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IIl_— Post Scriptum . TRANSLUCIFERAGAO MEFISTOFAUSTICA A tradug&o, como a filosofia, ndo tem Musa (Es gibt keine Muse der Philosophie, es gibt auch keine Muse der Uebersetzung), diz Walter Benjamin (“Die Aufgabe des Uebersetzers”). E no entanto, se ela nfo tem Musa, poder-se-ia dizer que tem um Anjo. De fato, no entender do proprio W. Benjamin, cabe 4 tradug4o uma func4o angelical, de porta- dora, de mensageira (compreendida esta na acepgdo etimoldgica do termo grego dngelos, do hebrdico mal’akh): a tradugfo anuncia, para a lingua do original, a miragem mallarmaica da lingua pura; ela é mesmo, para 0 original, a Unica possibilidade de entrevisdo dessa lingua pura: — ponto messianico (ou, em termos laicos da moderna teoria dos signos, — lugar semidtico) de convergéncia da intencionalidade (mais exatamente, do “modo de intencionar”, Art des Meinens, Art der intentio) de todas as linguas, que assinala, entre elas, ao nivel desse telos desocultado gracas ao peculiar “modo de re-producdo” (Darstellungmodus) que é a tradu- ¢40, uma “‘afinidade eletiva”, independentemente de todo parentesco etimologico ou histérico. Por isso mesmo, por mais um rasgo paradoxal de sua teoria do traduzir (que eu ja procurei definir algures como uma metafisica, antes do que uma fisica da traducdo), W. 'B. inverte a relacdo de servitude que, via de regra, afeta as concepgdes ingénuas da traducio como tributo de fidelidade (a chamada tradugo literal ao sentido, ou, simplesmente, tradugao “servil”), concepgdes segundo as quais a tradu-, ¢4o esta ancilarmente encadeada a transmissfo do contetido do original. Pois, na perspectiva benjaminiana da “lingua pura”, o original é quem serve de certo modo 4 tradug4o, no momento em que a desonera da tarefa de transportar 0 contetido inessencial da mensagem (trata-se do caso de tradugfo de mensagens estéticas, obras de arte verbal, bem entendido), € permite-lhe dedicar-se a uma outra empresa de fidelidade, esta subver- siva do pacto rasamente conteudistico: Treue in der Wiedergabe der Form, a “fidelidade a re-produgdo da forma”, que arruina aquela outra, ingénua e de primeiro impulso, estigmatizada por W. B. com o tra¢go distintivo da mA tradugfo: “transmissfo inexata de um contetdo inessencial” (eine ungenaue Uebermittlung eines unweséentlichen Inhalts). 179 Nao ‘seria descabido, portanto, ultimar a teoria: benjaminiana. da tradugdo “angelical”, da tradugdo como portadora da mensagem “inter” (ou “trans”) -semidtica da lingua pura, dizendo que ela é orientada pelo lema rebelionério do non serviam (da n&o submissfo a uma presenga que Ihe é exterior, a um contetido que lhe fica intrinsecamente inessencial); © em outras palavras, como a propria expresso latina o denuncia, estaria- mos diante de uma hipdtese de tradugdo luciferina. Pois 0 desideratum de toda tradugfo que se recusa a servir submissamente a um conteddo, qué se recusa a tirania de um Logos pré-ordenado, 6 romper a clausura metafisica da. presenca (como: diria Derrida): uma empresa saténica. O contraparte “maldito” da angelitude da tradugfo é a Hybris, o pecado semioldgico de Sata, il trapassar del segno (Par., XXVI, 117), a transgressfo dos limites signicos,, no caso’ o transgredir da relagdo aparentemente natural entre o que dicotomicamente se postula como forma e contetdo. Nesse sentido, o Anjo da tradugio bem poderia chamar-se AGESILAUS SANTANDER, como o “Angelus Novus” de W. B., anagrama cabalistico _ de DER ANGELUS SATANAS, na exegese de Gershom Scholem. Pois, no limite de toda tradugdo que se propde como operaco radical de trans- criagfo, faisca, deslumbra, qual instante volatil de culminagdo usurpa- dora, aquela miragem (que jd evoquei em minha introdugfo 4 “translu- minagfo” de 6 Cantos do Paradiso de Dante) de converter, por um 4timo que seja, o original na traducao de sua'tradu¢4o. Assim, nada mais estranho 4 tarefa do traduzir, considerado como uma forma (Uebersetzung ist eine Form) que aspira a uma fidelidade — hiperfidelidade — a outra forma ' (“fidelidade a re-doagfo da forma”, Treue in der Wiedergabe der Form), do que a humildade. Nesse dominio regional, aplica-se 4 maravilha o que dizia o jovem Marx, no texto de 1842 em que ele defende, contra a censura, 0 seu direito a um estilo préprio (e onde se’lé: “Minha propriedade é a forma, ela constitui minha individualidade espiritual. Le style, c’est homme. E como!”); recusando-se a admitir a “modestia como esséncia . do espirito”, Marx recorre a uma citagdo de Goethe: “S6 o esmoler é modesto, diz Goethe. E é a um tal mendigo que vés quereis reduzir o espirito?”. Aqui, como afirma por seu turno Nietzsche, “seria necessario o habito do ar cortante das alturas, de andangas de inverno, de gelo e montanhas em todos os sentidgs, (.. .) uma espécie de sublime maldade”, uma “filtima malicia do conhecimento, muito segura de si, que faz parte da grande sat:de”. Pois também aqui, nessa regifio sauddvel do transcriar, os “mestres de resignacdo” (Lehrer der Ergebung) nao devem ter seu habi- ticulo; aqui, 0 4se se costuma dar como “comedimento” — o colocar “nossa cadeira no meio” —, ha de chamar-se de fato, sem contemplacdo, nos termos de Nietzsche, “‘mediocridade” *. * Para as citacdes de Nietzsche, extrafdas de “Para a Genealogia da Moral” e “Assim falou Zaratustra”, vali-me da excelente verso brasileira de Rubens Rodri- gues Torres Filho. 180 Este é o horizonte metafisico do problema. Agora, a fisica da tra- dug4o, um indice do fazer. Traduzir a forma, ou seja, o “modo de inten- cionalidade” (Art des Meinens) de uma obra — uma forma significante, portanto, intracédigo semiético — quer dizer, em termos operacionais, de uma pragmatica do traduzir, re-correr o percurso configurador da fungdo poética, reconhecendo-o no texto de partida e reinscrevendo-o, enquanto dispositivo de engendramento textual, na lingua do tradutor, para chegar ao poema transcriado como re-projeto isomérfico do poema origindrio. O tradutor de poesia é um coreégrafo da danga interna das linguas, tendo o sentido (0 contetdo, assim chamado didaticamente) ndo como meta linear de uma corrida termo-a-termo, sineta pavloviana da retroalimentacdo condicionada, mas como bastidor semantico ou cendrio pluridesdobravel dessa coreografia mével. Puls&o dionisiaca, pois dissolve a diamantizag4o apolinea do texto original j4 pré-formado numa nova festa signica: p6e a cristalografia em reebuli¢Ao de lava. De Goethe, diz Adorno que nenhum escritor como ele, na litera- tura alema, deu tanta primazia a palavra (motivo pelo qual, na exegese do pacto mefistofélico, seria fatil distinguir a letra do espirito). Uma instancia evidenciadora, ao nivel mais imediato, dessa profunda ciéncia da fung&o poética enquanto fungao configuradora (auto-reflexiva) da mensagem, encontra-se numa passagem do JJ Fausto, posta em destaque por Roman Jakobson e sua colaboradora, Linda Waugh, na segdo “The Spell of Speech Sounds” de seu recente The Sound and Shape of Language Gloomington, Indiana University Press, 1979). Falando das “analogias gramaticais”, escrevem Jakobson e Waugh: “Palavras ligadas por som e sentido manifestam ‘“‘afinidades eletivas” (Wahlverwandschaften), capazes de modificar a conformagdo e o conteiido das palavras envolvidas”. E, por via de Albert Wellek (Die Tonmalerei der Sprache und die Sinnensym- bolik des Worts, 1931), trazem a cena a fala do Grifo na Walpurgisnacht classi¢a do IT Fausto (Ato II, “No alto Peneios”): GREIF schnarrend: Nicht Greisen! Greifen! — Niemand hort es gern, Dass man ihn Greis nennt. Jedem Worte klingt Der Ursprung nach, wo es sich her bedingt: Grau, gramlich, griesgram, greulich, Graber, grimmig, Etymologisch gleicherweise stimmig, Verstimmen uns. MEPHISTOPHELES: Und doch, nicht abzuschweifen, Gefallt das Grei im Ehrentitel Greifen. Enfrentar esta verdadeira pedra-de-toque irénica da arte goethiana de poesia 6 uma empresa que nos permite por o dedo no nervo mesmo, aus- cultar a palpitacdo do “‘coragao selvagem” do que seja a espécie singular 181 de arte que é a tradugfo: tradugdo poética — trans-criagdo — hiper-tra- dugdo, Vejamos: Trata-se de criar uma ambiéncia fénica em que o nome do Grifo, por forga do contégio de significantes convergentes e coinci- dentes, se reconstrua e se motive, fragmentariamente, no interno do texto, fazendo do acaso necessidade e transformando a “falsa” ou “pseudo” etimologia (uma etimologia instaurada ad hoc, por forga da coocorréncia textual) em nomeagfo adémica inaugural (Adfo, o que nomeia; “Addo, © pai dos homens, e, — antes do que Platdo —, o pai da filosofia”, segundo diz W. Benjamin no Ursprung). Como se a natureza fosse a assinatura de si mesma. Assim: . UM GRIFO, resmungando: Gri ndo de gris, grisalho, mas de Grifo! Do gris de giz, do grisalho de velho Ninguém se agrada. O som é um espelho Da origem da palavra, nela inscrito. Grave, gralha, grasso, grosso, grés, gris Concertam-se num étimo ou raiz Rascante, que nos desconcerta. MEFISTOFELES: O Grifo Tem grito e garra no seu nome-titulo. Aqui se pode encontrar in nuce a teoria da traduc%o como operagio paronomistica generalizada, de Jakobson, centrada no princfpio de equi- valéncia da fun¢do poética, que projeta o paradigma no sintagma. Goethe, no ensaio “Moritz como etimélogo” (Italienische Reise), fala de um “‘alfa- beto da inteligéncia e da sensacdo”, inventado por seu amigo, o escritor Karl Phillip Moritz (1756-1793), mediante o qual se poderia demonstrar a n&o arbitrariedade origindria dos idiomas, fundados no “sentido intimo”, comum a todos os povos. Compara o “jogo etimolégico” a um jogo de xadrez, no qual se podem imaginar centenas de combinagGes: “é 0 jogo mais engenhoso (espirituoso) do mundo e exercita incrivelmente o senso da lingua” (das witzigste Spiel von der Welt und iibt den Sprachsinn unglaublich). O Grifo 6 uma das personagens mitologicas que intervém como interlocutores de Fausto e Mefist6feles na fantasia grotescamente “classicizante”’ da “Noite de Walpurgis”. O trecho em destaque sucede a uma fala de Mefisto, quando este, recém-chegado aos péramos da Antigiiidade, afeta reservada surpresa diante do déspudor dos corpos nus que o cercam, e termina por saudar a todos, decorosamente: “Salve, belas mulheres, velhos sdbios” (Glick zu! den schénen Fraun, den klugen Greisen.). Ai engata o trocadilho: GREIS (velho; GRIS/GRISALHO)/ GREIF (GRIFO), Fazendo com que o Grifo reaja ao sentir-se, por um mal-entendido, chamado de “velho”, Goethe engendra uma rea sémica de tons sombrios ¢ tristes, girando em torno da figura fonica GREI ou simplesmente do digrafo GR (4rea do que é “velho”), da qual o Grifo procura desidentificar-se veementemente, s6 aceitando que se retenha 182 em seu “nome-titulo” (Ehrentitel, titulo nobiliérquico) a associag&o dos fonemas de GREI com a silaba inicial do verbo GREIfen (“agarrar”). A situagdo é tanto mais bufa, quando se recorda que o Grifo, animal fan- + tdstico, metade Aguia, metade ledo, é o guardifo vetusto, imemorial, dos tesouros da terra, na concepgao mitolégica. Ao refugar o “sema” de velhice, o Grifo comporta-se como o proprio Goethe (e Fausto) no seu culto 4 perenidade da juventude. Ha pois, nesta passagem, um traco auto- parédico. No comentirio da edig&o Goldman Klassiker, lé-se: “Jogo de palavras entre o nome do animal fabuloso e o verbo greifen, uma das palavras prediletas do poeta. A concepgdo goethiana da vida como uma incansdvel atividade existencial conjuga-se estreitamente com 0 processo do agarrar (greifen) e do tomar (ergreifen).” Respondendo ao cumpri- mento de Mefist6feles (preocupado em desfazer o mal-entendido) sobre a pertinéncia do GREI de agarrar (GREIfen) no seu nome-brasdo, o Grifo acentua que, de fato, o “parentesco esté provado” (die Verwandt- schaft, outra das palavras prediletas do poeta); que “‘aquele que agarta” (em Greifenden) a fortuna sorri. . . Como proceder, entSo, para transcriar em portugués este frag- mento quase-sonorista do Fausto goethiano? Isto s6 se podera obter por uma operacdo radical, cuja virtude transfusora aja blocalmente sobre os paradigmas (desprezando-se o sentido pontual desta ou daquela palavra. isolada), para remobilizar, no texto traduzido, um andlogo contraponto de séries* fono-semnticas, visando ao efeito icdnico do todo: na traducdo, mais do que em nenhuma outra operacdo literdria, se virtualiza a no¢do de mimese, n4o como teoria da copia ou do reflexo salivar, mas como produc¢do da di-ferenga no mesmo. Examinemos 0 processo, com mais minicia: De um lado temos, no original alem4o, o seguinte léxico-chave: GREIS = velho; GREIF = grifo (GREIFEN = agarrar; GRIFF = garra, unha); GRAU = pardo, cinzento, grisalho, sombrio, triste; GRAMLICH (GRAM = aflicio; pena, melancolia, desgosto) = rabujento, triste, enfadado, de mau humor, melancélico; GRIESGRAM = macambizio; notar a proximidade fénica da primeira sflaba da palavra com o monossilabo GRIES, GRIESS = areia, saibro, cdlculo (renal); GREULICH = horrivel; GRABER (plur. de DAS GRAB) = sepulcros; também DER GRABER = co- veiro, cavouqueiro; GRIMMIG = furioso, irado, zagado, terrfvel. Em portugués, a reconstituiggo da ambiéncia fono-semintica se fez A base da seguinte série vocabular: . GRIS GRISALHO GRIFO 183 “GRAVE i, GRALHA: 3; ",, GRASSO = que vem do lat. crassus e convoca os semas de “gordura” e “peso” (lerdo, pesado, crasso); GROSSO = grave, espesso; GRES. = areia dura (lembre-se GRIES, contagiando GRIESGRAM, acima). A recriagfo, porém, ndo parou af: GIZ, na tradugdo, compensa fonica- mente, rimando com GRIS, a particula de reforgo aprobatério (GERN =.de bom grado) que ocorre no original com efeito aliterativo (o fonema oclusivo /g/ se apresenta como uma chiante palatalizada /j/ em GIZ). Note-se a reiteragdo fénica em ninGUEm e aGRada, respondendo a klinGt e ursprunG. GRITO e GARRA substituem, numa daplice alegoria fono-semantica, 0 GREI que brasona o “nom de guerre” do agarrante GRIFO (sem esquecer que “Tem GaRRa e GRito” busca redesenhar 0 sintagma “Gefallt das GRei”, com o ITO da segunda palavra rimando ainda com TiTul0...). Por outro lado, nfo se perdeu o jogo entre STIMMIG (afinado, coricorde) e VERSTIMMEN (desafinar), que realiza no texto, com agudeza “maneirista”, a irénica teoria etimolégica do GRIFO (este ayoengo do semanticista HUMPTY-DUMPTY, de Lewis Carroll. ..), enquanto concordia discors: ou, mais exatamente, harmonia e reconciliagfo profunda do. aparentemente desacorde, cuja evidéncia, qual memoria fonica da “lingua pura”, “‘adamica”, nos desconcerta. . . Vejamos, agora, como se comportam diante do mesmo texto-amos- tra as tradugdes comuns, “naturais”, destituidas de um projeto estético radical. Estas so, geralmente, de dois tipos: ou se trata de tradug6es simplesmente mediadoras, que outra coisa nfo visam senfo 4 Util tarefa de auxiliar a leitura do original, como uma espécie de diciondrio portétil ou léxico arrazoado ad hoc; ou se trata de tradugdes medianas, que pro- curam intermediar de maneira média (como dizia Maiakévski de certa critica), guardando da aspiracdo estética apenas as marcas externas de um dado esforgo de versificagao (a medida métrica) e de um deliberado empenho rimico (a rima terminal, consoante). A morigeragao da inter- vencfo estética e a identificagdo ingénua entre a complexa e sutil dina- mica da fun¢do poética, em sua multiplicidade configuradora, e os aspectos mais Obvios e mais exteriores do exercicio desta (a métrica e o rimério), levam ao obscurecimento da intrincada teia de som e sentido que per- corre o texto como um todo, qual disseminado jogo paronomistico, s6 acessivel 4 leitura partitural propria da tradugdo radicalmente criativa. Assim, nfo raro, 0 empenho estético mediano, morigerado, apesar de suas inegiveis boas intengdes, redunda em Kitsch involuntério, seja pela imperita selegao dos paradigmas lexicais, seja pela trivialidade das rimas (obtidas, freqiientemente, pelo pingamento de palavras em “estado de dicionario”, ou. por um dificultoso contorcionismo sintdtico, que acusa © “versejador de domingo”). De qualquer modo, se o poeta-tradutor, 184 em seu estoque mobiliz4vel de formas significantes, ndo estiver ao nivel curricular da melhor e mais avangada poesia do seu tempo, nfo poderd reconfigurar, sincrono-diacronicamente, a melhor poesia do passado. ContribuigSes. meritérias nesse campo, avalidveis positivamente como obras de aturado labor, devogdo, erudic¢fo e paciéncia, nfo podem elidir essa questo fundamental, que diz respeito a metafisica do traduzir: a “diferenca ontologica”, por assim falar, que aparta, categorialmente, toda tradugdo-mediagdo (embora sob paramentos extrinsecamente “esté- ticos”) e a operagfo radical de tradugdo que designo por transcriagio. ‘\ Nas Obras Completas de Goethe, tomo III (Madrid, Aguilar, 1951), a fala do Grifo aparece assim: GRIFO. — (Chirriando) iNada de ancianos! iGrifos! A nadie le hace gracia - que lo Mamen anciano. En cada palabra traslicese el origen de donde pro- cede; gris, canoso, caduco, sepulcros, feo, que suenam etimologicamente lo mismo, no resultan gratos a nuestros ofdos. MEFISTOFELES. — Y, sin embargo, para no divagar, lo de Grei no desagrada en el t{tulo honroso de grifos. Rafael Cansinos-Assens, 0 erudito judeu sevilhano, a quem devemos essa imponente e ingente obra de transladagdo para o espanhol dos textos goethianos, digna, como tal, do maior respeito e dos melhores créditos, nfo se propos um escopo criativo em sua versio do Fausto (apesar de ser um intelectual atualizadissimo, amigo e mestre de poetas de van- guarda como Huidobro e Borges). Podemos ver, no exemplo, que a tra- dugdo 6 feita em prosa cursiva e que as dificuldades sf0 contornadas por notas (uma delas elucida: “‘Anciano, Greise; grifo, Greif; outra assinala: “Todas esas palabras muestran cierta aliteracién en alem4n: grau, grdm- lich, griesgram, greulich, Griber, grimmig...”). No texto resultante, um trago residual, mnémico, aponta para a auséncia da operacdo transcria- dora: a aliteragdo apenas esbogada, entre CAnoso ¢ CAduco, a quase- -rima cadUCO/sepULCro... E mais ainda, como flamula “non-sense” dessa ‘auséncia, aquele GREI (“lo de Grei”) que, nfo se sabe bem por que, sobrou do GREI de GREIF e ficou solto, sem lugar, no titulo de GRIFO, apesar do movimento aliterativo que se produz quase sublimi- narmente — embARGo/divaGAR/desaGRAda/GRifo — e que est4 como que a exigir do tradutor, que nfo se parece dar conta disso, uma outra “tesolugao”, no sentido musical do termo; imaginar GREY (conjunto de individuos, rebanho) semantizando GREI, nao contribui para atenuar a sensacdo de jogo malogrado. . . Alexandre Arnoux e R. Biemel (Goethe, Faust, Paris, Albin Michel, 1947) conseguiram melhor desempenho no par Grisons/Griffons ena recunhagem da linha aliterante, embora a transposi¢Zo em prosa faga eco- nomia de outros importantes elementos configuradores do texto (entre os quais a paronomfsia — a rigor parequese — entre stimmig/Verstimmen): 185 UN GRIFFON (ronchonnant) Grisons, nous! Non, Griffons! Personne n’aime s’entendre nommer grison. Chaque mot garde le son de son origine, od il se définit. Gris, grigou, grinchu, grippe, grief, grimaud, tout cela a comme une parenté étymologique et nous froisse. MEPHISTOPHELES Lo Permettez... Pour en revenir 4 la question, le gri ne déplaft pas dans le titre @honneur de Griffon. Em portugués, temos duas tradugdes integrais do Fausto: a primeira, pioneira, de Agostinho D’Ornellas, apareceu em dois volumes, respecti- vamente em 1867 (Fausto, 12 Parte) e em 1873 (Fausto, 23 Parte). Cito-a pela reimpressfo de Paulo Quintela (Coimbra, Atlintida, 1958). Eis a fala do Grifo: . GRIFO (rosnando). Nao so velhos, so Grifos! — Ninguém gosta De ouvir chamar-se velho. Cada termo Da origem donde vem tira o sentido: Velho, vildo, velhaco, vil, velhote, Sons na etimologia quase andlogos, Desagradam-nos muito. MEFISTOFELES. Todavia, ‘ , Para ndo divagar, direi que “garras” A idéia traz o tftulo de Grifo. Paulo Quintela, ao republicar, com cuidado e aprego, o fruto do devotado labor de Ornellas, nfo deixou de fazer-lhe restrigdes quanto ao “aspecto literério e poético”, pois nado pode furtar-se a vislumbrar na obra “certo tom arrastado, perro e contrafeito, esforgado em todos os sentidos do adjetivo, de dentes cerrados e misculos tensos, que de certo modo a macula”. No que se refere ao texto que tomei como exemplo, vé-se que Ornellas. percebeu o problema, sem ter no entanto condicées de resol- vé-lo de maneira cabal. Velho/Grifo nfo da conta do jogo fénico do original, embora o tradutor tenha procurado restabelecer a cadeia alite- tativa do texto goethiano, fulcrando-a em torno de “velho”. Nada restou da parequese. O tradutor tentou instaurar uma relacao de afinidade entre “garras” e “Grifo” e ficou desse empenho, nfo levado as Giltimas conse- qiiéncias, um resquicio disperso em ‘“desaGRAdam-nos” e “divaGAR”. Nas notas do volume, Ornellas deixou registrado: “Para quem entende por tradugdo- a reproducfo fiel e escrupulosa do original, é dificil.esta passagem da noite classica de Walpurgis. Mefist6feles, estranho entre as criagdes da Mitologia grega, confunde Greifen, grifos, com Greisen, velhos. Aqueles repelem o equivoco, aludindo ao mesmo tempo as con- fus6es de palavras s6 semelhantes no som, em que,.ao dar os primeiros ¢ mal seguros passos, tantas vezes caiu a nascente ciéncia da linguagem. A série do original ¢: Grau, gramlich, griesgram, graulich, Graber, grimmig. Sendo impossivel traduzir as palavras, conservando a intencfo do autor, 186 traduzi a idéia por uma série de palavras, que tendo aparentemente o mesmo radical, como as alemas, sfo contudo, também como elas, de diversa procedéncia etimoldgica.” Omellas chegou a entrever, pode-se dizer, a hip6tese .de trabalho produtiva, quando pensou em traduzir nfo as palavras, mas “a idéia por uma série de palavras”, para assim conservar “a intengfo do autor”; faltaram-lhe porém meios poéticos e rasgo arte- sanal para levé-la integralmente a pratica. . No Fausto brasileiro de Jenny Klabin Segall, empresa igualmente respeitével e merit6ria, cuja primeira parte saiu em 1943 e da qual a Editora Martins deu uma publicacfo integral, em dois volumes, em 1970, a passage do Grifo foi assim reconstituida: GRIFO (rosnando) Grilos, nio! Grifos! — ninguém quer que o chamem De velho e Grilo! inda que em todo termo tina O som de base de que se origina, Grileira, grima, grife, gris, sangria, Ha concordancia de etimologia, Mas soam mal pra nés. MEFISTOFELES __ Sons nfo tarifo, * Mas vale o grif no honroso titulo de Grifo. A tradutora procurou enfrentar o. problema nos seus varios niveis. Orellas excluiu a dificuldade da rima (que ocorre no original), impondo-se apenas a baliza da métrica (decassildbica). Segall preocupou-se com a métrica e a rima, tentando ademais replicar ao contraste inicial de vocdbulos com © jogo entre Grilo e Grifo. Infelizmente, a escolha da primeira palavra nfo resulta eficaz semanticamente, deixando esvair a ironia autoparédica do texto goethiano. A série aliterante peca ainda quanto a pertinéncia sémica (de “grilo”, passou-se a “grileira”, que é a parte da armadilha para cagar passaros onde se prende um grilo, vocdbulo que nfo agrega nada a ambiéncia pesada e sombria que a fonia aqui seria chamada a criar), além de envolver rebuscamentos desnecess4rios (grima, termo desusado, para antipatia, raiva, faria, pavor; grife, como no francés griffe, ou ainda grifa, para unha adunca); sangria também nfo parece uma escolha muito feliz, tendo sido antes chamada 4 cena para rimar com etimologia. A rima tarifo/Grifo soa forcada, embora tenha o escopo adequado, em linha de princfpio, de preparar a integrag4o final da silaba grif em Grifo e seja recuperada mais adiante, nos dois tltimos versos da estrofe seguinte, ao projetar-se em grifa; Que a grifa agarre virgens, ouro e trono, Quem a usa, da fortuna obtém o abono. 187 (versos .cuja..fluéncia fica, porém, prejudicada, pelo esforgo.de inverséo sintatica exigido pela rima de abono com trono). Assim .como ‘a inconicidade, na teoria de Peirce, é uma quest&o de grau;. também a consciéncia transcriadora pode’ incidir, em graus diversos, numa praética do traduzir nfo regulada por essa idéia radical. O. impor- tante serd, em cada caso, rastrear o despontar ainda indeciso. dessa cons- ciéncia (que é.0 reconhecimento da pr6pria tradug4o como forma espe- cifica), mesmo quando nfo reverta, no caso considerado, ém éxito esté- tico, em termos de avaliacfo de resultado. Neste plano se coloca uma possivel diddtica da traducgdo. Dir-se-4 que a escolha da “fala do Grifo”, como instancia paradig- mal para uma reflexfo sobre os problemas da traducfo no Fausto de Goethe, é uma escolha sectéria. Que essa fala “logogrifica”, momento de concentragfo irénica do poetar goethiano, nfo é representativa do todo dessa poesia, onde a funcdo poética e seu contraparte “vicioso” — a fun-- ¢fo metalingiifstica, raramente se apresentam assim, em estado, pode-se dizer, quimicamente puro, mas antes, de preferéncia, se aliam a outras fungdes mais discursivas da linguagem (e desde logo a referencial, comu- nicativo-cognoscitiva). Que essa escolha “perversa” s6 foi possivel por que aquele que a levou a termo passou antes pela experiéncia aliciadora de traduzir a poesia alem4 de vanguarda (de Morgenstern, Holz e Stramm a Gomringer e Heissenbuettel), e est4 agora, num movimento tatico de retorno, relendo o.passado em modo sincrdnico e com ganas de reatuali- z4-lo,. repristiné-lo, de fazer — pessoanamente — do outrora, agora. De certo modo, isso é inevitavel, pois se a tradugdo 6 uma leitura da tradic¢do, s6 aquela ingénua e nfo critica — que se confine ao museolégico (que se faca tributdria do que Nietzsche chama “historia antiquarial”), recu- sar-se-4 ao “salto tigrino” (W. Benjamin) do sincrénico sobre o diacrénico. Por outro lado, se a tradugo de poesia (ou, numa palavra, a “trans- criagfo”) visa, no conceito benjaminiano,, a “exprimir a relagéo intima e:reciproca entre as linguas” (a desocultar-lhes — diria eu —, sob a cor de. “afinidade eletiva”, sua forma semidtica.mais essencial), e se o seu Darstellungmodus, nessa operaco translaticia, s6. pode ocorrer mediante uma atualizacdo “embriénica” (Keimhaft) e “intensiva” (intensiv), entfio nada mais coerente do que representar 0 modus operandi dessa forma chamada tradug4o, miniaturando-o, modelarmente. E aqui, mais uma vez, nos socorre Goethe, nfo por acaso citado por W. Benjamin em epigrafe ao “Prélogo Epistemocritico” (Erkenntnis- kritische Vorrede) do Ursprung. Trata-se de uma passagem da Farbenlehre, 188 na qual o poeta afirma “a necessidade de pensar a ciéncia como uma arte, se dela quisermos esperar alguma espécie de totalidade”; pois esta, nds ndo a encontraremos no “geral” e no “superabundante”, mas, “assim como a arte est4 sempre integralmente representada em cada obra indi- vidual, também’ a ciéncia se deveria revelar em cada objeto singular tratado”. O miniatural, o monadolégico, s4o “operadores” extremamente fecundos para o pensamento de W. Benjamin, como lhe s4o congeniais © estilo aforistico, a expressfo gnémica, e a técnica de mosaico. No mesmo ‘“Prélogo” lé-se: “A relag#o entre a elabora¢fo microlégica e a proporgo do todo figurativo e intelectual pde-a manifesto que 0 con- tetido-de-verdade (Wahrheitsgehalt) somente se deixa apanhar por meio de um mergulho extremamente preciso nas minimas particularidades de um assunto (Sachgehalt, estado-de-coisas).” E mais adiante, com refe- réncia a Leibniz: “Do ponto de vista de uma tal empresa de penetracdo, nfo causa. espécie que o pensador da monadologia tenha sido também 0 fundador do célculo infinitesimal. A idéia é monada — isto significa, em resumo: cada idéia contém a imagem do mundo..Seu escopo represen- tativo 6 nada menos do que desenhar, de maneira abreviada, essa ima- gem do mundo.” Considere-se pois esta reflexdo sobre como traduzir (“transcriar”) a “fala do Grifo” uma virtual “metdfora epistemolégica” (Eco), capaz de nos elucidar sobre o problema da traduc4o em geral e aquele, em espe- cial, da recriagfo do Fausto de Goethe. Como Benjamin, em agosto de 1927, conduziu Gershom Scholem ao Museu de Cluny, para mostrar-lhe, extasiado, um texto ritual hebraico inscrito em dois graos de trigo, assim também o tradutor-recriador poder divisar a fabrica geral da poética de Goethe espelhada nesse texto-ménada: Aleph borgiano, que lhe per- mite descortinar o universo pelo olho de uma agulha. . . Aquilo que aqui se encontra em concentrac4o, em outros momen- tos do poema de Goethe se achar4, via de regra, em dispersdo: como se a compactura monadolégica tivesse, por seu turno, explodido meteoriti- camente, deixando incrustados a espacos, com intermiténcia estratégica, fragmentos, detritos, esquirolas, que, feito siglas e algoritmos, sustentam, como parcelas imantadas ou pontos constelares, o desenho geral dessa poética. A tarefa do tradutor-transcriador 6 reconhecé-los com sua mirada aléfica e, por través deles, redesenhar a forma semi6tica dispersa, disse- minando-a, por sua vez, no espaco de sua propria lingua. Agora, a pritica: novos indices do fazer. Como 4 visada aléfica cor- tesponde uma leitura partitural, o transcriador nfo pode contentar-se com 0 jogo parco das rimas terminais e a compuls4o da métrica. No caso 189 das duas Cenas finais do Fausto, usei, como medida de base, o decassi- labo, rompendo-lhe as estrituras coercitivas, sempre que me era neces- sério para manter a sintaxe em movimento (ao invés de emperré-la em contorg6es canhestras, para pagar o débito do metro e da rima); vali-me, para tanto, da técnica de cortes, do agilizante enjambement; quanto ao rimario, em lugar de aperté-lo no sapato chinés das consondncias, abri-lhe 0 leque, incorporando a asson4ncia (rima toante) e a quase-rima ou rima imperfeita. Esse efeito de modernidade, legitima-o a intentio semidtica mais funda do poema goethiano: como no ‘“Prélogo” benjaminiano, aqui a historia aparece “como franja colorida de uma simultaneidade crista- lina.”. SO nessa tratativa sincrénica se deixa restituir 0 modo de inten- cionalidade do original, oprimido ¢ obscurecido pelo cerimonial museolé- gico do versejar académico, ao qual se arrimam, como a um corrim4o obsequioso, as tradugdes convencionais. Por exemplo: na primeira fala de MefistOfeles, logo apés o “Coro dos Lémures”, rimo subSCRITO com esp{RITO, mETODOS com adEpTOS, nOvOS com SO (firmando na ténica /O/ e retrojetando a sibi- Jante). A coreografia do gato que apanha o rato no ar (como o demo o fazia com a alma prestes a escapar) é mantida por um curto-circuito sinté- tico, que mima o giro interjetivo do original (observem: passt auf/ schnellste Maus// Schnapps!/ .. fest. . .Klauen): Sonst mit dem letzten Atem fuhr sie aus, Ich passt ihr auf, und, wie die schnellste Maus, Schnapps! hielt ich sie in fest verschlossnen Klauen. » Quando a alma, no ultimo suspiro, Fugia, eu a pegava num regiro De unhas, rato prestes a escapar. (Observem: UltimU/sUspirU/fUgia// Unhas; sUspIRU/fUgla/regIRU; - as coliteragdes em /j/ e /g/: fuGia, peGava, reGiro; as aliteragées em /r/, Is/, Ip/ e /t/...) Comparem-se agora, atentando especialmente para o registro da velocidade sintatica (e como esta se deixa neutralizar por pala- vras-recheio e pelo vezo do hipérbato), as solugdes de Ornellas e¢ Segall: ORNELLAS: .. Em outras eras, C’o tiltimo suspiro a alma safa, Eu ’stava 2 espreita, e, qual ligeiro rato, Zas! seguro nas garras a apertava. SEGALL: Surgia, outrora, com o supremo alento, Vigiava-a, e, z4s! nas garras, a contento, Qual veloz rato, a via, aprisionada. 190 A tradugio é também uma persona através da qual fala a tradi¢ao. Nesse sentido, como a parddia, ela é também um “canto paralelo”, um diflogo nfo apenas com a voz do original, mas com outras vozes textuais. Assim, ela se deixa derivar no movimento plagiotrépico geral da litera- tura, de que falei no ensaio inicial, e que tanto afina com a idéia que tinha Goethe da apropriacgdo, pelo poeta, do patriménio literdrio extante. O nosso Odorico Mendes, “‘pai rococé” (Sousandrade) e patriarca da tra- dug4o criativa, interpolava, quando lhe parecia bem, em suas tradugdes homéricas, versos de Cam6es, Francisco Manoel de Melo, Antonio Fer- reira, Filinto Elisio. Na recriagfo do “Céro dos Lémures” (Grablegung/ Enterramento), usei deliberadamente de uma dic¢do cabralina, haurida no auto Vida e Morte Severina: (.. .DOIS HOMENS CARREGANDO UM DEFUNTO NUMA REDE. . .) — A quem estais carregando, irmfos das almas, embruthado nesta rede? dizei que eu saiba. - Aum defunto de nada, inmfo das almas, que hé muitas horas viaja a sua morada, G.) — Bem que poderd ajudar, irmfo das almas, é irmfo das almas quem ouve nossa chamada. — Eum de nés pode voltar, irmdo das almas, pode voltar daqui mesmo para sua casa. (..) — Mais sorte tem o defunto, irmao das almas, pois j4 nfo fara na volta a la. G.) — Partamos enquanto é noite, irma@o das almas, que é o melhor lencol.dos mortos noite fechada. No texto de Jo#o Cabral .a rima.é toante.e a-métrica alterna a redondilha maior. (metro de preferéncia popular, como adverte Manuel Bandeira) com um verso de. quatro sflabas, que ora apdia o sintagma vocativo, ora fecha o segmento dialogal. No Enterramento, vali-me de um decassilabo que se deixa prosodicamente dividir em hemistiquios (duas redondilhas menores, ou, ent¥o, uma redondilha menor e um verso de 4 silabas), pon- tuando essa escancfo, para maior realce, com rimas internas, toantes 191 sA/pA; nEgro/bEm; mEsA/cadEirA; no sexto verso, mobflIA rima ea e emprestAdA com pAgA no sétimo); as rimas terminais fo. toantes (a excegfo de mesquINHO/IINHO, consoante). O efeito de “toada”, em que os hemistiquios de certo modo respondem um ao outro, como partes de um contraponto frisico, nfo deixa de evocar o modelo do auto cabralino, que é também um canto finebre, em grande parte do seu andamento (lembre-se o passo: “Essa cova em que estas,/ com palmos medida,/ é a conta menor/ que tiraste em vida”), antes de resolver-se em alvissaras natalinas. Assim: LEMURE (solo): Quem fez esta casayespacgo mesquinho, A golpes de pé e de escavadeira? LEMURES (coro): Héspede negro, vestido de linho, Estas muito bem nesta casa estreita. LEMURE (solo): Ninguém pés a mesa na sala fria, Nenhuma cadeira na sala magra. LEMURES (coro): Mobflia emprestada, venceu a divida. Chegam os credores, quem é que paga? Ser4 interessante referir aqui que meu procedimento, neste ponto, é absolutamente goethiano: o poeta do Fausto, no canto dos Lémures, deixa“passar ecos da cangdo dos coveiros, do V Ato do Hamlet de Shakespeare: A pick-axe, and a spade, a spade, For and a shrouding-sheet: O, a pit of clay for to be made For such a guest is meet. A tradugdo, aqui, labora em palimpsesto*. Apés o “‘Céro dos Lémures” e a primeira fala de Mefist6feles, o texto assume aspectgs grotescos, “carnavalizados”, com a convocago da tropa demoniaca por Mefisto e as exortag6es e impropérios deste a seus subordinados e aos adversdrios (a milicia celeste). O problema de configuragdo da mensagem estética j4 se coloca no nivel das prdéprias Tubricas de cena. Goethe, valendo-se das propensdes do alemfo, cria expressivas palavras compostas, verdadeiros fonogramas gestuais, cari- caturas fonicas, Justus Georg Schottel ou Schottelius, em seu estudo da *- Em passagem anterior do “Céro dos Lémures”, Goethe j4 havia enxer- tado outros versos dos coveiros hamletianos. $6 que, em lugar de se valer da versio shakespeariana (que por sua vez reelaborava uma tradig&o oral mais antiga), o autor do Fausto serviu-sé de ‘uma variante, recolhida pelo Bispo Thomas Percy em suas Reliques of Ancient English Poetry (1765). Plagiotropia. . . 192 lingua alema de 1663, considerado a “surmma philologica do Barroco”, faz o elogio das palavras compostas, cuja cOpia era, segundo ele, um sinal de exceléncia do idioma alemdo, pelo cond#o que tém essas palavras de “evocar os movimentos da natureza, as mudancas que afetam © ser humano, — de pintar tudo, representar tudo, exprimir tudo, enfim, de fazer com que fale através de nés o mistério mais intimo da lingua” (cf. Poétes baroques allemands, antologia organizada e apresentada por Marc Petit, Paris, Maspero, 1977). Detive-me, em meu ensaio inicial, nos tragos barroquistas do IJ Fausto, e, em especial, no car4ter destas duas cenas finais,.que remontam 4 tradig4o dos autos medievais e do teatro sacro barroco (alids, segundo assinala uma ‘nota da edi¢fo Goldmann Klassiker, a indicagdo cénica do escancarar-se da “horrenda goela infernal” é uma explicita reminiscéncia dessa tradi¢do). Ndo poderia deixar, portanto, de reconfigurar em portugués as aglutinagdes neolégicas de Goethe. Tinha a meu favor, nesse sentido, uma pratica literaria que vem de Filinto Elisio e Odorico Mendes até Sousdndrade (este tiltimo, inclusive, diretamente influenciado, nas segdes infernais — “Tatuturema” e “O Inferno de Wall Street”, do Guesa, onde ocorrem muitas de suas mais surpreendentes composigdes vocabulares, pelos episédios goethianos das “Noites de Walpurgis” romantica e classica). Um exercicio precedente, levado a cabo com Augusto de Campos, a tradugdo da ‘“Marinha Bar- roca” (Barocke Marine) do bizarro e ~pré-expressionista Phantasus de Arno Holz (cf. “De Holz a Sousandrade”, Suplemento Literfrio de O Estado de S. Paulo, 17.11.1962), levou-me a recunhagem das. palavras compostas de Goethe, sempre que o procedimento me pareceu estetica- mente rent4vel em minha transcriag¢do. Exemplos: Phantastisch-flagelmannische Beschworungsgebarden. Conjurogesticulante como um fantésmeo cabega-de-tropa. Zu den Dickteufeln vom kurzen, graden Horne. Aos diabigordos, de chifre curto e grosso. Zu den Dirrteufeln vom langen, krammen Horne. Aos diabimagros, de chifre longo ¢ torto. Comparem-se, com os resultados assim obtidos (aos quais nfo faltou a mantenga do paralelismo sintagm4tico nos dois tltimos exemplos cita- dos), as vers6es mais convenciohais: ORNELLAS: Gestos fantasticos de esconjuro maneira dos serrafilas. Aos diabos bojudos de ponta curta e grossa. Aos diabos magros de ponta comprida e curva, SEGALL: Fantfsticos gestos giratérios de exorcismo. Dirigindo-se aos dem@nios rechonchudos, de chifres retos e curtos. Para os deménios de chifres longos e recurvados. 193 Outras reconfiguragdes, que visam a captar o vigor do “croquis” fono- -semantico do original: Von altem Teufelsschrot und -korne Da velhae revelha cepa do Cujo (ORNELLAS: “Senhores de infernal, antiga témpera”; SEGALL: “Senho- res, vos, do real, diabélico feitio”.) Eckzahne klaffen; dem Gewolb des Schlundes Eniquillt der Feuerstrom in Wut, Und in dem Siedequaln des Hintergrundes Seh ich die Flammenstadt in ewiger Glut. Aqui,. nesta pintura cénica da “horrenda goela infernal” (evocada por Goethe com tintas dantescas e miltonianas), além do desenho aliterante, inventei um neologismo verbal (flamirrompe/ irrompe em flamas, a maneira do sousandradino florchameja), para compensar e recuperar, por esse “efeito de choque” em relag&o aos haébitos de nossa lingua, a proli- feragdo dos compésitos no texto alemdo (Feuerstrom, Siedequalm, Hintergrund, Flammenstadt), favorecidos pela indole desse idioma. Com isto, cumpro o preceito de Rudolph Pannwitz, formulado em Krisis der europdischen Kultur (1917), tao valorizado a seguir por W. Benjamin, no seu ensaio de 1923 sobre a “tarefa do tradutor”, que venho citando: o invés de aportuguesar o alemfo, germanizo o portugués, deliberada- mente, para o fim de. alargar-lhe as virtualidades criativas Aobeerie-et, sin ainda, que flamIRRompe entra num acorde fénico, em que ressoam fURIa/ pURpUREa/URbe). Confira-se: Maxilas hiantes! O fogo em firia Flamirrompe da abébada da gorja. No mais fundo da fumaca purpirea A Urbe em chamas, qual eterna tocha. Comparem-se, a seguir, as tradug6es de Ornellas e de Segall: ORNELLAS: A dentuga roaz se lhe escancara; + Da abédbada do bératro rebenta De vivas chamas rabida corrente, E no ardente fundo 14 descubro, Em fogo eterno, a hirida cidade. SEGALL: A fauce se abre, enorme, € da abismal papal, Vejo jorrar caudais de fogo em firia, E no fundo, entre a brasa e o fumo que alevanta, A urbe ignea em perenal conflagrag4o purpurea. 194 Agora, este pictograma aliterante, cinético, da maré incendiada, que sobe até bater nos dentes da “enorme hiena” infernal: Die rote Brandung schlagt hervor bis and die Zahne Ressaca rubra rebate nos dentes. ~ Em Ornellas: ‘TE os dentes vem a ribida ardentia. Em Segall: Sobe, até a beira, a maré rubra, acesa. Note-se que, nos exemplos confrontados, a aplicagdo aliterativa de Ornellas é mais conseqiiente que a-de Segall, embora a ambos prejudi- que © arrevesamento inttil do hipérbato, de finalidade apenas métrica ou rimica, Os compésitos ajudam-a:avivar em portugués as caricaturas bufas dos legiondrios de Mefisto, que ficam assim esculpidos em palavras, como gargulas ou mostrengos na arquitetura g6tica: Nun, wanstige Schuften mit den Feuerbacken! Thr glitht so recht vom Hollenschwefel feist; Klotzartige, kurze, nie bewegte Nacken! © rubicundos, rubibochechudos Patifes, que o enxofre do inferno aquece! Pescocicurtos, macigos, parrudos. . . Neste caso, o que esté latente no original, por mais conforme a expec- tativa da lingua, € como que exponenciado na tradugfo. As solug6es mais convencionais serfo sempre, necessariamente, mais analiticas e explica- tivas: ORNELLAS: Vés, 6 pancas de rosto afogueado, Que to gordos luzis, fartos de enxofre, Colos grossos, iméveis, quais madeiros! SEGALL: Eh vés, das pangas de barril, ventas purpireas! Biltres dos r{gidos, macigos colos nus! Que ardeis em pez oleoso’e exalacGes sulfiireas. Um efeito “microlégico”, verdadeira célula fono-rftmico-seman- tica, que passa completamente despercebido as tradugdes medianeiras, & o que se trama no verso: 195 ! b Sie helten’s doch far Lug tend Trug und Troum. LUG/TRUG/TRaUm, . ~Reaiiaks tnacecaligaenpts Pensam que tudo logro, jogo, sonho. Qu: 10GrUfOGU/sOnhU (trés ‘dissilabos toantes, preparados por um . outro, préximo, tUdU, que replica posicionalmente a FUR). Em Omellas e Segall, nem resquicio: ! ORNELLAS: - Julgam que sois mentira, ilusZo, sonho. SEGALL: ; Pois julgam que ¢ ilusfo, tfo s6, mentira e sonho. Sutis. apelos fonicos desse tipo disseminam-se ao longo do texto goethia- no, Como nervuraé que enfibram seu tecido: +» Ste kommen gleisnerich, die Laffen' KOMMEN/LAFFEN. .. Traduzo, paronomasticamente: Vem de manso, os palermas, sem alarma. (Em Ornelas: “Vém com ar disfargado, os peralvilhos!”; em Segall: “De manso vém, beat6es!. . .””). Outro exemplo: Was duckt und zuckt ihr? ist das Hollenbrauch? Traduzo: .. Que tremor! Que temor! Nao sfo do Demo Estes modos!. . . DUCKT/ZUCKT... TREMOR/TEMOR (DEMO.. ./uckt/uckt... auch). ORNELLAS: Por que tremeis ¢ vos curvais? E uso Isso no inferno? SEGALL: Recuais? estremeceis? do inferno isso € uso, ent&o? Ou ainda: : An seinen Platz ein jeder Gauch! PLATZ/GAUCH. - - Traduzo: E vés, a postos! Firmes! Estafermos! 196 FIRMES/EStaFERMOS. . . ORNELLAS: .- No seu posto Cada fantasmal. . . SEGALL: Cada um a postos! sem hesitagdo! Um dos mais notdveis achados do texto goethiano é a dicg4o mali- ciosa, irénico-erdtica, das alusOes “perversas” do Demo senil aos andré- ginos adversarios angelicais. Assim: Es: ist das biibisch-madchenhafte Gestiimper Trino meloso de mogo-donzela. Joguei com o sintagma lexicalizado “‘moga-donzela” (que lembra um pouco © populdrio nordestino), introduzindo nele, com o masculino “mogo”, um desejado “efeito de estranhamento”. Nas vers6es conven- cionais, a sutileza do matiz se perde, ou engrossando sem necessidade: ORNELLAS: Os tais abortos sfo hermafroditas, ou diluindo-se, neutralizadamente: SEGALL: Medfocre fungdo, digna de adolescentes. Outro momento, em. que tudo decorre da ambiéncia fono-seméntica, pontuada, estrategicamente, por uma. sugestiva palavra composta (Schmeichelglut): : Die Kraft erlischt, dahin ist aller Mut! . Die Teufel wittern fremde Schmeichelglut. Temos: kraFT/TeuFel; tEUfEL/schmEIchEL... Na transcriagfo, obtive: Mas falha a forga, o animo amorti¢a! Atiga o Demo,um raro ardor-caricia. . . Em Ornellas: Quebra-se a forga, o 4nimo esmorece! Do ignoto fulgor, deménios tremem. Em Segall: Vai-se o vigor, todo o 4nimo despejam! Os demos 0 insinuante e estranho ardor farejam. 197 Mais adiante, em outro passo, novamente a palavra composta é a pedra- -de-toque: Als hatt ich euch schon tausendmal gesehn, So heimlich-katzchenhaft begierlich; Desde sempre parece que nos vemos, E uma atrag&o felino-angelical! Em Ornellas: Jd nos tivesse visto, to aceso Em desejo recéndito, felino. ” Em Segall: Como se amigos velhos fésseis ¢ bem-vindos; = Chegais sensuais, mansinhos, como gatos. \ “Por vezes, tenho que recorrer a uma locug4o préxima do impacto vivo da giria, para recapturar a forga do original. Assim, uso da expres- sfo “no bafo” (que evoca 0 hilito do “‘bebum”, o “bafo de onca”), num giro fraésico em que ela funciona como “na raga” (em “vencer na raca”), para manter o dinamismo de: Nun pustet, Pistriche! — Genung, genug! Vor eurem Broden bleicht der ganze Flug. ... Avante, cospe-brasas! Afugentai no bafo o bando de asas! (A, idéia de “larga-brasas” também estd presente, ligeiramente modificada pelo fato de Piistrich, de pusten = soprar, ser um {dolo arcaico da baixa ‘Alemanha, representado no ato de soprar fogo.) Em outra passagem, fiz uma deliberada “mistranslation”, vertendo Trépfen (Tropf = tolo) por “tropa”, e com isto mantendo 0 contato com 0. original no nivel: fonico (j4 que 0 apodo de “palermas”, “tolos”, “‘esta- fermos”,’ para os comandados de Mefisto, deixa-se recuperar em mais de um ponto no texto, suprindo-se como tal). Assim: O Fluch! o Schande solchen Tropfen! Madigfo! Minha tropa se dispersa! (Notar 0 apoio aliterativo em /m/ /p/e a coliteragZo /d/, /t/.)- Finalmente, um momento de alta tensfo, a fala de Mefist6feles, abrasado de amor, vencido pela atragdo calorosa do céu: Mir brennt der Kopf, das Herz, die Leber brennt . Ein aberteuflisch Element! 198 Queima-me a testa, o coragdo, o figado Um elemento sobredemontfaco! Aqui, na reconfiguragdo em portugués, tudo dependeu do corte estra- tégico que deixou em suspenso a palavra flgAdO e permitiu a rima toante com o surpreendente composto sobredemonfAcO, relevante inclusive por seu comprimento (ocupa cinco sflabras métricas). Comparem-se as solug6es de Ornellas e de Segall: ORNELLAS: Cabeca, coracdo, figado fervem-me! Elemento inda mais que diabélico! SEGALL: A fronte me arde, 0 peito, 0 corpo em fogo cruento, Um supra-demonfaco elemento! Este exemplario parece-me suficiente para indicar os problemas de tecriagfo dos aspectos grotescos ¢ irdnico-satiricos da dicgdo goethiana, na sua dimensfo “satanica” (como hd, no Inferno de Dante, um registro ou tonus “pedregoso”,. que remonta as Rime Petrose do autor da Commedia). Nas cenas finais do Fausto, esta elocugdo demoniaca entra em deliberado contraste com a “superpoesia” dos Coros Angélicos e com o tom de exaltagéo mistica e absor¢o contemplativa dos anacoretas e . doutores da igreja que intervém a seguir, acompanhando a elevacfo as alturas do “eidos” imortal do pactério redimido. A respeito dessa diccfo “contrastiva”, que poderiamos chamar “‘celestial”, escreve Charles E. Passage, em nota 4 Cena do “Enterramento”, por ele traduzida (Faust, I & II, Indianapolis/N. York, The Library of Liberal Arts, Bobbs-Merrill Co., 1965): “Todos os coros angélicos desta cena sdo elipticos até o ponto da incompreensibilidade. Ndo é seu escopo a transparéncia verbal; antes, eles se aproximam da qualidade do arrebatamento musical, claro ao cora¢do, nfo 4 mente.” Henri Lichtenberger (Le Second Faust, Paris, Aubier/Montaigne, s/data) tem opiniao semelhante: “Os coros de anjos desenvolvem-se numa espécie de melopéia de ritmio dactilico, cujo sen- tido é, por vezes, dificil de precisar.” J4 referi que Alexandre Arnoux, também tradutor do // Fausto, viu, nas estrofes dos anjos .semeadores de rosas, “a cintilagdo, a pureza diamantina, que, por anacronismo, seria preciso denominar mallarmeanas”. (Essas estrofes, diga-se de passagem, parecem inspiradas num momento jé “paradisfaco” da dicc4o dantesca: os anjos que desparzem lirios, cantando louvores em latim e revoando em tomo de Beatriz, quando esta aparecé no cortejo do Canto XXX do Purgatério). De minha parte, antes do que Mallarmé, vislumbro nessas fiorituras angélicas do velho Goethe como que um pré-violino verlainiano, capaz de embevecer os sentidos em raptos sonoros e cadéncias sinestésicas. Para evitar, de uma parte, a banalidade do hindrio, e, de outra, os exces- sos de melifluéncia, perigos a vista, a operacdo tradutora ndo poderia deixar 199 passar o trago irénico, de malabarismo artesanal, com que o poeta do Fausto desenha esses arabescos celestiais, entremeando-os, desde logo, a sua primeira dicgado “‘satanica”. Palavras compostas (““celialiados”, “tosiodorantes”, “‘celivoldteis”), replicando as que ocorrem com fre- qiiéncia no original, ajudam a criar, no texto em portugués, a atmosfera de “estranhamento” do senso pela sonoridade musical; por outro lado, © recorte da rima, precisamente estudado como um intaglio, apara os desbordamentos no limite justo, cortando rente a emoliéncia: Rosen, ihr blendenden Rosas brilhantes, Balsam versendendent Rosiodorantes! Flatternde, schwebende, Celivolateis Heimlich belebende; ~ Pétalas graceis! Zweigleinbefligelte, Buqués alados, Knospenentsiegelte, Entrefechados Eilet zu blihn. Bot6es de cor. Desabrochados, Frithling entspriesse, z Purpur und Grin; Desponte a flor. Tragt Paradiese O Primavera, Dem Ruhenden hin. Vem sem espera! Primfcias d’fris, Pirpurae viride! - O Parafso, Leva ao jazigo. A fim de manter a delicadeza e a precisao do volteio goethiano, desdobrei, para efeito r{tmico e rfmico, alguns versos do original (Zweigleinbeflii- gelte/Knospenentsiegelte), assim como introduzi uma variante fono-seman- tica em torno de “Primavera” (“Primicias d’iris”), justificada ainda por uma reminiscéncia da “Regio Aprazivel” (Anmutige Gegend), do_ ini- cio do Primeiro Ato deste JJ Fausto, onde ocorre uma antevisdo paradi- sfaca (Ein Paradies wird um mich her die Runde/ Em torno a mim se faz um Parafso) e desponta a imagem irisada do reflexo espelhante (farbiger Abglanz): Sousindrade, ‘Vises d’iris” (Dante, “come iri da iri/parea reflesso. ..”, Paradiso, XXXII). Tradugo: transtextualizagdo. Compa- rem-se as vers6es convencionais do mesmo Coro: ORNELLAS: SEGALL: Rosas, fulgurando, Do alto frutuosas, Balsamo exalando, Ritilas rosas! Que no ar pairais, Voantes, flutuantes, E vida excitais, Vivificantes, Com ramos alados Semeai, alfferas, E desabrochados Hastes frondiferas! BotGes, florescei! Verde e purptireo, “ Traga o murmirio Com pispura 6 veade Do hiélito verno, O verdo se arreie! ‘Aessa alma, 0 augtirio De cima o erapireo Do Eden etemo. Ao morto trazei! 200 Uma dicgfio que combina a leveza dos “sanglots longs” simbolistas com toques da luminosidade da escrita paradisiaca de Dante (“O luce etterna che sola in te sidi”) se propds como necesséria 4 recriagdo deste outro coral angélico: Blaten, die seligen, Flores que exultam, Flammen die frohlichen, Flamas que exaltam Liebe verbreiten sie, Dom celestial. Wonne bereiten sie, Dulcor se estende, Herz wie es mag. No amor esplende, Worte, die wahren, Coragées rende. Aether im Klaren, Palavras, veras. Ewig Scharen Clareza etérea. Ueberall Tag. Legides eternas, Dia total. As, solugGes que Ornellas e Segall deram para o mesmo trecho podem ser trazidas a confronto: ORNELLAS: SEGALL: Celestiais flores, Chamas balsfmeas, Jucundos fulgores, Pétalas flameas, Que amor espalhais, Béncdo influindo, Delicias nos dais Quais 0 peito anela. O éter imbuindo De auras de amor. Verbo de verdade, Do alto a voz vera Qual a claridade Da etérea esfera, Da etema cidade, Na aurea hoste gera Difunde luz bela. Brilho e luz aonde for. A comparagfo entre o Ultimo Goethe e o tltimo Beethoven tem ocorrido a mais de um estudioso. Arnold Hauser vé no estilo final de ambos uma dissolucfo “maneirista” do classicismo, uma expresso que se deixa atravessar por agudos contrastes, uma atrag4o por “formas fantas- ticas livres e improvisadas”. Thomas Mann, como ja referi, manifesta seu assombro reverente diante das “‘iltimas notas do Fausto”, distiladas pelo cérebro octogendrio de Goethe, e as qualifica de “misica das esferas”. Darei apenas mais dois exemplos do que chamarei “estilo celestial-ird- nico” do Ultimo Goethe: um deles, a prece da penitente, agora resgatada, Margarida, em favor de seu antigo amado, cujo “eidos” imortal Ihe vem ao encontro; o outro, o enigmatico, emblematico fragmento final, o “Chorus Mysticus”. Ambos estes momentos constituem-se em singulares desafigs a.operagdo transcriadora. UNA POENITENTIUM UNA POENITENTIUM (sonst Gretchen gennant. (outrora chamada Margarida, Sich anschmiegend:) achegando-se timida:) Neige, neige, Inclina, inclina, Du Ohnegleiche, O sem-igual, 201 Du Strahlenreiche, O luz-cristal, Dein Antilitz gnadig meinem Glick. Sobre meu jabilo tua face que ilumina. Der frih Geliebte, ; Nicht mehr Getrabte, —_ outrora, Er kommt zuriick. nara On Retorna agora. O texto goethiano é uma retomada, em _pauta jubilosa, da angustiada oragio de Margarida a imagem da “Mater Dolorosa”, no Fausto I (Zwinger). Para nossas sensibilidades p6s-expressionistas, nfo sera demais conceber estes versos escandidos musicalmente em algo como a volatil escalinata ‘de alturas do, Pierrot Lunaire schoenberguiano. De qualquer modo, compostos como Ohnegleiche, Strahlenreiche, estavam a deman- dar igual énfase nas sinteses expressivas em portugués, em lugar de bana- lizag6es explicativas. Sousindrade, mais uma vez, ofereceu-me sugestdes. Observem estes fragmentos da Harpa de Ouro (1889-1899) sousandradina: Oh, borboleta-girassol! Génio-amor! oh, luz-delirio! Oh, tanta luz! tanto arrebol (O riso-céus!) e o lume € 0 litio De teus cabelos de crisol! Dai, as minhas criag6es: “O sem-igual”/ “O luz-cristal”, ao invés de “Tu Incomparavel/Radiante, Adoravel” (como ficou. em Ornellas; Segall foge A dificuldade, omitindo os epitetos goethianos e substituindo-os por um cliché: “O Mae Divina”). Por outro lado, havia que responder ao jogo sutil de harmonicos que se tece em torno da vogal modificada (Umiaut) /i/ no original (glUck/frUh/getrUbte/zurUck). Procurei fazé-lo através de uma série vocdlica em /u/, que se deixa pontilhar nas palavras igUal/ 1Uz/jObilo/tUa/ilUmina/desanUviado (sem contar as velarizagdes do /o/ Atono terminal). O ditongo /ei/ de nEIge, que se projeta em glEIche e rEIche, encontra sua réplica no jogo inCLIna/CRIstaL do meu verso. Semanticamente, nao se podia perder a conotag4o cromtica de Getriibte, projefo, metafisica da Farbenlehre goethiana, no sentido do pecado que ‘conturba a alma como o turvo que anuvia a luz: anuviar, em port., signi- fica “‘eclipsar, escurecer, enoitar, toldar’”’ (cf. Diciondrio dos Sindnimos, Poético e de Epttetos de J. 1, Roquete e José da Fonseca, Paris/Lisboa, Aillaud e Bertrand, 1848); desanuviar, por seu turo, significa ao mesmo tempo “dissipar as nuvens” e “desassombrar, serenar” (Francisco Fernan- des, Diciondrio de Verbos e Regimes, Porto Alegre, Globo, 1942). Nem a solugdo de Omellas (“‘J4 nao contristado”), nem a de Segall (“Ja bem- -fadado”), foram capazes de manter a dissemia (a segunda com a agra- vante de optar por um rodeio interpretativo). Desdobrei 0 Er kommt zurlick em dois versos quadrissflabos e com isto pude enriquecer a estru- tura rimica da estrofe (amADO, desanuviADO, 1ADO; OutTRORA, ReTORnA, AgORA), sustentando o cantabile do original. Paulo Quintela 202 es (Goethe, Poemas, Universidade de Coimbra, 1949) tem para esta passa- gem do II Faiisto uma verso que me parece ainda mais explicativa e delon- gada que as de Ornellas e Segall, ambas comparativamente contidas: QUINTELA: Inclina, inclina, O Incomparével, Divina, 0 Gloriosa, 6 Radiosa, A graca desse olhar 4 minha feliz sorte! O Amado de outrora * Ei-lo regressa agora Nao turbado e liberto ja das leis da morte. ORNELLAS: SEGALL Oh. volve! volve! Inclina, inclina, Tu Incomparavel, 6 Mae Divina, Radiante, Adorével, O rosto para o meu doce exultar! A luz que me ilumina, O dom de teu perdfo infindo. O outrora amado, O outrora-amado Ja nfo contristado J4 bem-fadado, Vejo regressar. Voltou, vem vindo. Finalmente, a célebre visdo final do ‘“Eterno-Feminino”, invocada ¢ evocada pelo “Chorus Mysticus”: Alles Vergangliche O perecivel Ist nur ein Gleichnis; E apenas s{mile. Das Unzulangliche, O imperfectivel Hier wird’s Ereignis; Perfaz-se enfim. Das Unbeschreibliche, O nao-dizivel Hier ist’s getan; Culmina aqui. Das Ewig-Weibliche OEterno-Feminino Zieht uns hinan. Acena, céu-acima. Em Ornellas e Segall encontramos: ORNELLAS: SEGALL: Tudo 0 que morte e passa Tudo o que é efémero é somente E sfmbolo somente; Preexisténcia; O que se nfo atinge, O Humano-Térreo-Insuficiente Aqui temos presente; Aqui é esséncia; O mesmo indescritivel O Transcendente-Indefinivel Se realiza aqui; E fato aqui; O feminino eterno O Feminil-Imperecfvel Atrai-nos para si. Nos ala a si. Trabalhei micrologicamente nesta estrofe terminal, que parece rema- tar 0 poema como uma dessas “ctipolas aleg6ricas” que Walter Benjamin estudou na emblematica barroca, onde o devir se simultanefza em ambi- gilidade hierogrimica. Charles E, Passage, tradutor do Fausto para 0 inglés, 203 confessou-se impotente diante de suas “rirnas intrincadamente enredadas”, que nfo conseguiu transpor sendo timidamente para a sua lingua: All transitory Things represent; Inadequates here Become event, dneffables here, Accomplishment; The Eternal-Feminine Draws us onward. & Philip Wayne, no seu Goethe/Faust (Part Two) da série “Penguin Classics”, nfo obteve melhor éxito, embora tenha imprimido mais fluéncia 4 sua versdo: All things corruptible Are but a parable; Earth’s insufficiency Here finds fulfilment; Here the ineffable Wins life through love; Eternal Womanhood Leads us above. Também nfo me parecem satisfat6rias as tentativas de Henri Lichtenberger e Arnoux/Biemel em francés: H. LICHTENBERGER: ARNOUX/BIEMEL: Tout ce qui passe Le périssable N’est que symbole; N’est que reflet; L'mparfait Liinachevé Ici trouve l’achévement; Ici s’achéve; L'ineffable L'inexprimable Ici devient acte; Se réalise; L’Etemel-Féminin L’Eternel Féminin Nous entraine en haut. Nous attire 1a-haut. Pierre Garnier (Goethe, Paris, Pierre Seghers, 1960) dé-nos uma variante ‘de ambos, algo mais lograda, pelo menos quanto as rimas terminais: Tout ce qui passe N’est que symbole L'Inachevé ici S’achéve — L'Ineffable ici S’accomplit — L'Eternel-Féminin Nous attire et nous éléve. 204 Decepcionante a vers4o de Cansinos Assens (que se completa depois, sen- tindo-se vacilar, por uma longa nota exegética): Todo lo efimero s{mbolo es s6lo; es aqui un hecho Jo inasequible; aqui se cumple Jo indescriptible; Io eterno femenino siempre arriba con potente acicate nos aguija. Um comentador alemfo da tradug4o de Ornellas, Carl von Reinhardstoet- tner, escrevendo em 1887, elogiou-lhe a versio do “Coro Mistico”, nos seguintes termos (que cito através de Paulo Quintela): “Quando, por exemplo, se criticou aqui e acol4 a excelente tradugdo de Ornellas do coro mistico e se achou a bela interpretagao do Unbeschreibliches (“o indescritivel’”) e do Ewig Weibliches (“‘o feminino eterno atrai-nos para si”) algo ousada ou no suficientemente clara, nado se atentou com isto em que estes passos também em alemfo nfo est&o dados em largueza, € que também nés, os naturais alemaes, temos de agradecer a compreen- sfo mais profunda de tantos versos ao engenho dos nossos intérpretes.”” E, de fato, se a tradugdo de Ornellas na passagem nfo é radical, nem pos- sui as exceléncias que lhe gaba o critico, sobrepuja, por sua maior con- cisfo, 4 de Segall, que optou por injustificdveis explicagdes (glosas) filo- s6ficas (“O Humano-Térreo-Insuficiente” por Das Unzuldngliche; “O Transcendente-Indefinivel” por Das Unbeschreibliche), onde n&o cabe- tia senfo a sucintez do vocdbulo justo, dentro de uma rigorosa pauta fono-semantica. Também ‘O feminino eterno/Atrai-nos para si” (Omellas) é visivelmente superior, do ponto de vista da fluéncia e da escolha lexical, - a “O Feminil-Imperecivel/Nos ala a si” (Segall), que soa forgado e rebuscado. A uma leitura partitural, o segredo da sensagdo de cabalidade (algo “cabalfstica”) que nos d4 a estrofe goethiana esta na sutil alquimia fonica que enleia o som ao sentido, tirando partido também da estrutura para- lelistica (das “figuras ritmico-sintéticas”, como as denominava Ossip Brik), das estudadas analogias gramaticais (“poesia da gramética”, Jakob- son). Comecemos pelo esquerna de rimas. Trata-se de uma oitava em rimas cruzadas, formada pela justaposig¢do de duas quadras: ABAB + CDCD. - As rimas terminais do 19 (vergANGLICHE) e 39 (unzulANGLICHE) verso deixam-se projetar, residualmente, no 59 e no 79 (unbeschreibLICHE/ weibLICHE); por seu turno, 0 ditongo /ei/ das palavras em rima nos versos 2 e 4 (glElIchnis/erElgnis) incrusta-se também no corpo rimico das pala- vras terminais dos versos 5 e 7 (unbeschrEIbliche/wElbliche). A estru- tura fono-sintagmatica Das Un- (constituida pelo artigo neutro e pelo 205 prefixo. de negacdo) repete-se, anaforicamente, nos versos 3 e 5, proje- tando-se dissimuladamente nos versos 7 e 8 (Das ocorre no primeiro; no segundo, a forma pronominal uns substitui 0 prefixo). Hier wird’s (verso 4) se deixa quase paralelizar por Hier ist’s (verso 6). Hwig/Zieht, transpassa- dos nos versos 7 e 8, deixam-se associar por uma leve sombra fénica. A sibilaco terminal de Alles (verso 1) nfo deixa de recorrer em Ist (2), wird’s (4) e ist’s (6), com particular relevancia posicional nestes pontos. No 29 verso, ein embute-se logo a seguir em glEIchnis, reverberando nas pala- vras em rima dos versos 4(B) e 5-7(CC). Finalmente, a rima em AN dos versos pares da segunda quadra da oitava (6-getAN; 8-hinAN) deixa-se levemente preparar pela vogal modificada e nasalizada de vergANgliche (1) e unzulANgliche (3), isto sem falar na disseminada aliteragéo em /g/, que ap6ia a ocorréncia de GEtan no 69 verso. Uma correspondéncia visual para esta bordadura fono-sintdtica pode-se encontrar. nos rufos e yolutas do texto manuscrito dessa oitava, que se pode admirar, em auté- grafo, na caligrafia chancelar do velho Goethe. . . Em minha transcriagfo, seguindo a lei da compensacdo, procurei configurar uma trama analogamente complicada, sem perder o laconismo “da escrita brasondria. Tomei liberdades quanto ao esquema de rimas e quanto 4 obrigatoriedade das finais consoantes, para mais eficaz rendi- mento, estético em portugués. Assim, perec[VEL (1) rima com imper- fectlVEL (3) ¢ com dizfVEL (5); mas recupera também, por aproxima- ¢4o — CIVEL/SimILE — a palavra terminal do verso 2 (que, deste modo, perpassa nos demais versos em rima, 3 ¢ 5): a diversidade na unidade cria © desejado efeito de surpresa na coeréncia. A vogal tonica /{/ domina as ‘palavras em rima de todos os versos da oitava, nasalizando-se porém nos versos 4, 7 e 8 (enfIM, feminINo, aclma): a quase-rima quebra a monotonia da repetigao, provocando o outro no mesmo. Os difonos PE, ER e¢ 0 trifono PER disseminam-se através do corpo estréfico: PERecivel, aPEnas, imPERfectivel, PERfaz-se, etERNO. Uma leitura partitural des- velar4 o efeito paronomistico de anagramatizagao que reabsorve a pala- vra PERECIVEL nos versos seguintes, transformando-a: PERECIVEL aPEnaS SImILE imPERfEctlvEL PERfaZ-SE (entre IMPERFECTIVEL e PERFAZ-SE ha uma desejada parequese, que explicita, para relevo da oposi¢#o semantica oximoresca, a origindria afi- nidade etimolégica). No que diz respeito aos paralelismos sintagmaticos, regulei-me pelo principio da economia mais absoluta, respondendo ao original com pra- ticamente o mesmo niimero de palavras (ou menos) em cada verso: Os 206 versos 1, 3 e 5 tém estrutura paralela, consistindo.num sintagma formado por artigo definido + substantivo de derivado verbal, sufixado por -vel: O perecivel Os versos 4 e 6 seguem um Gnico modelo: verbo (34 pessoa, pres. indi- cativo) + advérbio. Teria sido muito facil para mim obter neste caso uma rima perfeita, consoante; bastaria substituir aqui por assim (rimando com enfim); evitei esta solugo por ser sonoramente Obvia e pobre e por abrir mao da fora indicial, locativa, do aqui/hier. Os dois dltimos. versos — fecho-de-abébada da oitava — mereceram-me uma particular atengdo. Na vertical, busquei um acorde de ACENA (8) com ApENAS (2). FEMININo (7) rima em retrogrado com ENFIM (4), encontrando ainda apoios em culMIna (6) e aclMa (8); estas duas ultimas palavras, ademais, timam de través, na posig4o inicial e final dos respectivos versos. Do ponto de vista semantico, a tinica escolha a justificar em espe- cial parece-me a de “O ndo-dizivel” por Das Unbeschreibliche (‘‘o n&o- -escritivel”, “co indescritivel”, ‘‘o ndo-inscrevivel”, “‘o inexpressdvel”). Encontrei tradugées como ineffable, indescribable (em ingl.); ineffable, inexprimable (em fr.); indescriptible (em esp.); em portugués, temos: ORNELAS: O mesmo indescritivel SEGALL: O Transcendente-Indefinivel. Charles B. Passage interpreta: “Transition from earthly form into eternal form is accomplished, though no words are adequate to describe it.” Adotei.um padrdo métrico de quatro silabas, para os 6 primeiros versos, mudando para hexassilabos nos dois tiltimos. “O ndo-dizivel” é um qua- drissflabo. Semanticamente, é o-mesmo que “‘inefavel” (‘‘o que nfo se consegue exprimir com palavras”, do verbo gr. phao = falar). Foge do cliché léxico “‘indizivel”, compondo-se com o advérbio de negacfo ante- posto. Na misica da estrofe, é mais fluente do que um rebarbativo “‘o . inescritivel” e menos banal que “‘o indescritivel” (gasto em composi¢des escolares tipo “espetaculo indescritivel”...). Derrida nos desvelou que a fala também participa da grafia, que antes da linguagem falada e da escrita usual ocorre uma escritura primeira ou “arquiescritura”, “movimento da diferenca”, “‘arqui-sintese irredutivel”. Tanto o “indescritivel” (‘ines- critivel”) como o “ndo-dizivel” (“inefavel”) tém portanto a ver com a imaginag4o de um logos que nfo possa ser grafado. . . 207 .).:.Céu-acima (numa cadeia paronomistica iniciada por “‘Acena...”, transformismo fénico de “apenas”, do 29 verso) é uma invencdo mol- dada.em “rio-acima”, para epilogar, numa abreviatura sintagmatica, o admiravel movimento fono-sintatico de Zieht uns hinan (zIEHt uNs HINan). . O. Anjo. da Tradugio — AGESILAUS SANTANDER -, em sua Hybris, é lampad6foro —, portador de luz, como a Angoisse mallarmeana. Se cai, nfo capitula: cai “folgoreggiando”. Nele:talvez se emblematize © caso extremo daquela “Anxiety of Influence” que Harold Bloom divi- sou como caracteristica do artista moderno, e cujas modalidades estudou sob. um leque de nomes neolégicos (clinamen, tessera; kenosis, daemo- nization, askesis, apophrades), sem dar-se conta de que a traducdo/trans- criago 6 uma de suas figuras exponenciais. A negligéncia de Pound no paideuma de Bloom explica, de certo modo, este seu desconhecimento da especificidade da traducdo enquanto inscric¢fo da diferenca no mesmo. Ao definir: “...a poem is communication deliberately twisted askew, turned about. It is mistranslation of its precursors”, Bloom, inevita- velmente, opde escritura a tradugdo, esquecido de que, por um lado, como frisa Valéry (‘Variations sur les Bucoliques”), “écrire quoi que ce soit (...), est un travail de traduction exactement comparable a celui qui opére la transmutation d’un texte d’une langue dans une autre”; por outro, indiferente A evidéncia subversiva de que toda tradugdo criativa é j4 também um caso deliberado de mistranslation usurpadora. Por essa deflexfo, a tradugdo radical libera a forma semidtica oculta no original, no mesmo gesto em que se dessolidariza, aparentemente, de sua super- ficie comunicativa. Ezra Pound, no primeiro dos Cantares, urdido palimpsesticamente sobre um tecido migratério de traduges, praticou um rito de propicia- ¢4o: a Nékuia, a oferenda de sangue a Tirésias, para 0 vaticinio: ““Odysseus/ Shalt return. (...) over dark seas” (ODySSEUS/Over Dark SEAS, — 0 nome-persona do poeta viajante, do translator, anagramatizado — tradu- zido fonicamente — no “mar escuro” do retorno...). Hugh Kenner (que nfo percebeu este jogo onomastico) viu com argicia nesse Canto inau- gural, na oblagdo de sangue, uma “nitida metéfora para a tradug4o”: “Odysseus goes down to where the world’s whole past lives, and that the shades may speak, brings them blood: a neat metaphor for transla- tion...” (The Pound Era). Tradug&o como transfusdo. De sangue. Com um dente de ironia poderiamos falar em vampirizac¢do, pensando agora no nutrimento do tradutor. Quando se pde a questdo da tradig#o, muitas vezes se esquece 0 fato essencial de que esta ndo se move apenas pela homologacfo: seu motor, freqiientemente, € a ruptura, a quebra, a descontinuidade, a des- sacralizagfo pela leitura ao revés. “Webern ndo era previsivel: para poder 208 viver utilmente apés ele, nfo se poder4 continud-lo; é preciso esquarte- jélo”, escreveu o jovem Pierre Boulez, — “Boulez, le violent”, que se converteria com o tempo, nfo por acaso, ao lado de sua contribuicfo inovadora como compositor de vanguarda, num surpreendente e radical regente-“‘transcriador” da mfsica do passado, por ele — possuidor, segundo se diz, de uma “escuta absoluta” — sempre ouvida cont ouvidos novos. . . “A importancia da tradugdo icdnica” — afirma Padlo Valesio, coincidindo assim no uso de um conceito que me acudiu desde 1962, quando falei do “isomorfismo” e da ‘“‘iconicidade” da traducfo criativa” — “esti no - fato de que, ao radicalizar algo que est4 presente, em certa medida, em toda traducdo, ela desmistifica a ideologia da fidelidade”. (“The virtues of traducement: sketch of a theory of translation”, Semiotica, 18:1, Haia, Mouton, 1976). Boulez incrustou sua reflexdo “antropofigica” sobre Webern num artigo de homenagem a Bach (“Moments de J.-S. Bach, Contrepoints, 1951); Webern, em seu momento, homenageara Bach tra- duzindo-lhe desassombradamente a grande fuga a seis vozes da Oferenda Musical em melodia-de-timbres. . . Flamejada pelo rastro coruscante de seu Anjo instigador, a tra- dugfo criativa, possufda de demonismo, ndo é piedosa nem memorial: ela intenta, no limite, a rasura da origem: a obliteragdo do original. A essa desmeméria parricida chamarei “transluciferaga4o”. Sao Paulo, abril/junho de 1980 209

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