You are on page 1of 43
30 De a crit <4 Meninos e meninas, Eu me chamo Rubem Alves. Sou um contador de es- ias, Essa que voce vai ler, Pindguda dv avessas, fui eu quem escreveu © sou tu quem estd contando, Agora imagine que o livra é um palco de teatro. Nesse paleo cade ¢ inventado, tude ¢ de mentirinha... BE nesse munda de mentirinha que as personagens existem, também de mentirinha. Por exemplo: pedi o Ccbolinha e os pais dele emprestados an Mauricio de Sousa para representar de mentiritha personagens que invencei. & sa no munelo do fax de conta, nesse leatre que éo liven, que eles podem ser outros. Na vida real. os avores, o Cebolinha ¢ seus pais, continuam a ser quem eles sic. Assim, agora que voce vai comegar a leitura, imagine que esta num teatro. Abrem-se as cortinas.., Um mundo de faz de conta vai aparecer... Por que escrevi esta estéria Seu apaixonado por quebra-cabecas. Meu primeiro. qucbra-cabeca... eu devia ter 7 anos. Estava doente, decama. Oembrulho chegou pelo correio, presente de aniversario de ixa, uma cena colurida: a oficina uma tia. Na tampa da c: do Gepeto, o aquariv com o peixinho Cleo, o gato Figaro 9 Grilo Falante com 9 guarda-chuva aberto, os relégios de cuco na parede eo Gepeto tocando sanfona e dangando de felicidade — Pindquio, o bonequinhe de madeira que fizera, estava vive. Minha familia inceira se reuniu, a noite, para morita-lo. Foi uma alegria, Nunca me esrjueci. Vaz mais de sesscnta anos... Adulto, dei-me conta de que havia coisas crradas em muitas estérias fancis, Por exemple: a moral de Os trés porquinias & que os misicos, os artistas, so preguigasos © irresponsaveis. © herdi ¢ 0 pores Pratica, sempre sisudo © preocupado, Trata-se de uma variacSo sobre o tema da fibula 4 cigera ¢ a formige. Isso me provoceu a exercver outra versio da mesma estdr eos herdis sao os artistas. Aestoria do Pindquio, me parece, ensina que as crian- gas nascem de pau e s6 depois de passar pela escola viram eriancas de verdade. Se niio passarem pela escola, correm © risen de se tormar jumentinhos, corn rabo e orelhas de hurry, além de «urrar. Pensei ento em escrever uma estoria ao contrario: um uda na menino que nasce de carne e oss e, A medida que es escola, vai virando outra coisa... Foi assim que esta estoria nasceu. Ela é dedicada as criangas, mas sao os pais ¢ os pro- fassores que devem Lé-la. 4 vee E a Fada Azul, da cstrela onde morava, viu Pinéquio ¢ com suas asas de borboleta descen até cle, ¢ com sua varinha magica tocou sua cabeca de pau. Um arco-iris apareceu no céu e — pim-pam-pum! — Pinéquio foi transfor- mado num menino de carne ¢ asso, Felipe, deitado, ouvia a estoria que seu pai The contava. Acontecia toda noite: o pai The contava estérias. Era um bom pai, Ble amava Melipe. ‘Voce entendeu a estéria, Felipe” — perguntiou, © mening nao disse nada, Quvira a estéria, gostara, mas nao pensara sobre ela, Seu pai explicou: ~ Pindéquio era um bonequinho de madeira. Nao era um mening de verdade. Para se tornar-um menino de ver- dade, ele teria de ir a escola, Pindquio fugiu da escola, prefcriv brincar, Ad lhe cresceram orclhas ¢ rabo de burra, Quem nae vai a escola fica burro. Ainda bem que a Bada i Azul veio em seu auxilic, Se nfo fosse por ela, cle teria fieado burro pelo resto da vida. Passaria a vida puxando carrogas. E preciso ir a escola para nao fear burro, para ser gente de verdade... Qs olhos de Felipe jA estavam fechande de sone, Seu pai Ihe dew um beijo, ¢ o menino adormeceu repetindo o que o pai lhe dissera: “E preciso ir & escola para nao ficar burro, para ser gente de yerdade”, E pensou: fui @ escola. Ainda nao sou gente de verdade. inda nia Li ador- rotecu. Eo leve ur pesadela terrivel. Sonmhou que era um burrinho puxando uma carreca... Quando Felipe nasceu, foi uma alegria. Seu pai ¢ sua mae logo comecaram a fazer planos para o seu futuro. ‘Qs pais sempre fazem planos para o futuro dog filhos. Sonhavam que Felipe seria muito inteligente, muito bom aluno, tiraria notas boas na escola, passaria no vestibular, entraria na universidade © seria, quem sabe, um cirurgifio famose, ou um grande cientista, ou um bem-sucedicdo administrador de empresits! 12 Felipe nada sabia sobre os planos ¢ sonhos dos pais para o seu futuro. Nem sabia o que era futuro. As criangas tm no presente. © presente do Felipe cra muita bom! ‘0 mundo é muito divertido, Ha tanta coisa para ver, tanta coisa para aprender! Felipe era muito curioso, Guriosidade é uma coceira que da dentro da cabega, no lugar onde moram os pensamentos, A curiosidade aparece quanclo os athos comegam a faeer perguntas, Os olhos das criancas 840 sempre curioses, Elas querem ver o que esta escondicde, querem saber o que esta por detras das coisas. IZ “Par que as coisas sdo come sao? Gomo sao feitas? Como funcionam? Para que servem?” © jeito cra perguntar aos adultos, Eles deviam saber, Quem inventou as palavras?” “Por que é que canleirn sc chama canteiru? Deveria cra se chamar planteiro!” “Por que é que as pombinhas, ao andar, mexem o pescogo para frente e para tras?” “Cavala poderia sc chamar gato, © gato se chamar cavalo? Quem foi que disse que o nome do cavalo deveria ser cavalo?” Ao ver o mar pela primeira vez, ficon quicto, olhande, alhando. “Papai, o que é que o mar faz quando a gente vai dormir?” “A dna comeya gorda, redanda, ¢ vai diminuinds até desaparecer. Para onde vai a lua quando ela desaparece?” “Por que a dgua, quando ferve, amolece a cenoura e endurece © ova? “Quem inventou o fislore? Por que é que ele acende? “Por que a cén é azul e no amarelo? “Por que a jarra de 4gua com gelo fica suacla?” “Por que a mio fica enrugada quando fica muite tern- po na agua?” "Se na Arca de Noe b via ongas, leGes e tigres, por que cles nde comeram as ovelhas c us veacdinhos?” if “Por que a chuva cai cm gotas e nao tudo de uma vexe™ “Quando a gente morre, a gente fica com saudades?” Uma vez, tumando sopa, perguntou ac pai: — Onde esta Deus? O pai respondeu: ~ Em todo higar, Felipe concluiu: ~ Entao ele esta nesta sopa. Deus tem gosto de sopa... Por vezes cle nao se contentava cm perguntar ~ mesmo porqu postas para suas pergunitas. Aos 6 anos, ficou muito curioso na maioria das vezes, os grandes mao tinham res- com orclégio de sua mae. A coceira chamada curiosidade carnecou a cogar os pensamenios de Velipe. E ele se per “Og gunto faz os ponteiros andarem cada um com uma velocidade diferente?” Pois no resistin: escondido, desmontou 6 relégio, pensando que conseguiria montar de nove, Nia conseguin. A mie dele ficou brava, Mas so wm pouguinhs,.. Quande nem o pai nem a mae sabiarn as respostas para as perguntas do menino, eles diziam: “Na escola vocé aprendera..” E Fe ipe dormia feliz, pensando: “A escola deve ser um lugar maravilhoso! La os professores respon derdo minhas perguntas...” Mas, de todas as coisas do mundo, a que mais fasci- nava Felipe cram os passaros. Gostava de vé-lus em voo. ‘Tinha inveja deles, Gostaria de poder voar, voar... Punha comida para eles no quintal, Queria saber scus nomes, Na livraria, procurava sempre livros sobre passaros, Na tele- visio, procurava programas que contassem a vida dos pds- saros. Fez um album de passaros, colando nas folhas de um carlerno gravuras que reeorlava de revistas. Sua maior felicidade era descobrir que um pdassaro fizera um ninho em seu jardim! Ficou encantado quando seu pai lhe contou ig o mito de fearo, o homem que quis voar camo os passa- ros. Ah! Como seria maravilhoso voar coma os passaros! Deitava-se na grama, de barriga para o ar, ¢ feava con- templando 68 urubus, voandlo 14 no alto sem bater as asas, Seu pai lhe mostrou pinturas de um pintor que gostava de L passaros, Chagall. Num de seus quadros, tudo voav. goslava que sua mac lhe contasse a estoria de so Francisco de Assis, o santo que conversava corm os passaros, Tambsém ele gostaria de saber a linguagem dos passaros, A alma de Felipe estava cheia de passaros. Um dia seu pai lhe perguntou: — © que é que vocé quer ser quando crescer? Felipe achou a pergunta muito estranha e respondeu: — Quande cu crescer, quero continuar a ser o que sou agora: jpe! Nao quero ser outra pessoa! Nao quero mudar de nome! © pai sorriu. FE claro que voeé vai continuar a ser Felipe. Mas, quando crescemos, ficamos diferentes. Agora voce é crianga, AAs eriangay brincam. Quando vocé erescer, deixard de ser criangae se transformara em adulto. Os adultos trabalham. Assim é a vida. E preciso trabalhar para ganhar dinheiro, para comprar uma casa, casar, ter filhos. E por isso que, quande alguém Ihes pergunta “O que voce & os adultos respondem: “Sou professor, médico, advogado, engenheira, mecanico,..” Os adultos so aquilo que fizem para ganhar dimheire, Essa € a vazdo por que voc cm breve vai entrar na escola, As esrolas existem para transformar criangas que brincam em adultos que trabalham. E. preciso entrar no mercado de trabalho... Felipe queria ser adulto, Os adultos sfo grandes. Al- cancam coisas que cle, baixinho, nao alcangava. Sfo fortes. Sabem tantas coisas! Saber ler! B fazer o que querem! ~ E como é que as escolas transfurman eriangas em adulios? Te © pai explicou: ~ BE. assim: vocé entra para a escola no primeiro ano, LA yao Ihe ensinar muitas coisas. Se vocé as aprender © tirar lioas nolas, passara para o se@unde ano. ho segundo ano, vio The ensinar muilas nuteas coisas. Se voce as aprender ¢ tirar boas notas, passara para o lerceiro ano. E assim vocé wai aprendende coisas, tirando boas notas e passando de ano, até chegar o momento mais importante, a momento em que vocé deverit esculher u que vai ser quande adulto. fa hora de entrar na universidade, Muilos querem en- trar nas universidades. Mas clas nao tém lugar para todos. Ai nao basta tirar boas notas. Vocé tera que Uirar as me- 20 thores notas para entrar na universidade. Os que nfio tiram as melhores nolas nfo entram, Se vert entrar, no primeire ano veo lhe en ar 28 COisas ncccsiarias para ter a profissia que voeé escolheu. Se voct as aprender ¢ tirar bows notas, passara para o segundo ano. No segundo ane, vac lhe ensi- har muilas outras coisas, ¢ assirn vid acontecendo até terimi- nar o ultimo anu da universidade. Ai ha urna grande fe chamada formatura. Na formatura vocé recebera um diplo- ma, Diploma é urn papel grande, bonito, en que se encontra escrito o nome da sua profisséo. Eo diploma que diz o que vocé & Os adultos so a profissiio que exercem. Ai voce vai trabalhar, ganhar dinheiro, ter filhes, que vao para-a escola, onde lhes ensimarSo muilas coisas... Felipe nfo estava entendenda, 2t — © que sic notas, papai? — perguntou. — Notas io niimeros que os professores colocam no bo- letim, mimeros que dizem quarico voce aprenden. ipe nde enlendeu nem o que cram notas nem o que cra bolctim. Ele nao entendia come é¢ que um nimero podia dizer quante uma pessoa sabe. Ele sabia tantas enisas, © para saber nfo precisava que lhe dessem niimeros. Sabia porque sabia.. Eu sei tanias coisas! Sel o nome dos passarinhos, sei jJogar gude, sei nadar, sei empinar pipa, sci fazer Hmonada, sei subir em drvore, sei montar quebra-cabegs, sei deseuscar laranja, sci dar lage no meu ténis; sei convar estérias, sci regar ojardim... Acho que vou ter boas notas no meu boletim. © pai feou atrapalhado. ~ Na escola néo vao lhe dar notas por essas coisas que voeré sabe, Para dar notas, os proféssores fazem o que se chama de provas, com uma série de perguntas sobre aquilo que eles ensinaran, Os alunos devem responder, ~ Quer dizer que o que eu aprendi fora da escola nao vale nada 1 dentro? Se eu fizer uma pergunta a um proles- sor ¢ ele ndo souber a resposta, cu posso Jhe dar uma nota? Ha boletins em que os alunos dio novas para os professares? O que ¢ que os protessores fuzem com as notas? — continuon Felipe. — Berm, é assim... Se suas notas forem ruins, voce ndiv passa de ano. Se lorem boas, vocé passa. 2 — (nal é a nota para nan pasa — Uma nota menor que — Quer dizer que, eu tiver nota 4, tenbo de repetir a ano inteiro, mas s¢ eu tiver 5 passo de ano... Que diferenca taz so um! — Sin, — Mas, papai, isso esta ceria? A dilerenga de um ponte na nota pode ter o mesmo valor que um ano de vida? © pai no soube @ que responder, mas Felipe nao lhe dew uma neta bais O menine ficou pensativo ¢ voltou a pensar subre sua profisstio. Acho que, quando en crescer, quero cuidar de piis- saros, coma ao Francisco. Cuidadores de passaros ganham muito dinheira? O pai de Felipe sorriu ¢ nao disse mais nada. Compreen- deu que ele ainda eva criangu, Ainda nao havia aprendide as regras do mundo adulio. Afinal de contas, ainca nau hawia entrade na escola, na escola que as criangas deixam de ser criangas que brincam para ser adultos que podem entrar para o mercado de trabalho. Cuidar de passarinhos nao é uma atividade produtiv . Nao se faz vestibular para ser cui- dador de passarinhos... Aquela noite, Felipe teve dificuldade de dormir. Ficou pensande: “lin quero deixar de ser crianga. ‘Quero me trans- formar em adulto, Quero entrar na escola. Tenho que tGirar boas notas. Tenho que tirar as melhores nolas © entrar na universidade. Quero ter um diploma ern que esteja escrito ‘cuidador de passaros””. Felipe dormiu e teve um linde sonhe. Sonhou com a escola. Sonhou que os professores cram pdssaras que en- sinavam a voar. Cada passaro-professor ensinava a voar de um jeito, Ha muitos jeitos de woar: o jeita dos bejja-flores, 0 Jeito dos urubus, 9 jeito das pombinhas, o jeito dos sabids... Havia piassaros-proftssores que ensinavam a linguagem des passares, ¢ outres que ensinavam a cantar come péssaros Ele ¢ os amigos eram aprendizes de prssaros. Finalmenc: chegou o dia em que Felipe iria para a cscola. Ele estava feliz. Na escola havia muitas criancgas brincando no patio. Felipe brincou cam elas e gostou. Mas de repente soou uma campainha. As criangas pararam de brincar, Os professores ¢ as protessoras as separaram env pequenos grupos © as organizaram em filas, Havia a fila dos perjuenos, na qual ele fui culocado, # fila dos um pouco majores, a fla des maiores ainda ¢ a fila dos grandes, Ai os res conduziram as filas para dentre da cscola. 26 Felipe nunca luwia visto uma casa como aquela, Eva um longe corredor, com salas dos dois laces. Cada fila en- trou numa sala, ¢ as portas se fecharam, lisse primeire dia foi urna festa, Os professores vieram, cada um numa hora diferente, todos sorricentes, Falaram sobre as coisas que ensinuriam ¢ as criancas teriam de sa- ber. Tociva sempre uma campainha para um professor ir embora cum outro entrar, a7 Nessa noite, Felipe teve um sonho esquisito. Sonhou que era um passarinho. Voava numa floresta. Com cle voavam ros, cada um cantando um canto diferente: centenas de } sabids, pintussileos, canarios, rolinhas, curiés, sanhacos, tizius, tico-ticos. De repente, surgin um corve negro que abriu o bieo, ¢ dele sain wm harulhe igualvinhe 4 campainha da escola. Todos os pissaros voaram para gaiolas separadas, onde ficaram presos. Ai o corvo falou com uma yor aspera: Eu me chamo Gorvo Falanie. Na escola vocés yao aprender a cantar come se deve...” Ai a porta das gaiolas se abriu, ¢ os pasbaros voaTam ¢ coutinuuram « cantar como cantavam. No segundo chia, tocada a campainha, entrou uma pro- fessora sorridente. sou a professera de partugués. Portugués é a lingua que nés falamos, A importincia da lingua é que com as pa- lavras damos nomes As coi cola, Felipe se lembrou do que the dissera o pai: “Na o os professr es respouderdie us perguntas que nos ni sahe- mos responder...’ OQ menina tinha uma pereunta a fazer. Levantou a mado. Come é seu nome? — perguntou-lhe a professora, Meu nome 6 Felipe. —E qua! é sua pergunra, Velipe? — Que hom que a nossa lingua serve para dar nomes as coisas! Bu gosto de passaros. Ao vir para a escola, vi um 28 passaro aaul que come mamaén. Mas nao sci o nome dele. Acsenhora, que cnsina nomes, poderia me clizer qual é 0 nome dele? A professora sorriu e disse: ~ Agora nao é hora de pensar em passaros. Os nomes dos passaros nao estiu no programa de portugués. Na aula de portugués, temos de pensar e falar sobre aquilo que o programa mandi. Felipe nao entendcu — Professora, o que € progr Sabendo que Felipe era uma crianga forma bem facil: — Programa ¢ uma fila com tadas as coisas que WoUE deve aprender na escola, eolocadas uma atras da outra. _ §,,. professora... — Felipe continuou — quem é que diz quais sao as coisas que devo aprender? Quem fot que colocou em fila as coisas que deva aprender: Cem poe os conhecimentos ex fila sia pessoas muito inteligentes, do govern. —~F como é que cles sabem o que quero aprender, se nao me conhecer ¢ moram longe de mim? A escola niio é para voce aprender aquile que quer disse a professora. — A escola & para voce aprender arpaile que deve aprencder, ©} que vace deve aprender é acuilu que disserarm os homens iteligentes do governo, Tudo na ordem cctta, Uma coisa de cada vez. Todas as criangas ao mesino tempo. Na mesma velocidade... _- Prafessora — Felipe continuo —, todas as criangas po- dem aprender na mestia welocidade? professora achou melher nito conlinuar a conver: Mudou de assunto. clipe se calou. Ficouw decepcionado, Havia pensade que na escola os professores dariam r spostas a suas perguntas. De noite, na cama, tle pensou: “Aprendi duas outras ligdes. A minha cabega nao tem hora certa para pensar sobre as coisas. Eu estava pensando sobre passaros. Per- Guntel sobre passaros, ¢ a professora me ensinou que nao: era hora de pensar sobre passanos. Aprendi que na escola ha hora certa pata pensar sobre as coisas. A outra lieiin é que cada professor 36 sabe uma coisa. Professor de portu- guts sabe portugués, professor de geografia sabe geografia, professor de estoria sabe estoria... Mas qual é 0 professor que sabe o nome de passaro azul?” Naquela nuite, Pelipe teve dois sonhos: um sonha feliz e um pesadelo. Q sonho feliz foi quase uma repetigaa de uma esiéria que seu pai havia lido para ele no livre Aftce no Pais das Maravilaas. Era assim: Alice estava conversando corn muitos bichus. Urn deles era um passaro granele, que tinha um nome cngragado: Dudé. Haveria uma corrida da qual (odes participariast. Alice perguniou ao passare quais eram as regras. Ble explicou: — Primeiro marca-se o caminho da corrida, num ipo de circulo. A forma exata nfo tem importancia. Emiao os participantes so todos colocados em hugares diferentes, ae longo do caminhn,aquie ali, Nao tem nada de “1,2,9 ¢}4”. Eles comegam a correr quando tém vontade ¢ param quando querem, o que torna dificil dizer quando a corrida termina. Assim a corrida comegou. Depois que haviarn corride um certo tempo, o passaro Dodé gritou: ~— A corrida terminou! Todos se reuniram ao redor de Dodé e perguntaram: ~ Quem ganhou? ~ Todos ganharam — ele respondeu. — E todos devern ganhar prémios. GO qty © pesadelo foi assim: Felipe esiava num hospital. la scr operada. A cirurgia, com um giz na m&o direita e um apagador na esquerda, lhe dizia: — Oscu coragae é um ninho de pissaros. Mas os pas- saros que moram no seu coragéo nao cantam nas horas cer- tas, Assim, vamos troca-los por um cuco, que canta sempre nas horas certas... Quando Felipe acordou, pensou: “Seria bom se, na es- cola, fasse como na corrida do Dodé, Cada um corre corm uma velocidade diferente ¢, ao final, toclos recebem prémias. Na escola é diferente. So levam prémios os que chegam na frente. Mas onde é a frentc?” Felipe achou curios o jeito dos professeres. Tocava uma campainha, Entrava a professora de geografia, Por 45 minutos ela falava sobre montanhas, rios, mares. Ai to- car outra campainha. Bla arrumava suas coisas © la em- bora. Entraya outro protessur, o de estoria. Por 45 minutos ele talava sobre navegagdecs, paises, revolucécs, guerras, nomes de heréis, datas. Ai tocava de novo a campainha. Ele arrumava suas cc gas e ia embora, Entrava a profes- sora de portugués ¢ por 45 minutos falava sobre as coisas da lingua... Felipe pensou: “E igualzinho na televisio, A gente aperta um botio eo canal muda, Na esco: aéacampainha que faz mudar © canal do pensamento. Esse deve ser o jeito a4 certo. Pensar as coisas cerias nas horas rerias, av aperto de um hota”, Era aula de portugués. Ele tinha de pensar as coisas que a professora dizia, coisas que estavam no programa. Si- Jabas, acentos, oxitonas Proparoxitonas, énclises, prdclises, meséclise: sujeito, predicado, andlise sintitica, oragbes su- bordinadas, encantros cansonaniais, digrafos.. ~ Professora, para que serve um digrato? O que é que eu fago rom cle? A professora nao entenden a pergunta. Frlipe perceleu etratou de explicar: ~ Meu pai me clisse que conhecimentos sic coisas iteis, A gente faz alguma coisa com eles. Quem sabe mai telar, martela, Quem sabe pescar, pesca, Quem sahe rodar pido, roda pile. Eu quero saber o que é que se faz com a palavra “digrafy®, © cue é que eu posso fazer com ela? A proféssora nunca se havia feito essa pergunta, Ela Sinava porque cstava no progeama. Nunca havia peu- sado no uso, na niilidade da palavra “diyrafo”, A dnica resposia que lhe veio Acabeca foi: — E preciso saber essa palavra para tirar boas notaa i cair no vestibular, E no boletim. Ela vai eair ma prava. preciso aprender porque é precisa passar no vestibular. De noite, Felipe pensou: VAprendd dias corsas. Mrimeiro, que os proftssores nao gostam quando a gente faz uma per- gunta que eles ndo sabem responder. Segundo, que na escola os conhecimentos niio valem por serem uteis. Valem porque vaio cair na prova...” Felipe dormiu ¢ sonhou que eslava fazende 0 v estibular, c havia a seguinte questo: “Para que servern os digrafos!”, e ele nao sabia a resposta... No dia seguinte havia aula de desenho, A professora the deu um caderno para pintar. “Vinha dois elcfantes. Felipe pintou um de cor-de-rosa ¢ outro de verde. A profissora thamou o menine e disse que elefantes nao eram cor-de- -rosa nem verdes. Ele deveria pintar os elefantes da cor que eles cram. Felipe obedeceu. Passou a pintar os elefantes ¢ todas as outras coisas do jcito como cram, Mas ele se diaia; “Droga! Eu achu os elefantes cor-de-rosa ¢ verdes mais bonitus...” Naquela noite, Felipe teve um sonho divertido. Sua mae [he mostrava sempre reprodugées de quadros de ar- Ustas famosos. FE ele gostava muite. Pois sonhow que Dali, Ticasso ¢ Chagall cram seus colegas, ¢ a professora puxava a oretha deles por no serem capazes de desenhar as coisas tais come clas cram. No dia seguinte, a primcira aula foi de estdria, A campainha havia soado, mas Felipe nao mudara de ca- nal. © professor falava sobre naulragios, batalhas, frases célebres, Mas, a despeico do cuco, no coragio dele havia ainda um ninho de passarinhos. Comecou a olhar através da janela, distraide da aula, atraido pelo passare azul que eslava no alto de uma arvore, I ficou feliz! Comegou a sor- tir. Ao olhar para a sorriso de Felipe. o professor percebeu que ele no estava prestando atencio, Felipe, voce nao esta prestando atencio, Vor nico esta pensando naquilo que deve pensar nesta hora... ‘O professor mandou Felipe para a psicologu, que diagnos- licou “distarbio de atencdo”, Felipe niio conscguia concen- lar a alencio nos pensamentos que deveriam ser pensacios, os pensammentos que o professor falava, Distirbio de atengao é quando a atenc&a esta no lugar onde n coracda deseja. ¢ nao no lugar onde o professor manda. A psicdloga mandou chamar os pais de Felipe. Disse que ele precisava ser tratada, para aprender a prestar arengao no que o professor dizia, Os a fiearacn trishes e cisserargn: pais do menir Se vocé continuar a pensar cm passarinhos, vai ficar burro! Grandes orelhas © um rabo yao ereseer em voce! WVocé nao leu a estéria do Pinéquio? Se vocé nao concen- trar a atengao nos pensamentos cue devem ser pensadns, nao aprencdera o que esia ne programa, Se nado aprender o que est4 no programa, tirara notas baixas mas provas. Tirando notas baixas, nio passard de ano, E nao passara no vestibu- Jar. Nao entraraooa universidade. Wao tirara diploma. Nao sera ninguérm na viela! De noite, na cama, Felipe pensou: “Nao posso ser mative de vergonha para os meus pais. Eles me matricularam num colégio forte, colégio caro, que prepara para o vestibular. L fazem um grande sacrificio por minha causa. Eles querer meu bem. Nao vou mais pensar em passarinhos”. Naquela noite, Felipe sonhou com a estdria do Pindéquin. 56 que, em vez do Pinéquio, era cle, Estava numa flo- Testa cheia de. pissaros. E estava se transformando num burrinhoe! Ja tinha um raho ¢ orelhas grandes, O Corvo Falanie, co alto de wma Arvore regia UM Coro csquisito: todos tinham viseiras de burro olhos, E cantavam: “E preciso nao olhar para os lados para nio ter rabo ¢ ore- lhas longas...” Felipe acordou ¢ disse: “Esse sonho me ensinou como € 0 mundo dos adultos, ‘Lenhe de olhar sempre na direcao certa: ulhar para © protsser, olhar para os livros”. Desse dia em diante, Felipe passow a olhar na diregdio certa. Olhava para os olhos da professor, Olhava para as ligdes dos livros. Paasou @ tirar as melhores notas da classe, Nunea mais foi mandado ao psicéloge, Felipe tinha boa memoria. Decorava todos os nomes que os professores ensinavam. A cada novo nome que aprendia, Mas ele chegava cru casa € o Comtava ao scu pai ¢ a sua mal parece que cles nau tinham meméria tio bea quanto a dele. Haviam esquecide. “Que coisa mais estranha”™, cle pensou. “Os adultos nao se lembram do que aprenderam na la. Sera que o que aprenderam ¢ esqueceram nao lhes faz falta? Ache que eles no passariam no vestibular’, conclain Eassim fot a vida escolar de Vclipe; a cada dia que pa va, mais nomes ele sabia. Logaritmos nepcrianos da enésitna poténcia, trissomia, cramatides, mitose, iflossoles, anamnio- tas, mitocéndrias, cloroplastes, seno, cosseno, tangente, pi, as causas da Guerra dos Cem Anos, taxonomias botamicas, moléculas apolares, digratos, oragGes subordinadas, funcgies da particula “se”, sujeito oculto, sujeito indelerininada, equa- goes, inequagdes, nimeros irreais, a muda dos artropodes... No vestibular, o grande exame cos nomes, Felipe foi o eu nos outdoors da primeira colocado. Sua fotografia apar cidade. Seus pais ficaram muite orgulhosos, 0 filho deles cra muito inceligente! O filbo deles sabia muitos names! Nesse ponto, fazia muilo tempo que Felipe sc esquecera do passaro azul © de seu desejo de ser cuidader de passa- ros. A coisa mais importante que aprendera é que é preciso ti entrar no mercado de trabalho. Acontece que passarinhos livres nio voam no mercade de trabalho... Nao podem ser vendiclas. Trocou-os, enldo, por aves — frangos — que cir- culam no mercado de trabalho, lugar onde se vende ¢ se compra. Felipe se tornon um grande especialista ent frangos. Frangos mortes. Podia agora dar uma resposta A pergunta que seu pai lhe fizera: “O que é que voce vai ser quando crescer?” Agora Felipe cra um especialista em fran- gos de corte. La vinham eles, mortos, dependurados numa longa correia que se movimentava, mergulhados na agua Le te TE) fervente, deperiadus, estripados, cortadus, moices, iransfur- mados em linguica... Felipe tinha uma profissic, Seria um argulho para seus pais. Na véspera de sua formatura, ele sonhou com um enorme frigorifica, A porta do frigorifico era muito grande e fazia lembrar a boca aberta da baleia que havia engolido 0 Gepeto, 0 Cleo, o Figaro, o Grilo ¢ 0 Pindquio.., E la dentro do frigorifics, ao lado dos frangos pendurados nas correias, havia longas esteiras onde se encontravam crianeas, centers delas, todas diferentes. A esteira entrava num tinel escuro e do outro lado saiam as criangus, todas iguaizinhas, saidas da forma, formadas... Fo Qorve Malante cantaya: “Forma- tura, Entram diferentes © saem iguais: profissionais. E assim que um pirralbo entra ne mercado de trabalho”. #2 Foi uma noite muito feliz: discursos, fotografias ¢ o tao sonhade diploma, Seus pais sentiram que agora podiam morrer, Sua missao de cducadores estava cumprida. Seu filho cra, finalmerite, urn profissional. Ea Fada Amarela, do astereide onde morava, viu Felipe ¢, sem que ninguém a visse, desecu até ele com suas asas de corvo © tocou sua cabega com um diploma enro- ladinho: 32 TLOWO ORG éseu nove ser, De hoje cm diante, quando the perguntarem Hoje vocé ganha um novo nome ‘Quem ¢ voce?’, vec nao dira ‘Felipe’. Dira, com orgulho: ‘Sou um profissional especialista cm linguigas de frango’. Esse nome é seu nove ser”, 43 E assim aconteceu. Os pais de Felipe lhe entregaram lindos cartées de visita, em que haviam feito imprimir seu nome ¢ sua nova identidade: Fevire Ricarpo pa SILva Franconocisra EsrrctaLis1a EM LINGUIGAS pe s¢ tornou um profissional respeitade. Fee douto- rado em universidade americana ¢ colocou Ph.D. depnis de nome. Mas, a despeito do sucesso profissional, naio se sentia feliz. Procurou um psicanalisia, A psicunalise se dedica & andlise dos sanhos, pois é neles que mora nossa verdade, E havia um sonho que Felipe tinha sempre, que the dava uma inexplicdvel tristeza: um Passaro azul comia um mamao maduro no alto de um mamoeiro, Eo Ppadssaro, em meio aos trinados de sen canta, Ihe dizia: “Lembre-se do men nome ¢ vocé serd feliz”. Mas Felipe nao conseguia se iembrar do nome daquele passaro,., Passaram-se muitos anos. Felipe nan era mais joven. Scus cabelos estavam grisalhos. E, numa bela noite, reve um sonho diferente, Somhou que a Fada Azul, da estrela onde morava, o viu, com suas asas de borboleia desceu até cle e com sua varinha magica tocou-lhe a cabega. Um areo-iris apareceu no céue pim-pam-pum! — nun passe de magica ele descobriu o nome du passaru azul. E cnt&o voltou a ser o@ mening que um dia fora. Nesse momento, uma onda de felicidade encheu sua alma... : ge ; Recriande a trayetoria‘de Pirtoquio, 0 famosa boncce do autor Hiliane Carlo Collods, Rubem Alves nes olerece urna now teinuca — Pindguin ds avessas: Nesta versio, dustrada por Mauricio ce Smusa, ele aprile pata us piel ue Carnet dose cri senkts que Tac consiceram 2 Presser ern seu pipteicial ¢ suse tapicicides indivichiats terlulivas, mas umits bemsinn enquadratas mm ister edueacional igidn, conservacon dnactonice csuficante, 5 A para prewear at Chaat ome ahate yey wae berber are chase nibicatives 4 em favor de uina educucie verdadeira, edificunie. que preserve na celanca Gn ser binnatie— a capicidade desonbian coat transtorniarc sc realiear..

You might also like