra para colocar a questo na Convengio de Diversidade Biolégica, que tinha sido adotada em 1993 na Conferéncia de Cipula da ‘Terra, no Brasil. A intengao de: conyengao era lidar com material de planta ¢ animal, mas os Guaymi fizeram uso estratégico de sua lingua para tratar da biodiversidade humana definida tecnocientificamente. Os Guaymi também foram até o Secreta Agreement on Tariffs and Trade (GATT) para argumentar contra a patenteabilidade do material da origem humana nas provisées de propriedade intelectual do novo tratado do GAT'T que estava entao sendo esbogado. iado do General No final de 1993, a Secretaria do Comércio dos Estados Unidos retirou a aplicagao de patente, embora até o principio de 1994 a cultura celular nao tivesse sido devolvida aos Guaymi, como fora exigido. As batalhas de propriedade e soberania estio longe de serem resolvidas; elas estio no coragao de regimes biocientificos de conhecimento e poder ao redor do mundo. Os interesses cientificos e comerciais sao altos, Os interesses so também as circulantes configuragoes de sujeitos € objetos, de agéncia ¢ representagio, dentro ¢ por meiodessas disputas sobre biopoder. Os interesses sio sobre © que sera contado como unidade e diversidade humana. A familia humana esté em jogo em seus bancos de dados. Sou instruida pelo encontro de discursos, em que genes sao 0s objetos fronteirigos 32. A briga pelo controle da ‘biodiversidade, cla propria um objeto discursive um tanto recente, & complexa, ilobal e repleta de consequéncias para modos de vida. Hayden (1994b) discute 0 acordo de 'prospecgio dha diversidade’ entre Inbio, um instituto ambiental sem fins lucrativos na Costa Rica, ¢ Merck, Sharpe e Dohme, maior firma farmacéutica do mundo. O acordo é um esforgo controverso de controlar a biopirataria ¢ tornar os recursos de biodiversidade em paises em desenvolvimento ‘ricos em genes’ em seu proprio beneficio Arranjos prospectivos de biodiversidade, 0 Projeto de Diversidade do Genoma Humano, permutas de debito por-natureza, a Convengao de Biodiversidade e GATT sio apenas alguns exemplos da estrutra institucional emergente modelando as relagées humanas com a natureza num nundo em que as relagdes da teenociéneia com a riqueza ¢ 0 bem-estar nunca tinham sido mais estreitas. Ver World Resources Institute, Rainforest Alliance e African Center for Technology Studies (1993); Juma (1989) e Shiva (1993). 73 1ES EM REDE RELAGOES MULTIESPE aos outros em em circulagao. Guaymis e agentes estadunidenses combateram uns termos biogenéticos e lutaram para dar forma a esses termos no processo. Talvez os Guaymi nao tenham iniciado 0s discursos da engenharia biotecnoldgica e genética, incluindo seus ramos comercial e legal, mas os panamenhos indigenas estao longe de ser objetos passivos nesses campos materiais ¢ linguisticos, Eles sao atores que esto reconfigurando os discursos poderosos com 0s outros discursos que trazem Para o encontro. No processo, os Guaymi estao se transformando e transformando os/as cientistas internacionais e outras elites de politicas. Os organizadores do HGDP continuaram a tentar reorganizar o plano de Pesquisa, para satisfazer tanto as agéncias de financiamento como as pessoas a serem amostradas, e no final de 1994 0 Comité Executivo Internacional do projeto langou um documento que tinha como objetivo estabelecer a confianga das organizagées dos povos indigenas (KAHN, 1994). O plano revisado prometia controle local sobre pesquisa e protegdo dos direitos de patente dos sujeitos da pesquisa bem como um comité independente estabelecido pela Unesco para aconselhar organizadores de projeto sobre questées de ética ¢ outras questdes controversas que estivessem ocorrendo. Uma provisio-chave é, a fim de desenvolver prioridades cientificas ¢ diretrizes éticas baseadas em condigées e culturas locais, que a pesquisa seja feita © maximo possivel nos paises ou regiées onde as populagdes amostradas vivem. Mas © localismo nao resolverd problemas-chave. As quest6es da propriedade Jade internacional nao desaparecerao, e a natureza cosmopolita e as culturais locais da ciéncia proveem tanto a atra¢io como o perigo no HGDP. Questées de significado cultural, assim como temas técnicos e financeiros, esto em jogo na dialética global-local da tecnociéncia, ¢ pessoas categorizadas como indigenas podem bem ser mais cosmopolitas do que os rotulados Ocidentais em importantes consideragées. Global/local nao se traduz como ocidental/alhures ou moderno/tradicional". A biotecnologia envolvida no HGDP é de interesse de paises prospectivos hospedeiros, e muitos grupos também expressaram interes hos beneficios médicos possiveis bem como em participar de um projeto que contribui para definir a humanidade transnacionalmente. Os europeus estavam entre os primeiros povos indigenas a proceder com a Pesquisa HGDP. Em 1994, a Unido Europeia doou $1,2 milhées para a construgao de 25 laboratérios de Barcelona a Budapeste para o estudo de questées sobre a diversidade genética europeia ¢ a histéria paleoantropolégica. E claro que as ‘ragas’ da Europa também foram centrais para a construcao cientifica da unidade € diversidade humanas no século XIX, e as pessoas em outras partes do mundo nem sempre estavam convencidas de que essa é a forma de pensar sobre a questao. Mas os comités regionais, para dar prosseguimento a0 HGDP, estabeleceram-se na América do Norte, Américas do Sul e Central e Africa, bem como na Europa, enquanto a {ndia, China e Japao recusaram sua participagio no final de 1994 33 Ver Tsing (1993b) para um tratamento etnogeitico sutil das complexidades do que conta como marginal/ central e local/global numa area da Indonésia que também esta no coragio de controvérsias ambientais. 74 3 RAGA (KAHN, 1994). Como era previsto, nativos/as americanos/as organizados/as nos Estados Unidos se dividiram. Os Euchees e Apaches de Oklahoma decidiram participar do HGDP, em parte por causa de seu interesse na pesquisa sobre a genética dodiabetes, um dos problemas de saiide principais dos nativos americanos, ‘Ao mesmo tempo, no verio de 1994 uma ampla coalizio de organizagdes nao governamentais de consumidores, indigenas e ambientais, trabalhando sobre desenvolvimento, distributuum documento, chamando todos os participantes “[..] para trabalhar com movimentos paralelos liderados por nagées indigenas para climinar o financiamento federal ao Projeto de Diversidade do Genoma Humano” (BEREANO, 1994, press release). A razio principal era o potencial de comercializagao, especialmente em forma de patentes dos genes e proteinas, sem beneficios para as populagées amostradas cujas partes do corpo se tornariam espécimes de museu na atualidade. Os europeus também mostraram uma resisténcia consideravel a febre de patente que ataca a biotecnologia na América do Norte, ¢ 0 Parlamento europeu legislou que pesquisa com financiamento publico nao devia resultar em patentes mantidas privadamente (BEREANO, 1994). Um leitmotiv complicado na disputa da linha celular Guaymi nos faz retornar as narrativas, imagens € mitos com os quais quero concluir esta meditagao sobre a familia humana, No meio da polémica, Pat Mooney, do RAFI, foi citado como 0 que afirmou: Quando um governo estrangeiro vem para um pais, tira sangue sem explicar as implicag6es reais para 0 povo local € entio tenta patentear ¢ Iucrar através da linha celular, isso € errado. A vida deve ser sujeita a monopélios de patentes (RAFI, 1994 p.7), Apartedomonopéliodapatenteésuficientementeverdadeira, maspenetral por um poder estrangeiro, para tirar sangue, evoca muito mais do que questées de propriedade intelectual. Na verdade, algumas organizagées indigenas, criticas do HGDP, denominaram-no de “...] projeto vampiro” (KAHN, 1994, p. 721). Nao posso evitar ouvir a citacio de Mooney no contexto de estorias periodicamente vindo a tona na América Latina sobre norte-americanos roubando partes do corpo, chupando sangue e sequestrando criangas para serem doadoras de érgaos. A precisao factual dos relatos nao esté em questio, embora eu fique estarrecida com os padrées de evidéncia duvidosos para os quais 0s comentaristas apelam quando as estdrias aparecem em artigos € programas de entrevista. O que importa neste capitulo sao as proprias estorias, isto é, a imediata associagao de tecnociéncia com os reinos dos mortos-vivos, contos de vampiros e trafico transgressivo nos tecidos sanguineos da vida. A amostragem de sangue nunca é um ato simbdlico inocente. O fluido vermelho é muito potente e as dividas de sangue sao muito correntes. As estorias esperam 4 espreita mesmo para as mentes mais cuidadosamente literais. As tradugdes de sangue nos fios pegajosos do DNA, mesmo nos bancos de dados ascéticos 75 RELAGOES MULTIESPECIES EM REDE do ciberespaco, herdaram 0 poder de duplo sentido do fluido precioso. O genoma vive no reino do morto-vivo em miriades de maneira que nao podem ser contidas por intengées racionais, explicagdes explicitas e comportamento literal. As estérias chegam até estruturas de poder e fantasia que devem ser enfrentadas em toda sua verdade fantastica deslocada. ‘A Tabela 1 ‘Nascimentos Noturnos e Progénie Vampira’ é um guia rudimentar para uma mindscula regio de um territério minado. Meu mapa (‘Tabela 1) se baseou em trés publicagées muito conhecidas na cultura profissional técnico-cientifica ¢ na cultura popular. Prosseguindo com a ldgica sintomatica deste capitulo, minha técnica é uma leitura afiada resoluta. Nao conhego estratégia melhor para lidar coma normalidade infestada de vermes do discurso racional. Apenas diga 0 6bvio. Diga o que nao devia ter sido dito. Tabela 1: Nascimentos noturnos e progénie vampira Noiva vestida de ; OncoMouse™ Gorila simEve Fonte de Imager Seer pe Revista Science ‘American Medical Revista Time News Categoria de parentesco Pratica reprodutiva Raga cibergénese através de morphing espécies familia engenharia gen investimento Maus investimentos produzem prole partenogénese poluida nascimentos noturnos no laboratério Alquimia invertida iluminismo cientifico. transforma ouro em metal comum crias da mente (mind Narrativas e mitos children) alegoria da caverna de _heterossexualidade Platio ieee Trilogia de Orestes noiva comdente de —_-Pigmalio e Galateia vampiro busca herdica ‘amor que permanecera para sempre niio correspondido’ ‘onde coisas melhores “Se voc® fez uma Slogan para uma vida melhor — alianga ganham vida’ Profana [...I” Fonte: A autora (1997), Aparecendo varias vezes na revista Science em 1989-1990, 0 maravilhoso antincio da Du Pont sobre 0 OncoMouse™ (OncoRato®), 0 primeiro animal patenteado no mundo, prové meu primeiro texto Stalking cancer (Encurralando 76 © cancer)". OncoMouse™ contém uma pequena porgao de DNA que causa cancer, denominada de oncogene, derivada do genoma de outra criatura ¢ implantada por meio de técnicas de engenharia genética. Num modelo para pesquisa em cancer de mama, 0 roedor redesenhado é como uma ferramenta de maquina nas oficinas da produgao de conhecimento. OncoMouse™ é um animal transgénico cuja cena de evolugao é 0 laboratério. Habitando a natureza de nao natureza, o habitat natural de OncoMouse™ é 0 espago completamente artefatual da tecno-ciéncia. Simbélica e materialmente, OncoMouse™ esté onde as categorias de natureza e cultura implodem para os membros das culturas técnico-cientificas. Justamente por essa razo, o rato tem estado no centro da controvérsia desde sua produgio. Definido por um genoma emendado, identificado com um nome emendado, patenteado e marcado com um registro, OncoMouse™é paradigmatic da natureza empresariada. O que me interessa aqui, entretanto, sao as estérias que esto incrustadas como cracas na impressionante imagem do antincio. O rato branco da Du Pont esté no centro de uma narrativa de viagem ou expedigao heroica e parte de uma cagada nobre em que 0 inimigo cancer é acuado. Epistemofilia e busca lasciva pelo conhecimento de origens est em toda parte. O rato sobe de uma caverna geométrica na forma de titero em diregao 4 luz do conhecimento, evocando os elementos narratiyos do Huminismo Ocidental e da alegoria da caverna de Platio, OncoMouse™ esti ‘disponivel para pesquisadores/ apenas através de Du Pont, onde coisas melhores para viver melhor ganham vida. Querendo ou nao, somos catapultadas/os nos campos nar Frankenstein € seu monstro ¢ todas as outras cenas fascinantes de nascimentos noturnos na cultura mitolégica da ciéncia, O laboratério repetidamente figura como um lugar misterioso, onde entidades que no se enquadram, nao pertencem, nao podem ser normais - que transgridem categorias previamente importantes ~ ganham vida. Sou atraida pelo laboratério por essa narrativa essencial de poder epistemoldgico e material. Como poderiam feministas ¢ antirracistas nessa cultura prescindir do poder do laboratério para tornar 0 normal dtibio? Preeminente ambivaléncia ¢ visitagdes fortes de um inconsciente culturalmente especifico, entretanto, sdo o pre¢o dessa alianga com as criaturas da tecno-ciéncia. A revolugio se movimenta aqui, com todo seu poder de reconfigurar 0 parentesco. Nas zonas prolificas do morto-vivo, as categorias de parentesco da espécie sio desfeitas e refeitas, muito frequentemente A fora. Consciente ou inconscientemente, quem quer que tenha desenhado esse antincio sabia todas as estérias certas. O iluminismo nunca esteve tao prenhe de consequéncias ~ semioldgicas, financeiras ¢ tecnolégicas ~ para a familia humana. ivos que contém A produgio de imagens da familia é muito mais explicita e para Id de ameagadora no meu préximo texto, um antincio do Gerenciamento Médico Pré- 34 Reproduzido com permissio da Du Pont NEN Products. Em 19 de maio de 1995, a Du Pont anunciou sua intengio de se destazer de seus negcios de produtos médicos. Os antigos negécios da Du Pont NEN Products se tornario NEN Life Science Products i RELACOES MuLTiEsPEcies Pago e Cia. (Prepaid Medical Management, Inc.- American Medical News em 7 de agosto de 1987. Pi ajuda-los a sair de contratos nao lucrativos com EM REDE PreMed), que foi publicado 78 teMed diz aos médicos que po . organizacgées de manutengao da HMOs) que tenham prometido uma i ' as, ao invés base de paciente e cuidado de qualidade financeiramente segura mas, a0 im “ee vas para 08 disso, deram os lucros Para distantes acionistas e altas taxas administrativas para médicos. Pré-Med afirm aj com vistas ao lucro, em, que mui 04 sao cobertos por planos piiblicos que pagam mi as seguradoras privadas. Embora nao se amplo, o aniincio apareceu itos pacientes néo tém seguro, tem. seguros ban tito menos pelos servigos do que teferindo diretamente ao contexto a no meio de uma epidemia de publicidade nacional @ grande quantidade de pacie ntes de Medicare e Medicaid nos HMOs urbanos, a, Americanos viciados em crack e mies e bebés infetados pela AIDS nas cidades fated Rat is ; nte interior € astrondmicos custos de seguro Por falta profissional, particularme para obstetras urbanos, O texto verbal no antincio do Pr ou classe, mas acho que esses cédig reduzidas riscos aumentados” quantidade de pacientes pobres qu realidade mais complicada, cond esses/as pacientes pobres de alto americanos/as em sua esmagador: verbal sobre uma alianga profana eMed (1987) nao faz referéncia a raca, género Os estruturam © antincio. “Aceitagio de ere € um cédigo para aceitagéo de uma grande © no tem seguro privado. O cédigo, se nao um: luz tendenciosamente os/as leitores/as a ae Fisco como pessoas de cor, especialmente a @ maioria. A cena visual do casamento ¢ ° tex! e impelem o leitor a ver a paciente como fémea Preta eo médico como macho e by é a ‘miscigenacio, © Fanco. Uma alianga profana é a ‘miscigena¢a monstro que chupa sangue no coracao do terror racista e misdgino”. 0 velar duas vezes da noiva que faz 0 aniinci® cle literalmente cobre com uma piada: a pele nidense ea retirada adicional de servicos melee - Um homem branco de aparéncia préspera, me exata quantidade de cabelos Brisalhos, vestindo jaleco branco de médico ¢ he um estetoscépio est colocando uma alianga de ouro no dedo anular de un ee fantasiada de gorila negra, vestida de branco, com véu e grinalda, A nol duplamente ausente da cena, Presentes esto apenas dois disfarces: 0 vestido | a noiva € a fantasia de gorila, A implicada mulher negra infetada ou viciada ae ue esta sempre, no cddigo, na assisténcia ‘ocial, é negada de saida®®, A superfi 36 Uma pesquisa nacional d le 3 mithoes de dot 52 hospitais em todo o pats em 1992 su }entesubstincias que podetiam prej am alu ares sobre gravider. sate de 2.613 mulheres que ses Bere quantas e quais mulheres gravidas nos Estados en iicaro fto (o fato mais importante numa tomada de dec 78 3 RAGA do amtincio insiste que sou eu, e nao o PreMed, que est fazendo a conexao da noiva vestida de gorila com as mulheres afro-americanas e também colocando a cena do casamento no contexto do cuidado da satide reprodutiva. Ser que eu nao posso entender uma piada? Mas meu poder de me divertir estd corrompido pela meméria pungente de exatamente onde as mulheres afro-americanas cabem historicamente nos sistemas de casamento e parentesco no patriarcado heterossexual branco dos Estados Unidos. A miscigenagao ¢ ainda um sinénimo racista nacional para infeccdo, um assunto impostor inadequado para carregar 0 nome do pai ¢ um futuro arruinado. A historia amarga da animalizagao cientifica e médica do povo especialmente na grande corrente do ser que associava contribui com relatos para meu pobre senso de humor. inocente aqui, € as boas intengdes nao de descendéncia africana, Macacos e pessoas negras, A fantasia de gorila nao pode ser uma piada sto uma desculpa, Os disfarces mentirosos ndo podem esconder o que eles negam. noiva émenos uma gorila viva - ou reconstruida~ do que um monstro morto-vivo. Ela nao é uma criatura num diorama de Akeley, cujos tipos naturais sempre brilharam com satide. A noiva vestida de gorila é um tipo de nao tipo. Seus labios esto entreabertos apenas o suificiente para mostrar o brilho do dente branco brilhante. A noiva é um vampiro equipado com a ferramenta para chupar 0 sangue do marido e poluir sua linhagem. O dente brilhante ecoa 0 ouro brilhante do anel de casamento, A noite de nuipcias prevé o mal. O tropo convencional do marido- cientista da natureza, gerando 0 fruto sagrado do conhecimento verdadeiro no Utero do corpo da esposa, é trazido aqui com modificagées desalentadoras. Uma metifora para o poder magico da ciéncia, a alquimia trata das praticas sexuais geradoras do oficio, que so uma espécie de casamento que produz ouro a partir Masessa uma HMO), Realizado para o Instituto Nacional de Abuso de Drogas e publicado em sctembro de 1994, 0 estado conclul que mais de 5% das 4 milbes de mulheres dos Estados Unidos que deram a uz em 1992 Usavam drogas Hts, enquanto em torno de 20% usavam cigarrosedleool, Fumantes ¢ bebedoras eram thal prope asa droga feitas do que as que se abstinham de anole nicotine. As mulheres brancas cram mi rropensas a bebere fomar durante a gravider do que as mulheres de cor 23% das mulheres Bramcas Bellon comparndas «16% das afforamericanas © 9% das bispanicas, 24% das mulheres brancas famavann, comparadas a 20% das nepras © 6% das hispanicas) As categoria racials agul slo grosseras € Pareles nae mead asim tém uiidade Kiitada. Mulheres pobres, menos instruidas, desempregadas e Tolley cram sna propensa usar drogas cts do que as mulheres mais privlegiadas. Em tormo de 11% ths mulheres geivde ro-americanasusavam drogas,comparadas a 5% das brancas¢ 4% da hispinicas mndes cxpectortes Ios nda significa que mals da metade das 221 mil mulheres grévidas que usavam drogas Teen saan erem negras, 28 mil, hispinias, Alcool etabaco podem prejudicar um feto em Tas com menos estigma sociale financeiro. Em geral, desenvolvimento tanto ou mais do que drogas ilicitas, conor i 420,000 bebés nasceram de fumantes e 757.000, de bebedoras. © mesmo bebe pode aparecer em todas as categorias de usuarias. O estudo mostrou que a maloris ‘das mulheres tentava evitar 0 uso de drogas ites coe cigar durant gravider mas poucas que usava ess substincis poderosas consegulram Chas encarta Yer Connell (1994, p. AZ). A necessidade de tratamento de apoio no punitivo para mulheres que tentava ter nna gravier saudivel no poderi ser mais lara, Com programas pré-mulheres Fe eee erate acias prontamente disponivels para aquelas com quaisquer desses vcios, aumentar a renda e melhorar a educagio das mulheres te as medidas de saiide pablica mais bem- sucedidas, Tais medidas venceriam de longe os saiide materna e da crianga de unidades Fe mda veal em hospitas de alta texnologa, sem mencionar os resultados dibos para a saiide da criminalizagdo das usudrias. Huma alana perversa ene a madicina como Stier milhoes de mulheres grividas nes Estados Unidos, ela se reflete na renda dos méiicos compares cit 6 renda das mG ee ecteside Pach A dlreeap do. fica ds fitidos peciowes 40 conpo 6. rereso Gk Siaetdeip eo dente brilhante ea alianga de ouro do anincio da PreMed. 79 5 EM REDE RELAGOES MULTIESPECI de metal comum. A alquimia trata de aliancas sagradas, casamentos verdadeiros com criangas radiantes. No antincio do PreMed (1987, advertisement), a narrativa é revertida e uma alianga profana ameaga alterar 0 ouro prometido de um investimento na carreira médica em um metal comum de uma pratica nao produtiva: Se vocé fez uma alianga profana, talver possamos ajudar. Contate PreMed e deleite-se com o fruto de uma unio produtiva. Seja flexivel faga os ajustes estruturais requeridos para estimular a produgao de riqueza - © seu fluxo ascendente para as classes profissionais merecedoras. Deixe essa alianga no natural ¢ nao lucrativa com os corpos infetados. Uma vida saudivel em familia exige nada menos do que isso. Oaniincio do PreMed quase parece estar fora de seu tempo. Nao deveria ainda ser possivel publicar tal imagem numa revista médica cientifica. Mas é possivel. O ressurgimento feroz do discurso explicito racista, sexista e classista de muitos tipos em todo 0 mundo, e exuberantemente nos Estados Unidos, di toda permissio possivel para essa piada apenas implicita ¢ latente. Meu terceiro texto, em contraposi¢ao, quer estar firmemente do lado dos anjos antirracistas. Todos os sinais do multiculturalismo liberal perpassam a imagem da capa da revista Time em seu nimero especial sobre o tema da imigragio no outono de 1993 com a chamada: A Nova Face da América (‘THE NEW FACE OF AMERICA, 1993). Resulta que esses anjos, entretanto, existem no ciberespaco. A capa da Time é um retrato morphed de um ser que denomino de SimEve. No fundo ha uma matriz de seus parentes cibernéticos misturados, todos resultando de diferentes cruzamentos raciais, efetuados por um programa de computador. “Dé uma boa olhada nessa mulher. Ela foi criada por um computador a partir de uma mistura de varias ragas. O que vocé vé é uma notavel pré-estréia de [. Nova Face da América” (THE NEW FACE OF AMERICA, 1993, capa, tradugao nossa). Realmente. Somos abruptamente transportados de volta a uma ontologia de banco de dados e 0 casamento de genomias e informatica nos mundos de vida artificial que reconstituem 0 que significa ser humano. Aqui, a categoria tao etérea e tecnicamente reconfigurada é a raga. Numa estranha atualizacdo computadorizada das categorias tipolégicas do século XIX e principio do século XX, 0 programador que deu & luz a SimEve ¢ seus muitos irmaos e irmas gerou a sintese racial ideal, cuja tinica existéncia possivel esta nas matrizes do ciberespago. A engenharia genética nao esté ainda pronta para a tarefa, entao ela fica a cargo apenas das ciéncias da computagao por enquanto. Cheia de informagio nova, a Primeira Familia reconstruida por Jay Matternes teve uma mudanga de forma transgénica, para reemergir do titero do computador da Time como cidadaos ideais adequados ao Renascimento da América. Se o laboratério genético biotecnolégico cra o habitat natural e a cena evolucionaria fundindo natureza e cultura para a o de OncoMouse™ da origem da vida, a estéria original de SimEve acontece ver: 80 3 RAGA no primeiro programa de morphing para computador pessoal, denominado Morph 2.0, produzido por Gryphon Software Corportion”. Essa tecnologia provou ser irresistivel nos Estados Unidos para o discurso de parentesco racializado de cultura de massa nos anos 1990 sobre unidade e diversidade humanas. Nunca tinha havido um brinquedo tao bom para extravasar fantasias raciais sexualizadas, ansiedades e sonhos. O devaneio comega em um morphing de cruzamento especifico com as irresistiveis faces compostas de humanos e chimpanzés, geradas por computador na capa da Enciclopédia da evolucaio humana de Cambridge, de 1992, Como todo retrato, essa fotografia registra e modela a identidade social. Sobriamente olhando diretamente para o/a leitor/a, a face madura é inteligente e bonita. Como as reconstrugées taxidérmicas de Carl Akeley, essa face morphed alimenta uma fantasia profunda de toque por meiodas categorias étnico-especificas de natureza e cultura. Nao enquadrada por tal especificidade, a face parece trazer uma mensagem sobre uma transformacio original na histéria natural universal. No registro humano contemporaneo, os antincios da Gillette na televisio mostram a transformagao das faces dos homens uma na outra por meiode um espectro racial, produzindo um utépico vinculo masculino multiétnico, No nimero da Grande Moda Americana de setembro de 1994 da revista Feminism-lite Mirabella, o pré-eminente fotégrafo Hiro produziu uma imagem de capa, gerada por computador a partir de muitas fotos de mulheres multirraciais ¢ multiétnicas de uma beleza requintada. Respondendo a uma solicitagao dos editores de dar- Thes uma foto que representasse a diversidade da América, Hiro fez uma mulher simulada (¢ com a pele muito clara)”. Um mimisculo chip flutua pelo espago proximo a sua face deslumbrante. Leio 0 chip como um sinal de inseminagao, do poder criativo seminal de Hiro, um moderno Pigmaledo/Henry Higgins criando sua Galatea/Eliza Doolittle”, Porém, 0 poder seminal nao é apenas de Hiro, mas do 37, Vendlido no prinefpio de 1994 por 239 dolares para maquinas Macintosh e por 169 délares para Windows, Morph foi amplamente usado por cientistas, professores/as, designers de efeitos especiais de filmes de Hollywood, homens ¢ mulheres de negocios fazendo apresentagoes, e pessoal de fazer cumprir a let, por exemplo, em casos de criangas desaparecidas madando-se a idade através do tempo. Um competidor no mercado, PhotoMorph, veio com grificos para praticar ~"[.] mulher virando homem, uma menina virando uum cio pastor, um sapo virando gelinha” (FINLEY, 1994, 11-2), Finley ilustrou seu artigo com uma série de transformagbes morphed entre os competidores gigantes de computadores pessoais, 0 cofundador da Apple Computer, Steve Jobs, e o fundador da Microsoft, Bill Gates. As fusdes comerciais na Nova Ordem ‘Mundial podem ser feitas de muitas maneiras. Desnecessério dizer que quem quer que ainda acredite no status documentirio de fotografias nao deve obter uma cépia de Morph, ir a0 cinema, ou olhar para as fotos de criangas desaparecidas nas caixas de lete 38 Fotografias morphed por Nancy Burson. Agradeco a Ramona Fernandez, da Universidade da California, em Santa Cruz, por enviar-me esse exemplo. 39 Agradeyo a Giovanna Di Chiro, Universidade da California, em Santa Cruz, pela dica sobre essa imagem & pelos comentarios de Hiro no Today Show, de 17 de agosto de 1994. 40 A chip do computador imprime sua forma na mulher morfada, a chip informa sua progenitura eletrénica em doutrinas aristotéicas duradouras de autorreprodugio masculina que impressionaram pensadores no Ocidente durante muitos séculos. O aperfeigoamento da cépia do pai na crianga poderia ser prejudicado pela falta de transparéncia no ambiente da mie. As mutagées sobre esse tema proliferam no ciberespago, assim como em muitos tteros técnico-cientificos no final do Segundo Milenio Cristio. Para uma discussio, que 81 RELAGOES MULTIESPECIES EM REDE poder gerativo da tecnologia. O préprio Pigmaledo foi morphed; ele se tornou um programa de computador. Internacionalmente, os antincios da Benetton, incluindo suas transformagées raciais morphed e sua revista The United Colours of Benetton, so as mais famosas. Como Celia Lury expressou, evitando a distingao entre tecido e pele, Benetton lida com a cor da pele como numa paleta de moda (LURY, 1994). Benetton produz uma pan-humanidade impressionantemente bonita, jovem € elegante, composta de técnicas mix-and-match. A diversidade, assim como 0 DNA, 60 codigo dos cédigos. Raga, nas palavras de Sarah Franklin (1994), torna-se um acessério da moda. O pop star Michael Jackson traz esse tiltimo ponto a sua perfeigéo maxima. Expandindo 0 ambito das tecnologias corporais, escolhidas e impostas, indo da cirurgia cosmética, doenga genética da pele, performance erética na vida privada € ptiblica, roupas, trajes, videos musicais - e envelhecimento mortal apesar disso tudo -, as praticas de formatagio de Jackson 0 remodelaram em termos de raga, sexualidade, género, espécie e geragio. No video musical Black and white, Jackson se formatou racialmente através do computador. Na ‘vida real’, enquanto uma doenga de pele clareou sua pele, ele alterou suas feigées por meio da cirurgia cosmética, que produziu efeitos de raga, geragao e género. Sua persona infantilizada € suas supostas relagdes transgressivas com meninos jovens 0 morfaram em uma permanente figura de Peter Pan, ainda que nao completamente popular ou idénea. Sua performance no Epcot Center da Walt Disney na produgao Captain E / O, de ficgdo cientifica de 15 minutos em 3-D, arremata 0 quadro. Sobre 0 assunto Ramona Fernandez (1995, p. 245) escreve Michael Jackson usa 0 seu corpo de um modo figurado (tropes the body) constantemente [...]. Em Captain E / O Jackson & 0 Mickey , também, um Peter Pan pés-moderno acompanhado por corpos criados por Lucas [...]. Seu corpo trans-mutante atua e re-atua as miltiplas problematicas de raga, geragao e genero. Analisando as transmutagées de Jackson de si mesmo e outros por meio da tecnologia de video computadorizada em Cledpatra, zumbi, pantera, maquina e super-herdi, Fernandez (1995) localiza a alteragao de forma de Jackson, significante socialmente nas tradi¢ées das praticas de truques afro-americanas. A diferenga entre humano e maquina, assim como as diferengas entre espécies, sao todas um jogo limpo para as narrativas antiorigem de Jackson. Como escreve 0 bidlogo Scott Gilbert, “Se alguém quisesse achar 0 morph intermedidrio de raga, género e classe, Michael Jackson pode bem ser ele. Isso 0 faz um representante da fic¢ao cientifica da humanidade: e isso é exatamente como ele se representa em Captain E/O” (GILBERT, 1995, grifo do autor)*'. Isso é a humanidade de acordo com Epcot, serve de base para meu capitulo, de doutrinas de impressio, reprodugao e santidade em mulheres medievais santas, ver Park (1995), 41. Scott Gilbert, comunicagio pessoal por e-mail, 26 de setembro de 1995, em resposta a uma versio prévia de Universal Donors. Agradego a Gilbert por ter insistido que eu incluisse Black and white. 82 3 RAGA em que um potente curinga se meteu no monumento por uma América limpa e saudavel”, Comegando como um menino afro-americano sem ambiguidades com um notavel talento, Jackson se tornou nem preto nem branco, nem macho nem fémea, nem homem nem mulher, nem velho nem jovem, nem humano nem animal, nem pessoa histérica nem figura mitoldgica, nem homossexual nem heterossexual. Essas mudangas de forma foram efetuadas por meio de sua arte, a tecnologia médica e computadorizada de sua cultura e as peculiaridades de seu corpo. Certamente nem mesmo seu casamento breve, especialmente com a filha de Elvis Presley, poderia salva-lo do estigma do morphing oximoramente incapaz de ser erradicado. Ciéncia € ficcdo implodem com forga especial no corpo icénico de Michael Jackson, que é um tesouro nacional de primeira ordem. Jackson, entretanto, é um representante muito menos seguro para 0 renascimento da nagio do que a suavemente homogeneizada SimEve da revista Time, Nao se limitando a especialistas trabalhando em corporagées transnacionais, revistas semanais de noticias, enciclopédias oficiais, divertimentos mundiais, 0 morphing é um esporte reprodutivo participante também. Em Las Vegas, no Luxor, na entrada para a tumba reconstruida do rei egipcio Tutankhamen da 18* dinastia no cassino de jogos, hd uma maquina de morphing que parece uma cabine de fotos comum em que se pode tirar uma foto rapidamente. Por cinco délares, pode- se entrar na cabine, selecionar a op¢do ‘maquina de gene, indicar se vai se estar reproduzindo com um/a parceiro/a vivo/a ou com um modelo do video (humano ou animal) e entao fazer mais escolhas relativas a raga e sexo da crianga resultante. A maquina de morphing nao é muito exigente sobre o sexo bioldgico do material parental. O menu racial para a crianga é afro-americano/a, hispanico/a, asidtico/a e caucasiano/a. $6 se a pessoa escolhe caucasiano/a, ha mais escolhas, uma crenga que nao é pouco familiar, mas as escolhas se limitam 4 cor dos olhos e cabelos. Ai a maquina fotografa os futuros pais, combina-os digitalmente e langa uma crianga com as especificagées desejadas. A crianga vem em varias idades, desde a primeira infancia até a adolescéncia. A maquina de gene é apenas outra forma de jogar as combinagées em Las Vegas no final do milénio. Tudo isso certamente nao sao as tipologias naturalizadas do Patriarcado Teddy Bear" do discurso racial do principio do século XX. Nem, nesses exemplos culturais populares, incluindo a SimEve da Time, estamos sujeitados a versio 42. Fernandez (1995) enfatiza o tema do curinga em sen ensaio sobre viagem através dos muitos mundos de Disney, lendo com as misturadas literaturas culturais necessarias nos Estados Unidos da virada do século. 43. NT: Teddy Bear Patriarchy: taxidermy in the garden of Eden é 0 titulo do capitulo 3 do livro de Haraway, Primate visions: gender, race, and nature in the world of modern science, publicado em 1989 pela Routledge. capitulo trata do African Hall, criado por Carl Akeley, no Museu Americano de Historia Natural, que Haraway estuda no principio do presente capitulo, O African Hall fica no prédio central, 0 Memorial ‘Theodore Roosevelt. Teddy € 0 apelido de Roosevelt e ‘Teddy Bear é o nome dado nos Estados Unidos a0 ursinho de pehicia das criangas. Esse nome vem de uma charge em que Roosevelt é retratado salvando a vvida de um ursnho, Haraway esta fazendo um jogo de palavras com a expressio Teddy Bear Patriarchy para nomear o African Hall com os primatas empalhados no Memorial de Roosevelt. 83 RELAGOES MULTIESPECIES EM REDE PreMed de cruzamento racial-sexual. Entéo por que me sinto tao desconfortavel? Eu nao deveria estar feliz que seja tio ébvia a natureza patentemente construida das categorias raciais e de género? Em face do 6dio racial que ressurge por todo lado, 0 que hé de errado com uma ideologia um pouco dbvia de multiculturalismo butterbrickle? Vamos ter sempre de pedir um caminho pedregoso? Estou apenas tendo um ataque de correcao politica que inevitavelmente vem quando se induz nos prazeres do mercantilismo da alta tecnologia no capitalismo multinacional? Por que A Familia do Homem das Nagées Unidas nao deveria ser formatada na United Colours of Benetton da Nova Ordem Mundial? Certamente a fotografia avangou, ¢ a familia humana parece naturalmente ser a est6ria do progresso da tecnologia. Para tratar do desconforto, daremos uma olhada melhor no ntimero especial da Time sobre imigracao. Na nota do editor-gerente na pagina 2, ficamos sabendo que o especialista de imagem, Kin Wah Lam, criou a matriz de progenitura a partir das fotografias de sete modelos homens ¢€ sete modelos mulheres, cada um/a designado/a para uma categoria étnico-racial. As fotos de cima (mulheres) as do lado (homens) foram eletronicamente emparelhadas para produzir a prole cibernética, Cada figura é um busto nu com uma face agradavel, mas sem intensidade, um homem ou uma mulher naturais, melhorados modestamente por uma maquiagem leve e um penteado simples. Todas as figuras sao de adultos jovens, € todas as unides so castamente heterossexuais, embora 0 computador pudesse fazer um pouco melhor do que a tecnologia de ovos € esperma nesse particular. Em sua defesa, 0 objetivo dos editores era “[...] dramatizar 0 impacto do casamento multi-étnico, que cresceu dramaticamente nos Estados Unidos durante a ultima onda de imigragao” (TIME, 1993, editorial). Ainda assim, 0 tropo do casamento heterossexual reprodutivo esta tao firmemente assentado aqui como nos mundos de Os Fazedores de Pegadas do Féssil de Laetoli ou A Familia do Homem. A mistura da imigragao poderia ser dramatizada por varias outras praticas. O senso de completa homogeneidade que emana da matriz de diversidade da Time é entorpecente. Pretos/as nao so muito pretos/as, louras/os néo sio muito louras/ 05; 0 ambito da cor da pele requereria a melhor cromatografia para distinguir uma provavel tonalidade de dourado de outra, Essas figuras da nova humanidade se parecem com o que imagino pareceria um catdlogo de replicantes em liquidagio saidos de Blade Runner — jovem, bonito/a, talentosa/o, diversa/o e programada/o para realizar os desejos do/a comprador/a e entao se autodestruir, Diferentemente das terriveis cenas de supremacia branca de Birth of a Nation em 1915, nada sobre raga € etnia no Renascimento de uma Nagao da Time fala sobre dominagao racial, culpa e édio. Nada aqui é assustador. Entao por que estou tremendo? Como Claudia Castafieda coloca em seu argumento sobre a familia estadunidense global, o racismo aqui nao consiste no estabelecimento de uma hierarquia para a dominagao baseada na diferenga racial biolégica ou mesmo cultural, Sua violéncia consiste na evacuagéo das histérias de dominagao e resisténcia (e de todos aqueles acontecimentos e modos de vida que nao podem 84 3 NACA ser capturados nesses dois termos) ‘através’ da reprodugio tecnolégica (mas ainda decididamente heterossexual) (CASTANEDA, 1994)". As negagoes € evasdes nesse exercicio tecnofilico liberal e antirracista so pelo menos tao pesadas como as do anuncio do PreMed. Toda a historia sangrenta, contida na palavra ‘misci esta faltando no sanitizado termo morphing. O multiculturalismo e a mistura racial na revista Time so menos conquistas em contraste com os pressagios de tanta dor do que uma receita de como ser inocentemente arrebatado de um tempo mundano para um tempo de redengao. A resoluta auséncia de histéria, do corpo carnoso que sangra é 0 que me assusta. A reconfirmagao da Imagem Sagrada do Mesmo, mais uma vez sob o signo da diferenga, é 0 que ameaga 0 renascimento nacional. Quero algo muito mais bagun¢ado, mais perigoso, mais denso e mais gratificante da esperanga do multiculturalismo. Para chegar a essa espécie de parto da satide reprodutiva nacional, vai ser preciso lidar com poder, privilégio, exclusa e exploragio racial e sexualizada do passado e do presente. Desconfio que a nai tera que engolir o dleo de ricino da s6bria responsabilidade por tal sexo racializado antes que morphing parega divertido para a maioria de seus/suas cidadaos/as". Ao lado da foto do especialista de imagem, rotulado com um titulo classicamente orientalista, Lam cria uma imagem misteriosa, 0 editor gerente da Time nos fala ainda mais sobre a ciber-gén dos tragos raciais e étnicos usados para produzir o quadro, cla é 15% anglo- sax6nica, 17,5% do Oriente Médio, 17,5% africana, 7,5% asidtica, 35% da Kuropa do Sul e 7,5% hispanica. Mal sabiamos onde estévamos nos metendo, A medida que espectadores observavam a imagem de nossa nova Eva comegando a aparecer na tela do computador, varios dos membros da equipe se apaixonaram. Um diss “Realmente parte meu coragdo saber que ela nao existe”. Simpatizamos com nossos colegas amantes, mas mesmo a tecnologia tem seus limites. Esse é um amor que vai ter que ficar para sempre nao correspondido, da mulher da capa: uma combinagao Os temas que percorreram esse ensaio implodem nesse improv negro. Categorias étnicas racializadas do principio do século reaparecem com entradas num banco de dados para uma anilise estatistica verdadeiramente estranha de populagio, Uma mulher virtual, paternada como Galatea, resulta na criatura de Pigmaledo, por quem ele se apaixona. O curioso erotismo da reprodugio monoparental, masculina, tecnofilica nao pode deixar de ser notado. SimEve é como a Atena de Zeus, filha apenas da mente seminal - do homem e do programa de computador. A lei da nagdo, como a colocada por Atena para Atel na trilogia de Orestes, sera a Lei do Pai. As Furias no ciberespago nao ficarao 44 As interpretagdes de Castafieda e minhas dessas figuras no nimero da Time evoluiram juntas em conve sta participagio em uma palestra minha num colbquio de Historia da Consciéncia em 9 de fevereiro de 1994, e minha leitura de seu trabalho. Também usei as eituras dessas imagens de estudantes da graduagio no exame final de meu curso Cigneia ¢ Politica no outono de 1993. 45 Enquanto isso, adequando-se & anilise de que Emily Martin trata em Flexible bodies, as corporagées estadunidenses tentam capitalizar numa versio particular do multiculturalismo. Para sim argumento sem cembarago, ver Fernandes, (1993) 85 RELAGOES MULTIESPECIES EM REDE satisfeitas. Na narrativa do amor romantico, SimEve para sempre excita um desejo que nao pode ser realizado. Esse é precisamente 0 mito que infunde os sonhos de transcendéncia tecnolégica do corpo. Nesse erotismo técnico-cientifico estranho, mas convencional, os limites reais da tecnologia apenas estimulam o desejo de amar © que nao pode existir € nao existe. SimEve é 0 novo humano universal, mae da nova raga, figura da nagao; e ela é um composto gerado por um computador, como 0 préprio genoma. Ela é a prole de segunda e terceira ordens do ramificado cédigo dos cédigos, Ela assegura a diferenga da nao diferenga na familia humana. CONSIDERAGGES FINAIS Através deste capitulo, o discurso racial persistentemente girou em torno da higiene sexual, e a cena terapéutica foi o teatro da natureza na cidade da ciéncia. Estou morta de cansaco de criar vinculos por meio do parentesco ¢ a familia e anseio por modelos de solidariedade ¢ unidade e diferenga humana com raizes em amizade, trabalho, objetivos, parcialmente compartilhados, dor coletiva intratavel, mortalidade inescapavel ¢ esperanga persistente. E, tempo de teorizar um inconsciente nao familiar uma cena primitiva diferente, em que tudo nao provenha de identidade e reprodugao. Lagos através do sangue ~ inclusive sangue relangado na moeda dos genes e informagio - jd foram sangrentos demais. Acredito que nao haver paz. racial ou sexual, nenhuma natureza vivivel, até que aprendamos a produzir a humanidade através de algo aquém e além do parentesco. Acho que estou do lado dos vampiros, ou pelo menos alguns deles. Mas, ai, desde quando podemos escolher que vampiro perturbaré nossos sonhos? REFERENCIAS APPIAH, Kwame Anthony. Racisms. In: GOLDBERG, D. T. (Ed.). Anatomy of racism. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1990, p. 3-17. APPIAH, Kwame Anthony. ‘The uncompleted argument: du bois and the illusion of race. Critical Inquiry, Chicago, v. 12, no. 1, p. 21-37, 1985. BARKAN, Elazar. The retreat from scientific racism: changing concepts of race in Britain and the United States between the world wars. New York: Cambridge University Press, 1992, BEREANO, Philip. Broad coalition challenges patents on life. Press Release, n. 6, jun. 1994, BRANDON, Robert; BURIAN, Richard (Ed.). Genes, organisms, populations controversies over the units of selection. 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