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René Guénon OS SIMBOLOS DOIN SAGRADA A importancia dos simbolos na transmissdo dos ensinamentos doutrinais de ordem tradicional. RENE GUENON OS SIMBOLOS DA CIENCIA SAGRADA Tradugdo de J, CONSTANTINO KAIRALLA RIEMMA fren ple re cy EDITORA PENSAMEN’ TO skO PAULO Titulo do original: SYMBOLES FONDAMENTAUX DE LA SCIENCE SACREE Copyright © Editions Gallimard — 1962 Edigao Ano 1-2-3-4-5-6-7-8-9 84-85-86-87-88-89-90-91-92-95 Direitos de tradug4o reservados para o Brasil pela EDITORA PENSAMENTO Rua Dr. Mario Vicente, 374 — 04270 Sao Paulo, SP — fone 63-3141 Impresso em nossas oficinas graficas. SUMARIO Apresentagdo ..... 6... ee eee eee eee eee eee Vil O SIMBOLISMO TRADICIONAL E ALGUMAS DE SUAS APLICACOES GERAIS 1, A Reforma da Mentalidade Moderna 3 ¥ 2, O Verbo como Simbolo...........+ 8 3. O Sagrado Coragdo e a Lenda do Santo Graal . sh ATS 4. OSantoGraal .........-- odd) 12 » §. TradigAo e “Inconsciente” . 35 ~6, A Ciéncia das Letras .... 39 7. A Linguagem dos Pdssaros . 45 SIMBOLOS DO CENTRO E DO MUNDO 8. A Idéia de Centro nas TradigGes Antigas . 51 9. As Flores Simbélicas . 61 10. A Triplice Muralha Druidica 66 11. Os Guardides da Terra Santa 7 12. ATerradoSol...... 80 13. O Zodfaco e os Pontos Cardeais . P 86 14, A Tétraktys e 0 Quadrado de Quatro . 91 15. Um Hieréglifo do Polo. . 96 16, Os “Cabegas Negras” . . . 99 17. A Letra G e a Sudstica 102 SIMBOLOS DA MANIFESTAGAO CICLICA 18. Alguns Aspectos do Simbolismo de Jano 109 19. O Hierdglifo de Cancer 116 20. Set .MaDAPEAS 2G Caner 121 21, Sobre a Significagdo das Festas Carnavalescas \ 126 22. Alguns Aspectos do Simbolismo do Peixe . 131 23. Os Mistérios da letra Nan . . 136 24. O Javali e a Ursa 25. 27. 28. . 0 Simbolismo do Domo iO/Domo.c-a ROWS 65650626 ec sneer dine - AbPorta Bstrelta. oi. 6: 4606 6 « ROR » OOct6gono 46 sie. soe ea se TH ee » SLapsitBadllish css: rei os ihe Oe 3) BRArkan 66724096 500604 rise nae ne . “Reunir o Disperso” . O Branco ¢ o Preto . Pedra Negra-e Pedra Cubica . Pedra Bruta e Pedra Talhada . Os Simbolos da Analogia . . A Arvore do Mundo . . A Arvore eo Vajra .. ALGUMAS ARMAS SIMBOLICAS As Pedras-de-raio . As Armas Simbélicas . Sayfyl-Islam O Simbolismo dos Cornos ... SIMBOLISMO DA FORMA COSMICA . A Caverna ¢ o Labirinto . . 173 . O Coracdo e a Caverna... 181 . AMontanha e a Caverna) . . 185 . O Coragao e 0 Ovo do Mundo . 189 . ACavernae 0 Ovo do Mundo .. 193 . ASaida da Caverna........ 197 . As Portas Solsticiais ....... 201 . O Simbolismo do Zodiaco entre os Pitagéricos . . 206 . O Simbolismo Solsticial de Jano . . 211 . A Propésito dos dois Sao Jodes 215) SIMBOLISMO CONSTRUTIVO A “Pedra Angular” SIMBOLISMO AXIAL E SIMBOLISMO DA PASSAGEM . A Arvore da Vida e a Bebida da Imortalidade . O Simbolismo da Escada .. . O “Buraco da Agulha” . . A Passagem das Aguas . . Os Sete Raios e 0 Arco- . Janua Caeli . Kdla-mukha . . . ALuzeaChuva.. . A Corrente dos Mundos . . . . As “Raizes das Plantas” . . A Ponte e o Arco-iris. . . A Corrente de Unido . . . Enquadramentos e Labirintos . . O “Quatro de Cifra” . . Lagos e Nés . O Olho que Tudo vé . O Grao de Mostarda . . OEter no Coracao : Meemeidade Divina >... ee ee ete eter teenene O Simbolismo da Ponte ... SIMBOLISMO DO CORACAO . O Coragao Irradiante e o Coragdo Ardente...........++50- |. Coragdo e Cérebro . O Emblema do Sagrado-Corag4o numa Sociedade Secreta PRTOELICETD wee eee teeta eens netee mos também, a esse respeito, estabelecer as respectivas correspondénciag entre os signos zodiacais do Cameiro e do Touro, Isso, porém, devido 4 aplicago que se poderia fazer da predominancia de uma ou de outra forma nas diferentes tradig6es, daria margem a consideragdes “‘ciclicas” que, no entanto, nfo podemos pensar em examinar agora. Para terminar esta exposi¢do suméria, apenas assinalaremos ainda um paralelo que pode ser feito, sob certos aspectos, entre as armas animais que so os comos e o que se poderia denominar armas vegetais, isto é, og espinhos. E notdvel que, a esse respeito, muitas das plantas que desempe- nham um papel simbélico importante sfo plantas espinhosas.17 Os espinhos, do mesmo modo que outras pontas, evocam a idéia de um dpice ou de uma elevag4o, e podem ainda, em certos casos ao menos, ser tomados para figurar 0s raios luminosos.18 Vemos assim que o simbolismo tem sempre perfeita coeréncia, como alids ndo poderia deixar de ser, pela simples raz4o de que nao € 0 resultado de alguma convencdo mais ou menos artificial, e sim, ao contrdrio, fundamentado essencialmente sobre a propria natureza das coisas. 17, Temos como exemplo a rosa, 0 cardo, a acdcia, o acanto, etc. 18. O simbolismo cristdo da coroa de espinhos (que se diz ser de espinhos de acdcia) aproxima-se, assim, de uma forma que alguns acharao inesperada, mas nao por isso me- Nos real ou exata, da coroa de raios de que falamos mais atrds. E notdvel ainda que, em diversas regides, os menires sf designados pelo nome de “‘espinhos” (dai, na Bretanha © em outras partes, nomes de lugares como Belle-Fpine, Notre-Dame-de-l’Epine, etc.). E © simbolismo do menir, tal como do obelisco e da coluna, refere-se ao “raio solar” e, 80 mesmo tempo, ao “Eixo do Mundo”. 170 SIMBOLISMO DA FORMA COSMICA 29 ACAVERNA E O LABIRINTO* Em um livro recente,! Jackson Knight expée interessantes pesqui- Sas que tiveram como ponto de partida a passagem do sexto livro da Eneida, €m que so descritas as portas do antro da Sibila de Cumas. Por que o labi- Tinto de Creta e sua histéria estfo figurados nessas portas? Ele se recusa, com muita razdo, a ver nisso, como fazem todos aqueles que no vdo além das concepgdes “literdrias” modernas, uma simples digressdo mais ou menos inutil. Ao contrério, acredita que essa passagem deve ter um real valor sim- _ bélico, que se fundamenta sobre a estreita relagdo entre o labirinto e a caver- "ha, ligades ambos a idéia de uma viagem subterranea. Essa idéia, segundo a interpretac4o que pode ser feita a partir de dados concordantes pertencentes @ épocas e regides muito diferentes, teria estado originariamente ligada aos _ Titos funerais e teria sido, a seguir, em virtude de uma certa analogia, trans- Portada aos ritos inicidticos. Voltaremos a tratar em particular desse ponto @ seguir, mas por ora devemos levantar algumas objegGes sobre a forma pela qual o autor concebe a iniciagdo, Ele parece de fato consider4-la unicamente _ como um produto do “pensamento humano”, dotado além disso de uma vi- | talidade que lhe assegura uma espécie de permanéncia através das idades, Mesmo que, as vezes, apenas subsista, por assim dizer, em estado latente. Nao temos a menor necessidade, depois de tudo o que j4 expusemos sobre 0 €ssunto, de tornar a demonstrar o que existe de insuficiente em tal concep- $4o, pelo simples fato de no levar em conta os elementos “supra-humanos” Que, na realidade, constituem o que ha de mais essencial. Insistiremos apenas Sobre um ponto: a idéia de uma subsisténcia em estado latente nos leva a " Publicado na revista Etudes Traditionnelles, out.-nov. 1937. 1. Jackson Knight, W. F., Cumaean Gates, a reference of the Sixth “Aeneid” to Initia- tion Pattern. Basil Blacwell, Oxford. | | é 173 | hipdtese de conservagdo em um “subconsciente coletivo” tomado de em- préstimo a certas teorias psicolégicas recentes. Que se pense 0 que se quiser a respeito delas, porém sua aplicagdo a esse caso revela um completo des- conhecimento da necessidade da “corrente” inicidtica, ou seja, de uma trans- missdo efetiva e ininterrupta. Existe, é verdade, uma outra questo que pre- cisamos evitar confundi-la com a que estamos examinando: pode acontecer, s vezes, que coisas de ordem propriamente inicidtica venham a exprimir-se através de individualidades que nado estavam de modo algum conscientes de sua verdadeira significagfo, mas j4 oferecemos anteriormente explicagoes sobre isso a propésito da lenda do Graal. Tal fato nfo afeta em nada o que diz respeito a iniciac4o em sua realidade efetiva, e nem seria também o caso de Virgilio, para o qual, do mesmo modo que para Dante, existem muitas indicag6es bastante precisas e claramente conscientes para que se possa ad- mitir que ele ndo tinha vinculagOes inicidticas de fato. Isso nada tem a ver com a “inspiragdo pottica”, tal como é entendida na atualidade. O sr. Knight parece disposto a partilhar desse modo de ver “literdrio”, embora isso se oponha a sua tese. No entanto, ndo podemos deixar de reconhecer todo o mérito que representa, para um escritor universitdrio, a coragem de abordar tal assunto e, até mesmo, falar de iniciagdo. Dito isso, yoltemos a questdo das relagdes entre a caverna funerdria € a caverna inicidtica. Embora essas relagdes sejam seguramente muito reais, a identificagao de uma a outra, no que diz respeito ao seu simbolismo, repre- senta apenas a metade da verdade. Podemos notar que, mesmo do ponto de vista exclusivamente funerdrio, a idéia de derivar o simbolismo do ritual, ao invés de ver no prdéprio ritual a a¢fo do simbolismo, como é 0 caso, coloca o autor num grande embarago, ao constatar que a viagem subterra- nea é quase sempre seguida de uma viagem ao ar livre, e que muitas tradigdes Tepresentam como uma navegacdo. De fato, isso seria inconcebivel se se tratasse apenas da descrigdo figurada de um ritual de enterro, mas que pode ser muito bem explicado quando sabemos que se trata, na realidade, das di- versas fases atravessadas pelo ser no curso de uma migrag4o que se processa verdadeiramente “‘além-timulo”, e que de modo algum diz respeito ao cor- PO que foi abandonado quando esse ser deixou a vida terrestre. Por outro lado, em razfo da analogia existente entre a morte, entendida no sentido comum dessa palavra,'e a morte inicidtica, da qual j4 falamos em outra oca- sido, a mesma descricdo simbélica pode ser aplicada ao que acontece com o ser em ambos os casos. Af est4, quanto a caverna e a viagem subterranea, 0 motivo da assimilagdo considerada, até o ponto em que é legitimamente jus- tificavel, Ou seja, até as preliminares da iniciagdo, e de modo algum até a propria iniciacao, 174 De fato, s6 podemos ver af, a rigor, uma preparacdo a iniciacdo, e nada mais. A morte para o mundo profano, seguida da “descida aos Infer- nos”, é, bem entendido, a mesma coisa que a viagem ao mundo subterraneo ao qual a caverna dé acesso, Mas, no que se refere a propria iniciagao, longe de ser considerada como morte, é, ao contrdrio, um “segundo nascimento” e uma passagem das trevas para a luz. O lugar desse nascimento é ainda a ca- yerna, pelo menos nos casos em que nela se realiza a iniciagdo, de fato ou simbolicamente, pois é evidente que nao se pode generalizar demais e que, do mesmo modo que para o labirinto que examinaremos a seguir, ndo se trata de algo necessariamente comum a todas as formas inicidticas sem exce- gdo. A mesma coisa aparece aliés, mesmo exotericamente, no simbolismo crist4o da Natividade, de forma ainda mais clara que em outra tradig6es, o que torna evidente que a caverna, como local de nascimento, nfo pode ter a mesma significagdo precisa que a caverna como local de morte e sepul- tura. Poderfamos observar, no entanto, para reunir pelo menos entre si esses dois aspectos diferentes, e aparentemente opostos, que a morte e nascimen- to sfo como que duas faces de uma mesma mudanga de estado, e que sem- pre se considera que a passagem de um estado a outro deve efetuar-se na Obscuridade.2 Nesse sentido, a caverna seria entao, de modo mais exato, o proprio lugar dessa passagem; mas isso, mesmo sendo estritamente verdadei- TO, s6 se refere a um dos lados de seu complexo simbolismo. Se o autor ndo conseguiu ver o outro lado desse simbolismo, tal fato se deve, com muita probabilidade, a influéncia exercida sobre ele pelas teorias de certos “‘historiadores das religiSes”; acompanhando-os, admite com efeito que a caverna deve sempre ser referida aos cultos “ctonianos”*, sem divida pela razdo um tanto “simplista” de se situar no interior da terra. Porém, isso est muito longe da verdade.3 No entanto, o autor nfo pode deixar de admitir que a caverna inicidtica é apresentada antes de tudo como uma imagem do mundo.4 Mas sua hipétese o impede de extrair a conclusao que se imp6e, ou seja, que, sendo assim, a caverna deve formar um todo 2. Poderiamos também lembrar, a esse respeito, o simbolismo do grao de trigo nos Mistérios de Eléusis. * “Chthoniens” no original; do grego khothonios, subterraneo. Na mitologia grega, €piteto aplicado as divindades infernais de origem subterranea. Fonte: Larousse-Lexis. 3, Essa interpretagdo unilateral 0 conduz a um singular equivoco. Ele cita, entre ou- ‘tros exemplos, o mito xintoista da danga executada diante da entrada de uma caverna Para fazer sair a “deusa ancestral” que nela estaria oculta; infelizmente para a sua tese, NAo se trata de modo algum da “terra-me”, como chega a expressar, mas sim da deusa Solar, o que é completamente diferente, 4. Na maconaria ocorre 0 mesmo com a loja, cuja designacdo foi assimilada a palavra 175 completo e conter em si a representagao do Céu e da Terra. Porém, mesmo quando acontece que 0 Céu seja mencionado de forma expressa em algum texto ou figurado em algum monumento como correspondente a abobada da caverna, as explicagOes propostas a esse respeito tornam-se de tal modo confusas e pouco satisfatérias, que ndo € possfvel segui-las. A verdade é que longe de ser um lugar tenebroso, a caverna inicidtica ¢ iluminada interior. mente, enquanto que fora dela, ao contrdrio, reina a obscuridade. Assim, o mundo profano é naturalmente assimilado as “trevas exteriores”, e 0 “se- gundo nascimento” ¢, a0 mesmo tempo, uma “jluminagdo”.5 Agora, se nos perguntarem por que a caverna é encarada desse modo do ponto de vis- ta inicidtico, responderemos que a solucdo dessa questdo encontra-se, de um lado, no fato de que o simbolo da caverna ¢ complementar ao da mon- tanha, e que, de outro, o simbolismo da caverna tem estreita ligagdo com 0 do coracao. Pretendemos tratar separadamente esses dois pontos essenciais, mas ndo é dificil compreender, ap6s tudo o que jd tivemos ocasido de peeor em outras oportunidades, que isso tem relacdo direta com a propria repre- sentagdo dos centros espirituais. x Deixaremos de lado outras questdes que, por mais importantes que sejam em si, referem-se apenas de forma acesséria ao nosso tema, como ¢ 0 caso, por exemplo, da significagdo do “ramo de ouro”; é muito contestdvel que ele possa ser identificado, a ndo ser num aspecto muito secundario, 20 bastdo ou a vara que, sob diferentes formas, encontram-se com grande fre- qiiéncia no simbolismo tradicional.6 Sem insistir mais sobre isso, examinare- mos agora 0 labirinto, cujo sentido pode parecer ainda mais enigmético, ou Ee menos mais dissimulado que o da caverna, e as relages existentes entre ambos. O labirinto, tal como foi visto muito bem pel i 5 pelo sr. Knight, tem uma dupla raz4o de ser, no sentido de que permite ou impede, apie 0 caso, 0 ey loka [‘mundo”], © que de fato é verdadeiro, se ndo etimologicamente, pelo ee simbolicamente. Porém, ¢ preciso acrescentar que a loja nfo se assimila & caver- a res ton, encontra-se apenas, nesse caso, no inicio das provas inicidticas, de ie $6 se aplica a ela o sentido de lugar subterraneo em relagdo direta ds idéi ; puscraave hm plica gar relagdo direta as idéias de 5. No simboli: 3 é Sah Rjeimboliany mag6nico também, e pelas mesma raz6es, as “Juzes” encontram-se ae pets no interior da loja; ¢ a palavra loka, que citamos ha pouco, deriva-se zee jente de uma raiz cujo sentido principal designa a luz. . Seria por certo mui is ji % muito mais justo comparar o “ramo de ouro” ao visco druidico ¢ ia magGnica, sem falar dos “: S . ‘ramos” da festa crist que tém exatamente enquanto simbolo e penhor da ressurreigdo e da imortalidade, 2 oa Alb 176 i ‘acesso a um certo lugar ao qual nem todos deyem penetrar indistintamente. Apenas os que esto “qualificados” poderdo percorré-lo até o fim, enquanto que os demais serdo impedidos de penetré-lo ou se extraviardo no caminho. Vé-se de imediato que existe af a idéia de uma “selegdo” que se refere de modo evidente 4 admissfo na iniciago, O percurso do labirinto ¢ exatamen- te, sob esse Angulo, uma representago das provas inicidticas. E é facil con- ceber que, quando servia de fato como meio de acesso a certos santudrios, podia estar disposto de tal forma que os titos correspondentes fossem cum- pridos durante 0 proprio percurso. ‘Além disso, encontra-se nele ainda a idéia de “‘viagem”, na medida em que est4 associada as proprias provas, tal como pode ser constatado ainda hoje em certas formas inicidticas, por exemplo na magonaria, onde cada prova simbélica é designada como sendo uma “via- gem”, Outro simbolismo equivalente 6 o da “peregrinagao”. Podemos lem- brar a propésito os labirintos tragados antigamente sobre o pavimento de certas igrejas, e cujo percurso era considerado como um “substituto” da peregrinagio a Terra Santa. Afinal, se o ponto em que termina esse percurso representa um lugar reservado aos “eleitos”, ele é na verdade uma “Terra Santa” no sentido inicidtico da expresso, ou seja, esse ponto nada mais é que a imagem de um centro espiritual, da mesma forma que todo local de iniciagdo.7 ¥ evidente, por outro lado, que o emprego do labirinto como meio de defesa ou de protegao € passivel de diferentes aplicagdes fora do dominio inicidtico, E assim que o autor assinala, em especial, seu uso “t4tico”, na en- trada de certas cidades antigas ¢ em ‘outros locais fortificados. O inico erro seria acreditar que se trata de um uso puramente profano ¢ que teria sido mesmo © primeiro a ocorrer, tendo depois sugerido a idéia de sua utilizagdo ritual, Isso seria na verdade uma inversdo das relagdes normais, que esté alids de acordo com as concepgSes modernas, mas apenas com estas, sendo total- mente ilegitimo atribui-la as civilizagdes antigas. De fato, em qualquer civi- lizag4o que tenha o estrito carter tradicional, todas as coisas comegam ne- cessariamente pelo princfpio, ou do que dele estiver mais proximo, dirigin- do-se de cima para baixo em aplicagdes cada vez mais contingentes. Em outras palavras, mesmo estas iltimas jamais so consideradas do ponto de vista profano, que é, como j4 explicamos muitas vezes, O resultado de uma 7. 0 Sr, Knight menciona tais labirintos, mas lhes atribui uma significagto meramente religiosa; parece ignorar que 0 seu tragado ndo revelava de modo slew t doutrina exo- térica, mas que pertencia de forma exclusiva a0 simbolismo das organizag6es inicidticas dos construtores. 177 degeneracao que fez com que se tenha perdido a c iénci: p40 qu onsciéncia de sua li com o Principio. No caso em questdo, pode-se com facilidade ester. existe algo além do que coriseguiriam ver os “taticos” modernos, pela aa ples consideragao de que a defesa “labirintica” nao era apenas eeibrepad, a fon, o qual eram construfdas, estavam submetidos a Tegras que depen. iam essencialmente da “ciéncia Sagrada” e que, por conseqiiéncia, Bian muito longe de s6 Tesponderem a fins “utilitarios”, ao menos n0 sentido material que se dé hoje em dia a essa palavra. Por mais estranhas que pare. Be ena 4 mentalidade de nossos contemporéneos, é preciso, no » H-las em conta, sem o que aqueles 3 ay ntar ‘ ‘ que estudam os vestigios das foal ae poderdo jamais compreender o weriiddetiotegaitac quilo que averiguam, mesmo Para o que nas a0 que se convencionou chamar, nos di: iB aseaaouen, pea cue fi lias de hoje, de domini “Vi cotidiana”, mas que tinha entac it fe uae tein. 0, na realidade, um cardter essencialmente Quanto a origem do nome labiris { abirinto, ela € muito obser i t is ura e deu lu- gar a muitas discussoes, Mas Parece que, ao contrdrio do que muitos pensa- ae, nes ee apenas uma construgao de pedra, do género de cons- pe sen <9 picas' y Contudo, essa € a significacdo mais exterior da Hen hae - Rn mais Profundo, liga-se ao conjunto do simbolis- fiber bce hia : aoe Lean Oportunidades, ao tratar dos “bé- 5 is-de-raio’ icadas ao machado de pedra ou Mite a ae muitos Outros aspectos. O sr, Knight 0 Beane ie ann 4 fe faz referéncia aos homens “‘nascidos da pedra” (0 que He Dai 0 da palavra Brega laos [povo, gente]), dos quais a lenda rece o exemplo mais conhecido, Isso se refere a um certo Periodo qu que, se fosse possivel um estudo mais preciso, permitiria com segu- 8. Nao insisti Bs Zo insistiremos, para nao nos afastar do te: Procissdes e dancas rituais Proteedo ou “apotropaicos”, Teenie 4° consideracgo: as, Por uma ‘quais essas influén 178 ae Mares Pac arenclalmente de deter e afastar as influéncis a sobre 0 cor i cits exercem sua ado, ee sanga dar 4 chamada “idade da pedra” um sentido completamente diferente daquele que lhe é atribuido pelos historiadores. Daf podermos admitir que a cayerna, enquanto cavada na rocha, de modo natural ou artificial, tem um simbolismo muito pr6ximo.9 Mas devemos acrescentar que isso nfo é moti- yo para admitirmos que o labirinto tenha sido necessariamente cavado na rocha. Embora possa ter ocorrido assim em alguns casos, trata-se apenas - de um elemento acidental, poderfamos dizer, e que n4o deve ser considerado em sua definigdo, pois sejam quais forem as relagdes da caverna com o labi- ‘ tinto, é importante ndo confundi-los, sobretudo quando se trata da caverna inicidtica, que estamos examinando aqui de forma mais particular. De fato, é evidente que, se a caverna é o lugar em que se realizaa iniciagdo, o labirinto, local das provas preliminares, s6 pode ser o caminho que conduz a caverna e, ao mesmo tempo, 0 obstdculo que impede a aproxi- macao dos profanos “no qualificados”. Lembrariamosainda que o labirinto esté representado nas portas de Cumas, como se, de uma certa forma, essa figuracdo fizesse as vezes do pr6- prio labirinto.10 Poderfamos dizer que Enéias, enquanto se detém a entrada para examind-la, percorre de fato o labirinto, se nao corporalmente, pelo menos de forma mental. Por outro lado, nfo parece que esse modo de acesso tenha sido sempre reservado aos santudrios construidos em cavernas ou a eles assimilados simbolicamente, visto que, como jé explicamos, ndo se trata de um trago comum a todas as formas tradicionais. A raz4o de ser do labirin- to, tal como foi definida mais acima, pode convir de igual modo ao acesso a todo local de iniciag4o, a todo santu4rio destinado “aos mistérios” e nfo aos titos piblicos. Feita essa ressalva, existe, contudo, uma razdo para se pensar que, ao menos na origem, 0 uso do labirinto esteve ligado em particular 4 caverna inicidtica, pois ambos parecem ter pertencido, de inicio, 4s mesmas formas tradicionais da época dos “homens de pedra” a que nos referimos ha pouco. Devem ter comegado estreitamente unidos, embora nfo tenham permanecido assim de modo invaridvel em todas as formas posteriores. Consideremos 0 caso em que o labirinto esta em conexo com a caverna, rodeando-a com suas sinuosidades e nela desembocando por fim. 9. As cavernas pré-histéricas nfo foram provavelmente habitagSes, como se acredita com freqiiéncia, mas santudrios dos “homens de pedra”, entendidos no sentido que acabamos de indicar; seria, portanto, nas formas tradicionais do perfodo em questao que a caverna teria recebido, em funcdo de uma certa “ocultagdo” do conhecimento, © cardter de simbolo dos centros espirituais e, por conseqiiéncia, de local de inicia¢do. 10, Um caso similar, a esse respeito, ¢ 0 das figuras “labir{nticas”” tragadas sobre os muros das casas, na Grécia antiga, para impedir 0 acesso a influéncias maléficas. 179 No conjunto assim constitufdo, a caverna Ocupa 0 ponto mais interior e cen. tral, © que corresponde exatamente a idéia de centro espiritual e canara, também, com o simbolismo equivalente do coracao, a respeito do qual nos propomos a yoltar. E preciso notar ainda que quando a caverna é — ; tempo local da morte inicidtica e do “segundo nascimento”, deve ae eonscerada como dando acesso, nao s6 aos dominios subterrineos ou “ine fernais”, mas também aos dominios Supraterrestres. Isso corresponde al bém a nogdo de ponto central, que se constitui, tanto na ordem macrocé: : mica quanto na ordem microcésmica, em realizador da comunicag40 . todos os estados superiores e inferiores. E 6 assim que a caverna ea = como dissemos, a imagem completa do mundo, na medida em oF rs “a esses estados devem refletir-se nela de igual modo. Se fosse de pa nd 2, af eee se mu sbabede Aosta seria absolutamente incompreens{- el. = , Se € na propria caver inici: tica £0. “segundo nascimento”, a ae a “deseida ris Tae ae se evidente ndo ser possivel considerar que essa descida seja re; res iil a nereae wea splat, Cabe, entdo, perguntar ao que o ee . Na realidade, refere-se as “trevas exteriores”, as quais j4 nos re! i. Bes af ave, ipasen ser perfeitamente aplicados aos ee Lee Bess ne fa 9 ae essa palavra, que expressa de modo exato o ee ee yaebizin A questao das “trevas exteriores” poderia todavia Bae? out ss ere en aa isso gs levaria fora dos limites do - ‘ 0, ter dito o bastante para mos ee “ penne que apresentam pesquisas como as en eeu Bere, erie sr. Knight, e também, por outro lado, a necessidade. conhecimento ee ee Seman se eae ronseance ce = chegaré a reconstituigdes ee ne ee a pletas que, mesmo ee iba Paltondas Por idéias preconcebidas, eae tao oe S proprios vestigios que lhe serviram de Ponto de partida. 180 30 O CORACAO E A CAVERNA* Jé fizemos referéncia anteriormente a estreita relagdo que existe entre o simbolismo da caverna e do corag4o, 0 que explica o papel desem- penhado pela caverna, do ponto de vista inicidtico, enquanto representagdo de um centro espiritual. De fato, o coragdo é em esséncia um simbolo do centro, quer se trate do centro de um ser ou, analogicamente, do centro do mundo, ou, em outros termos, quer nos coloquemos do ponto de vista microcésmico ou macrocésmico. , pois, natural, em virtude dessa relago, que a mesma significacdo possa ser atribuida 4 caverna. E é dessa conexdo simbélica que pretendemos tratar agora de forma mais completa. q A “caverna do coragdo” é uma conhecida expressfo tradicional. A a palavra guhd, no sanscrito, designa em geral uma caverna, mas é também ___aplicada a cavidade interna do corag4o e, por conseqiléncia, ao proprio co- racdo. A “caverna do coracdo” € o centro vital em que reside, nao s6 jfvat- md, mas também o Atmé incondicionado, que na realidade é idéntico ao proprio Brahma, tal como j4 expusemos em outra parte! A palavra guhd deriva-se da raiz guh, que tem o sentido de “cobrir” ou “ocultar”, do mes- mo modo que a raiz similar gup, de onde vem gupta, que se aplica a tudo © que tem cardter secreto e ndo se manifesta no exterior é o equivalente do grego Kryptos, de onde vem a palavra “cripta”, sindnimo de caverna. Essas idéias referem-se ao centro, na medida em que € considerado como o ponto mais interior, e, portanto, o mais oculto. Ao mesmo tempo, referem-se ainda ao segredo inicidtico, seja em si mesmo, seja enquanto simbolizado pela disposigaio do lugar em que realiza a iniciagdo, local oculto ou “coberto”,? * Publicado na revista Ltudes Traditionnelles, dez. 1937. 1. L'Homme et son devenir selon le Védénta, cap. III (ver Chhandogya Upanishad , 32 Prapathaka, 149 Khanda, shruti 3, e 89 Prapathaka, 1° Khanda, shruti 1). 2. Cf. a expressdo magénica “estar a coberto”, 181 isto 6, inacessivel aos profanos, defendido por uma estrutura “labirintfca” ou por outra forma qualquer (como por exemplo os “templos sem portas” da iniciagdo extremo-oriental), mas sempre considerado como imagem do centro. Por outro lado, é importante observar que 0 cardter oculto ou se- creto, no que diz respeito aos centros espirituais ou a sua figuracdo, impli- ca que a verdade tradicional, em sua integralidade, nao é mais acessivel a todos os homens sem disting&o, o que indica que se trata de uma época de “obscurecimento”, ao menos relativo. Isso permite “situar” o simbolis- mo no decurso do processo cfclico, Mas trata-se de um ponto sobre o qual teremos que voltar de forma mais completa ao estudarmos as telages entre a montanha e a caverna, na medida em que ambas so tomadas como sim- bolos do centro. No momento, nos contentaremos em indicar, a esse respei- Bk que o esquema do coracdo ¢ 0 tridngulo com a ponta para baixo (0 “triéngulo do coracdo” é, também, uma outra expressdo tradicional). O mesmo esquema aplica-se ainda a caverna, enquanto que o da montanha, ou da piramide que the equivale, é ao contrério um triangulo com a ponta para ° alto. Isso mostra que se trata de uma relacdo inversa e também, em certo sentido, complementar. Podemos acrescentar, a propésito da representaga0 do coragdo e da caverna pelo triangulo invertido, que se trata de um caso em que ndo entra evidentemente qualquer idéia de “magia negra”, a0 con- trério do que pretendem com freqiiéncia aqueles que tém do aiapelis apenas um conhecimento insuficiente. Wg Dito isso, voltemos ao que, segundo a tradico hindu, est4 oculto na “caverna do coragdo”, ou seja, o proprio principio do ser que, nesse fe de “envoltura”, e em relacdo a manifestagao, € comparado a0 que oe aa f@ Palavra dahara, que designa a cavidade em que ele reside, ere-se a mesma idéia de pequenez), ainda que seja na realidade o que existe de maior; do mesmo modo que © ponto, espacialmente infimo e meine, éo Principio pelo qual se produz todo o espaco, ou do mes- a Bei ca ai we aparece como oO menor dos niimeros, embora ereaticeatis ‘a todos os demais e produza, por si mesma, toda sua einen Saree f€ncontramos a expresso de uma relago inversa, con- ae a. Se eaiaa segundo Pontos de vista diferentes. Des- pei a sa Atlee ae i eure pequenez diz respeito ao seu estado ee Sorbie” é para o ser apenas uma “virtualida- Eatin ee ara. 0 seu desenvolvimento espiritual. En- me¢o” (initium) desse desenvolvimento, o 182 rr que est em relagdo direta com a iniciagdo, entendida de acordo com o sen- tido etimolégico do termo. B precisamente desse ponto de vista que a caver- na pode ser considerada como 0 local do “segundo nascimento”. A esse res- peito, encontramos textos tais como: “‘Saiba que Agni, que é o fundamento do mundo eterno (“principial”), e pelo qual este pode ser alcangado, esté oculto na caverna (do coragfo)”,3 o que se refere, na ordem microcésmica, ao “segundo nascimento”, e também, mediante sua transposigfo para a ordem macrocésmica, ao nascimento andlogo do Avatéra, J4 dissemos que residem no cora¢4o, ao mesmo tempo, jfvatmd, do ponto de vista da manifestagdo individual, e Atmé incondicionado ou Para- métmé, do ponto de vista do princfpio. Os dois, apenas ilusoriamente sao distintos, isto é, em relacdo a propria _manifestagdo, mas na realidade abso- luta sdo apenas um. Sado “os dois que entraram na caverna”, e dos quais se diz ao mesmo tempo, “que moram no mais alto pico”, de modo que os simbolismos da montanha e da caverna encontram-se af reunidos.4 O texto acrescenta que “‘aqueles que conhecem Brahma chamam-no sombra e luz”. Isso se refere de modo mais especffico ao simbolismo de Nara- néréyana, do qual j4 falamos a propésito do Atmé-Gitd, citando esse mesmo texto. Nara, o humano ou o mortal, que ¢ jfvatrd, identifica-se a Arjuna; ¢ Narayana, o divino ou o imortal, que é Paramdtmé, identifica-se a Krishna, E segundo o sentido de seus préprios nomes, Krishna designa a cor escura e Arjuna a cor clara, isto 6, respectivamente a noite e o dia, na medida em que sio considerados como representando o ndo-manifestado e 0 manifes- tado.5 Um simbolismo exatamente similar encontra-se nos Dioscuros, também relacionados aos dois hemisférios, um obscuro e 0 outro iluminado, tal como indicamos ao estudar a significagdo da “dupla espiral”. Por outro lado, esses “dois”, isto 6, jfvdtmd e Paramdtmé, so ainda os “dois passaros”, dos quais se diz em outros textos que “residem numa mesma arvore” (do mesmo modo que Arjuna e Krishna estio montados num mesmo carro) € que estado “inseparavelmente unidos”, visto que, como dizfamos mais acima, so na realidade apenas um e s6 de forma iluséria podem ser distinguidos.6 E importante observar que o simbolismo da drvore € em esséncia “axial”, 3. Katha Upanishad, 19 Valli, shruti 14. 4. Katha Upanishad, 39 Valli, shruti 1 (cf. Brahma-Siitras, 19 Adhyaya, 29 Pada, sitras 11-12). 5. Cf. Ananda Coomaraswamy, The Darker Side of the Dawn e Angel and Titan, an essay in Vedic Ontology. 6. Mundaka Upanishad, 39 Mundaka, 19 Khanda, shruti 1; Shwétdshawatara Upani- shad, 49 Adhyaya, shruti 6. 183 da mesma forma que o da montanha. E a caverna, enquanto a considerarmos situada sob a montanha ou no seu interior, encontra-se também no eixo, pois em todos os casos, e de qualquer forma que as coisas sejam considera- das, € sempre af que se localiza necessariamente 0 centro, o local da uniao do individual com o Universal. Antes de deixar este assunto, apontaremos um registro lingiiistico, ao qual nao se deva talvez atribuir uma importancia muito grande, mas que € ao menos curioso: a palavra egipcia hor, que € o proprio nome de Horus, parece significar exatamente “coracdo”. Horus seria portanto o “Coragdo do Mundo”, de acordo com uma designacdo que se encontra na maior parte das tradig6es, e que convém aliés de modo perfeito ao conjunto de seu sim- bolismo, na medida em que é possivel percebé-lo. Poderfamos ser tentados, a primeira vista, a aproximar a palavra hor do latim cor, que tem o mesmo sentido, ainda mais porque, nas diferentes linguas, as raizes similares que de- signam © cora¢do tém como inicial uma letra aspirada ou uma letra gutural, como € 0 caso, por um lado, de hrid ou hridaya no sanscrito, heart no inglés e herz no alemio, e, por outro lado, kér ou kardion no grego, e o préprio cor (cordis no genetivo) no latim. Mas a raiz comum de todas essas palavras, inclusive a iiltima, é na realidade HRD ou KRD, o que no parece ser 0 caso da palavra hor. Assim sendo, ndo se trata nesse caso de uma real identidade de raiz, mas apenas de uma espécie de convergéncia fonética, que nem por isso deixa de ser muito singular. Mas o que talvez seja mais notvel, e que se liga diretamente ao nosso assunto, € que no hebreu a palavra hor ou hair, escrita com a letra heth, significa “caverna”, Nao queremos dizer com isso que exista uma ligacdo etimolégica entre a palavra egipcia e a hebraica, embora possam a rigor ter uma origem comum mais ou menos afastada. Mas isso pouco im- Porta no fundo, pois quando se sabe que ndo pode existir em parte alguma nada que seja puramente fortuito, 0 paralelo nfo deixa sé por isso de ser digno de interesse. E nao é tudo, No hebreu, também, hor ou har, escrito agora com a letra hé, significa “montanha”, Se notarmos que heth é, na or- dem das letras aspiradas, um reforgo ou um endurecimento de hé, marcan- do uma espécie de “compressdo”, e que essa letra exprime em si, ideogra- ficamente, uma idéia de limite ou de clausura, vé-se que, pela propria rela- sao entre as duas palavras, a caverna é indicada como o lugar encerrado no ee da montanha, o que é exato tanto literal quanto simbolicamente. Be eee teconduzidos, uma vez mais, as relagOes entre a montanha e que, a seguir, iremos examinar em particular. 184 ee 31 A MONTANHA E A CAVERNA* HA, portanto, uma estreita relagdo entre a montanha e a caverna, na medida em que ambas s4o tomadas como simbolos dos centros espiri- tuais, tal como ocorre alids, por razOes evidentes, com todos os simbolos ““axiais” ou “polares”, dentre os quais a montanha é, na verdade, um dos principais. Lembraremos que, sob esse aspecto, a caverna deve ser vista co- mo situada sob a montanha ou no seu interior, de modo a encontrar-se tam- bém no eixo, o que reforga ainda mais o laco existente entre esses dois sim- bolos, que sdo, de algum modo, complementares entre si. E preciso, no en- tanto, observar também, para situd-los exatamente em sua rela¢fo, que a montanha tem um cardter mais “primordial” que a caverna. Isso resulta do fato de a montanha ser visivel do exterior, sendo ela propria, poderiamos dizer, o que hé de mais visivel de todas as partes, enquanto que a caverna, ao contrario, constitui-se, como dissemos, num lugar essencialmente oculto ¢ fechado. Pode-se com facilidade deduzir que a representagdo do centro es- piritual pela montanha corresponde em esséncia ao perfodo original da humanidade terrestre, durante o qual a verdade encontrava-se integralmen- te acessivel a todos; daf o nome Satya-Yuga [“perfodo da verdade”’] e o fato de o topo da montanha ser ent4o o Satya-Loka ou o “lugar da verdade”. Mas, quando, em conseqiiéncia da progressdo descendente do ciclo, essa mesma verdade passou a estar ao alcance apenas de uma “elite” mais ou menos restrita (0 que coincide com o comego da inicia¢do, entendida no seu mais estrito sentido) e tornou-se oculta para a maioria dos homens, a caverna ficou sendo o simbolo mais apropriado para o centro espiritual e, por conseguinte, para os santudrios inicidticos que so sua imagem. Para uma tal mudanga, poderfamos dizer, o centro nfo abandona a montanha, mas apenas se retira do topo para o interior. Por outro lado, essa mudanga € de * Publicado na revista Etudes Traditionnelles, jan. 1938. 185 algum modo uma “inversdo”, pela qual, como explicamos em outra oportu- nidade, o “mundo celeste” (a0 qual se refere a elevagdo da montanha acima da superficie terrestre) torna-se em certo sentido o “mundo subterraneo” (embora, na realidade, no seja ele que tenha mudado, mas, sim, as condi. g6es do mundo exterior, e conseqiientemente sua relagdo com este). Tal “inversfo” encontra-se figurada por esquemas especificos da montanha e da caverna, que exprimem, ao mesmo tempo, sua complementaridade. Como dissemos anteriormente, o esquema da montanha, bem como da piramide ¢ do monticulo, que lhe s4o equivalentes, é um triangulo coma ponta voltada para o alto. A representacdo da caverna, ao contrario, é um triangulo com a ponta voltada para baixo, sendo, portanto, o inverso do primeiro. O triéngulo invertido é também 0 esquema do coracfo! e do céli- ce, sendo-lhe este geralmente assimilado no simbolismo, tal como mostra- mos em particular no que se refere ao Santo Graal.2 Podemos acrescentar que esses tiltimos sfmbolos e seus similares, de um ponto de vista genérico, teferem-se ao principio passivo ou feminino da manifestac4o universal ou a alguns de seus aspectos,3 enquanto que os esquematizados com o trian- gulo direito, com a ponta para cima, referem-se ao principio ativo ou mas- culino. Trata-se, portanto, de uma verdadeira complementaridade. Por outro lado, se dispusermos os dois triangulos um sob 0 outro, €m correspondéncia com a situagZo da caverna sob a montanha, yeremos que © segundo pode ser considerado como 0 reflexo do primeiro (fig. 12).E a idéia de reflexo se coaduna perfeitamente 4 telagdo de um simbolo deriva- V Fig. 12 1, Podese acrescentar a essa figurago 0 fato de que o nome drabe do coracdo (aalb) ee exatamente © que esta em posigdo “invertida” (magi), Cf. T. Burckhardt, farcakh, na revista Etudes Traditionnelles, dez. 1937. 2. No Egito anti npn * i gO, O vaso era o hierdglifo do coragao. A “copa” do Taré corresponde também ao ‘coragio” das cartas comuns. “ 3. O tridngulo inverti wl ttido, na India, é um dos principais simbolos da Shakti; também as Aguas primordiais, : alae 186 ‘do com o simbolo primordial, de acordo com o que dissemos h4 pouco da selagado da montanha com a caverna, enquanto representag6es sucessivas do “centro espiritual nas diferentes fases do desenvolvimento ciclico. . Talvez provoque surpresa 0 fato de representarmos aqui o triangulo invertido menor que o tridngulo direito, pois, como é 0 reflexo, poderia pa- recer que deve ser igual. Mas uma tal diferenga nas proporg6es nfo é coisa - excepcional no simbolismo. Assim, na Cabala hebraica, 0 ““Macroprosopo” " ou “Grande Face” tem por reflexo o “Microprosopo” ou “Pequena Face”. ‘Além do mais, h4 para isso, no presente caso, uma razdo mais particular; embramos, a propésito da relagdo entre a caverna e 0 cora¢ao, 0 texto dos _ Upanishads em que se diz que o Principio, que reside no “centro do ser”, é “menor que um grdo de arroz, menor que um grfo de cevada, menor que um | grado de mostarda, menor que um grio de milhete, menor que o germe que esté no grdo do milhete”, mas que também, ao mesmo tempo, é “maior que _ dois simbolos que estamos considerando, é a montanha que corresponde a idéia de “grandeza”, e a caverna (ou cavidade do coracdo) a de “pequenez”. O aspecto da “grandeza” refere-se, além disso, 4 realidade absoluta, ¢ ode “pequenez” As aparéncias relativas 4 manifestacdo, Conseqiientemente é per- feitamente normal que o primeiro seja aqui representado pelo simbolo cor- Tespondente a uma condigo “primordial”,5 e o segundo Aquele correspon- dente a uma condigdo posterior de “‘obscurecimento” e de “encobrimento” espiritual. Se quisermos representar a caverna situada no interior (ou no cora- | G40, poderfamos dizer) da montanha, basta transportar o triangulo invertido Fig. 13 4. Chhandogya Upanishad, 39 Prapithaka, 149 Khanda, shruti 3. 5. Sabe-se que Dante situa o Parafso Terrestre no topo de uma montanha; é essa exa- tamente a situago do centro espiritual no “estado primordial” da humanidade. 187 para o interior do triangulo direito, de tal modo que os seus centros coinci- dam (fig. 13). Ele deve entdo, necessariamente, ser menor Para poder caber inteiro no outro. Mas fora essa diferenga, o conjunto da figura assim obtido € claramente idéntico ao simbolo do “Selo de Salomdo”, em que os dois triangulos opostos representam de igual modo dois principios complementa- res, nas diversas aplicages poss{veis. Por outro lado, se os lados do triangulo invertido forem iguais 4 metade dos lados do triangulo direito (na ilustracao foram desenhados menores, para que os dois tridngulos aparecessem inteira- mente destacados entre si, mas, de fato, é evidente que a entrada da caverna deve encontrar-se a superficie da montanha €, portanto, o triéngulo que a Tepresenta deveria, na verdade, tocar o contorno do outro),6 o triangulo Pequeno dividiré a superficie do grande em quatro partes iguais, das quais uma serd o proprio triangulo invertido, enquanto que as trés outras serao triangulos direitos. Esta altima considerag4o assim como outras referentes a certas relagdes numéricas que se ligam a esse esquema ndo tém, a bem da verdade, ligacdo direta com o presente tema, mas teremos sem divida oca- sido de retomdé-las mais adiante no desenvolvimento de outros estudos. 6. Pode. ee neni notar que, segundo o mesmo esquema, se a montanha é substituida pela wamide, a cémara interior desta tiltima é 0 equivalente exato da caverna, 188 32 O CORACAO E 0 OVO DO MUNDO* Apés todas as consideragGes expostas anteriormente sobre os diver- sos aspectos do simbolismo da caverna, resta-nos ainda tratar de um outro ponto importante, ou seja, das relagdes desse sfmbolo com o do “Ovo do Mundo”, Mas para que isso possa ser bem compreendido e ligado de forma mais direta ao que dissemos até aqui, devemos falar, em primeiro lugar, das telagdes simb6licas do cora¢4o com o “Ovo do Mundo”, Isso poderia sur- Preender a primeira vista, e parecer que s6 h4 uma certa similaridade de forma entre 0 coragdo e o ovo. Tal similaridade, no entanto, s6 pode ter uma verdadeira significagdo se houver outras relagdes mais profundas. Mas, © fato de o dnfalo [“umbigo”] ¢ o bétilo, simbolos incontestéveis do centro, possuirem com freqiiéncia a forma ovdide, como era em particular 0 caso de Omphalos de Delfos,1 mostra de modo claro que assim deve ser. E é 0 que devemos explicar agora. A esse respeito, 0 que importa observar, antes de mais nada, é que © “Ovo do Mundo” no representa o “cosmo” em seu estado de plena mani- festagdo, mas sim aquilo a partir do qual efetuard seu desenvolvimento. E se esse desenvolvimento é representado como uma expans4o que se realiza em todas as diregdes, a comegar de seu ponto de partida, é evidente que esse Ponto coincidir4, necessariamente, com o proprio centro. Desse modo, 0 “Ovo do Mundo” é realmente “central” em relacdo ao “‘cosmo”,2 A repre- sentagdo biblica do Paraiso Terrestre, que ¢ também o “Centro do Mundo”, * Publicado na revista Etudes Traditionnelles, fev. 1938. 1, Examinamos em particular esses simbolos em O Rei do Mundo, onde assinalamos ainda que, em outros casos, revestem-se de forma cénica, que est4 em relacdo direta com o simbolo da montanha; desse modo, encontramos af, de novo, as duas figuragdes complementares a que nos referimos antes. 2. O simbolo do fruto, sob esse ponto de vista, tem a mesma significagdo que o do 189 tem a forma circular, que pode ser vista como sendo o corte horizontal de uma figura ovéide ou esférica. Podemos acrescentar que, de fato, a diferen- ga entre essas duas formas consiste essencialmente em que a esfera, esten- dendo-se de igual modo em todos os sentidos a partir do centro, é, na verda- de, a forma primordial, enquanto que a do ovo corresponde a um estado ja diferenciado, que deriva do precedente por uma espécie de “‘polarizagio” ou de desdobramento do centro.3 Pode-se considerar que tal “‘polarizagdo” ocorre desde 0 momento em que a esfera realiza um movimento de rotag40 em tomo de um determinado eixo, visto que, a partir de ent¥o, nem todas as diregdes do espago desempenham mais de modo uniforme o mesmo pa- pel. E isso que marca a passagem de uma a outra dessas duas fases sucessivas do pose cosmogoOnico, simbolizadas respectivamente pela esfera e pelo ovo. Dito isso, resta-nos, em suma, mostrar que aquilo que est contido no “Ovo do Mundo” é, na verdade idéntico ao que, como dissemos antes, est4 também contido simbolicamente no coragdo e na caverna, na medida em que esta lhe ¢ equivalente. Trata-se aqui daquele “‘germe” espiritual que, na ordem macrocésmica, é designado pela tradi¢ao hindu como Hiranya- garbha, ou seja, literalmente, o “embrido de ouro”.5 Esse “germe” é na ver- dade 0 Avatdra primordial,6 e vimos que 0 local do nascimento do Avatara, bem como do que lhe corresponde do ponto de vista microcésmico, é re- presentado de forma precisa pelo coragdo ou pela caverna. Seria talvez possi- vel objetar-se que, no texto que citamos entdo,7 bem como em muitos ou- vo; voltaremos a isso, sem duivida, na seqiléncia desses estudos. Mas podemos observar, desde ja, que esse simbolo tem uma outra conexfo evidente com o do “jardim“, por- tanto com o do Paraiso Terrestre, ‘ aa E assim que, na geometria plana, o desdobramento do centro unico do circulo dé nascimento aos dois focos de uma elipse, O mesmo desdobramento é também figurado de modo muito claro no simbolo extremo-oriental do Yin-yang, que nao deixa de ter Correspondéncias com 0 do “Ovo do Mundo”, bd ae ainda, a Propésito da forma esférica, que na tradic¢do islamica a esfera cee Parra 6 a Raih mohammediyah, “Espirito de Maomé”} que também 6 Sees tee » © “cosmo” inteizo é vivificado pelas “pulsagdes” dessa esfera, feecaa ao ee Hea errs i “istmo”] Por exceléncia (ver a esse respeito Ba peeasctbantt, na ‘tudes Traditionnelles, dez. 1937). son devenir selon de Védanta, cap. XIII. 6. A isso se li ignaga i Eoin, i “ees ene de et cae “germe” em diversos textos da Escritura, 0 ‘a outra ocasigo [ver cap. 73, O Grdo de Mostard. 7. Katha Upanishad, 19 Valli, shruti 14, : mle 190 tros casos, 0 Avatdra é expressamente designado como Agni, enquanto se "diz que € Brahmd que se envolve no “Ovo do Mundo”, denominado por esse “motivo Brahmédnda, para af nascer como Hiranyagarbha. Porém, como, na realidade, os diferentes nomes, designam apenas os diversos atributos divi- " nos, que tem sempre conexdo entre si e nfo s4o de modo algum entidades _ separadas, e como se pode notar em particular neste caso, onde o ouro é considerado como a “luz mineral” e o “sol dos metais”, a propria designa- ¢40 Hiranyagarbha o caracteriza de fato como um principio de natureza fgnea. E a essa razo acrescenta-se ainda a sua posi¢fo central, para que pos- " sa ser simbolicamente assimilado ao Sol, que, de resto, é também em todas as tradigdes uma das figuras do “Corag4o do Mundo”. Para passar daf a aplica¢4o microcésmica, basta lembrar a analogia existente entre o pinda, embrido sutil do ser individual, e o Brahmdnda ou 0 “Ovo do Mundo”.8 O pinda, enquanto “germe” permanente e indestruti- yel do ser, identifica-se por outro lado ao “nticleo da imortalidade”, denomi- nado Juz na tradigdo hebraica.9 E verdade que, em geral, o Juz no ¢ indica- do como situado no corag4o, ou que pelo menos esta é apenas uma de suas diferentes localizagdes possiveis em correspondéncia com o organismo cor- poral, nao sendo contudo a referéncia mais habitual. Essa localizagao, po- rém, é tio exata quanto outras e encontra-se onde deve estar, segundo tudo © que jé foi dito, ou seja, 14 onde o /uz est em relacdo imediata com 0 “se. gundo nascimento”. De fato, tais localizagdes, que tém ainda relac¢ao com a doutrina hindu dos chakras, referem-se a outras tantas condigGes do ser hu- mano ou fases de seu desenvolvimento espiritual. Assim, a localizagdo na ba- se da coluna vertebral refere-se ao estado de “sono” em que se encontra 0 luz no homem comum;10 no coragdo se dd a fase inicial de sua “germina- 8. Yathé pinda tathé Brahmédnda (ver L'‘Homme et son devenir selon le Védanta, caps. XIII e XIX). 9. Para maiores desenvolvimentos sobre esse ponto remetemos uma vez mais ao Rei do Mundo. Podemos notar também que a assimilagZo do “segundo nascimento” a uma “germinacdo” do Juz lembra, de forma clara, a descrigdo taoista do proceso inicidtico como “endogenia do imortal”, 10. A serpente enrolada em torno do “Ovo do Mundo”, e por vezes figurada em torno do Omphalos ¢ do bétilo, é, sob esse enfoque, a Kundalinf enrolada ao redor do “ni- cleo da imortalidade”, que se relaciona também ao simbolismo da “‘pedra negra”, Essa posicdo “inferior” do luz estd referida de modo direto na formula hermética: Visita inferiora terrae, rectificando invenies occultum lapidem [‘Visite as (partes) inferiores da terra () retificando encontrards a pedra oculta”]. A “‘retificagdo” é aqui o “endirei- tamento” que marca, apés a “descida”, o inicio do movimento ascensional, que cor responde ao despertar da Kundalinf; e 0 complemento da férmula designa, além disso, essa “pedra oculta” como veram medicinam [‘verdadeiza medicina’], 0 que @ identifica ainda a amrita, alimento ou bebida da imortalidade. ia ¢40”, que € propriamente o “segundo nascimento”; ao olho frontal corres- ponde a perfeigo do estado humano, isto é, a reintegrac¢do no “estado pri- mordial”; enfim, na coroa da cabega estd a passagem para os estados supra- individuais, Voltaremos ainda a correspondéncia exata dessas diversas etapas quando retomarmos 0 simbolismo da caverna inicidtica. 11 11, Podemos notar aind; ignaga ‘s a la que a designacZo “embrido de ouro” sugere uma certa rela- go com 0 simbolismo alq : Sees eee © que confirma, lis, paralelos como os que indica- ca Corresponde ie reef eremOs do mesmo modo, a esse respeito, que a caverna inicdti- oe ma notavel ao atanor hermético [o forno dos alquimistas]. Nao nder-se com semelhangas como esas, pois 0 processo da “Grande Obra”, entendid : lo em seu v ' is é 5 Pasi: verdaeiro sentido, nada mais é, no fundo, que o prdprio pro- 192 33 ACAVERNA EO OVO DO MUNDO* A caverna inicidtica, j4 0 dissemos antes, é considerada como uma imagem do mundo. Mas por outro lado, em razfo de sua assimilac&o simbé- lica ao coragdo, representa de modo mais especifico o lugar central. Pode parecer que exista af dois pontos de vista diferentes, mas, na realidade, nado se contradizem de modo algum;e o que expusemos a respeito do “Ovo do Mundo” basta para concilid-los e mesmo identificd-los num certo sentido. De fato, o “Ovo do Mundo” é central em relago ao “cosmo” e ao mesmo tempo contém em germe tudo 0 que este conterd no estado plenamente manifestado, Todas as coisas encontram-se portanto no “Ovo do Mundo”, mas num estado de “‘encobrimento”, que também é figurado de forma precisa, como jd explicamos, pela situagdo da propria caverna, com seu cardter de local oculto e fechado. As duas metades nas quais se divide o “Ovo do Mundo”, de acordo com um dos aspectos mais habituais de seu simbolismo, tornam-se respectivamente o Céu e a Terra, Na caverna, do mes- mo modo, o solo corresponde a Terra e a abébada ao Céu. Nada existe em tudo isso que no seja perfeitamente coerente e normal. Agora, resta-nos ainda examinar uma questdo de particular impor- tancia do ponto de vista inicidtico. Falamos da caverna como local do “‘se- gundo nascimento”. H4, porém, uma distin¢do essencial a ser feita entre esse “segundo nascimento” e o “terceiro nascimento”, distingdo esta que corresponde em suma 4 iniciag&o aos “‘pequenos mistérios” e aos “grandes mistérios”. Mas se o “terceiro nascimento” é também representado como tealizando-se na caverna, de que modo o seu simbolismo poder ser adap- tado? O “segundo nascimento”, que em esséncia € 0 que se pode deno- * Publicado na revista Etudes Traditionnelles, mar. 1938. 193) minar “regeneracdo psiquica”, opera-se no dominio das possibilidades sutis da individualidade humana. O “terceiro nascimento”, ao contrério. ao efetuar-se diretamente na ordem espiritual e ndo mais psfquica, é 3 acesso ao dominio das possibilidades supra-individuais. Portanto, ira é na verdade o “nascimento no cosmo” (que corresponde, como ja dissemos na ordem macrocésmica, ao nascimento do Avatara), ¢, por conseguinte é logico que seja figurada como ocorrendo inteiramente no interior da caver- na. Mas 0 outro é um “nascimento fora do cosmo”, e a essa “safda do cos. mo”, segundo a expressdo de Hermes,1 deve corresponder, para que ; simbolismo seja completo, uma safda final da caverna. Esta 386 nn : as possibilidades que estdo inclufdas no “cosmo”, possibilidades estas i: © iniciado deve justamente ultrapassar nessa nova fase do EEA Venio de seu ser, em que o “segundo nascimento” era apenas o ponto de partida Aqui, certas relagdes serdo naturalmente modificadas: a caverna toma-se de novo um “sepulcro”, dessa vez nao mais Por causa exnlinia de sua situacdo “subterranea”, mas Porque o “cosmo” inteiro é de al; modo o ‘sepulcro” do qual o ser deve agora sair. O “terceiro reciente necessariamente precedido da “segunda morte”, que é nfo mais a morte para © mundo profano, mas a verdadeira “morte para 0 cosmo” (e també “no seen’). E POr isso que o nascimento “extracésmico” & sempre hae Bae. auma “ressurrei¢do”.2 Para que POssa Ocorrer essa “ressurrei¢do’’, me fo EES a safda da cayerna, € preciso que a pedra que fecha Reber pe aseenlcr {oa seja, da propria caverna) seja levantada, Vere- Hes a Isso pode-se traduzir, em certos casos, no simbolismo oe Babictro Indo, quando o que, esta fora da caverna representava ee ae ae ou as trevas exteriores”, a caverna aparecia como pone Rees lo, e alids necessariamente iluminado do proprio et my 2 zh le fato, poderia entdo vir de fora. Agora, visto que é epee auc as possibilidades ‘ ‘extracésmicas”, a caverna, apesar de ieee. ayes wtoma-se €m compara¢ao relativamente obscura, ndo ce pee stingdo com 0 que estd fora dela, mas sim de modo pre- arate ost sae del além de sua ab6bada, pois ¢ exatamente isso nist lominio extracésmico °. Poderiamos entdo considerar, &sse novo ponto de vista, a iluminagao interior como sendo 1. Cf. A. K. Coo - K. Coomaras ie it les, dea. 1957, : areny La Vierge allaitant saint Bernard, na Etudes Tradition- 2. Encontra-se il também 0 andlogo de tudo isso no simbolismo da crisdlida e de sua transformagzo em borboleta, 194 caverna. Na ordem microcésmica, essa abertura corresponde ao Brahma- dhra [o sétimo chakra], isto €, ao ponto de contato da individualidade ‘0 “sétimo raio” do sol espiritual,3 ponto cuja “localizacao”, segundo correspondéncias organicas, encontra-se na coroa da cabega,4 e que é ain- representado pela abertura superior do atanor hermético.$ Podemos escentar, a esse respeito, que 0 “ovo filos6fico”, que desempenha de for- a clara o papel do “Ovo do Mundo”, esté encerrado no interior do atanor, "podendo ele proprio ser comparado ao “cosmo” em sua dupla aplicagdo, “macrocésmica e microcésmica. A caverna, portanto, poderd ser também identificada simbolicamente tanto ao “‘ovo filoséfico” quanto ao atanor, gundo se refira aos diferentes graus de desenvolvimento no processo i ‘cidtico, mas em todo caso sem que sua significagdo fundamental seja de al- gum modo alterada. Pode-se também notar que, com essa iluminagao por reflexo, reen- contra-se a imagem da caverna de Platdo, na qual véem-se apenas sombras, gracas a uma luz que vem de fora.6 E essa luz é inteiramente “extracésmi- ca”, visto que sua fonte é o “Sol inteligivel”, A libertagdo dos prisioneiros e sua saida da caverna é um “vir 4luz”, mediante o qual podem contemplar diretamente a realidade, da qual até entdo s6 tinham percebido um simples teflexo. Essa realidade consiste nos “‘arquétipos” etemnos, nas possibilidades contidas na “permanente atualidade” da esséncia imutdvel. Enfim, é importante notar que os dois “nascimentos” de que fala- mos, sendo duas fases sucessivas da iniciagdo completa, sao também, por isso mesmo, duas etapas de um mesmo caminho; esse caminho é essencial- mente ‘“‘axial”, tal como o simbolismo do “raio solar”, ao qual nos referi- mos hd pouco, e que marca a “diregdo” espiritual que o ser deve seguir, elevando-se constantemente até chegar por fim ao seu verdadeiro centro.7 Nos limites do microcosmo, essa diregdo “‘axial” ¢ representada pela su- 3. Cf. A. K, Coomaraswamy, op, cit. 4, Ver L'Homme et son devenir selon le Védanta, cap. XXI. 5. O “terceiro nascimento” poderia ser visto, empregando-se a terminologia alquimica, como uma “sublimaggo”. [O atanor @thanor, no original francés) é o forno dos alqui- mistas. — N. T.] 6. Essa visio obscura € a visto quasi per speculum in aenigmate de que fala Sao Paulo (rimeira Epistola aos Corintios, 13, 12). O que aparece como manifestado no “cos- mo” é tZo-somente uma sombra ou um “vestigio” da realidade transcendente, mas € 0 que lhe dé valor como simbolo daquela realidade. 1. Cf. E¢-Cirétul-mustaqim [“‘o caminho reto”] na tradigao islamica. 195 shumnd, que se estende até a coroa da cabega, a partir da qual ela se prolon- ga “extra-individualmente”, poderiamos dizer, através do proprio “aio so- lar” percorrido na direcdo de sua fonte. E ao longo da sushumnd que se en. contram os chakras que so os centros sutis da individualidade a alguns Fos quais. correspondem as diferentes posigdes do luz ou “nicleo” da re dade” que examinamos anteriormente, de tal modo que essas préprias posi- goes, ou 0 “despertar” sucessivo dos chakras correspondentes, sdo sempre de igual modo assimilaveis as etapas situadas no mesmo caminho axial” Por outro lado, como o “Eixo do Mundo” identifica-se de maneira natu al A diregdo vertical, que equivale muito bem A idéia de um caminho A dente, a abertura superior, que corresponde em termos microcésmicos 1 coroa da cabeca, como dissemos, dever4 normalmente, sob esse as) dl situar-se a zénite da caverna, isto é, no topo da abbada,, a, questao, entretanto, apresenta algumas i i fato de intervirem duas nial teres de ae € outra “solar”. E por isso que se torna Oportuno, no que diz fehl a saida da caverna, trazer ainda alguns outros esclarecimentos que fornecerao ao mesmo tempo um exemplo das relagdes que podem eatin entre essas duas modalidades, cuja respectiva predominancia refere-se originariamente 4 periodos ciclicos diferentes, mas que, a seguir, foram muitas vezes i das e combinadas de miltiplas formas, : aad 196 34 A SAIDA DA CAVERNA* A saida final da caverna inicidtica, considerada como representa- Gio da “‘safda do cosmo”, parece, segundo o que dissemos antes, efetuar-se normalmente por uma abertura situada na abobada, em seu zénite, Lembra- remos ainda que essa porta superior, as vezes disignada em termos tradicio- nais como o “cubo de roda solar” e também como o “olho césmico”, cor- responde, no ser humano, ao Brahma-randhra e a coroa da cabega, Entre- tanto, apesar das referéncias ao simbolismo solar encontradas em tais casos, poderiamos dizer que essa posigdo “axial” ¢ “zenital” refere-se mais direta- mente, e sem diivida mais primitivamente, a um simbolismo polar; € 0 ponto em que, segundo certos rituais “operativos”, est4 suspenso o “fio de prumo do Grande Arquiteto”, que marca a diregdo do “Eixo do Mundo”, identi- ficando-se entao a propria estrela polar.! Deve-se notar ainda que, para a saida efetuar-se desse modo, é necessério que uma pedra da abobada seja retirada, EB essa pedra, por ocupar o topo, tem na estrutura arquitetonica um carter especial e mesmo tnico, pois ela € a “chave de abobada”; essa observag#o tem sua importancia, embora ndo seja aqui o lugar apropriado para insistirmos mais sobre isso.2 De fato, parece bastante raro que seja observado literalmente, nos * Publicado na revista Etudes Traditionnelles, abr. 1938. 1. Lembrarfamos a esse respeito que, de acordo com a tradicdo extremo-oriental, a estrela polar representa a sede da “Grande Unidade” (Tai-i). Ao mesmo tempo, por se considerar normalmente o eixo em posigfo vertical, como o fizemos, ela corresponde também a “Grande Cumeeira” (Tai-Ki), ou seja, a0 topo da abObada celeste ou ao “te- to do mundo”. 2. Isso se refere de modo especial ao simbolismo da maconaria de Royal Arch. Podere- mos ainda, sobre esse assunto, remeter 4 nota que se encontra no final de nosso artigo Le Tambeau d'Hermes, publicado na Etudes Traditionnelles, dez. 1936, p. 473. 197 tituais inicidticos, 0 que acabamos de dizer, embora se possam encontrar alguns exemplos.3 O que pode explicar essa pequena freqiiéncia, ao menos em parte, sdo certas dificuldades de ordem prdtica e ainda a necessidade de evitar o risco de uma confusdo que se pode produzir em tais casos.4 De fato. se a caverna ndo tem outra passagem além da do topo, esta deveria servir tanto para a entrada como para a safda, o que nfo estd de acordo com Oseu simbolismo. Logicamente, a entrada deveria encontrar-se num Ponto oposto, seguindo © eixo, isto é, no solo, no centro da propria caverna, aonde se chegaria por uma via subterrénea. Contudo, tal modo de entrada no con- viria aos “grandes mistérios”, pois essa entrada s6 corresponde na verdade ao estddio inicial, que nesse caso j4 foi transposto hé muito tempo. Seria preciso, portanto, supor que o recipiendério, que entrou Por essa via subter- Tanea para receber a iniciagdo aos “‘pequenos mistérios”, permanece a seguir na caverna até o momento do seu “‘terceiro nascimento”, de onde sai em definitivo pela abertura superior. Isso é admissivel teoricamente mas sem possibilidade evidente de ser colocado em prdtica de modo efetivo.5 , Hé na realidade uma outra solucao, que implica consideragdes em que o simbolismo solar assume dessa vez o lugar preponderante, embora os vestfgios do simbolismo polar permanecam ainda visiveis de fornia muito clara. Ocorre, em suma, uma espécie de combinagao e quase de fusdo entre as duas modalidades, tal como indicamos no final do estudo precedente. igen altos graus da magonaria escocesa, é 0 que ocorre com 0 139 grau, chamado “Arco Real”, mas que ndo deve ser confundido, apesar de algumas semelhancas par- deans? Aue Na maconaria inglesa constitui a Arch Masonry, na medida em que se pra da Square-Masonry. As origens “operativas” do grau escocés de que estamos ie so alids muito menos claras. © 149 grau, ou "Grande Escocés da AbSbada ae » € de igual modo conferido “num local subterraneo e abobadado”. Convém donalee aan TaPeito, que existem em todos esses altos graus muitos dados de proce- ean toa tem sempre conservados integralmente e sem confusBes, de tal modo ¥ es ‘ Bis 5 re a aha hatureea and” Presents, 6 com freqiéncia muito diffeil determinar dé modo exato 4. Essa confusio exi < existe de fi i eco i te, nos grils escoceses que acabamos de mencionar: a Panta. io tem portas nem janelas”, podendo-se apenas 5. Em corto saci nica abertura praticada no topo da abSbada satide “ isiktoe cae Genrer. eae dizer que os “pequenos mistérios” correspondem a Terra bém, em cotton ace, zrmndes mistérios” ao Céu (estados supra-individuais); dat tam- métricas do quadenay cit’ coHespondéncia simbélica estabelecida com as formas geo- vests a pee ie (ou delas derivadas), que a tradicdo extremo-orien- spectivamente 4 Terra e ao Céu, Trata-se da mesma distingdo encontrada, no Oci aa dente, entre a Square Masonry e a Arch Masonry, que acabamos de 198 que importa essencialmente notar a esse respeito € que o eixo vertical, medida em que liga os dois pdlos, é um eixo norte-sul. Na passagem do bolismo polar para o simbolismo solar, esse eixo deveré ser de alguma a projetado no plano zodiacal, mas de modo a conservar uma certa spondéncia e, poderfamos mesmo dizer, uma equivaléncia tio exata anto possivel com o eixo polar primitivo.6 Ora, no ciclo anual, os sols- cios de inverno e verdo sfo os dois pontos que correspondem respectiva- nente ao norte e ao sul na ordem espacial, do mesmo modo que os equin6- cios da primavera e outono correspondem ao Oriente e Ocidente. O eixo preencher4 a condi¢do requerida ¢ portanto aquele que liga os dois ontos solsticiais. E podemos dizer que tal eixo solsticial desempenhard en- © o papel de um eixo relativamente vertical, o que de fato € em relagdo 10 eixo equinocial.7 Os solsticios so na verdade o que se pode denominar élos do ano. E esses pélos do mundo temporal, se nos for permitido assim dizer, substituem aqui, em virtude de uma correspondéncia real e nada rbitrdria, os pélos do mundo espacial; esto, alids, naturalmente em relacdo eta com 0 curso do Sol, cujos pélos, no sentido proprio e comum dessa ayra, sfo, a0 contrdrio, inteiramente independentes. Encontram-se assim | das entre si, de modo tAo claro quanto possivel, as duas modalidades sim- " bélicas de que falavamos. : Assim sendo, a caverna “cOsmica” poderd ter duas portas “zodia- ‘tais” opostas, segundo o eixo que acabamos de ver, correspondendo, por- tanto, respectivamente, aos dois pontos solsticiais, sendo que uma servird de "entrada e a outra de safda. De fato, a nogdo de duas “portas solsticiais” " encontra-se de modo explicito na maior parte da tradiges, sendo-lhe em geral atribufda uma importancia simbélica considerdvel. A porta de entrada €, as vezes, designada como a “porta dos homens”, podendo estes, nesse ca- 80, ser tanto os iniciados aos “‘pequenos mistérios”, quanto os simples profa- nos, pois ndo ultrapassaram ainda o estado humano. A porta de sada ¢ en- to designada, por oposigéo, como a “porta dos deuses”, ou seja, aquela pela qual passam apenas os seres que tém acesso aos estados supra-indivi- 6. A essa mesma passagem de um simbolismo a outro é que se refere a “translagdo” de certas constelages da regido polar a regio zodiacal, fato ao qual jd nos referimos em outra parte (ver 0 Rei do Mundo, cap. X). : 7. Nao nos ocuparemos aqui do fato de que, nas diferentes formas tradicionais, exis- tem as que dio ao ano um ponto de partida solsticial, e outras um ponto de partida equinocial. Diremos apenas que a predomindncia assim atribufda, ou aos solsticios ou 0s equinécios, encontra ainda sua razdo de ser na consideragdo dos diferentes perfodos ciclicos, aos quais essas formas tradicionais devem ser referidas em particular. 199 duais. Resta apenas determinar a qual dos dois solsticios corresponde cada uma das portas. Essa questo, no entanto, para receber o desenvolvimento que comporta, merece ser tratada a parte. => pee = 35 AS PORTAS SOLSTICIAIS* . Dissemos que as duas portas zodiacais, respectivamente a entrada ¢ asaida da “caverna césmica”, e que certas tradig6es designam como a “por- ta dos homens” e a “porta dos deuses”, devem corresponder aos dois sols- " ticios, B preciso agora esclarecer que a primeira corresponde ao solsticio de yerio, isto é, ao signo de Cancer [no hemisfério norte], e a segunda ao sols- _ ticio de inverno, ou seja, ao signo de Capricérnio, Para compreender a razo disso, é necessério nos referirmos a divis4o do ciclo anual em duas metades, uma “ascendente” e a outra “descendente”, A primeira € 0 perfodo do _ curso do Sol para o norte (uttaréyana), indo do solsticio de inverno para 0 solsticio de verfo; a segunda é a do curso do Sol para o sul (dakshindyana), indo do solstfcio de verdo para o solsticio de inverno.! Na tradigdo hindu, a fase “‘ascendente” est4 relacionada ao déva-ydna, [“caminho dos deuses”’] a fase “descendente” ao pitri-ydnna [“caminho dos pais” ou “antepassa- dos”],2 0 que coincide exatamente com as designagdes das duas portas que acabamos de mencionar: a “porta dos homens” é a que dé acesso ao pifri- Yanna, e a “porta dos deuses” é a que dé acesso ao devd-yana. Elas devem portanto situar-se respectivamente no inicio das duas fases correspondentes, isto é, a primeira deve estar bem no solsticio de verdo e a segunda no sols- * Publicado na revista Etudes Traditionnelles, mai, 1938. 1. Cabe assinalar que 0 Zodiaco figurado com freqiiéncia no portal das igrejas da Ida- de Média esta disposto de modo a marcar claramente essa divisao do ciclo anual. 2. Ver em especial o Bhagavad-Gitd, 8, 23 a 26. Cf. L’Homme et son devenir selon le Vedanta, Uma correspondéncia anloga encontra-se no ciclo mensal, em que o perfodo da lua crescente esté relacionado ao déva-ydna e o da lua decrescente, por sua veZ, a0 pitri-yana, Pode-se dizer que as quatro fases lunares correspondem, num ciclo mais res- trito, ds quatro fases solares que so as quatro estagdes do ano. 201 ticio de inverno. Nesse caso, contudo, trata-se na verdade nfo de uma entra. da e de uma safda, mas de duas safdas diferentes, o que se deve ao fato de que, nesse caso, 0 ponto de vista € diferente daquele que se refere de modo especial ao papel inicidtico da cayerna, conciliando-se no entanto perfeita- mente com ele. De fato, a “caverna césmica” é considerada como o lugar da manisfestagao do ser: apés ter-se manifestado num certo estado, tal como o estado humano por exemplo, esse ser, segundo o grau espiritual que alcangar, sairi por uma ou outra das duas portas. No caso do pitri- ydna, ele deveré voltar a um outro estado de manifestagao, o que ser re- presentado naturalmente por um retorno a “caverna césmica” assim con- siderada. No caso do déva-yana, ao contrario, ele nado tem mais que voltar ao mundo manifestado. Assim, uma das duas portas é ao mesmo tempo uma entrada e uma safda, enquanto que a outra é uma safda definitiva. Mas no que diz respeito a iniciagdo, é precisamente essa Ultima safda definitiva que consiste na meta final, de modo que o ser que entrou pela “porta dos ho- mens” deve, se atingiu de fato sua meta, sair pela “porta dos deuses”.3 Jé explicamos antes que o eixo solsticial do Zodiaco, relativamen- te vertical em relacdo ao eixo equinocial, deve ser considerado como a pro- jego, no ciclo solar anual, do eixo polar norte-sul. De acordo com a cor- Tespondéncia do simbolismo temporal com o simbolismo espacial dos pon- tos cardeais, o solsticio de invemo é de algum modo o pélo norte do anoe © solsticio de vero o pélo sul, enquanto que os dois equindcios, da prima- vera € do outono, correspondem por isso mesmo, respectivamente, ao leste © a0 oeste.4 No entanto, no simbolismo védico, a porta do déva-loka situa-se 3. A “porta dos deuses” s6 pode ser entrada no caso de uma descida voluntétia a0 mundo manifestado, quer de um ser jé “libertado”, quer de um ser que representa a Pee no direta de um principio “supracdsmico” [ver Initiation et réalisation spiri- tuelle, cap. XXXII]. Mas é evidente que esses casos excepcionais nfo entram nos pro- cxssos “nomnais” que estamos considerando aqui. Apenas indicaremos que se pode compreender assim com facilidade a azo pela qual se considera que o nascimento do Avatara ocome na época do solsticio de inverno, época que corresponde [no hemis- fério norte] festa de Natal na tradigdo cristd, 4. No dia, a metade ascendente vai da meia-noite ao meio-dia, e a metade descendente do meio-dia 4 meia-noite. A meia-noite Corresponde ao inverno e ao norte, e o meio-dia ba ano © 20 sul. A manhd corresponde a primavera e ao leste (lado do nascer do Sol), Gc. Raite ao outono € ao oeste (lado do pér-do-sol), Assim, as fases do dia, tal como as do més, mas em escala ainda mais reduzida, reproduzem analogicamente as fases do ghead, see? acontece em geral com um ciclo qualquer, que, seja qual for sua exten- do-0 simbolign ee fe forma natural de acordo com a mesma lei quaternéria. Segun- NO, mas também $e er © Nascimento do Avatdra ocorre nio s6 no solsticio de inver- 7 “ ‘meia-noite, ficando assim em dupla correspondéncia com a “porta 202 i acabamos de mencionar, o periodo “ascendente” se desenvolve do norte o leste, e depois do leste para o sul. Do mesmo modo, 0 periodo “des- do como 0 lado da luze da vida, e que a “porta dos homens” situa-se ao sul e est4 voltada para o oeste, que é também considerado como o lado da som- e da morte. Ficam assim exatamente determinados “os dois caminhos permanentes, um claro e outro obscuro, do mundo manifestado; pelo pri- ‘meiro ndo hd retorno (do ndo-manifestado para o manifestado); pelo outro yolta-se para tras (na manifestagdo)”.6 : No entanto, resta ainda resolver uma aparente contradig40: o norte € designado como o ponto mais alto (uftara), e é aliés para esse ponto que se _ dirige o curso ascendente do Sol, enquanto que o curso descendente esta dirigido para o sul, que aparece assim como o ponto mais baixo. Mas, por outro lado, o solstfcio de inverno, que corresponde ao norte no ano, marca 0 inicio do movimento ascendente, que é em certo sentido o ponto mais dos deuses”. Por outro lado, de acordo com o simbolismo magénico, o trabalho inicis- { tico realizase “do meio-dia 4 meia-noite”, 0 que ndo ¢ menos exato se considerarmos esse trabalho como um caminhar que se efetua da “porta dos homens” para a “porta dos deuses”; a objecHo que se poderia fazer, em razo do cardter “descendente” desse Periodo, pode ser resolvido pela aplicagdo do “sentido inverso” da analogia, tal como veremos mais adiante. eo 5. Isso tem relagdo direta com a questdo do sentido das “‘circunambulagoe: ” rituais as diferentes formas tradicionais. De acordo com a modalidade “solar” do simbolis- MO, esse sentido é 0 que acabamos de indicar: a “circunambulacdo” realiza-se assim Mantendo-se sempre direita o centro em torno do qual gira. Segundo a modalidade “polar”, realiza-se no sentido inverso da primeira, tendo-se portanto o centro & esquer~ da, No primeiro caso estd a pradakshind tal como é utilizada nas tradigdes hindu e tibe- tana. O segundo caso encontrase, em particular, na tradi¢do islamica, E interessante Observar que o sentido dessas “circunambulagSes”, que vao respectivamente da esquer- da para a direita e da direita para a esquerda, corresponde também a dire¢do da beet Nas linguas sagradas dessas mesmas formas tradicionais. Na magonaria, em sua forma atual, o sentido das “circunambulagées” é “solar”; mas parece ter sido ao contrério, 0U seja, “polar”, no antigo ritual “operativo”, de acordo com 0 qual o “trono de Salo- mo” estava alids colocado ao ocidente ¢ nfo ao oriente. 6. Bhagavad-Gitd, 8, 26. Pode-se notar que a “claridade” e a “obscuridade”, que carac- terizam respectivamente esses dois caminhos, correspondem de forma exata aos dois Principios complementares, yang e yin, da tradigao extremo-oriental. 203 baixo; e 0 solsticio de ver4o, que corresponde ao sul, onde termina o mo- vimento ascendente, é sob esse mesmo Angulo o ponto mais alto, a partir do qual comegard a seguir o movimento descendente, que terminard no sols- ticio de inverno. A solug4o dessa dificuldade reside na distingdo que deve ser feita entre a ordem “celeste”, 4 qual pertence o curso do Sol, e a ordem “terrestre”, 4 qual pertence, ao contrario, a sucessdo das estagdes. Segundo a lei geral da analogia, essas duas ordens devem, em sua prOpria correlagdo, ser inversas uma da outra, de tal modo que o que ¢ o mais alto de acordo com uma, torna-se o mais baixo de acordo com a outra, e vice-versa. E por isso que, segundo a palavra hermética da Tdbua de Esmeralda, “‘o que est4 no alto (na ordem celeste) € como o que est4 embaixo (na ordem terrestre)”, ou ainda que, segundo a palavra evangélica, “os primeiros (na ordem pri- mordial) sero os dltimos (na ordem manifestada)”.7 Além disso, é também yerdadeiro que, no que se refere as “influéncias” inerentes a esses pontos, é sempre o norte que permanece “benéfico”, quando o consideramos como © ponto para o qual se dirige o curso ascendente do Sol no céu, ou, em rela- go ao mundo terrestre, como a entrada do déva-loka. Do mesmo modo, o sul permanece sempre “‘maléfico”, se o considerarmos como ponto para 0 qual se dirige a marcha descendente do Sol no céu, ou, em relagio ao mundo terrestre, como a entrada do pitri-loka, 8 E preciso acrescentar que o mundo 7. A esse duplo ponto de vista corresponde, entre outras aplicagdes, o fato de que, nas figuragdes geogrificas ou outras, o ponto colocado no alto pode ser o norte ou o sul; na China é o sul e, no mundo ocidental, ocorreu o mesmo com os romanos e duran- te um periodo da Idade Média. Alids, esse uso é na verdade, segundo 0 que acabamos de dizer, 0 mais correto no que diz respeito 4 representagdo das coisas terrestres, en- quanto que, ao contrério, quando se trata das coisas celestes, é o norte que deve nor- malmente ser colocado no alto. Sem dtivida, a predominincia de um ou outro desses Pontos de vista, segundo as formas tradicionais, ou segundo as épocas, pode determi- Nar a adocdo de uma disposig¢do unica para todos os casos indistintamente. A esse res- Peito, o fato de colocar 0 norte ou o sul no alto aparece em geral ligado sobretudo a distingdo das modalidades “polar” ¢ “solar”, colocando-se no alto o ponto que se tem diante de si, ao orientarse por uma ou outra dessas modalidades, tal como explicare- Mos na nota seguinte, 8. A esse respeito podemos assinalar como complemento outro caso em que um mes- Mo ponto guatda também uma significagdo constante através de certas mudangas que Constituem inversdes aparentes: a orientagdo pode ser tomada de acordo com uma ou Outra das duas modalidades, “polar” ou “solar”, do simbolismo, No Pprimeiro caso, olhando-se para a estrela polar, isto é, voltando-se para o norte, tem-e o leste a direita; Ro segundo, olhando-se o Sol no meridiano, isto é, voltando-se para o sul, tem-se ao eanizttie © leste & esquerda. Essas duas modalidades foram particularmente utilizadas aes eaeeacr ees diferentes. Desse modo, o lado ao qual se dava preeminéncia era as ©, as vezes, d esquerda, mas tratava-se sempre, de fato, do leste, isto é, 204 ae pode ser considerado aqui, por transposigdo, como uma Tepresenta- fo de todo o conjunto do “cosmo”, enquanto que o céu representar4, de rrestre i inio “extracésmico”. Desse ponto com a mesma transposi¢40, o dominio “ex! : - 6A ordem “espiritual”, entendida em sua acep¢ao mais elevada, que Seer aplicar-se a consideragiio do “sentido inverso” em telagdo, nfo apenas aordem sens{vel, mas 4 ordem césmica como um todo.9 do “lado da luz”. Podemos acrescentar que existem ainda outros modos de sion BSE PED, an iain near modaiia 20 Onder i dakshina ou 0 “la ita”. Es O as ates construtores da Idade Média para a orientagdo das igrejas [ver A Grande Triade, cap. V1]. : 9, Para dar um exemplo dessa aplicag4o, que por sinal tem estreita pie on e 305 Stancs tntando, pode‘ at ae a snbazanente como ocrendo 8 dia, a do “Sol espiritual” deve ser considerada simbo Ce atin i i fe diz que 0s iniciados aos “grandes mistérios” da Antigu) Blo Se deena pre no a a auséncia ou a privacio da luz, mas seu estado primordial de aaa ie sca oe corresponde, alids, estritamente 4 significacdo superior das trevas ou seasons simbolo do ndo-manifestado. E é nesse sentido também que devem ser Sa tos ensinamentos do esoterismo islimico, de acordo com os quais a dire a0 dia”, Pode-se notar, além disso, que se o simbolismo “solar” poss\ Ut i ae dente com o dia, o simbolismo “polar” possui, por seu lado, uma cortt XA noite, E ainda muito significativo, a esse respeito, que o “sol da ee ee teralmente, na ordem dos fendmenos sensiveis, sua roprieon oto ns béreas, isto é, exatamente onde se situa a origem da tradi¢ao prim 3 205 36 O SIMBOLISMO Do zopr, IACO ENTRE OS PITAGORICOS* Pressdes “porta dos homens” e “ 0 € “porta dos deuses”, Pertencem além disso a tradicao grega; no entanto ae Com as de outras tradigoes, Antes de mai i mais nada, para evitar certos €quivocos sobre a Tespectiva situagdo i 6 ts ae € preciso lembrar do que dissemos sobre a aplica- Peer. ae, year as Consideramos em relacdo a ordem ter- ieee €: a porta solsticial de inverno, ou o signo de Capri- Tene es r st corresponde ao norte no ano, mas ao sul no que otc pee ee lo Sol no céu, Do mesmo modo, a porta solsticial Ronadtatanvon “ * le corresponde ao sul no ano e ao norte quan- mea Ps ee is Por isso que, enquanto o movimento “ascendente” meena ngacterte © seu movimento “descendente” do norte pa- Picnic: een eae do ano deve ser considerado, ao contrario. cendente”, indo a a ir do norte, indo para o sul, e seu periodo “des. : : Para 0 norte, tal como j4 0 dissemos anteriorment Publicado na revista Etudes Traditionnelles, % 206 » jun. 1938, m relacdo a este Uiltimo ponto de vista que, de acordo com o simbolismo o, a porta do véda-loka est4 situada na diregdo do norte e a do pitri- ig na dire¢do do sul, sem que haja af, apesar das aparéncias, qualquer con- igo com o que encontraremos agora em outras partes. Citaremos, acompanhando-o das explicag6es e retificagdes necess4- as, o resumo dos dados pitagéricos expostos pelo sr. Jérome Carcopino:1 pitagéricos, diz ele, construfram toda uma teoria sobre as relagdes do aco com a migracZo das almas. A que data ela remonta, é impossivel r, A verdade é que até o segundo século da nossa era, ela se difundia nos itos do pitagérico Numénio, os quais nos ¢ permitido conhecer por um resumo seco € tardio de Proclo, em seu comentério 4 Republica de Plato, por uma andlise, ao mesmo tempo mais ampla e mais antiga, de Porfirio gos capitulos XXI e XXII de De Antro Nympharum.” Hi ai, como podemos de imediato, um belo exemplo de “historicismo”’: a verdade € que no trata, de forma alguma, de uma teoria “construida” mais ou menos artifi- ente, em tal ou qual data, pelos pitag6ricos ou por outros, como se - fosse uma simples consideragdo filoséfica ou uma concepgdo individual "qualquer. Trata-se de um conhecimento tradicional, referente a uma realida- de de ordem inicidtica e que, precisamente em razdo de seu carater tradicio- ‘nal, ndo tem e nem pode ter uma origem cronol6gica assinaldvel. E claro que essas consideragdes podem escapar a um “erudito”; mas uma coisa € possivel compreender: se a teoria em questdo foi “construfda pelos pitagoricos”, como explicar que ela se encontre por toda parte, fora de qualquer influén- cia grega, e em especial nos textos védicos, que sem divida sdo muito ante- Tiores ao pitagorismo? Isso também 0 sr. Carcopino, enquanto “especialista” da antiguidade greco-latina, pode infelizmente ignorar; porém, de acordo com o que ele proprio relata a seguir, tal dado jd se encontra em Homero. Portanto, mesmo entre os gregos, ela era conhecida, nZo apenas antes de Numénio, o que é evidente, mas antes do proprio Pitdgoras. Trata-se de um ensinamento tradicional, transmitido de modo continuo através dos séculos, € pouco importa a data talvez “tardia” em que certos autores, que nada inventaram e nem tiveram essa pretens4o, o formularam por escrito de um modo mais ou menos preciso. Dito isso, voltemos a Proclo e Porfirio: “‘Nossos dois autores con- cordam em atribuir a Numénio a determinagdo dos pontos extremos do céu, © trépico de inverno, sob o signo de Capricérnio, e 0 trépico de verao, sob 1. La Basilique pythagoricienne de la Porte Majeure. Nao estando o volume a nossa disposigd0, citamos de acordo com o artigo publicado anteriormente sob o mesmo tftu- lo na Revue des Deux Monde (ntimero de 15 de novembro de 1926). 207 0 de Cancer, e em definir (evidentemente, segundo ele e os “tedlogos” que cita e que lhe serviram de guias) Cancer e Capricérnio como as duas portas do céu. Quer para descer na geracdo, quer para tornar a subir até Deus, as almas deviam pois necessariamente transpor uma delas.” Por ‘“‘pontos i tremos do céu”, expressdo por demais eliptica para ser perfeitamente clara em si mesma, é preciso entender aqui os pontos extremos alcangados pelo Sol em sua marcha anual e onde, de algum modo, ele se detém; daf o nome “solsticios”. E a esses pontos solsticiais que correspondem as duas “portas do eu”, de que trata a doutrina tradicional que j4 conhecemos. Como jé indicamos em outra ocasido,? esses dois pontos eram as vezes simbolizados — por exemplo sob 0 tripode de Delfos e sob os pés dos corcéis do carro solar — pelo polvo e o delfim, que representam respectivamente Cancer e Capricérnio, Sem diivida, por outro lado, os autores em questdo ndo pu- deram atribuir a Numénio a determinag4o dos pontos solsticiais, que eram conhecidos de todas as épocas. Simplesmente referiram-se a ee como um dos que haviam falado antes sobre o assunto, do mesmo modo que o pr6- prio Numénio fizera referéncia a outros “‘tedlogos”. A seguir, 0 autor trata de precisar 0 papel especifico de cada uma das Portas, e € af que surge a confusdo: “Segundo Proclo, Numénio as teria especializado de forma estrita: pela porta de Cancer, a queda das almas sobre a terra; pela de Capricérnio, a ascensfo das almas ao éter. Em Porfirio, ao contrario, é dito apenas que Cancer est4 ao norte e é favordvel a deotaa e que Capricémio, ao sul, é favoravel 4 subida, de modo que ao invés de esta. em submetidas de forma estrita ao ‘sentido unico’, as almas teriam conser- vado, tanto para ir, quanto para voltar, uma certa liberdade de circulacao”. O final desta citagdo exprime apenas, para dizer a verdade, uma interpreta- $80. cuja tesponsabilidade deve ser atribuida por inteiro ao sr. Carcopino, Nio vemos, de modo algum, em que o que diz Porfirio seria “contrdrio” a0 que diz Proclo; est formulado talvez de um modo um pouco mais vago. ee ae no fundo dizer a mesma coisa. O que é “favordvel” a descida sil : ida deve sem duvida ser entendido como o que a torna possivel, pois spouee Provavel que Porfirio tenha pretendido deixar subsistir desse modo Sica de indeterminacao, 0 que, sendo incompativel com o cardter cevinies Re tradicional, peri apenas para. ele uma prova de ignoran- Pee oo les desse ponto. Seja como for, é visivel que Numénio nada at ed sobre o papel das duas portas, o ensinamento tradicio- - Por outro lado, se ele coloca, como indica Porfirio, Cancer 2. Ve fer [Cap. 22] Alguns Aspectos do Simbolismo do Peixe, 208 “go norte € Capricérnio ao sul, é porque viu sua posi¢do no céu. Eo que, alids, indica de forma muito clara 0 fato de, na citagdo precedente, tratar-se ‘dos “tropicos”, que ndo podem ter outro significado, e de modo algum seferir-se aos “solsticios”, que dizem respeito mais diretamente a0 ciclo "anual. E por isso que a situagdo enunciada aqui ¢ a inversa daquela forne- “ cida pelo simbolismo védico, sem que isso no entanto faga qualquer diferen- ga teal, pois trata-se de dois pontos de vista igualmente legitimos, e que con- cordam de modo perfeito entre si, desde que se conhega sua relagdo. . Veremos ainda uma coisa muito mais extraordindria: o sr. Carcopi- ‘no prossegue dizendo que “€ dificil, na auséncia do original, distiguir essas ‘referéncias divergentes”, mas que na realidade, devemos acrescentar, apenas so divergentes em seu pensamento, “a verdadeira doutrina de Numénio”, que, como vimos, nao é de modo algum sua doutrina pessoal, mas somente " oensinamento relatado por ele, o que é alids mais importante mais digno de interesse. “Mas ressalta-se do contexto de Porfirio que, mesmo exposta "sob sua forma mais eldstica””, como se pudesse existir “elasticidade” em uma questo que é unicamente assunto de conhecimento exato, “ela permanece- "tia em contradi¢do com a teoria de alguns dos seus predecessores, €, em es- _ pecial, com o sistema sobre o qual os pitagdricos mais antigos tinham apoia- do sua interpretaco dos versos da Odisséia, em que Homero descreveu a gruta de Ttaca”, isto é, o “antro das Ninfas”, que nada mais é que uma das figuragdes da “caverna césmica”, da qual falamos anteriormente. “Homero, nota Porfirio, ndo se limitou a dizer que essa gruta tinha duas portas. Espe- cificou que uma estava voltada para 0 Jado do norte, e a outra, mais divina, para 0 lado do sul, e que se descia pela porta do norte. Mas ele nfo indicou se era possivel descer pela porta do sul. Disse apenas: éa entrada dos deuses. Jamais o homem toma o caminho dos imortais.” Pensamos que este deve ser 0 texto do proprio Porfirio ¢ nfo descobrimos a contradigdo anunciada. E eis agora 0 comentario do sr. Carcopino: “Nos termos desta exegese, per- cebem-se, nesse resumo do universo que ¢ 0 antro das Ninfas, as duas portas que se erguem para os céus & pelas quais passam as almas, €, a0 inverso da linguagem que Proclo atribui a Numénio, a do norte, de Capricémio, foi de inicio reservada a safda das almas, e a do sul, de Cancer, por conseguinte, destina-se a0 retorno das almas a Deus.” Agora que conclufmos a citagdo podemos com facilidade nos dar conta de que a pretensa contradigdo, também aqui, s6 ocorre por causa do sr. Carcopino. Existe de fato, na ultima frase, um erro evidente, ¢ até mes- mo um duplo erro, que parece na verdade inexplicdvel. Em primeiro lugar, € 0 st, Careopino que acrescenta, por iniciativa propria, a mengfo a Capri- 209 cémio e Cancer. Homero, segundo Porfirio, designa apenas as duas Portas situadas uma ao norte e outra ao sul, sem indicar os signos zodiacais corres. pondentes, Mas, visto que Homero indica com Precisdo que a porta “diving” € a do sul, torna-se necessdrio concluir que esta é a que corresponde para ele a Capricérnio, do mesmo modo que para Numénio, ou seja, ele também si- tua essas portas de acordo com sua situagdo no céu, 0 que parece portanto ter sido, de modo geral, 0 ponto de vista dominante em toda a tradicao grega, mesmo antes do pitagorismo. Depois, a saida das almas do “cosmo” € 0 seu “retorno a Deus” so exatamente uma tinica e mesma coisa, de modo que o sr, Carcopino atribui, aparentemente sem o perceber, Sinesino papel as duas portas. Homero diz, muito pelo contrério, que é ela porta do Norte que se efetua a “‘descida”, isto é, a entrada na “caverna cosmica”, ou, em outros termos, no mundo da geragdo ou da manifestacao individual, Quanto 4 porta do sul, é a safda do “cosmo” e, por conseqiiéncia através dela se efetua a “subida” dos seres em via de libertagdo. Homero nto diz de forma expressa que se pode também descer por essa Porta; mas isso nfo é necessdrio porque, designando-a como a “entrada dos deuses”, indica de forma suficiente que so “descidas” excepcionais que se efetuam por af, conforme explicamos em nosso estudo precedente, ; Enfim, seja a situagdo das duas Portas consideradas em relagao ao Percurso do Sol no céu, como na tradic¢Ao grega, ou em telacdo as estagdes no ciclo anual terrestre, como na tradigdo hindu, Cancer é sempre a “porta dos homens” e Capricérnio a “porta dos deuses”, Nao pode haver qualquer varla¢ao a esse respeito e, de fato, nao hd; trata-se apenas de incompreensfo dos “eruditos” modernos que acreditam descobrir, entre os diversos intér- pretes das doutrinas tradicionais, divergéncias e contradigdes que nfo exis- tem de modo algum. 210 37 O SIMBOLISMO SOLSTICIAL DE JANO* E Acabamos de ver que, no Ocidente, o simbolismo das duas portas solsticiais existia entre os gregos ¢ de modo especial entre os pitagéricos, sendo também encontrado entre os latinos, onde estava essencialmente ligado ao simbolismo de Jano. Como ja fizemos referéncias a este ultimo € aos seus diversos aspectos em inumeras oportunidades, examinaremos aqui apenas os pontos que se referem de forma mais direta ao que expusemos em Nossos tiltimos estudos, embora seja dificil isolé-los por completo do conjun- to muito complexo de que fazem parte. Jano, sob 0 aspecto que estamos tratando agora, é na verdade o Janitor [“‘porteiro”] que abre e fecha as portas (januae) do ciclo anual, com as chaves que constituem um de seus principais atributos. Lembraremos, a esse respeito, que a chave é um sfmbolo “axial’’. Isso se refere, é claro, ao lado “temporal” do simbolismo de Jano: seus dois rostos, de acordo com a interpretago mais habitual, representam respectivamente o passado e o fu- turo. Tal consideragao do passado e do futuro é reencontrada em qualquer ciclo, por exemplo no ciclo anual, quando o encaramos de uma ou outra de suas extremidades, Desse ponto de vista, além disso, é importante acres- centar, para completar a nogdo do “triplice tempo”, que, entre o passado que nfo é mais e o futuro que ainda ndo 6, o verdadeiro rosto de Jano, aquele que olha o presente, nado é nenhum dos dois que podemos ver. Esse terceiro rosto, de fato, é invisivel, porque o presente, em sua manifestagZo temporal, € apenas um instante imperceptivel.1 Mas ao contrario, quando * Publicado na revista Etudes Traditionnelles, jul. 1938, 1, E também por essa razdo que certas linguas como o hebreu e o drabe nfo tém a forma verbal que corresponde exatamente ao presente. 211 nos elevamos acima das condigdes dessa manifes: itori: tagdo transit6ria e contin. gente, o presente contém toda realidade. O terceiro tosto de Jano corres. ponde, num outro simbolismo da tradigao hindu, ao olho frontal de Shiva, fegnbem ueatre oe nao é figurado por qualquer érgao0 corporal e repre. senta o “sentido da eternidade”. Um olhar desse terceij F t s ot a tceiro olho redu; a eas isto psc toda manifestagdo, Mas quando a sucessdo ee ‘m simultaneidade, o temporal em intem, i : , poral, todas as coi \- contram-se € permanecem no “eterno Presente”, de modo que oh es destruigdo é, na verdade, apenas uma “transformagio”, a aos apa ao a diz respeito de forma mais particular ao ciclo is mo Portas, que Jano tem por funcdo abri nada mais so que as Portas solsticiai ee te ee. ticiais de que falavamos, Nao hi ibili de de qualquer divida a esse respei scat, de qu peito. De fato, Jano dei pe ence 5 UO Seu Nome ao més }, © primeiro, pelo qual se abre o ani normalmente no solsticio de inverno [ isféri oon : I ino hemisfério norte]. Por out © © que é ainda mais claro, a festa de Jano, em Roma, era Ree ie ingen: de Partida; POF essa razdo, Jano, que j4 vimos aparecer como o Z ee eae 7 (Generate também aplicada a Shiva pela tradi- p é re dos dois caminhos”, os caminhos da di: iti querda, que os pitagéricos representavam pela letra Y,2 e que eas Por af, que as chaves de Jano sao i i é na realidade as mesmas que, s: sae cctstt abrem e fecham o “Reino dos céus” (sendo pees qual este é alcancado corresponde, nesse sentido, ao déva-yana),4 ¢ isso 2. Eo 2B santé figurava, sob uma forma exotérica e “moralizada”, o mito de Hér- 18. O antigg gern © © Vicio,cujo simbotismo foi conservado na sexta lamina do Tx Baye re na eet aliés outras “sobrevivéncias” bastante curiosas, tal : mntrada, na época do Renasci i i a Senin, desenhada por Joan eonssa’ Renassimento, na marca do impressor Nicolas - A palavra sanscrita yéi i es eee tem a mesma raiz da ire latina e, de acordo com Cicero, é ee Proprio nome Jano [Janus], cuja forma ¢, alids, singularmente 4. A propési i eta ‘Sete es eat dos dois caminhos, cabe acrescentar que existe um ter- ee ae unio » que conduz diretamente a “Libertacdo”; a esta via corres- a nto superior ndo tragado da parte vertical da letra Y,e isso pode dito mais acima a respeito do terceiro rosto invis{vel de to mais que, sob um outro ponto de vista, essas duas mesmas chaves, uma ouro e outra de prata, eram também as dos “grandes mistérios” e dos quenos mistérios”. De fato, Jano era o deus da iniciagdo,5 e essa atribuicgdo ¢ das mais portantes, ndo apenas em si mesma, mas também do ponto de vista em nos colocamos nesse momento, pois existe af uma conexdo evidente ‘© que dissemos sobre 0 papel verdadeiramente inicidtico da caverna e outras “imagens do mundo” que lhe s4o equivalentes, papel este que nos Jevou a examinar a questo das portas solsticiais, F, alids, a esse titulo que fano presidia aos Collegia Fabrorum, sendo estes os depositarios das inicia- que, como em todas civilizag6es tradicionais, estavam ligadas ao exer- cio dos oficios. E o mais notdvel ¢ que existe nisso alguma coisa que, longe de ter desaparecido com a antiga civilizagdo romana, continuou sem inter- tup¢do no proprio cristianismo, podendo alguns tragos ser encontrados até ‘nossos dias, por mais estranho que isso possa parecer Aqueles que ignoram certas “transmissdes”. % No cristianismo, as festas solsticiais de Jano tornaram-se as dos dois Sao Jodes, celebradas nas mesmas épocas, ou seja, nas proximidades dos solsticios de inverno e de verdo.6 Também muito significativo é que 0 aspec- _ to esotérico da tradi¢ao cristé sempre foi visto como “joanita”, o que dé a _ esse fato um sentido que ultrapassa de modo claro, sejam quais forem as _ aparéncias exteriores, o simples dominio religioso ¢ exotérico. A sucessdo _ dos antigos Collegia Fabrorum foi, além disso, transmitida regularmente as Corporagdes que através de toda Idade Média guardaram o mesmo cardter _ inicidtico, em especial a dos construtores. Esta teve, como é natural, os dois Sao Jodes por patrono, e dai vem a expresso bem conhecida de “Loja de 5, Notemos que a palavra initiatio vem de in-ire, ¢ que desse modo reencontramos 0 verbo ire, ao qual se liga o nome de Jano. 6. A festa de So Joo do inverno [no hemisfério norte] esté desse modo muito pré- xima do Natal, que, sob um outro ponto de vista, também corresponde exatamente a0 solsticio de invemo, tal como jé explicamos. Um vitral do século XII da igreja de Saint- Rémi, em Reims, apresenta uma figuraco praticamente curiosa, e sem diivida excep- cional, em relacdo ao que estamos tratando aqui; discutiu-se em vio a questo de saber qual dos dois Sao Jodes esté ali representado, A verdade é que, sem precisarmos ver nis- $0 qualquer confusio, o vitral representa os dois, sintetizados na figura de um tinico personagem, o que ¢ demonstrado pelos dois girasséis colocados em sentidos opostos acima de sua cabeca e que correspondem aos dois solsticios ¢ aos dois rostos de Jano. Podemos ainda assinalar, a titulo de curiosidade, que a expresso popular francesa “Jofo que chora e Jodo que ri” é na realidade uma lembranga dos dois rostos opostos de Jano. 213 So Joao”, conservada pela magonaria, que nada mais é que a continuagfo, por filiaedo direta, das organizacdes que acabamos de falar,7 A Mesmo sob sua forma “especulativa” moderna, a magonaria sempre conservou também, como um dos testemunhos mais explicitos de sua ori- gem, as festas solsticiais consagradas aos dois Sd0 Jooes aps terem sido de- dicadas as duas faces de Jano.8 E assim que o dado tradicional das duas portas solsticiais, com suas conexdes inicidticas, manteve-se ainda vivo até no mundo ocidental atual, mesmo que de um modo geral incompreendido. 7. Devemos lembrar que a “Loja de Sao Joao”, camente& cavern, nem por iso dea de srt e a as a Particularmente clara a esse respeito: seu comprimento vai ee, mie Jargura do “sul ao setentriéo”, sua altura “da terra ao prom a superficie da terra a0 seu centro”, Vale a pena observar, ee a0 que diz respeito a altura da Loja, eng oes de una mesquita é considerado consagrado, nfo apenas na superficie da Jodo? lorena cit8 HE © “sétimo céu, Por outzo lado, diz-se que “na Loja de Sto austen ee a aPNRes escavam-se carceres ao vicio; as idéias de “Jevan- on eremse as duas ‘‘dimens6es” verticais, altura e profundidade, que segundo as duas metades de um mesmo eixo que vai do “zénite ao nadir” outra. As duas direc&es opostas corres. (enquanto rajas corresponde & expansi0 as duas tendéncias do ser na diregdo dos Tais tendéncias sfo af “alegorizadas”, mais » ainda que nfo seja assimilada simboli- fambém uma figura do “cosmo”; a descri- a duas “dimensdes” horizontais), ou seja, on © pelo) © dos Infernos (0 cércere). sim| la t eas Para falar de modo exato, pelas nogées de “virtude” e de “vicio” 8. No simboien yn nite de Héroules que lembramos mais acima. Q eee te pean, duas tangentes paralelas a um circulo so consideradas, eon puificades, como representagdes dos dois Sdo Jodes; se 0 circu. eo peer do ciclo anual, os pontos de contato das duas tangentes, diametralm nite si, corresponderdo entdo aos dois pontos solsticiais, 214 Se 38 A PROPOSITO DOS DOIS SAO JOOES* Ainda que o vero seja de modo geral considerado uma estagdo ale- gfe e o inverno uma esta¢do triste, e que por isso o primeiro represente de certa maneira © triunfo da luz e o segundo o da obscuridade, os dois solsti- cios correspondentes tém, na realidade, um cardter exatamente oposto, Pode parecer que existe af um paradoxo bastante estranho, mas no entanto é bem facil compreender a razdo disso, desde que se tenha algum conhecimento dos dados tradicionais sobre o curso do ciclo anual. De fato, o que atingiu ao seu méximo s6 pode decrescer, e 0 que chegou ao seu minimo s6 pode inversamente comegar a crescer.! E por isso que 0 solsticio de yerao marca 0 inicio da metade descendente do ano, e o solsticio de inverno, ao contra- Tio, 0 comego da metade ascendente. E também o que explica, do ponto de vista de sua significagdo césmica, as seguintes palavras de Sdo Joao Batista, cujo nascimento coincide [no hemisfério norte] com o solsticio de verdo: “E necessdrio que ele cresca (Cristo nascido no solsticio de inverno) e eu diminua.”2 Sabe-se que, na tradigdo hindu, a fase ascendente é relacionada ao déva-ydna, e a fase descendente ao pitri-ydna; assim, no Zodiaco, o signo de CAncer, que corresponde ao solsticio de verao [no hemisfério norte], € a “porta dos homens” e dd acesso ao pitri-yana, enquanto que o signo de Capricomio, que corresponde ao solsticio de inverno, é a “‘porta dos deuses” e dé acesso ao déva-ydna. Na realidade, é a metade ascendente do ciclo anual que se constitui no perfodo “alegre”, isto €, benéfico ou favordvel, ¢ a meta- * Publicado na revista Etudes Traditionnelles, jun. 1949. 1, Essa idéia encontra-se enunciada especialmente em muitas passagens, ¢ sob diver- sas formas, no Tao-te-King; ela é atribuida de modo particular, na tradigao extremo- oriental, as vicissitudes do yin e do yang. 2. Jodo, 3,30. 215 de descendente é o perfodo “triste”, isto é, maléfico ou desfavordvel. E o mesmo cardter é naturalmente atribuido 4 porta solsticial que abre cada um desses dois perfodos, nos quais o ano encontra-se dividido em razdo do pré- prio percurso do Sol. Sabemos por outro lado que, no cristianismo, as festas dos dois Sao Jo®es possuem uma relacdo direta com os solsticios. 3 E o mais notdvel, em- bora ndo tenhamos visto jamais uma referéncia sequer a respeito, é que o que acabamos de lembrar esté de uma certa forma enunciado pelo duplo sentido do proprio nome Jodo.4 De fato, a palavra hanan, no hebreu, tem ao mesmo tempo o sentido de “benevoléncia” e “misericérdia” e de “lou- vor” (e é pelo menos curioso constatar que palavras como “grace” e “‘mer- ci”, no francés [e como graga(s), no portugués], tem exatamente a mesma dupla significag4o); por conseguinte, o nome Jahanan pode significar “mi- sericérdia de Deus” e também “louvor a Deus”. F facil portanto perceber que © primeiro desses dois sentidos parece convir de modo particular a Sio Jodo Batista e o segundo a So Joao Evangelista; alids, pode-se dizer que a misericérdia é evidentemente “descendente” e o louvor “ascendente”, o que nos leva de volta a sua relagdo com as duas metades do ciclo anual.5 Com relag4o aos dois Sdo Jodes e seu simbolismo solsticial, ¢ tam- bém interessante considerar um simbolo que parece ser peculiar 4 magona- tia anglo-saxOnica, ou que pelo menos sé foi conservado por ela: trata-se do circulo com um ponto no centro, compreendido entre duas tangentes paralelas. Essas tangentes sdo tidas por representar os dois Sao Jodes. O circulo é aqui, de fato, a figura do ciclo anual e sua significagao solar torna- se mais clara pela presenca do ponto central, pois essa figura € também o 3. Elas se situam na realidade um pouco apés a data exata dos dois solsticios, 0 que Tessalta de modo ainda mais claro o seu cardter, pois a descida ¢ a subida jd se iniciaram na realidade; a isso corresponde, no simbolismo védico, o fato de se dizer que as portas do pitri-loka e do déva-loka situam-se, respectivamente, nJo ao sul e ao norte exata- mente, mas na direcdo do sudoeste e do nordeste. 4. Pretendemos falar aqui da significagdo etimolégica desse nome no hebreu; quanto & aproximagdo entre Jofo ¢ Jano, é claro que se trata de uma assimilagdo fonética que ndo tem evidentemente qualquer relacdo com a etimologia, mas nem por isso é menos importante do ponto de vista simbélico, pois, de fato, as festas dois Sio Joes ocupa- ram 0 lugar das de Jano nos solsticios de verdo e inverno. Beatenreos aqui, ligando-a em especial as idéias de “tristeza” e “alegria” que in- mais acima, a figura “folclérica” francesa bem conhecida, mas sem diivida em Len muito pouco compreendida, de “‘Jofo que chora ¢ Joo que ri”, que no fundo é Tepresentacdo equivalente aos dois rostos de Jano; “Jodo que chora” é 0 que im- plora a misericdrdia de Deus, ou seja, Sa is . i 01 : , OU seja, So Jodo Batista, e o “Jodo que ri” é 0 que lhe dirige louvores, isto é, Sdo Jofo Evangelista. ° - 216 - signo astri ; a ero Ri Bes dois pontos solsticiais, marcando assim seu cardter de ‘pontos-limites ‘ olégico do Sol. E as duas retas paralelas sfo tangentes a0 cfreulo pois tais pontos so como que 0 limite que o Sol nfo pode Sette em seu percurso. E por essas linhas corresponderem assim a0s dois sol ay que se pode também dizer que representam os dois Sao Joces. Existe con ah do nessa figuragao uma anomalia pelo menos aparente: o diametro Sa do ciclo anual, como explicamos em outras ocasides, deve ser entendi : como relativamente vertical em comparagdo com 0 didmetro equinocial, € alids apenas desse modo que as duas metades do ciclo, que vio de um. en cio ao outro, podem na realidade aparecer como respectivamente ascendente " é descendente, pois entdo os pontos solsticiais permanecerfo como 0 ponto is alto e o mais baixo do circulo. Nessas condigdes, as tangentes as extre- qhidades do didmetro solsticial, portanto perpendiculares aeste ultimo, bi necessariamente horizontais. No entanto, no simbolo em questdo, as duas tangentes estd0 a0 contrario figuradas como verticais; ocorre Pea oe caso especial uma certa modificagdo no simbolismo geral do ciclo aug iN oa que se explica de modo muito simples. Trata-se com toda evidéncia ae assimilagdo estabelecida entre essas duas linhas paralelas e as mie colunas [magOnicas]. Além disso, estas filtimas, que naturalmente s6 podem ser ver- ticais, em virtude de se encontrarem situadas ao norte e ao sul, possuem aa telagdo efetiva com 0 simbolismo solsticial, ao menos de um certo ponto de a isuali: fe mais Esse aspecto das duas colunas pode ser visualizado de forma nitida no caso do simbolo das “colunas de Hércules”.6 O carter de Hércu- Jes como “‘her6i solar” e a correspondéncia zodiacal de seus doze eae sdo por demais conhecidos para que seja necessdrio insistir a ees a particular por esse cardter solar que se justifica a significagdo sol stici ine duas colunas, 4s quais seu nome est4 ligado. Assim sendo, a divisa non a ultra, que est4 relacionada a essas duas colunas, passa a evidenciar Atl pla significagao; por um lado, ela exprime, segundo ainterpretagdo rl : referente ao ponto de vista terrestre € alids valida em sua ordem, eeu colunas marcam os limites do “mundo conhecido”, ou seja, que na reali . elas so os limites que, por razOes que seria interessante investigar, eee oe permitido aos viajantes ultrapassar; por outro lado, essa divisa in i a mesmo tempo, e sem divida seria preciso dizer em primeiro eT eet ponto de vista celeste, as colunas s4o os limites que © Sol nado pode duas colunas em cada um dos lados ‘i sas 6. Na reprosontagio geogrifica que coloca estas duas coltnss om ci TT ae oe, do atual estreito de Gibraltar, é evidente que a si ea situada na Africa é a coluna do sul. 217 e entre as quais, como entre as duas tangentes que est4vamos examinando ha pouco, realiza-se interiormente seu curso anual.7' Essas tiltimas considera- g6es poderdo parecer muito afastadas do nosso ponto de partida, mas, para dizer a verdade, nao ¢ 0 que ocorre, pois contribuem para a explicagdo de um simbolo que se refere de modo expresso aos dois S40 Joes. Além disso, pode-se dizer que, na forma crista da tradicfo, tudo o que diz Tespeito ao simbolismo solsticial tem por isso mesmo relagdo mais ou menos direta com os dois Sao Jodes. SIMBOLISMO CONSTRUTIVO 7. Em antigas moedas espanholas, Pode observar-se uma figuragdo das colunas de Hér- Cules, ligadas entre si por uma espécie de bandeirola, sobre a qual estd inscrita a divisa non plus ultra; mas o fato que Parece muito pouco conhecido, e que assinalaremos aqui a titulo de curiosidade, é que desta figuragZo derivou o signo usual do délar americano. No cifrdo, contudo, a importincia maior foi dada 4 bandeirola, que era de inicio apenas due wsséti0, € que foi transformado na letra $, com a qual se assemelhava, enquanto que as duas colunas, que constituiam o elemento essencial, foram reduzidas a dois pe- quenos tragos paralelos, verticais como as duas tangentes ao circulo dos simbolos Mag6nico que acabamos de explicar, Isso se reveste de uma certa ponta de ironia, pois Justamente a “descoberta” da Améri i i ‘fica reer ica anulou de fato a antiga aplicagdo geogrdfica do 218 an 39 O SIMBOLISMO DO DOMO* Em um artigo da revista The Indian Historical Quarterly (margo 8), Ananda K. Coomaraswamy estudou a questdo do simbolismo do omo, que é muito importante e tem, além disso, estreita ligagdo com cer- consideragdes que desenvolvemos precedentemente, o que nos leva ago- examinar de modo especial os seus principais aspectos. O primeiro pon- ‘to essencial a esse respeito, em conex4o com o valor propriamente simbéli- € inicidtico da arte arquiteténica, ¢ que todo edificio construido de acor- com os dados tradicionais estritos apresenta, na estrutura e na disposi- © das diferentes partes de que se compée, uma significagdo “césmica”, dé margem além disso a uma dupla aplicacdo, conforme a relagdo ana- gica do macrocosmo e do microcosmo, ou seja, refere-se simultaneamente 0s templos e outros edificios que tinham uma destinagao “sagrada” no sentido mais estrito dessa palavra. Por outro lado, contudo, o mesmo ocorre _ com as simples habitagdes humanas, pois é preciso no esquecer que, na Tealidade, ndo existe nada “profano” nas civilizagOes integralmente tradicio- | nais, de tal modo que s6 por efeito de uma profunda degeneracfo pode-se chegar a construir casas sem se propor nada além de responder as meras ne- cessidades materiais de seus habitantes, e que estes, por sua vez, tenham po- dido contentar-se com moradias concebidas segundo preocupagées tao es- treitas e rasteiramente utilitdrias. E evidente que a significagdo “césmica” a que estamos nos referin- do pode ser realizada de miltiplas formas, correspondentes a diferentes pontos de vista, que dardo, assim, nascimento a diversos “tipos” arquiteto- nicos, cada um deles ligados em particular a uma ou outra forma tradicional. * Publicado na revista Etudes Traditionnelles, out. 1938. 221 Limitar-nos-emos desta feita a examinar apenas um desses constitui, alids, num dos mais fundamentais e que €, também, por isso me: mo, de uma maneira geral, dos mais difundidos, Trata-se de ne Petituvs constituida essencialmente por uma base de Ssecedo quadrada (pouco im = ta aqui que essa parte inferior tenha uma forma ciibica ou mais ou ae alongada), encimada por um domo ou uma cipula de forma hemisférica mais Ou menos rigorosa. Entre os exemplos mais caracteristicos Be ae citar, com Coomaraswamy, o Stipa budista, e também, podemos acrescen. tar, a qubbah islmica, cuja forma geral é muito semelhante, 1E preciso fi. da incluir nesse caso, entre Outras, uma estrutura que pode nfo ser distin. guida de modo claro a primeira vista, ou seja, a das igrejas cristas nas quai: est edificada uma cipula acima da parte central.2 Cabe também eat que um arco, Tepousando em seus dois pilares retilineos, nada mais é que ° corte vertical do domo. Nesse arco, a “chave de abébada” que ocupa dts 0 corresponde evidentemente ao ponto mais elevado do domo; sobre i significagao especial voltaremos a seguir,3 , es E facil perceber, antes de mais nada, que as duas partes da estrutura que acabamos de descrever Tepresentam a Terra e o Céu, aos quais corres- pondem respectivamente as formas quadrada e circular (ou esférica, numa eee de trés dimensées), Embora essa correspondéncia encontre-se in- icada com maior insisténcia na tradi¢Zo extremo-oriental, est4 muito longe de lhe ser exclusiva.4 Visto que fizemos referéncia a tradigao etre Mie “tipos”, que se 1. A finalidade desses feito para conter reliqui lente a um “santo”. dois edificios similar, pois o stapa, ao menos na origem, era 1as, © a qubbah era erigida sobre o timulo de um walt [equiva- qual se eleva a cipula, 3. Em cert: i eee erates Pertencentes 4 magonaria do Royal Arch, a significagdo “ce- eee ipuualmie indicada pela representacdo sobre ele de uma parte mea eee ‘a forma uma das “portas solsticiais” colocada na “chave de Guest#o ser considerado seers omalmente ser diferente de acordo com o ponto em Btn ‘emo uma “entrada” ou uma “saida”, tal como explicamos 4. Na iniciagao magé ome. ne : esas, @ Passagem from square to arch [“do quadrado ao arco” ] designar a admissio ao wry pesaee™ “da Terra a0 Céu” (daf 0 termo exaltapdo para Hos” para os dos "parinn 1° R24 Arch), ou seja, do Ambito dos “pequenos misté. Grandes mistérios", em seu duplo aspecto “‘sacerdotal” ¢ “real” 222 ee & interessante assinalar a esse respeito que, na China, a vestimenta dos tigos imperadores devia ser redonda no alto e quadrada embaixo. Tal timenta tinha, de fato, uma significagdo simbélica (do mesmo modo que ‘ as aces de sua vida, que estavam pautadas de acordo com 0s ritos), significado essa que ¢ precisamente a mesma que estamos considerando a - propésito da realizacdo arquitetonica.5 Podemos acrescentar desde j4 que, se considerarmos nesta Ultima o todo da construgdo como “hipogeu”, tal “como ocorre as vezes de fato, literalmente em certos casos e simbolicamente em outros, retornaremos ao simbolismo da caverna como imagem do con- junto do “cosmos”. 5 A essa significacdo geral acrescenta-se uma outra ainda mais precisa: 0 conjunta do ediffcio, considerado de cima para baixo, representa a passa- “gem da Unidade primordial (4 qual corresponde © ponto central ou o topo do domo, do qual a abébada toda é apenas uma certa forma de expansdo) ao “quaterndrio da manifestacao elementar;® inversamente, considerado de bai- "xO para cima, é o retorno dessa manifestagdo 4 Unidade. A esse respeito, ‘Coomaraswamy lembra, como tendo a mesma significagdo, o simbolismo védico dos trés Ribhus que, do célice (patra) unico de Twashtri, fazem qua- tro cdlices (e é evidente que sua forma é hemisférica como o domo). O ni- mero terndrio que intervém aqui como intermedidrio entre a Unidade e 0 quaterndrio significa em particular, neste caso, que é s6 por meio das trés dimensdes do espago que o “um” original pode tornar-se “quatro”, o que € exatamente figurado pelo s{mbolo da cruz de trés dimensdes. O processo Pois o titulo completo correspondente ¢ Holy (and) Royal Arch, ainda que, por tazdes histéricas que nfo cabem aqui, a “arte sacerdotal” tenha acabado por desapa- Tecer de certa forma diante da “‘arte real”, As formas circular e quadrada sfo também Iembradas pelo compasso e pelo esquadro que serviam para tragd-las, e que se associam como simbolos dos dois principios complementares, tais como o sdo efetivamente 0 Céu e Terra. [Ver A Grande Triade, cap. I1l.] 5. O Imperador, assim vestido, representava o “Homem verdadeiro”, mediador entre © Céu e a Terra, cujos poderes reunia em sua propria natureza; e é exatamente nesse Mesmo sentido que um mestre magom (que também deveria ser um “homem verdadei- To” se tivesse realizado de modo efetivo sua iniciago) “encontra-se sempre entre 0 es- quadro e 0 compasso”, Assinalemos ainda, a esse respeito, um dos aspectos do simbo- lismo da tartagura; a parte inferior da carapaga, que é plana, corresponde a Terra, ¢ a parte superior, que é arredondada em forma de domo, corresponde ao Céu, O proprio animal, entre essas duas carapagas, representa o homem entre o Céu e a Terra, comple- tando assim a “Grande Trfade” que desempenha um papel de particular importancia no simbolismo das organizac6es inicidticas taoistas. [Cf. A Grande Triade, cap. XV.] 6. De maneira idéntica, o plano crucial de uma igreja possui uma forma quaterndria; 0 simbolismo numérico permanece portanto 0 mesmo nesse caso € no da base quadrada. 223 inyerso é representado do mesmo modo pela lenda de Buda, que, tendo rece. bido quatro tigelas de esmolas dos Mahdrdjas dos quatro pontos cardeais, fez delas uma s6 tigela, o que indica que, para o ser “‘unificado”, o “Graal” (pa- Ta empregar o termo tradicional ocidental que designa evidentemente ° equivalente do patra) é de novo tinico como era no comego, isto €, no ponto de partida da manifestagdo césmica.7 Antes de prosseguir, assinalaremos que a estrutura que estamos considerando também pode ser realizada horizontalmente: a um edificio de forma retangular, junta-se uma parte semicircular que serd colocada em uma de suas extremidades, que estd dirigida para 0 lado ao qual se atribui o significado de uma correspondéncia “celeste”, numa espécie de projegdo so- bre o plano horizontal da base, Esse lado, nos casos mais conhecidos pelo menos, serd aquele de onde vem a luz, ou seja, do oriente, O exemplo que se oferece de imediato, nesse caso, é o de uma igreja terminada por uma abside semicircular. Um outro exemplo é fornecido pela forma completa de um templo magénico: sabe-se que a Loja propriamente dita é um “qua- drado longo”, ou seja, na realidade, um duplo quadrado, sendo o compri- mento (do oriente para 0 ocidente) 0 dobro da largura (do norte para o sul).8 Mas a esse duplo quadrado, que € o Hikal, acrescenta-se, no oriente, o Debir em forma de hemiciclo; e esse plano é exatamente o mesmo da “ba- silica” romana, 10 Dito isso, voltemos a estrutura vertical; como observa Coomaras- wamy, O seu conjunto deve ser considerado em telac¢do a um eixo, central. Evidentemente € esse 0 caso de uma cabana, cujo teto em forma de domo est4 suportado por um poste que liga 0 topo do teto ao solo, e também o de 7. A propésito do Twashéri e dos trés Ribhus, considerados como uma triade de “ar- tistas”, podemos observar que, nas tegras estabelecidas pela tradicdo hindu para a cons- ftugdo de um edificio, encontram de certa forma sua correspondéncia no arquiteto Gthapati) e seus trés companheiros ou assistentes, o agrimensor (sitragrahi), 0 pedreiro @ardhakt) © 0 carpinteiro (takashaka); pode-se ainda encontrar equivalente desse ter- nario na magonaria, onde se tomam, além disso, sob um aspecto “inverso”, os “maus Companheiros” assassinos de Hirdo. 8. Segundo O Criton [“Critias”] de Plato, o grande templo de Poseidonis, capital da Atlantida, tinha também por base um duplo quadrado; tomando o lado de quadrado Como unidade, a diagonal do duplo quadrado é igual aV5. 9. No Templo de Salomao, o Hikal era o “Santo” ¢ o Debir o “Santo dos Santos”, 10. Em uma Mesquita, o mihrab, que é um nicho semicircular, corresponde a abside eum sa cu ® indica de igual modo a qiblah, isto é, a orientagdo ritual; mas aqui, heeds al dirigida Para um centro que é um ponto definido da superficie . naturalmente varidvel segundo os lugares, 224 os stipas, em que o eixo est figurado no interior, prolongando-se as até mesmo acima do domo. No entanto, ndo é necessdrio que esse ei- que representa 0 “Eixo do Mundo” esteja sempre presente de modo ma- al. O que importa é que o centro do solo ocupado pelo edificio, isto é, , ponto situado diretamente sob 0 topo do domo, seja sempre virtualmente entificado ao “Centro do Mundo”. Este, com efeito, nado é um ‘lugar’ no sntido transcendente e primordial, e, em conseqiiéncia, pode realizar-se em “centro” regularmente estabelecido e consagrado, donde a necessidade ritos que fazem da construgdo do edificio uma verdadeira imitagao da propria formag%o do mundo.!1 Esse ponto é noranio um verdadeiro om- alos (nébhih prithivyah (sanscrito: “umbigo da terra’’] em inumeros casos ; f que est4 colocado 0 altar ou o lar,” quer se trate de um templo ou de a casa. O altar é alids, na realidade, um lar e inversamente, numa civiliza- ego tradicional, o lar deve ser visto como um verdadeiro altar doméstico; \bolicamente é af que se realiza a manifesta¢do de Agni, e lembraremos a g respeito o que dissemos do nascimento do Avatara no centro da caverna icidtica, pois é evidente que a significado é ainda a mesma, diferindo ape- a sua aplicagdo. Quando se executa uma abertura no topo do domo, é or ai que escapa a fumaga que se eleva do lar. E isso ainda, longe ter apenas uma razio puramente utilitéria como poderiam imaginar os modemos, tem "a0 contrdrio um sentido simbélico muito profundo, que passaremos agora a examinar, precisando também a significagdo exata do topo do domo nas or- dens macroc6smica e microscésmica. 11. Por vezes o proprio domo pode inexistir na construgdo, sem que, no sone sentido simbélico seja alterado. Podemos nos referir ao tipo tradicional de uma Se disposta em quadrado em torno de um pitio interior; a parte central fica seek i ai aberto, mas nesse caso ¢ a propria abébada celeste que desempenha o papel de u ee mo natural. Diremos de passagem a esse respeito que existe certa relagdo, em sie forma tradicional, entre a disposi¢go da casa e a constituig&o da familia, asin aera digdo islimica, a disposi¢o quadrilateral da casa (que normalmente Dee sate fechada para fora, abrindo-e as janelas para 0 patio interior) esté ae ee Ho do niimero de esposas a no maximo quatro, tendo cada uma delas ento p i i dos lados do quadrilétero. ’ - Biers é aqui tilzado para designar estritamente a “parte da habitagdo, ou da cozinha, onde se acende o fogo” [N. T.]. 225 40 0 DOMO E A RODA* ‘ Sabe-se que, de um modo geral, a roda é um simbolo do mundo: a circunferéncia representa a manifestago, produzida pela irradiagdo do cen- tro. Esse simbolismo tem ainda naturalmente significagdes mais ou menos particularizadas, pois, além de se aplicar a totalidade da manifestago uni- versal, pode também ser aplicado a uma certa esfera da manifestagdo, Um exemplo de particular importancia desse Ultimo caso é aquele em que se encontram associadas duas rodas, correspondendo a partes diferentes do conjunto césmico, Isso tem relagdo com o simbolismo do carro, tal como se encontra com particular freqiiéncia na tradigdo hindu. Ananda Coomaras- wamy expOs esse simbolismo em diversas oportunidades, entre as quais ao tratar do chhatra e do ushntsha, num artigo do The Poona Orientalist (ni- mero de abril de 1938), do qual utilizaremos a seguir algumas consideragées. Em razao desse simbolismo, a constru¢do de um carro, do mesmo modo que a construcdo arquitetonica que acabamos de tratar, é em esséncia a realizacdo “artesanal” de um modelo césmico, Vale a pena lembrar que é em razdo de consideragdes dessa ordem que os offcios de uma civilizagao tradicional possuem um valor espiritual e, na verdade, um cardter “sagrado”, endo 4ssO 0 que normalmente os habilita a servir de “suporte” para uma iniciagdo, Hé entre as duas construgdes em questdo um exato paralelismo, como se nota de imediato ao constatarmos que o elemento fundamental do ane, ea He Micha; palavra idéntica a “axe”, “eixo”), que representa aqui eas be peut “I equivale também ao pilar (skambha) central de um me ae todo conjunto deve estar referido. Pouco importa de resto, 10s, que o pilar esteja materialmente figurado ou nao. Do Publicado na revista Etudes Traditionnelles, abr. 1938, 226 pial. mesmo modo, diz-se em certos textos que 0 eixo do carro césmico ¢ apenas um “sopro separador” (vydna) que, ocupando o espago intermedidrio " (qntarikasha, explicado como antary-aksha), mantém o Céu e a Terra em "seus respectivos lugares,1 e que, além disso, ao mesmo tempo em que os separa, une-os também como uma ponte (sétu) e permite passar de um ao outro.2 As duas rodas, colocadas nas duas extremidades do eixo, represen- tam entdo, de fato, o Céu e a Terra. E 0 eixo se estende de uma a outra, do mesmo modo que o pilar central se estende do solo ao topo da abébada. Entre as duas rodas, e suportada pelo eixo, est4 a “‘caixa”’ (kosha), 0 corpo do carro, em que, de um outro ponto de vista, o soalho corresponde tam- pém a Terra, 0 enyoltério lateral ao espago intermedidrio, e o teto ao Céu. Como o soalho do carro césmico é quadrado ou retangular, e o seu teto tem a forma de domo, reencontramos aqui a estrutura arquitetonica estuda- da antes. Se considerarmos as duas rodas como representagdes do Céu e da Terra, poder-se-ia talvez objetar que, como sfo ambas circulares, a diferen- ga de formas geométricas que lhes corresponde mais comumente n4o apa- Tece nesse caso. Porém, nada nos impede de admitir que existe af uma certa mudanga de ponto de vista, em que a forma circular se justifica de qualquer modo como simbolo das revolug6es ciclicas a que estd submetida toda ma- nifestagdo, tanto “terrestre” quanto “celeste”, Entretanto, pode-se também, de uma certa maneira, recobrar essa diferenga supondo que, enquanto a roda “terrestre” € plana a roda “celeste” tem, como o domo, a forma de uma sec- ¢Go da esfera [uma calota].3 Tal consideragdo pode parecer estranha 4 pri- Meira vista, mas existe de fato um objeto simbdlico que une em si a estru- tura da roda e do domo. Esse objeto, cuja significagao “celeste” nao sofre a menor divida, é 0 guarda-sol (chhatra): suas varetas sio claramente simi- lares aos raios da roda e, tal como estes, se juntam no cubo da roda; elas se tetinem de igual modo, em uma pega central (karniké) que as suporta e que é descrita como um “globo perfurado”. O eixo, isto é, 0 cabo do 1. A isso corresponde exatamente, na tradigdo extremo-oriental, a comparagdo do Céu e da Terra as duas pranchas de um fole. O antariksha € também, na tradigao hebraica, 0 “firmamento no meio das dguas”, separando as dguas inferiores das superiores (Génesis, 1, 6);.a idéia expressada em latim pela palavra firmamentum corresponde, além disso, ao cardter “adamantino” atribuido com freqiiéncia ao “Eixo do Mundo”. 2. Encontram-se aqui, com toda nitidez, as duas significagdes complementares do barzakh na tradigao islamica [o “intervalo” ou “istmo” que une & separa]. : 3. Essa diferenca de forma é a mesma que existe entre a parte inferior ¢ a superior da carapaca da tartaruga, cujo simbolismo equivalente j4 indicamos em uma nota anterior [nota 5 do cap. 39]. 227 guarda-sol, atravessa essa pega central, da mesma forma que o eixo do carro penetra no cubo da roda. O prolongamento desse eixo além do ponto de encontro das varetas ou dos raios corresponde ainda ao eixo de um Sta- pa, no caso em que este se eleva em forma de mastro acima do topo do ean E a er que o proprio guarda-sol, pelas fungdes a que se stina, nada mais jue 0 equi’ ty i im di; enn q quivalente “portétil”, por assim dizer, de um h E em razdo de seu simbolismo “‘celeste” que o guarda-sol consti- tui-se numa das insignias da realeza; é, para falar exatamente, um emblema do Chakravarti ou monarca universal4 e, se ocorre ser atribuido também aos soberanos comuns, ¢ apenas na medida em que estes o representam de certo modo, cada um no interior de seu proprio dominio, participando assim de sua natureza e identificando-se a ele em sua fun¢do césmica.5 Agora, impor- ta observar que, por uma estrita aplicacdo do sentido inverso da avalon ° guarda-sol, na utilizagdo comum que é feita no “mundo de baixo”, é ite protegdo contra a luz, ao passo que, enquanto representa o céu, suas varetas sdo. a0 contrério os préprios raios da luz. Bem entendido, é er sentido Superior que o guarda-sol deve ser considerado enquanto atributo da reale- za, Uma observacdo semelhante aplica-se também ao ushnfsha, entendido em seu sentido primitivo como uma cobertura para a cabeca, tendo de habi- to a fungdo de proteger contra o calor, mas que, quando atribuida simboli- camente ao Sol, representa inversamente o que irradia calor (e esse duplo sentido est4 contido na propria etimologia da palavra ushnfsha). Te acrescentar que, por sua significagdo “solar”, 0 ushnisha, que é at turban- eee ere ser uma coroa, 0 que alias € no fundo a mesma coisa,6 ise ainda, como o guarda-sol, numa insignia da realeza, Ambos es- tio assim associados ao carater de “gloria” inerente a realeza, ao invés de Suprir uma simples necessidade prdtica, como ocorre com 0 tomate comum. ( Por outro lado, enquanto o ushnisha® envolve a cabega, 0 guarda- sol idenfica-se 4 propria cabega; em sua correspondéncia “‘mlcrocésmica”, de fato, representa o cranio e os cabelos. Convém notar a esse respeito gad, 4. Lembraremos, a esse i 6 7 ‘ respeito, que a propria de: di f pe se aeiunpe a cote es que a propria designagdo Chakravarté refere-se tam- 5. Jd 7 State euaoat sien referéncia antes & fungdo césmica reconhecida ao Imperador pela tradi- oa Ressoaberienals € evidente que estamos tratando aqui da mesma coisa, Em cone- Rea Ate nS sobre a significagdo do guarda-sol, observaremos que, ina, nto dos ritos integrantes do “culto do Céu” ; sae inmente a0 Imperador [cf.A Grande Triade, cap. XVII] a rfadigdo islamica, o turbante, considerado em particular como a marea distinti- 228 no simbolismo de diversas tradigGes, os cabelos representam com maior fre- quéncia os raios Juminosos, Na antiga iconografia budista, o conjunto cons- fituido pelo relevo dos pés, 0 altar ou o trono7 e o guarda-sol (que corres- pondem respectivamente a Terra, a0 espago intermedidrio e ao Céu) repre- senta de uma forma completa 0 corpo césmico do Mahdpurusha ou do “Homem universal”.8 Do mesmo modo, o domo, em casos como o do stipa, _ é também, sob certos aspectos, uma tepresentagdo do cranio humano.9 Essa " observacdo é de particular importéncia em raz4o do fato de que a abertura pela qual passa o eixo, quer se trate do domo ou do guarda-sol, corresponde no ser humano ao brahma-randhra. Forneceremos a seguir maiores detalhes ‘sobre esse ultimo ponto. ya de um sheikh (quer na ordem exotérica, quer na esotérica), é designado de modo __-corrente como taj el-Islam; tratase, portanto, de uma coroa (tdj) que, nesse caso, 6 0 | signo, no do poder temporal como 0 dos reis, mas de uma autoridade espiritual. Lem- drareinos ainda, a respeito da correspondéncia da coroa com os raios solares, a estreita _ selagdo existente entre seu simbolismo ¢ 0 dos cornos, do qual jé falamos em outra ‘oportunidade [cf. Cap. 28]. { 7. O trono, enquanto assento é equivalente em certo sentido ao altar, sendo este 0 ‘assento de Agni, O carro césmico é também conduzido por Agni, ou pelo Sol, que tem por assento a “‘caixa” do carro, E no que se refere a relagdo do “Eixo do Mundo” com 6 antariksha, podese notar ainda que, quando o altar ou o lar estd colocado sob a abertura central da abdbada de um edificio, a “coluna de fumaga” de Agni, que se ele- va sai por essa abertura, representa 0 “Eixo do Mundo”. 8. Pode também, a propésito, referirse 4 descrigg do corpo “macrocésmico” de Vaishwanara, no qual 0 conjunto de esferas luminosas celestes é assimilada a parte su- perior da cabeca, ou seja, A abdbada craniana [ver L ‘Homme et son devenir selon le Vedanta, cap. X11]. 9. A. K. Coomaraswamy assinalou-nos que a mesma observagdo aplica-se aos “fumu- us” préhistéricos, cuja forma parece ter com freqiléncia imitado intencionalmente a do crinio, Como além disso o “tumulus” ou o monticulo é uma imagem artificial da montanha, a mesma significagdo deve ser atribuida ao seu simbolismo. A esse respeito, ¢ interessante notar que o nome do Gélgota significa precisamente “‘eranio”, do mesmo modo que o nome Calvarium pelo qual foi traduzido no latim; segundo uma Ienda da Idade Média, mas cuja origem pode ser muito anterior, essa designagdo refere-se 30 ord nio de Adfo, que teria sido enterrado nesse lugar (ou que, num sentido mais © identificarse-ia a propria montanha). E isso nos leva de novo a consideragso do “Ho- mem universal”. £ esse crinio que, com grande freqiiéncia, aparece figurado ao pé da cruz, ¢ sabe-se que esta é ainda uma das representages do “Fixo do Mundo”. sotérico, 229 41 A PORTA ESTREITA* ee transcorrer de seu estudo sobre o simbolismo do domo, Ananda . ‘aswamy assinalou um ponto em i i : particular digno de at que se refere a figuracdo tradicional di ee Se (Os raios solares e sua rel: ‘Eixo do Mundo”: na tradi i Peaee asta F i¢do védica, o Sol est4 sempre no i verso, € ndo em seu ponto mais alto, aind asco ! i‘ a que, no entanto, de u qualquer, aparega situado no “to; ly é Baie, , po da drvore”.1 Isso ¢ facil de Se considerarmos 0 Universo simboli seni sis izado pela roda, em cuj Sol, ficando todo estado de i i ye b ser sobre a circunferéncia.2 De desta, 0 “Eixo do Mundo” é a er mee 2 ao mesmo tempo um raio do cf i FRE due Saag i Ip lo circulo e um raio , geometricamente através do Sol e prol centro até completar o diametro, M: ENE Gee oe - Mas ndo € tudo; ele é també: “Tai solar” cujo prolongamento nfo é i i aiuwean : passivel de qualquer re trica. Trata-se aqui da formul eis aera ! la segundo a qual o Sol é descrit. Sete raios, dos quais seis, o i i ae thee ‘alos, » Opostos dois a dois, formam o sri id vajra [* i ce vajra], ou seja, a cruz de trés di J ieee ee , imensdes. Uma dessas dimenso Tesponde ao zénite e ao nadir, coinci Mg. » coincide com o nosso “Eixo do Mundo” lo”, en- ee wy aS correspondentes ao norte-sul e ao leste-oeste eee tates le Em mundo” (loka) figurado pelo plano horizontal, Quanto ao pen > que Passa através do Sol, mas num sentido diferente dos que le indicar, por conduzir aos mundos supra-solares (considerados Publicado na revista Etudes Traditionnelles, dez. 1938. 1. Ji indicamos em ou i tras ocasides ac eee : ee s a representacdo do Sol, em diferentes tradigdes, co- 2. Essa posigdo central do Sol, e portanto invari deiro “pélo”, ao m m, . esmo tempo is ao em que o situa vel, dé-the aqui o cardter de um verda- sempre no zénite em relago a qualquer 230 “como dominio da “imortalidade”), corresponde essencialmente ao centro e, “por conseguinte, s6 pode ser representado pela propria intersec¢o dos bra- cos da cruz de trés dimensdes.3 Seu prolongamento além do Sol nfo é por- tanto de modo algum representavel, 0 que corresponde de forma precisa ao "seu cardter “incomunicdvel” e “inexprimivel”. Do nosso ponto de vista e de todo ser situado sobre a “circunferéncia” do Universo, esse raio termina no _ proprio Sol e identifica-se de certo modo com ele enquanto centro, pois ninguém pode ver através do disco solar por qualquer meio fisico ou psi- quico que seja. A passagem “‘além do Sol” (que € a “ultima morte” e a pas- sagem para a verdadeira “‘imortalidade”) s6 € poss{vel na ordem puramente 1: Agora importa observar, para unir essas consideragGes as que expu- § semos antes, que é por meio do “sétimo raio” que o “‘corag4o” de todo ser ie particular liga-se diretamente ao Sol. Ele €, portanto, o “raio solar” por ~ exceléncia, o sushumna pelo qual essa conex4o se estabelece de uma forma ~ constante e invaridvel;4 ele é também o sutrdtmé [“fio do Atmé”] que une todos os estados do ser entre si e ao seu centro total.5 Para aquele que re- tornou ao centro do seu préprio ser, o “sétimo raio” coincide necessaria- mente com o “Eixo do Mundo; e é para um tal ser que se diz que “o Sol se levanta sempre no zénite e se pde no nadir”.6 Assim, ainda que atualmente 0 “Eixo do Mundo” no seja o “sétimo raio” para um ser qualquer situado fesse ou naquele ponto particular da circunferéncia, ele o ¢ no entanto de forma virtual, no sentido de que existe a possibilidade de identificar-se a ele pelo retorno ao centro, em qualquer estado da existéncia em que esse retor- No seja efetuado. Poderfamos dizer ainda que o “sétimo raio” € o unico “Bixo” verdadeiramente imutdvel, 0 tnico que, do ponto de vista universal, pode ser verdadeiramente designado por esse nome, e que todo “eixo” par- ticular, relativo a uma situagdo contingente, s6 é na realidade um “‘eixo” em virtude dessa possibilidade de identificagdo com ele; af est4, em definitivo, o | que dé toda significagdo a qualquer representagdo simbélica “localizada” do 3. Deve-se notar que, nas figuragdes simbélicas do Sol de sete raios, em especial nas antigas moedas indianas, ainda que os raios sejam forgosamente tragados em disposicZo circular em tomo do disco central, 0 “sétimo raio” distingue-se dos demais pela sua forma diferenciada, 4. Ver L Homme et son devenir selon le Védanta, cap. XX. 5. Referee a isso, na tradigdo islimica, um dos sentidos da palavra es-sirr, literalmente © “segredo”, empregada para designar 0 que existe de mais central em todo ser, € 20 mesmo tempo sua relagdo direta com o “Centro” supremo, em razo desse cardter de “incomunicabilidade” que estamos falando, 6. Chhéndogya Upanishad, 39 Prapathaka, 89 Khanda, shrudi 10. 231 “Bixo do Mundo”, como por exemplo a que j4 examinamos na estrutura dos ediffcios construfdos de acordo com as regras tradicionais, e em particular daqueles que so encimados por um teto em forma de domo. E é ao tema do domo que agora, em especial, devemos retornar, Seja o eixo figurado materialmente sob a forma de 4rvore ou de pi- lar central, ou seja representado pela chama que se eleva e pela “coluna de fumaga” de Agni no caso em que o centro do ediffcio est4 ocupado pelo altar ou pelo lar,7 ele sempre termina exatamente no topo do domo e, as vezes, como jd assinalamos, até mesmo o atravessa e prolonga-se em forma de mastro, ou como o cabo do guarda-sol em outro exemplo cujo simbolis- mo € equivalente. E aqui visivel que 0 topo do domo identifica-se ao cubo da roda celeste do “carro césmico”. Como jé vimos que o centro dessa roda € ocupado pelo Sol, conclui-se que a passagem do eixo por esse ponto re- presenta a passagem “além do Sol” e através dele, tal como tratamos mais acima. Acontece 0 mesmo quando, na auséncia de uma figuracdo material do eixo, o domo é vazado, no topo, por uma abertura circular (pela qual escapa, no caso que acabamos de lembrar, a fumaca do lar colocado direta- mente abaixo). Essa abertura é uma representagdo do préprio disco solar enquanto “Olho do Mundo”, e é por ela que se efetua a safda para 0 “‘cos- mo”, tal como explicamos nos estudos consagrados ao simbolismo da caver- na.8 De qualquer forma, é por essa abertura central e apenas por ela que o ser pode passar ao Brahma-loka (“mundo de Brahma”, que é essencialmente um dominio “extracésmico”.9 Ela é também a “porta estreita” que, no simbolismo evangélico, de igual modo dé acesso ao “Reino de Deus”.10 7. No caso que jd assinalamos de uma habitagdo disposta em torno de um patio inte- Tior a céu aberto (e s6 recebendo luz pelo lado interior), 0 centro desse patio é, as ve- Zes, ocupado por uma fonte; esta representa entdo a “Fonte da Vida”, que sai do pé da “Arvore do Meio” (se bem que, na verdade, a drvore possa nfo estar af figurada de mo- do material). 8. Entre os indios da América do Norte, que parecem ter conservado mais dados tradi- Gionais perfeitamente reconheciveis do que se acredita em geral, os diferentes “mun- dos” so com freqiiéncia representados por uma série de cavernas superpostas, e é su- bindo por uma drvore central que os seres passam de um para 0 outro. E claro que 0 nosso préprio mundo é uma dessas cavernas, tendo o céu por abdbada. 9. Podemos nos referir, a esse respeito, as descrigSes do déva-yana, do qual o Brahma- Joka € 0 ponto final “além do Sol”. 10. No simbolismo do tiro com arco, o centro do arco tem idéntica significagdio. Sem Insistir aqui sobre esse tema, lembraremos apenas que a flecha ¢ ainda um simbolo ‘axial”” © também uma das figuras mais freqiientes do “raio solar”. Em certos casos, lum fio estd preso a flecha e deve atravessar 0 alvo; isso lembra de uma forma supreen- dente a figura evangélica do “buraco da agulha”. E o sfmbolo do fio (sitra) encontra- se também no termo siiratma. 232 A cortespondéncia “‘microcésmica” dessa “porta solar” é facil de ‘ser encontrada, sobretudo se nos referirmos a similaridade do domo com o io humano, que mencionamos anteriormente: 0 topo do domo é a “‘co- ” da cabega, isto é, 0 ponto em que termina a “artéria corondria” sutil ‘sushumna, que est4 no prolongamento direto do “raio solar” também lominado sushumnd, e que € na realidade, ou pelo menos virtualmente, porgdo axial “intra-humana”, se é que se pode assim falar. Esse ponto 0 orificio denominado brahma-randhra, pelo qual escapa 0 espirito do ser 2m via de libertag0, quando os lagos que 0 unem ao composto corporal e "psiquico humano (enquanto jfvdrmd) foram rompidos.11 E claro que esta est4 exclusivamente reservada para o caso do ser “conhecedor” (wid- }), para 0 qual o “eixo” identifica-se de forma efetiva ao “sétimo raio”, e que est4 desde entdo pronto para sair em definitivo do “cosmo”, passando iém do Sol”. 11. A isso se relaciona, de forma muito clara, 0 rito da trepanagdo péstuma, cuja exis~ téncia foi constatada em intimeras sepulturas pré-histéricas, e que se conservou até mes- mo em épocas muito mais recentes entre certos povos. Na tradigao crista, rie ton- sura dos padres, cuja forma é também a do disco solar ¢ do “olho” do domo, refere-se ‘ evidentemente ao mesmo simbolismo ritual. 233 42 0 OCTOGONO* Voltemos agora a quest4o do simbolismo, comum a maior parte das tradigdes, relativo aos edificios constituidos por uma base de seccio quadrada, encimada por um domo ou Por uma cipula com forma hemisfé- tica mais ou menos rigorosa. As formas quadradas ou ciibicas referem-se a Terra e as formas circulares ou esféricas a0 Céu, do que resulta, de imediato, a significagao dessas duas partes. Acrescentaremos que a Terra e o Céu ngo designam aqui, de modo Unico, os dois pélos entre os quais se produz toda manifesta¢do, como ocorre em particular na Grande Triade extremo-orien- tal, mas compreendem também, como no Tribhuvana hindu, os aspectos dessa manifestagao que estdo mais proximos desses dois POlos, e que, por €ssa razo, s4o denominados mundo terrestre e mundo celeste, Existe um ponto sobre o qual ndo tivemos ocasiao de insistir anteriormente e que, no entanto, merece ser levado em consideragdo: na medida em que 0 edificio Tepresenta a realizagao de um “modelo césmico”, 0 conjunto de sua estru- tura, se reduzido apenas a essas duas partes, estaria incompleto, pois na Superposic¢ao dos “trés mundos”, faltaria o elemento correspondente ao “mundo intermediério”, De fato, esse elemento existe também, visto que © domo ou a abébada circular nao pode repousar diretamente sobre a base quadrada e faz-se necessdria, para permitir a passagem entre elas, uma for- ma de transicZo de algum modo intermediéria entre o quadrado e 0 circulo, que ¢ em geral a forma octogonal. O octégono esté na tealidade, do ponto de vista geométrico, mais préximo do circulo que do quadrado, visto que um poligono regular aproxi- Ma-se cada vez mais do circulo, na medida em que aumenta o niimero de a lados. Sabe-se com efeito que o circulo pode ser considerado como o limite para o qual tende um Poligono regular quando o niimero de seus la- Publicado na revista Etudes Traditionnelles, 234 » jul.-ago. 1949, cresce indefinidamente. E é possivel ver aqui, de modo claro, o car4ter limite entendido no sentido matemético: nfo é o ltimo termo de uma série que tende para ele, mas estd fora e além desta série, pois, por maior que seja 0 numero dos lados de um poligono, este jamais chegard a se confudir com 0 circulo, cuja definic¢do é essencialmente diferente da dos poligonos.1 Por outro lado, pode-se notar que na série de polfgonos obtidos a partir do drado, dobrando a cada vez o ntimero de lados, o octégono ¢ o primeiro termo.? Ele é portanto o mais simples de todos os poligonos e pode a0 mes- 0 tempo ser considerado como representativo de toda essa série de inter- didrios. : 9 i Do ponto de vista do simbolismo césmico, visto em particular no e suas diversas correspondéncias tradicionais. Para obter a forma octogonal preciso considerar além disso, entre os quatro pontos cardeais, os quatro. pontos intermedidrios,3 que formam com eles o conjunto de oito diregoes, ‘designadas pelas diversas tradicdes como os “‘oito ventos”.4 A consideragdo "dos “ventos” apresenta aqui algo de muito notavel: no terndrio védico, as ‘deidades” que presidem respectivamente os trés mundos, Agni, Vayu e Aditya, é de fato Vayu [“Vento”], que correponde ao mundo intermedid- _ tio, A propésito, no que diz respeito as partes inferior e superior do edifi- io, que representam os mundos terrestre e celeste, cabe observar que o ‘ou © altar, ao ocupar normalmente o centro da base, corresponde de modo evidente a Agni [“Fogo”], e que o “olho” que se encontra no topo do domo Tepresenta a “‘porta solar” e corresponde assim, de forma nfo menos neo sa, a Aditya [“Sol”]. E Vayu, na medida em que se identifica ao sopro Vital”, tem relagdo evidente e imediata com o dominio psiquico ou ae festacao sutil, o que acaba por justificar completamente essa correspondén- cia, quer considerada na ordem macrocésmica ou microcésmica. 1. Cf. Les Principes du calcul infinitésimal, caps. Xe XU, aa 2, Ou o segundo, se contarmos o proprio quadrado como 0 primeiro termo; mae falarmos da série de intermedidrios entre 0 quadrado e 0 circulo, como estamos i, na verdade o octégono € 0 primeiro termo. . ano sarees eae so relacionados com os elementos dst! Pontos intermediérios corespondem as qualidades sensiveis: quente ¢ frio, seco e tim! Ae 4. Em Atenas, a “Torre dos Ventos” era octogonal. Cabe ainda ie mene ie caréter singular do termo “rosa dos ventos”, empregado no eo er Big setenfono sinibolismoirosg-enis) Raat Mundi ¢ Rora Mundt e a equivalentes, e a Rosa Mundi era precisamente figurada com oito raios, tes aos elementos e as qualidades sensiveis. 235 Na construgdo, a forma do octégono pode, é claro, ser Tealizada de diferentes modos, em particular pelos oito pilares que suportam a abobada, Um exemplo disso pode ser encontrado na China, no caso do Ming-tang, 5 cujo “teto redondo é suportado por oito colunas que repousam sobre uma base quadrada como a Terra, visto que, Para realizar tal quadratura do cf. culo, que vai da unidade celeste da abébada 40 quadrado dos elementos ter. Testres, é preciso passar pelo Oct6gono, que se refere ao mundo intermedig. tio das oito diregdes, das oito Portas € dos oito ventos.6 O mencionado sim. bolismo das “‘oito Portas” explica-se pelo fato de que a Porta € essencial. mente um lugar de Passagem, representando, como tal, a transigado de um estado a outro e, de modo mais especial, de um estado “exterior” a um es. tado “interior”, ao menos relativamente, j4 que a relacdo do “exterior” com 0 “interior”, quanto ao mais € em qualquer nivel que se situe, é sempre compardvel a relagdo entre o mundo terrestre e o mundo celeste, gem ou de transico. Alids, nos Primeiros séculos, o batistério situava-se fora da igreja e s6 aqueles que haviam recebido o batismo eram admitidos no seu A propésito das oito diregdes ressaltamos uma concordancia entre diferentes formas tradicionais que, embora referindo-se a uma outra ordem S. Cf. Grande Triade, cap, XVI. 6. Lue Benoist, Art du monde, p.90, 7. Ct. ibid.,p, 65, 8. Ao consagrar a égua, o padre traca sobre a sua superficie, com seu sopro, um sinal 236 ES a nos bastante digna de atencdo e nos leva a observar Oe benoit que cil “No Scivias de Santa Hildegarda, ee que rodeia os mundos é representado por um cfrculo susten- E ito anjos.” O “trono que rodeia os mundos” é uma traducdo tao f erosnt0 possivel da expressdo drabe ELArsh ElMuhit, euma Bolan go idéntica encontra-se também na tradig&o islamica, segundo a qui : no é sustentado por oito anjos que, como j4 explicamos pe. lies 10 correspondem as oito diregdes e aos eno de letras do aaa ee ciso reconhecer que tal “coincidéncia” é antes de mais na pe - ente! Aqui j4 nao é mais do mundo intermedidrio que se trata, a pene i “possa dizer que a fungdo desses anjos estabelece uma conexa ena aundo intermediério e o mundo celeste. Seja como for, esse siml ee de no entanto, sob um certo aspecto pelo menos, aa ligado a bk ee ibrando-se do texto biblico segundo o qual Deus “fez dos a 0: a geiros”11 e observando que os anjos sdo literalmente os “mensag divinos. 9. Op. cit.,p.79. : an 10. Sefer Vangélologie de UValphabet arabe, na Etudes Traditionnelles, ago-se' | 1938. 11. Salmos, 104, 4. 237 43 A “PEDRA ANGULAR" * ; O simbolismo da “pedra angular”, na tradicdo cristd, baseia-se no seguinte texto: “A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a princi- pal pedra de angulo” ou, mais exatamente, “a cabega de angulo” (caput anguli). O estranho € esse simbolismo ser no mais das vezes mal compreen- dido, em conseqiiéncia de uma confusao que em geral se faz entre a “pedra angular” ea “pedra fundamental”, a qual se refere esse outro texto ainda mais conhecido: “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do Inferno nunca prevalecerao contra ela.”2 Essa confusdo é es. tranha, afirmamos, pois do ponto de vista especifico do cristianismo signi- fica, de fato, confundir Sao Pedro com 0 préprio Cristo, visto ser este desig- nado de forma expressa como “pedra angular”, tal como mostra a seguinte Passagem de So Paulo, que, além do mais, distingue-a claramente das “fun- dagdes” do edificio: “Sois um ediffcio construido sobre o fundamento dos apéstolos e dos profetas, com o préprio Jesus Cristo como pedra principal do angulo (sumo angulari lapide);, Nele, bem ajustado, o edificio inteiro se ergue em templo sagrado, no Senhor; e vés, também, nele sois co-edificados Para serdes uma habitagdo de Deus, no Espirito.”3 Se o equivoco em ques- tao fosse apenas moderno, sem divida ndo haveria motivo para surpresa, mas parece ‘j4 encontrar-se em tempos nos quais nao é mais possivel atribuilo pu- Tae simplesmente a ignorancia do simbolismo. Somos portanto levados a per- Sune se, na tealidade, ndo se trataria antes, na origem, de uma “‘substitui- $40" intencional, que se explica pelo papel de Sao Pedro como “substituto” Publicado na revista Etudes Traditionnelles, abr-mai. 1940, 1. Salmos, 118, 22: Mi i senate ie ik i Mateus, 21, 42;Marcos, 12, 10; Lucas, 20, 17. 3. Eptstola aos Efésios, 2, 20-22. 238 “an de Cristo (no latim vicarius, correspondendo nesse sentido ao arabe Khalt- _ fah). Se assim for, esse modo de “velar” o simbolismo da “pedra angular” parece indicar que esta era considerada como algo que encerrava um parti- cular mistério, e veremos a seguir que tal suposi¢do estd longe de ser injusti- ficada.4 Seja como for, existe nesta identifica¢ao das duas pedras, mesmo do ponto de vista da simples légica, uma impossibilidade que aparece de forma clara, desde que se examinem com um pouco de ateng¢do os textos ci- tados: a “pedra fundamental” é colocada em primeiro lugar, exatamente no inicio da construgdo de um edificio (e é por isso que ela é também denomi- nada “primeira pedra’”’).5 Conseqiientemente, como poderia ela ser transfe- rida durante o desenrolar dessa propria construg4o? Para que assim seja, é preciso ao contrério que a “pedra angular” tenha uma tal forma que nfo possa ainda encontrar seu lugar. E, de fato, como veremos, ela s6 pode en- contré-lo no momento da conclusao do e io como um todo, tornando- se, assim, em realidade a “‘cabega de angulo”. = Em um artigo j4 indicado,6 Ananda Coomaraswamy observa que a intencdo do texto de Sao Paulo € evidentemente representar Cristo como 0 _ tnico princfpio do qual depende todo edificio da Igreja, e acrescenta que “o _ princfpio de uma coisa nao é nem uma de suas partes em relago as demais, fem a totalidade de suas partes, mas sim aquilo a que todas as partes so re- duzidas numa unidade sem composig40”. A “pedra fundamental” (founda- tion-stone) pode também, num certo sentido, denominar-se “pedra de angu- lo” (corner-stone) tal como se faz habitualmente, porque ela € colocada em Um Angulo ou em um “canto” (comer) do edificio,? mas ela ndo é tinica i 4. A “substituigdo” também pode ser ajudada pela similaridade fonética existente en- tre o nome hebreu Kephas, que significa “‘pedra”, e a palavra grega Kephalé, “cabeca””; mas nfo hé entre essas duas palavras qualquer outra relagdo, e o fundamento de um I edificio no pode evidentemente ser identificado 4 sua “cabega”, ou seja, ao seu topo, ‘© que resultaria em inverter todo o edificio. Poderiamos, além disso, nos perguntar se tal “inversdo” ndo tem alguma correspondéncia simbélica com a crucificagao de Sio Pedro de cabega para baixo. 5. Essa pedra deve ser colocada no Angulo nordeste do edificio. Devemos notar a esse Tespeito que cabe distinguir, no simbolismo de Sao Pedro, diversos aspectos ou fungdes Correspondentes a diferentes “‘situagdes”, visto que, por outro lado, enquanto janitor [*porteiro”], scu lugar estd no ocidente, onde se encontra a entrada de toda igreja nor- Malmente orientada, Além disso, Sdo Pedro e Sao Paulo sdo também representados Como as duas “colunas” da Igreja, sendo entAo de habito figurados, 0 primeiro com as Chaves e 0 outro com a espada, na atitude de dois dwarapdlas [yaksha ou “génios” que, Ro hinduismo, guardam o umbral de certas portas sagradas]. 6. Eckstein, na Speculum, jan. 1939. 7. Seremos obrigados, neste estudo, a nos referir com freqiiéncia aos termos “técni- 289 = be nesse caso, pois 0 edificio tem necessariamente quatro angulos. Mesmo que se queira falar da “primeira pedra” em particular, ela ndo difere em nada das pedras de base dos outros angulos, salvo pela sua situacdo,8 e nfo se distin. gue nem por sua forma nem por sua fungdo, nada mais sendo, em suma, que um dentre os quatro suportes iguais entre si. Seria possfvel dizer que qual. quer uma dessas quatro comner-stones “reflete” de alguma forma 0 principio dominante do edificio, mas ndo se poderia de modo algum consideré-la co. mo 0 proprio principio.9 Além disso, se a questdo estivesse ai na verdade, ndo se poderia logicamente falar “da pedra angular”, visto que, de fato, se- riam quatro. Esta portanto deve ser em esséncia alguma coisa diferente da corner-stone, entendida no sentido corrente de ‘‘pedra fundamental”, tendo apenas em comum o cardter de pertencerem ao mesmo simbolismo “cons- trutivo”, Acabamos de nos referir 4 forma da “‘pedra angular”, 0 que é de fa- to um ponto de particular importancia, pois essa pedra tem uma forma es- pecial e unica, que a diferencia de todas as outras, e também porque nao sé ndo encontra seu lugar no transcurso da construg4o, como que ainda os pré- prios construtores ndo podem compreender qual seja a sua finalidade. Se eles a compreendessem, é evidente que ndo a rejeitariam e se contentariam em guardé-la até o fim. Porém, perguntam-se: “‘o que fario com a pedra’””? — e nfo podendo encontrar uma resposta satisfatéria para essa questdo deci- dem, acreditando-a inutiliz4vel, “lang4-la entre os entulhos” (to heave it over among the rubbish).10 A destinagdo dessa pedra so pode ser compreen- dida por uma outra categoria de construtores, que nao intervém ainda nesse estdgio: s4o os que transpuseram “o esquadro e 0 compasso”, e por essa distingao é preciso naturalmente entender a diferenca das formas geométri- cas que esses dois instrumentos servem para tragar, isto ¢, 0 quadrado e 0 cos” ingleses que, por pertencerem primitivamente a linguagem da antiga magonaria operativa, foram conservados por toda parte, em especial nos rituais da Royal Arch Masonry © nos graus acessérios que lhe estdo ligados, rituais estes que ndo tém qual- quer equivalente em francés; veremos que certos termos sio de dificil tradugo. 8. De acordo com o ritual operativo, esta “primeira pedra” é, como dissemos, a do Angulo nordeste; as pedras dos demais angulos sZo a seguir colocadas sucessivamente, de acordo com o sentido do curso aparente do Sol, ou seja, na ordem: sudeste, sudoes~ te, noroeste. 9, Essa “reflexdo” tem evidentemente relagdo direta com a substituigdo que indica- mos. 10. A expressfo to heave over é muito singular e, ao que parece, inusitada nesse se0” tido no inglés moderno; aparentemente, significa “levantar” ou “erguer”, mas de acor~ do com o resto da frase citada, fica claro que, na realidade, trata-se mais da “rejeiga° da pedra, 240 F lo, que simbolizam de um modo geral, como se sabe, a Terra eo Céu. a forma quadrada corresponde a parte inferior do edificio, ea forma ar A sua parte superior, que, nesse caso, deve ser constituida por um ymo ov uma abdbada.!! De fato, a “pedra angular” é na realidade uma ¢ de abobada” (keystone). A. Coomaraswamy diz que, para expaimnie erdadeiro significado da expressdo, “tomou-se a cabeca de Angulo” (is nome the head of the corner), poder-se-ia traduzi-la por is become the stone of the arch, o que € perfeitamente exato. E assim essa pedra, tan- sua forma, quanto por sua posi¢do, € com efeito anica no ediffcio tal como deve ser para poder simbolizar 0 principio do qual tudo de- Poder parecer surpreendente que a representag4o do principio seja s colocada em iiltimo lugar na construgdo; esta porém, em seu conjun- oderiamos dizer, est4 ordenada em relacdo a ela (0 que Sao Paulo ex- e ao dizer que “nela o edificio inteiro se ergue em templo sagrado, no hor”), ¢ que é nela que encontra finalmente sua unidade, Existe af, tam- uma aplicagdo da analogia, que ja explicamos em puttas ocasides, e o “primeiro” e o “ultimo”, ou o “principio” e o “fim’?: a construgdo esenta a manifestag%o na qual o principio sO aparece como gurtemate no. & precisamente em virtude dessa mesma analogia que a pipimelta ra”, ou “pedra fundamental”, pode ser considerada como um “‘reflexo’ itima pedra”, que é a verdadeira “pedra angular”. O equivoco implicito numa expressio como comer-stone repousa definitivo sobre os diferentes sentidos possiveis da palavra “angulo ; ymaraswamy observa que, nas diferentes linguas, as palavras que signifi- “Angulo” estao com freqiéncia relacionadas a outras que significam ga” e “extremidade”: no grego, kephalé, “cabega”’, e na arquitetura pitel” (capitulum, diminutivo de caput) s6 pode aplicar-se a um topo; , akros (sanscrito agra) pode indicar uma extremidade em qualquer lireedo, ou seja, no caso de um edificio, tanto o topo como um dos quatro Cantos” (sendo esta ultima palavra, coin no francés, etimologicamente entada do grego génia, “4ngulo”), ainda que muitas vezes se aplique de feréncia ao topo. Porém, o mais importante do ponto de vista dos textos ue se referem a “pedra angular” na tradi¢do judaico-crista, € a consideracado Palavra hebréia que significa ““angulo” — a palavra pinnah — encontrada em expressdes como eben pinnah, “pedra de Angulo”, e rosh pinnah, “‘ca- 11. Bsa distinggo é, em outros termos, a mesma que existe entre a Square Masonry & 4 Arch Masonry, que por suas respectivas relagdes com a “Terra” e o “Céu”, ou com : ‘artes do edificio que representam, correspondem aqui aos “pequenos mistérios e 0s “grandes mistérios”. 241 beca de angulo”. Mas é particularmente notdvel i do, a mesma palavra pinnah é empregada para agantierensen es Pressdo que designa os “chefes do Povo” (pinnoth ha-am) € trad mente na Vulgata por angulos Populorum, 12 OQ “‘chefe” ss © “cabega” (caput) e pinnah liga-se por sua raiz a pné. E evidente a estreita relacdo entre as idéias de “ ’ disso, 0 termo “face” pertence a um simbolis © que mereceria ser examinado a parte, 13 Uma outra idéia conexa é a de “ponta” to agra, no grego akros, no latim acer e act Pontas a propésito das armas e dos corn fT ©, mais em particular, de extremidade Superior, isto é, 9 Pp ; mais elevado ou o topo. Todos esses paralelos apenas Bonnin i que dissemos a respeito da situacdo da “pedra angular” no topo do tiie ; mesmo existindo outras “pedras angulares” no sentido mais ral di a Press0,15 s6 aquela é na, realidade, “a pedra angular’ por eta — Hie ee indicagoes interessantes Nas si; ifica ‘es emia tn ca an Pan ot ep " -, i fh Hen ; qiiéncia mais ocultas (recondita e eEsenalas sssaebadtsenes: Pisin! toma, as vezes, o sentido de “se i i as vezes, gredo” ou de “mistério”, Sob plural arkan est4 proximo do latim arcanum. Bepeitds’« ‘cabega”’ e de “face” 108,14 @ vimos que se refere a idéia a pela palavra drabe em ques- 'tido de “base” ou “fundagao”, 12. 1 Samuel, 14, 38; a palavra g6nia, 13. CE. A.M. Hocart, Les Castes versdo grega dos Setenta emprega também nessa passagem a » PP. 1514, a propésito da expressdo “faces da terra”. empregada nas ilhas Fuji para desi séculos do cristianismo : i, nos primeiros (ou “eabegas da Igreja", ou , i ‘ormavam exatamente essa » Alexandria, Roma, Antiéquia e Jerusalém, lesa corner é evidentemente derivada de “ » servia para designar as cinco “faces” ‘cor- tilinea © retangular (ou seja, talhadas on sentido de “esquadro” e “quadrado”), keystone, ‘ caso Unico da 16. Poderia ser interessante investi se existe um parentesco etimolégic: entre ria ser interes; igar arentesco etimoldgico real e1 eur. + Uma ex. Zida literal. ie etimologicamente que significa “facg> ©, além ismo em geral muito difundidg (que se encontra no sinsexj : Anscri. ies). J4 falamos do simbolismo dag 30s reconduz A corner-stone entendida como “pedra fundamental”. ninologia alquimica, el-arkén, quando essa designagdo ¢ empregada uitra indicagdo, refere-se aos quatro elementos, isto é, as “bases” subs- ido todo o mundo corporal (representado pela forma quadrada), 17 -ai retomamos diretamente ao proprio simbolismo que nos ocupa no nto. De fato, ndo existe apenas esses quatro arkdn ou elementos “bé- as também um quinto rukn, um quinto elemento ou a “quintessén- isto é, 0 éter, el-athir), que ndo se encontra sobre 0 mesmo “plano” pois ndo é simplesmente uma base como eles, mas sim o proprio o deste mundo.18 Ele ser4 portanto representado pelo quinto “an- 0 edificio, localizado em seu topo. Fa esse “quinto”, na realidade o iro”, que convém propriamente a designagdo de angulo supremo, de ) por exceléncia ou “angulo dos angulos” (rukn el-arkén), pois é nele notar que a figura geométrica obtida pela jungdo desses cinco angulos iramide com base quadrangular: as arestas laterais da piramide emanam " | topo como raios, do mesmo modo que os quatro elementos comuns, itados pelas extremidades inferiores dessas arestas, procedem do 0 € sio produzidos por ele. E também de acordo com essas mesmas que intencionalmente comparamos aos raios por essa razdo (e tam- | em virtude do cardter “solar” do ponto do qual provém, conforme ninamos ao tratar do “olho” do domo), que a “pedra angular” do topo /duas palavras, arabe e latina, mesmo no uso antigo desta tiltima (por exemplo na ¢iplina arcani dos crist4os dos primeiros tempos), ou se decorre apenas de uma “co! a’ que s6 se produziu posteriormente, entre os hermetistas da Idade Mé ]. Essa assimilacdo dos elementos aos quatro angulos de um quadrado estd natural- lente relacionada 4 correspondéncia existente entre esses mesmos elementos e os pon- . Estaria no mesmo plano (em sew ponto central) se tal plano fosse considerado como representaggo de um estado completo de existéncia, mas que ndo é aqui o caso, is € todo o conjunto do edificio que representa a imagem do mundo. Notemos a pro- Gsito que a projecdo horizontal da Pirdmide, da qual falamos mais atrds, é constituida " Pelo quadrado da base com suas diagonais, onde se projetam as arestas laterais, ficando © topo no ponto de encontro dessas diagonais, isto ¢, no préprio centro do quadrado. sifo, pelo ponto superior da letra alif, que por sua vez figura o “Eixo do Mundo”, Este iiltimo, conforme veremos ainda melhor a seguir, corresponde exatamente a posi¢do da keystone, 243 se “reflete” em cada uma das “p edras fundamentais” a oui lentais” dos quatro Angulos g Enfim, no que acaba de ser dito encontra-se a indica ta de uma correlacao entre o simbolismo alquimico e o sim| tetdnico, que se explica, alids, pelo seu cardter “ ta-se de um ponto importante, sobre 0 qual voli tros paralelos da mesma ordem, 3 A “pedra angular”, tomada em seu verdadeiro sentido de pedra topo”, é designada ao mesmo tempo, em inglés, por keystone, capstone A primeira dessas trés Palavras é facilmente compreensfvel, lente exato do termo “‘chave de ab6bada” na realidade aplicar-se tanto a pedra que fo. rma 0 topo de um arco, como 9 de uma ab6bada), Mas as duas outras palavras pedem maiores explicagdes, Em capstone, a palavra cap é evidentemente o caput latino, “cabeca”, o que nos leva A designagdo desta pedra como a “cabeca de angulo”; é exatamente A pedra que “acaba” ou “‘coroa” um edificio; é ainda um capitel, ou seja,o coroamento” de uma coluna.20 Falévamos do “acabamento”, e ambas a Palavras, cap e “cabeca”’, so de fato etimologicamente idénticas,21 4 caps- tone é portanto o chef, 0 “cabeca” do edificio ou da “obra”, e em razdo de sua forma especial, que para ser talhada requer conhecimentos ou capacida- 20. 0 termo “coroamento” é aqui compardvel & designago “coroa” Zo da assimilagdo simbélica que assinalamos anteriormente do olho”™ do domo ao Brahma-randhra, Sabe-se aliés, que a coroa, como os cornos, exprime em esséncia a idéia de elevacdo. Cabe notar ainda, a esse respeito ' Arch contém uma alusio 8 “coroa do cranio” da cabega, em ra- 21. Na significagdo da palavra “acabar” [achever no francés], ou da antiga expressiio cquivalente “Jevar a cabo” [no francés, “mener a chef”, a idéia de “cabega” estd as- Sociada a de “fim”, o que corresponde inteiramente & situagao da “pedra angular”, 20 rem? temPo como “pedra do topo” e como “iiltima pedra” do edificio. Mencion®. remos ainda um outro termo francés derivado de chef: 0 chevet [extremidade da nave é cin Seid, onde esté 0 altar-mor, em geral mais elevada que o resto da igreja, (“ca- teri a Portugués)]; 0 chevet éa “cabega” da igreja, isto é, a extremidade orien- ‘alien dome ont# @ abside, cuja forma semicircular corresponde, no plano hori- ae ou 4 cipula em elevagdo vertical, tal como explicamos numa outra 244 P40 muito cla. bolismo argu; cosmol6gico” comum, Ta taremos a propésito de ofl |, pois € 0 equiva. (ou de arco, pois a palavra pode culares, € também, ao mesmo tempo, uma chef-d oeuvre [ou seja, bra-prima”, uma “obra capital” ], nos termos das corporagGes de 2 i através dela que o edificio fica completamente terminado, ou, os termos, ¢ finalmente levado a sua “perfeigao”,23 nape “Quanto ao termo copestone, a palavra cope expressa a idéia de ir’, 0 que explica pelo fato, ndo apenas de que a parte superior do Fo é exatamente a sua “cobertura”, mas também, e dirfamos mesmo mdo, porque essa pedra se coloca de modo a cobrir a abertura do topo, , o “olho” do domo ou da abébada, do qual jé falamos anteriormen- E em suma, sob esse aspecto, o equivalente de uma roof-plate, tal co- rva 0 st. Coomaraswamy, 0 qual acrescenta ainda que essa pedra ‘ser considerada como a terminagao superior ou o capitel do “pilar (skambha no sanscrito, stauros no grego).25 Esse pilar, como j4 ex- s, pode no estar representado materialmente na estrutura do edi- s nem por isso deixa de ser sua parte essencial, em toro da qual dena todo o conjunto, O cardter de topo do “pilar axial”, presen- : uma forma apenas “ideal”, ¢ indicado de um modo particularmente endente no caso em que a “chave de abébada” desce em forma de nte”, passando para o interior do edificio, sem ser suportado de A palavra “obra” é empregada ao mesmo tempo na arquitetura ¢ na alquimia, ¢ ‘sem razo que fizemos essa Eiapaaee See, © acabamento de uma : *, ¢ na alquimia é a “pedra filosofal”. 1 ei cae ecottttee magOnicos, os graus que correspondem de modo ‘u menos exato 4 parte superior da construgdo que estamos tratando aqui (di- que é de modo mais ou menos exato, pois (ocorre as vezes em tudo isso uma cer- nfusdo) sdo precisamente designados pelo nome de “graus de perfeigo”, Por ou- lado, a palavra “exaltacfo”, que designa o acesso ao grau de Royal Arch, pode ser Adida como referindo-se & posiggo elevada da keystone, F “Encontra-se, para a colocagdo dessa pedra no lugar, a expressiio fo bring forth the stone, cujo sentido é muito pouco claro 4 primeira vista. To bring ed significa teralmente “produzir” (no sentido etimolégico do latim producere) ou “dar a luz”, Como a pedra tinha sido rejeitada anteriormente no decorrer da construgfo, nfo se lata agora, no dia da conclusfo da obra, de “‘produzi-la” no sentido de uma “confec- , mas jé que ela foi enterrada “entre os entulhos”, significa antes desembaracéa, “dasa novamente 4 luz”, para colocé-la em evidéncia no topo do edificio, de modo que fla se torne a “cabeca de Angulo”. Assim to bring forth opOe-se aqui a to heave over. 25. Stauros significa também “cruz” e sabemos que, no simbolismo cristo, a cruz é ®similada ao “Eixo do Mundo”. Coomaraswamy relaciona esse termo ao sdnscrito Sthdvara, “firme” ou “‘estdvel”, 0 que convém de fato a um pilar, e que, por outro la- _ do, concorda exatamente com a significagdo de “‘estabilidade”’ dada 4 reunio dos no- _ Mes das duas colunas do Templo de Salomio. 245

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