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Os irredutiveis Teoremas da resisténcia. para o tempo presente 82 ISA-D here mere Teorema 3 ‘A DOMINAGAG IMPERIAL NAO £ SOLUVEL NAS BEATLTUDES DA GLOBALIZAGAO MERCANTIL Corolétio 1. A soberania democratica no é sohivel na Humanidade com H maitisculo .... 6! Corolétio 2. O direito internacional nao é sahivel na ‘moralina” humanitéria 61 Corolario 3. O bem comum da humanidade nic é soltivel na privatizagio do mundo 64 Corolitio 4. A teoca entre a espécie humana ¢ seu ambiente natutal 4 irvedutivel 4 medida miseravel dos mercados financeiros 69 Teorema 4 QUAISQUER QUE SEJAM AS PALAVRAS PARA EXPRESSA-LO, O COMU £ IRREDUTIVEL AS SUAS FALSIFICACOES BUROCRATICAS. cncinec TA Coroldrio. A democracia socialista nao é sohivel no estatismo burecritico 73 Teoreina 5 A DIALETICA DA RAZAQ £ IRREDUTIVEL AO. ESPELHO QUEBRADO DA POS-MODERNIDADE os 81 Corolétio 1. A totalidade € irredutivel a seus fragmentos espatso8 wn. 2 85 Corolério 2, O universal nao é soltivel no patticulat. cos... 92 Corolitio 3. O real nfo ¢ sohivel no virtual, nem a busca da verdade na inconstancia das opiniGes 93 Fermata A CORRENTE INFLAMADA DA INDIGNACAO NAO E SOLUVEL NAS AGUAS MORNAS DA RESIGNAGAO CONSENSUAL vo vssssensuntve 97 Sobre 0 attO! 99 Prefacio a edicao brasileira OS IRREDUTIVEIS SETE ANOS DEPOIS Este livrinho foi publicado inicialmente em francés, em janeiro de 2001, ou seja, antes dos atentados de 11 de Setembro ¢ do inicio da segunda Guerra do Golfo naquele mesmo ano. De certa maneita, ele é resultado de um seminatio de reflexéo realizado em 2000, no qual surgi: também o projeto da revista Contreternps. Partimos de uma constatacio: 0 esgotamento do debate estratégico na esquerda em geral ¢ na esquerda radical em particular. A socialdemocracia aliada a um liberalismo moderado produzia apenas banalidades apologéticas. Os partidos comunistas formados (ou deformados) no cadinho stalinista foram reduzidos & esterilidade tedrica ¢ condenados a uma lenta agonia. Corria-se, entéo, o risco de se contentar com 0 fato de se ter salvo a honra da esquerda ao se permanecer fiel a valores abandonados por essas grandes correntes historicas, © tisco de se instituir guardides conservadores de um remplo deserto ¢ 0 de se submeter & agenda ideolégica ditada pelos dominadores. Convencidos de que a heranca nao é uma coisa inerte ou um capital que se poe no banco, mas que ela existe ¢ € apenas o que dela fazem (e fardo) os herdeiros, inventariamos entéo as grandes questées que deveriam ser submetidas ‘icamente & prova do presente: ~ © que pensar das politicas de emancipagio e de seu futuro na época da mereantilizacéo do mundo, do despotismo do mercado e da sociedade do espetéculo como estagio supremo do fetichismo de dinheiro? —O que pensar da luta de classes, na época do aumento da forga de um individualismo sem individualidade, da desfiliagao social ¢ nacional, de seres soci, s cujas identidades plurais ameagam © que pensar das formas de dominacio e de dependéncia, dos Estados- nagio ¢ da hegemonia imperialista que alguns dizem em via de extingdo no “cspaco plano” do cosmopolitismo mercantil? -— A idéia de um aniquilamento de suas caricaturas burocrdticas e com o en euro comunista da humanidade mot u com o certamento do que alguns historiadores definem como “o custo século XX”? ~O desequilfbrio ecolégico do mundo é controldvel pelas zerapias brandas de uma ecologia ambiental ou, a0 contrario, sua raiz: a desmedida ¢ maus-tratos contra o mundo imputdveis 4 irracionalidade cres nite da légica capitalista? ~ © que pensar, enfim, dos antiiluministas pds-modernos, cujo proceso legitimo da razio instrumental ¢ os acalantos de um progresso histérico de mao nica redundam, as veres, em um novo obscurancismo ¢ em um aniquilamento dos horizontes de esperanga? Os irredutiveis (ou Teorema: da resisténcia para o tempo presenié) constitui a exposigdo sintética desse programa de pesquisa, Sete anos depois, certamente se encontra inacabado (¢ inacabavel, pois a critica de um mundo em movimento acelerado nao se permitiria a menor pausa), mas o compromisso inicial foi mantido, Como testemunho, as questées tratadas nos 22 atimeros da revista Contretemps: sobre as sociologias criticas, as classes sociais e suas metamorfoses, as relacdes de género, os estudos pos-coloniais, a critica da propriedade, as novas guerras santas ¢ a globaliza¢4o armada, o imperialismo ¢ as nagoes, 0 iluminismo € 0 antilluminismo, o estado em que se encontram a esquerda os estudos marxistas, a ecologia social ea questio do decrescimento ete. Muita coisa se passou durante os sete anos decorridos desde a primeira publicacio de Les irnéductibles. Algumas perguntas comegaram a ser tespondid, Algumas dtividas foram levantadas. Os termos de alguns debates evoluiram’. Haviamos partido de uma constatagao. A derrota histérica das grandes esperangas do século KX traduzia-se, na entrada do novo milénio, por um estreitamento dos horizontes de esperanca ¢ uma recragao da temporalidade histdrica em torno de um presente empobrecido. A pane de projesos estratégicos © Eu mesmo tentei uma sintese deles em Eloge de la politique profane (Paris, Albin Michel, 2008). alternativos estava em relacao evidente com esse contexto. Na verdade, como compreendeu muito bem Guy Debord, visio historica ¢ razdo estratégica encontram-se estreitamente associadas. De tal maneira que um movimento que pode mais ser cotta de uin grave déficit de conhecimentos historicos nao conduzido estrategicamente”. Desde 2001, com a invasao do Traque, a dindmica bolivariana na América Lati em curso, Com dificuldade, com toda a certeza lentamente, mas as postas do _ aemergéncia do movimento altermundialista, algama coisa foi recolocada yyama sobre o fim da futuro estio de novo entreabertas. As profecias de Ful histéria nao deram em nada. E a euforia wiunfalista liberal néo durou dez anos [A propdsivo disso, ¢ significativa a confissao de malogro felra por Jrgen Habermas: Desde 11 de Setembro, ndo par de me perguntar se, diante de acontecimencos de tamanha violgncia como essa, toda a minha concepcéo de atividade orientada para 0 consenso, aquela que desenvolvo desde a Theorie des kommunikativen Handelns [Teoria da aco comunicatival, nao std prestes a cair no ridiculo. De fato. Longe de sair apaziguado do aniquilamento do totalitarismo burocrético, 0 mundo tornou-se mais desigualitirio ¢ mais violento. A excecdo regta misturam-se de maneira inextricavel. E George Bush filho declarou um estado de guerra ao terrorismo ilimitado no tempo € no espago. Poctanto, alguma coisa foi bem encerrada com a queda do muro de Berlim, a desintegracéo da Unido Soviética, os atentados do 11 de Setembro ea nova Guer- rado Iraque. Mas 0 qué? “curta século XX” inaugurado pela Primeira Guerra Mundial e pela Revolugao Russa, sem diivida, Mas, provavelmente, também se exgotou o paradigma da modernidade politica, inaugurada no século XVII pelas vevolugdes inglesa € holandese. Sob 0 choque da globalizasao capitalista, as nogées de nacéo, territério, povo, soberania e cidadania foram abaladas, assim como os parimerros do direito internacional interestatal. Abaladas, mas ndo ultrapassadas. Vivemas essa grande transigdo, esse grande intervalo entre dois extremos, entre 0 “ndo mais’ ¢ 0 “ainda nao”, em que o antigo nao acabou de morrer enquanto o novo pena pata nascer € corte o risco de perecer antes mesmo de ter vivido, Essa situagao de transiggo constitui “um momento utépico”, como foi, de outra forma, 0 perfodo da Restauragio dos anos 1820-1840, que viu fermentar tantos sonhos do futuro ede fantasmagorias sociais, de Fourier a Saint-Simon, pasando por Cabet e Owen. © filésofo Henri Lefebvre definia a usopia como “o senso nao-pritico do possivel”, em outras palavras, como uma possibilidade Prevista, cujo contetido continua indererminado e da qual se ignorar sobretudo os meios de atingi-la Talver, se olharmos pelo retrovisor, esses anos de transi¢ao possam ser Percebidos como um momento semelhante ao dos enconttos apaixonados dos runs sociais, em que fervilham idéias de um outro mundo possivel, que as relacoes de forgas politicas degradadas pelas decrotas acumuladas das lutas de emancipasdo tornam inacessivel atualmente. No entanto, comesa-se a perceber que esse momento de iluséo, de acordo com a qual os movimentos sociais Constituem uma resposta suficiente para a crise da politica, de acordo com a qual as légicas de hegemonia sio soltiveis na experimentacdo local ¢ nos contrapoderes em miniatura, de acordo com a qual se trata, a partir de agora, de“mudar 0 mundo sem tomar 0 poder”, esté esgotado, Mudar o mundo sem tomaro poder, esse titulo-programa do livro de John Holloway, que pretendett teorizar, em 2002, a experiéncia zapatista do México, teve uma indiscutivel Fepercussio nas novas esquerdas, principalmente na América Latina. Mas, diante das questées concreras colocadas pelas dificuldades do processo de transformacéo social na Venezuela, na Bolivia ¢ no Equador, cle néo ajuda muito a procurar @a encontrar respostas, No préprio México, depois das lutas de 2006 contra a fraude eleitoral ea fepressao, apds a Comuna de Oaxaca, os termos do debate evoluiram e a revista Zapatista Rebeldia, em seu niimero do verdo de 2007, abriu uma polémica violenta contra as teses de Holloway. A idéia de que 0 velho movimento operario perdera seu isomorfismo em relac3o a0 aparelho do Estado burgués (por ter reproduzido as mesmas formas de concentragéo © de comar 4o) leva, hoje, & consratacao de que “o novo movimento social” rizomatico ¢ acéfalo € também “isomorfo” co capitalismo liberal, & “sociedade liquida”, 4 Aluidez da irculacdo mercantil ¢ monetéria, Prova de que nao € possivel escapar, por simples decreto da vontade, dos efeitos concretos da subalternidade, ¢ de que néo é possivelescapar, por uma mudenca John Holloway. Mudar o murdo sem tomar o poder 0 significado da revoluga hoje (Sao Paulo, Viramundo, 2003). (N. E.) de vocabulétio, do léxico dos dominantes se a realidade das relagdes de forcas nao for alterada. Em sete anos, algumas controvérsias do fim do sécule passado foram esclarecidas ou se tornaram inoportunas. Alguns autores, como Mary Kaldor, sustentaram entéo que o fim da Guerra Fria marcava 0 advento de um “impedaismo ético ou benevolente". Outros aflemaram que a prépria nosao de imperialismo ¢ as hierarquias da dominacéo foram dissolvidas no cosmo- politismo mercantil de um espaco plano ¢ homogéneo. A campanha a favor do direito de ingeréncia humanitéria contra as soberanias nacionais e contra o di- Ste} reito internacional em vigor foi simplesmente o prolongamento dessa nova do *nomos da terra’. Os bombardcios contra a Sérvia sem declaracao de guerra & depois a nvasio unilaeral do Irague sem nen mandato intnacional foram os trabalhos priticos, Na época da intervencio da Oran nos Balcds, Tony Blair e seus pares colocaram em prética a nova retérica da “guerra ética” ou da “guerra humanitaria’, cuja verdadeira face seria revelada por Guanténamo e Abu Ghraib. Por outro lado, autores decididamente engajados na esquerda sustentaram uma tese semelhante, que via na globalizacio um passo para um mundo sem fronteiras®. Mas foram sobretudo Michael Hardt e Antonio Negri que sistema- tizaram, um ano antes dos atentados de 11 de Sezembro, a tese segundo a qual a organizacio hicrarquizada de um mundo de Estados-nagio sob a hegemonia de um imperialismo estatal dominante (ou de vérios) estava em via de dissolucéo impéci in a nero, que seria simplesmente em um novo império desterritorializado e sem centro, que seria simp! a dominacao direta do capital transnacional sobre as novas plebes ou multidées nomades, A controvérsia ndo era puramente redrica. Teve seus testes priticos, 4o por referendo do Tratado Assim, os autores defenderam, em 2005, a aprov: Constirucional Europeu, embora claramente liberal ¢ imperial, porque um expago continencal, qualques que fosse ele consitsiri necessariamente um progresso em relagao 4 defesa de direitos sociais inscritos em relagoes de forcas nacionais. O mesmo argumento deveria té-los levado logicamente a considerar 0 Morales também que a reivindicag’o dos governos de Hugo Chaver ou 2 Ver Peter Gowan, “The new liberal casmopolitanism’, Contretemps, Patis, Texwuel; por soberania energética e alimentar era rea ‘ionaria. Felizmente, nao foi nada disso. Mais exatamente, Antonio Negri, em Global>, seu livto sobte a América Latina em co-autoria com Giuseppe Cocco, passou para 0 outro lado, colocando no mesmo saco as politicas de Chaver, Morales (talvez, hoje, Correa), Lula e Kirchner. No entanto, a invasio do Traque em 2003, por meio de uma coalizio, deveria provocar uma reflexéo critica sobre a dindmica real da globalizacao mercantil ¢ 0 aumento da forca de um liberalismo autoricério em que os Estados tertitoriais, longe de desaparecerem, véem suas fungdes militares © penais crescerem @ medida que sua funcio social se deteriora. Robert Cooper, conselheiro de Tony Blair para a “guerra ética” e, em seguida, de Javier Solana na direcéo da Otan, tornou-se, alids, 0 defensor sem complexos de um “nove imperialismo liberal”, apoiado em um “Estado pds-moderno”, e também de um “imperialismo de vizinhos” que vela pelas petiferias do mundo (Bdleds, Chechénia), impée seus protetorados e instala seus procénsules e outros sétrapas locais em todos 08 continentes. A nova fase de acurnulagio do capital globalizado, na verdade, implica uma teorganizacio dos espacos ¢ tertitérios, um deslocamento de fronteiras ¢ a construgio de novas muralhas de seguranca (contra os palestinos ou na fronteira mexicana), mais do que sua abolicéo em beneficio de um mercado tinico “sem fronteiras”. A tragédia dos migrantes é a prova disso. E isso de acordo com a lei, sempre em vigor, do “desenvolvimento desigual” cada ver mais mal combinado com a acumulagao capitalista. Como escreveu muito bem David Harvey, tonio Negri ¢ Giuseppe Cocco, Glob(AL) ~ biopoder e luta em wma América Latina globalizada (Rio de Janeiro, Record, 2005). Vétios autores, entre eles Joaquim Hirsch, Atilio Boron, Michael Lawy, Claudio Katz, Alex Callinicos, passaram as teses de Jmperio (Rio de Janeiro, Record, 2001) pelo d edicéo em espanhol (Clases, Plebes, Multisudes, Santiago do Chile, Palinodia, 2006: © Caracas, El Perro y la Rana combs crivo da critica marxista. Por minha vez, diquei-lhes uma série de artigos na revista Contretemps, alguns retomados numa 2006). Muiras veaes foram os mesmos autores que ram as teses de Holloway. Embora existar Negri ¢ Holloway se diferencas notdrias entre eles, ram de fato em um aparato coneeitual de Deleuze e de Foucault, vulgarizado e empobrecido, Ver John Holloway e outros, Couena y m: alla a cole de! Capital (Buenos Aires, Herramienta, 2006), que apresenta ea das iP ane ape principais eriticas dirigidas ao livro de Holloway ¢ sua resposta. he 1acao, mo é impossivel compreender a coeréneia dos conceitos de globalizaséo, neoliberalis no se levat em conta as mudangas ocorridas nos diltimos crinta ¢ imperialismo, se ~ as relativas 20 espago € a0 tempo, determinadas pela din: anos nas dindmic: sulacio do capital. © duplo imperative de reduzir seu eempo de roragio ¢ act , i 6 6 is que sligninar suas barreiras espaciais envolve inovagbes tecnol6gicas ¢ institucionais q vam como efcito modificar 0 contexvo espacial no qual se exercem os poderes cerritoriais. Essa dindmica é profundamente desigualitiria, como testemunham, ano apés Jatérios do Pnud [Programa das Nacoes Unidas para o Desen- volvimento], Os Estados Unidos, a Unite Buropéia ¢0 Japao agambarcam 90% «. Os Estados Unidos cobrem sozinhos 60% das despesas mundiais mas a Inglaterra, a Franca e Israel mantém uma boa colocacdo ano, os fel das patente com armamento, na nessa cortida da industria do massacre. O mecanismo da divida continua a transferir riquezas do Sul para o Norte e a servir de correia de transmissio para suijeitaras classes dominantes locais aos interesses imperialistas supremos. A nova divisio internacional do trabatho reproduz novas formas de dependéncia econdmica, tecnolégica ¢ cultural em relagéo aos centros da acumulacao. Em contrapartida, os sete anos decorridos confirmaram 0 que inabilmente se denomina a “volta do religioso”, como se tratasse de uma volta a fone de arcaismos reprimidos. Sustentou-se que os monoteismos haviam nascido do desetto, As novas misticas reagem as formas modernas de desolacao social € moral do mundo, assim como as incertezas sobre a maneira de habicar politicamense um mundo em convulsao. Nao sao, como se ouve muito freqtien- temente, “vellios deménios” que voltam, mas demSnios perfeitamente ntre contemporaneos, nossos demdnios inéditos, nascidos das niipcias brbar o mercado ea técnica. Quando 2 politica estd em baixa, os deuses esto em alta. Quando o profano rasta, a Eternidade se recua, o sagrado tem sua revanche. Quando a histér levanta voo, Quando nao se querem mais povos € classes, restam tribos, etnias, volta da massas e maltas anémicas. No entanto, seria erténeo acreditar que ess ois livros publicados em 2003: © de David Harvey, New Press) [ed. bras.: O nore imperialisrie, Sao imperialism (Oxford, Oxford University Paulo, Loyola, 2004! e o de Ellen Wood. Empire of capital (Londres, Verso} chama religiosa seria particularidade dos barbaros acampados sob as muralhas do Império. O discurso dos dominantes no ¢ menos tcolégico, como mostra © revival de seitas de todos 0s géneros nos proprios Estados Unidos. Quando George Bush, no dia seguinte ao 11 de Setembro, falou de “cruzada” contra 0 terrorismo, nao se tratava de um lapso infeliz. Quando se pretende conduzir nao mais uma guerra de interesses contra um iniraigo com o qual serd preciso acabar negociando, mas uma guerra do Bem absoluto contra o Mal absoluto (com 0 qual se diz que néo se pode negociar), trata-se de uma guerra santa, de religiao ou de “civilizagao”. E quando o adversario ¢ apresentado como uma encarnacéo de Sata, nao é de espantar que ele seja desumanizado ¢ bestializado, como em Guantanamo ou em Abu Ghraib. Nao ¢ de espantar também que a excecdo ¢ a regra estejam entio inextrica- velmente misturadas. Que se conceba assumir abertamente a “tortura preven- tiva” (coroldtio Iégico da “guerra preventiva’); que se vejam banalizar-se as extraordinavies renditions (“rendigdes extraordinarias”) ¢ os lugares de detengao desterritorializados; que se possamn assumir as “execugdes extrajudiciais”, como jé fazem muito tempo alguns dirigentes israelenses em relagdo ao assassinato de palestinos. A retorica religiosa penetra também um discurso judicial no qual as disposig6es antiterroristas apelam cada vez mais para as nogdes de arrepen- dimento, peniténcia, abjuragdo, outrora em vigor nos processos de acusacio de feitigaria ou nos processos da Inquisicéo. Af estio os indicios de uma crise de hegemonia de importdncia historica. A privatizagéo generalizada do mundo (nao s6 da produgéo ¢ dos servigos, mas também do espaco, da informagéo, do direito, da moeda, da violencia, dos conhecimentos ¢ do organismo vivo pela corrida ao registro de patentes) a cada dia que passa gera mais miséria, desigualdades e brutalidades. A alternativa “socialismo ou barbarie” é ainda bem mais premente do que era no inicio de um século XX destinado a se tornar o dos “extremos”. A légica da concorréncia de todos (e todas) contra todos (e todas). cuja forma final a guerra global, deve se opor uma légica da solidariedade, do servigo ptiblico, do bem comum da humanidade. Em outras palavras, a questéo da propriedade, como os pioneiros do socialismo do comunismo a compreendiam desde meados do século XIX, estd mais do que nunca no cerne da questio social, Nos anos 1830 ¢ 1840, 0 fim das formas “hibridas ¢ incertas" de propriedade, o desapossamento dos pobres de seus direitos habituais foi a condicio de seu Tangamento sem defesa No entanto, hoje, a mercado impiedoso do trabalho urbano em formasao*. res relativos aos servigos, ao conhecimento ou a0 organismo no nova onda de enclosw vivo tem, por corolirio, uma ofensiva planetésia do capital contra todas as formas de garantias ¢ de protegao social, em maréria de saldrio, emprego, habitagdo, aposentadoria, educagao ¢ satide publica. £ em torno dessas questdes que surge um nove divisor de 4guas entre uma exquerda alinhada ou resignada ao acompanhamento do liberalismo ¢ uma no- va esquerda decidida a enfrentar os desafios de um novo século, no qual o que esti em jogo € nada mais nada menos do que saber que planeta queremos habitar e que humanidade queremos nos tornar. Paris, dezembro de 2007 5 Ver Daniel Bensaid, Les dépossédés (Paris, La Fabrique, 2007) Intradugae TEMPERATURA INSTAVEL nfissao de um filho do século. dun enfant du siecle (C o vago € flutuante” que marca a passagem entre dois mundos, Musset evoc ais destruido e um f entre um pasado jam uro incerto, © tempo histérico m torno de am presente redurido ao instante que parece entdo se estreitar passa, Uma geracao desencantada atravessa a época “encolhida sob o manto de andes promessas andes ambicées: nesse “mar egoistas”. Nada de gi cinismo dos medonho da ago sem objetivo peranga, as virtudes. Vivia mentava 0 po vencedores, de prazeres mitidos e d has € Foi um rempo de reacio e de restauracio. apenas de mig: ada”, Confrontados a desttocos. “O ecletismo é que nos nados novas reagdes e a Novas restauragées, nds, por nossa vez, fomos cond esas mi ea esses destrogos? Fomos reduzidos ao minimalismo miniatura 0 e fraco, aos pra sem objetivo’ educao € a como s€ 0 ¢ préximo F aos globalizados Na era da industrializagdo em massa, da organizacao taylorista do trabalho edo reino da fada eletricidade, 0 modernismo teria expressado uma resisténcia a extensio da domina¢io mercantil as producées culcurais, Nao uma hostilidade a técnica ¢ 8s maquinas como tais (celebradas tanto pelos futuristas quanto por alguns cubistas), mas um protesto contra a despersonalizagio do laco social, a reificagio generalizada e a era dos loucos soliedtios, Hustrada pela pintura ndo figurativa, pelo expressionismo, pela nova poesia lirica ou pelo cinema de autor do perfodo entre as duas grandes guerras, a revolucéo modernista constituiria entéo uma reacao cultural 4 modernizacao capitalista. Portanto, o modernismo acreditou poder opor uma tiltima resistencia a0 triunfo absoluto da mercadoria, A Arte com A maitisculo parecia oferecer um liltimo refligio & gratuidade antiuriliréria © a0 desejo de eternidade. No enranto, ela constituia a sombra projetada do fetichismo da mercadoria ¢ 0 tiltimo suspiro contra © consumo padronizado. A pés-modernidade aparece, assim, como 0 triunfo absoluto da mercadoria na prdpria esfera cultural € artistica “O modernismo foi a experiéncia ¢ © resultado de uma modernizacio incompleta’, resume Fredric Jameson. O pés-modernismo surge “quando 0 processo de modernizagao nao tem mais de se desembaragar das caracteristicas arcaicas, no tem mais obstéculos dianre dele, ¢ faz sua propria légica reinar triunfalmente”!, Nés estarfamos no limiar de uma nova época caracterizada pela reprodugao técnica da obra de arte, pelo desenvolvimento de uma arte propria- mente midiatica, pela emergéncia de uma nova ordem comunicacional e pelo nascimento de uma nova linguagem digital. Essas tentativas de periodizacao privilegiam mais um crivério estérico do que econdmico, social ou politico, Mesmo que Fredric Jameson ou De id Harvey se distingam por seu esforco para estabelecer uma atticulacio coerente entre esses campos, 0 fluxo e a onda dos conceitos esto relacionados a essa abordagem cultural. A inoportuna utilizagéo do “pés” reforga 0 equivoco cronolégico. Fiedric Jameson, Postmode 1991), p. 366, [Ed. bras.: Pés-madernisma: a lagica culiwral do capitalismo tardio, 2. ed., Séo Paulo, Atica, 1997,] Ver também Francisco Louga, A maldigéo de Midas. a cultura do capitalisma tardio (Lisboa, Cotovia, 1994) am, 9 The cultural logic oflate capitalism (Londres, Verso, Para nao corter 0 risco de utilizar essas noges imprecisas, melhor seria concebé-las como tendéncias complementares e contraditorias, 0 avesso ¢ 0 dircito da légica culeural do capitalismo, seja cle juvenil ow senil, precoce ou “tardio”, Dessa mancira, percebemos melhor a recorréncia de uma tematica pés- moderna ~ como “o gosto pelo ecletismo” revelado por Musset — nas fases de derrota doentia ¢ de depressio politica, assim como a ambivaléncia de um autor como Marx, em cuja obra as duas tendéncias coexistem de maneira notivel. Em uma atmosfera impregnada de um sentimento de dissolucao generalizada (tudo se esvail), de depressdo do futuro e de anemia histérica, a questio agora € saber que parte cabe a uma nova revolugéo tecnolégica ¢ cultural, ¢ que parte cabe ao efeito propriamente politico das derrotas infernalmente repetidas, cuja amargura assombrava as noites de Musset durante a Restauragio, encontrava-se na melancolia de Baudelaire apés 1848 ¢ povoava o pesadelo de Blanqui e de sua “ccemnidade pelos astros” apos o aniquilamento da Comuna de Paris. Alguma coisa foi bem encerrada com 0 século. Mas 0 qué? O “curto século” de que falam os historiadores, iniciado com a Primeira Guerra Mundial ¢ finalizado com a queda do Muro de Berlim? O perfodo aberto pela Segunda Guerra Mundial, pela bipolaridade da Guerra Fria e pela acumulagao fordista nas metrdpoles industriais? Ou ainda um grande ciclo da histéria do capitalismo, inaugurado pela expansio imperuosa da segunda metade do século XIX, pelas conquistas coloniais e pela emergéncia do imperialismo moderno, pela formacao de um movimento operitio de massa com a criagio da I e da Il Internacional? Os grandes debates estratégicos sobre a emancipagao social datam, em grande medida, do periodo anterior 2 Primeira Guerra Mundial. Quer se trate da anélise do imperialismo (com as contribuigdes de Hilferding, Bauer, Rosa Luxemburgo Lenin, Parvus, Trotski, Bukharin); da quest4o nacional (com as teses mais uma vex de Rosa Luxemburgo, Lenin, Bauer, Ber Borokhov, Pannekoek, Strasser); das relagdes entre partidas e sindicatos ¢ do parlamentarismo (com os textos de Rosa Luxemburgo, Georges Sorel, Jaurés, Domela Nieuwenhuis ¢ Lenin); ou ” (com as polémicas entre Bernstei ainda dos “caminhos do poder + Kautskys Rosa Luxemburgo, Lenin, Trorski). Essas controvérsias sso constitutivas da historia contemporinea da mesma maneira que aquelas sobre a dindmica conflituosa entre revolugao contra- tevolucao no periodo entre as duas grandes guerras: guerra de posisao e guerra de movimento, frente unica, aliangas politicas, andlises do fascismo, dinamica da revolugio colonial, questéo nacional e internacionalismo. Para além das dife- rencas e das opasicées freqiientemente implacdveis, o movimento operdrio dequela época tinha ainda uma cultura ¢ uma linguagem comuns. Hoje, ttata- se de saber 0 que permanece dessa heranca sem dono nem manual. Petry Anderson considera que, desde a Reforma desLutero, jamais o mundo ficou tao sem alternativas a ordem dominante’, A situacao atual caracteriza-se sobretudo pelo desaparecimento de um movimento operério internacional independence. Eis que embarcamos em uma transi¢éo incerta, em que o velho agoniza sem ser abolido, o novo pena para eclodir, entre um passado nao ultrapassado € a descoberta balbuciante de um novo mundo em gestacao. Nessa passagem dificil, a tentacdo de se apegar a poucas conquistas de eficdcia comprovadamente polémica seria téo estéril quanto aquela da tibula rasa, que pretenderia (re)comegar tudo a partir do nada. E.com o antigo que realmente se faz.0 novo. Mas sempre se esté sujeito a parceiros e adversirios. Ora, 0 debate estratégico atinge hoje seu grau zero, como se o futuro tivesse de se reduzir a uma repeticao infernal da ordem existente e a histéria, de se imobilizar em uma eternidade mercant Ne Franca, a retérica da esquerda pluralista, cuja ambicao se limita desde jA& gestéo prosaica de um presente sem futuro, reflete-se na propria apatia dos discursos de resisténcia, no gosto evasivo pelo eufemismo e pela periftase. Sem diivida, tém-se os interlocutores que se merecem, Fomos designados entao a uma dupla responsabilidade, de transmissio de uma tradicSo ameagada de conformismo e de invengao audaciosa de um futuro incerto. De acordo com o senso comum mididtico, € sempre melhor ser aberto do que fechado. leve do que pesado, flexivel do que rigido. No entanto, em toda teoria, a desconfianca em relacao aos entusiasmos voliiveis e aos efeitos de moda exige sérias refutacdes antes de se por em questao um paradigma fecundo, Nao se craia de conservar piedosamente um capital doutrindrio, mas de entiquecer ¢ transformar uma visio do mundo 2 prova de priticas renovadas. O movimento operdrio internacional constituiu-se na segunda metade do século XIX com uma dupla relagdo — de continuidade € de ruptura — no que diz respeito a heranca do Tluminismo ¢ da Revolucao Francesa, A contra-reforma * Perry Anderson, “Renewals”, New Left Review, n. 1, jan, 2000. liberal atual nao mira somente a questio basica da Revolugao ¢ a idéia snista, Servindo-se do argumento das desilusdes do progresso, das aporias ¢ da ctise da universalidade, ela ataca as fontes intelectuais, com da rando pura racionalistas € tepublicanas da modernidade. Essa ofensiva alia, de mancira diversa, a redugio da realidade a “ficgGes verbais’, uma critica imprecisa do smo e uma redugio niinimalista ao “pensamento fraco”. cientifici Em um mundo mercantil, onde tudo vale ¢ se equivale, essa “crise de yeracidade” (até a rentincla & propria idéia de verdade) € propicia ao cinismo ¢ & indiferenga. As retéricas negacionistas constituem a manifestacao extrema ¢ escandalosa dessa “perda do carter teal” da histéria e dessa “destruicio da razio". © “potencial devastador” da crise da cultura abala efetivamente as convicgées herdadas do Século das Luzes. E, diz Paul Ricoeur, “2 autocompreensio de toda uma poca que est em jogo por ocasiao do debate em torno da verdade na histéria’. Haveria “no projeto de curto-circuitar 0 trabalho critico da histéria” uma intimacio exagerada ao “dever de meméria’. Na verdade, sofremos a ameaca de uma patologia da memoria, atravancada como um velho antiquatio, uma idolatria mortifera da lembranca ruminada até o ressentimento, entre impossiveis arrependimentos e imperdosveis omissbes. Ricocur prope também, substituir esse dever pelo “trabalho de memiéria”. Ele enfatiza, como outrora Walcer Benjami. titwigao, mais do que a “estdtica da lembranca” a dinamica da “evocacio”, da “rememoracao” ou da recons- Diante das loucuras nas quais o século XX foi prédigo, nio se trata de se recolher & Linha Maginot do racionalismo classico ¢ ao seu ideal de verdade, mas de encarar 0 desafio da pés-modernidade admitindo sua parte pertinente. As iversalic categorias razio, progresso, historia ou u ade rém tudo a ganhar ao aceitar a prova da catéstrofe e do desastre, Essa é a proposta destes teoremas da resisténcia para 0 tempo presente, cujo enunciado insiste deliberadamente no mom o necessiirio do negativo: a politica é irvedutivel a ética ¢ & estética; a luta de classes € irredutivel as identidades comunitarias: 4 dominagao nao é solitvel nas beatitudles da globalizagdo mercantil, Quadisquer que sejam as palavras para expressd-lo, 0 comunismo € irredutivel as steas fa fticas; ificagées buroe 4 dialética da razao & irreduttuel ao espelho quebrado da pés-modernidade Diferentemente de postulados indemonstriveis, que supdem 0 consen- timento do interlocutor, ou de axiomas que apelam para a forca da evidéncia, trata-se de proposicées demonstraveis. Com seus corolatios ¢ seus escélios, esses “itredutiveis” e “insoliiveis” constituem uma critica do caldeiréo de culrura pés- moderna ¢ dos novos idolos de cinzas*, Agradeco a Christophe Aguiton, Sébastien Budgen, Alex Callinicos, Philippe Corcuff, Samuel Joshua, Eustache Kouv u Jakis, Michael Lowy, Francisco Louga, Stavros Tombazos, Slavoj Zizek, assim como a Alfred de Musser ¢ Auguste Blanqui, pela contribuicdo que deram, por meio de seus escritos ou de sua conversa, para este pequeno ensaio. Teorema | A POLITICA £ IRREDUTIVEL A ETICA E A ESTETICA Hannah Arendt temia que a politica viesse a “desaparecer compleramente do mundo” nao so pela aboligao toralitdtia da pluralidade, mas também por sua issolugio nas aguas glaciais do célculo egoista, A tendéncia & despolitizacdo do presente confirma esse medo. © espayo piiblico est laminado entre as pressGes do horror econdmico ¢ as lamentacées de um moralismo abstrato. Esse depauperamento da politica e de seus atributos (0 projeto, a vontade, a acao coletiva) impregna 0 jargio da pés-modernidade. Para além dos efeitos da conjuntura, a partir do momento em que as metamorfoses do trabalho ¢ 2 inquietacio ecoldgica evidenciam os maus-tratos contra o mundo, trate-se exatamente de um malestar ¢ de uma crise na civilizacao. O culto moderno do progresso bascou-se mais em uma cultura do tempo € do futuro do que do espaco. Reduzido a um papel secundério, 0 espaco era sindnimo de morte ¢ imobilidade. Opunha-se & capacidade criadora do tempo vivo, O sentimenco estimulante da rapidez, que vai além do desempenho das técnicas, tem seu segredo. As roragbes demoniacas do capital revolucionam sem cessar as condigdes de sua valorizagao. Essa vertigem da aceleragdo comprime o tempo no momento e apaga os lugares na dilatagdo dos espacos A estetizacao da politica consticui uma resposta recorrente as crises da democracia. © entusiasmo pelo local ¢ pelas proximidades, a busca das origens, © actimulo ornamental ¢ o simulacro da autenticidade revelam, de fato, a angistia contemporinea diante da incerteza da agéo politica. Desde a cidade gtega, a politica envolvia uma escela determinada de ¢ ago ¢ de tempo, simbolizados pelo perimetro da cidade ¢ pelo rirmo dos mandatos eletivos. Hoje, evoca-se com cada ver. mais freqiiéncia a cidadania, porque a cidade € 0 cidadio sio maltrarados pela desorganizacao geral das escalas ¢ dos ritmos, O moralismo bem-pensante esforga-se, assim, para recuperar rapidamente © que uma politica desmoralizada deixa escapar. Essa secrecdo intensa de suores éticos é caracteristica dos perfodos de medo e imporéncia, em que a ago busca suas justificativas ora aquém Bra além da politica, Contra essas efusdes, Freud observou sobriamente que uma mudanca de atitude dos homens em relagao & propriedade seria mais eficaz do que qualquer preceito ético, que nada mais rem a nos oferecer além da satisfagdo narcisista de podermos nos considera: melhor do que os outros. No entanto, continuamos a viver “num perfodo em que existem cidades ¢ em que se coloca © problema da politica porque pertencemos a esse perfodo <ésmico no qual o mundo foi abandonado a sua sorte”’. Portanto, ndo estamos livres da politica enquanto arte profana do tempo e do espaso, enquanto esforeo obstinado para rectiar os limites do possivel em um mundo sem deuses, Corolécio 1 \ histéria nao é soldvel no tempo pulvetizado, nem 0 projeto no instante sem futuro A tejeicao pés-moderna das “grandes narrativas”, aquelas do [uminismo, assim como as da epopéia proletiria, ndo significa somente uma critica legitima das ilusées do progress associadas a0 despotismo da razéo instrumental, Fla indica também uma desconstrugio da historicidade, uma cocrida ao culto do imediato, do efémero, do descartavel. Nesses tempos desabusados, de ilusdes sem {lusio ¢ de politicas apoliticas, nesses tempos de “crueldade melancélica”, sm que nao se desenvolvem mais projetos € programas, a grande desilusao nio é mais liber adora, mas destrutiva dos préprios fundamentos da culture’, Na combine 20 dos tempos sociais, a eemporalidade politica deve continuar aquela Cornelius Castoriadis, Le politique de Piaton (Paris, Seuil, 1999) * Ver Jacques Hassoun, Actualité dun malaise (Toulouse, Erés, 1999), do mefo-termo, entre o instante fugidio ¢ a eternidade inacessivel. Ela exige, a lo . partir de encéo, uma escala move do tempo e da decisao. Escolio — Como vai o mundo, senhor? = Ripido, senor Tao sipido que a politica ea hisrria sauna la acompanié-lo Blas foram subitamentsafecads pel rapier! Considerar 0 efeito como causa € caracteristica desses comportamentos mgicos do mundo. Em tum vzosecent, Jean-Marc Salmon extasase —- ate prodigios de um Monde @ grande vitese (Um mando em alta veloidade. ms exe pensadorsg’ aacelragio ndo tem de se explicada, ma vez que se exp is pela rapide, asin como. sono & expicado pels virtues sonra da camomila ou do dpio! A internet ctia globalizacto. A rapiderctia a riqueza «para completar, a felicdade! Internet, a globalizagio. A tecnologia rege a orquesira. O artigo do Libération que explica essa descoberta surpreendente lembrou 6 percurso do autor, “um homem de esquerda que nao se incomoda com nostalgias”: Ex-maoista de maio de 1968, cx-participante do movimento SOS Racismo e da Marche des Beuts, ex-participante do movimento contra o desemprego AC!, ex- membro da associaco Droit au Logement [Dircito & moradia], ex-militante do Partido Socialista ¢ de sua corrente Esquerda Socialista, ex-assessor de Daniel Cohn- Bendit na épaca das eleicbes européias...” Essas mudancas sucessivas mereceriam um camaleio de ouro € uma entrada triunfal no Dictionnaire des girouettes [Diciondrio dos cata-ventos], concebido por Prosny d'Eppe em 1831. * Jean-Marc Salmon, Un monde a grande vitesse (Patis, Seuil, 2000). Ver Libération, 10/11/2000. " Sigla de rain & grande vives: trem de alta velocidade. (N.T.) Marche des Beurs: marcha contra o racismo ¢ pelo reconhecimento ¢ integragio sos filhos de imigrantes do Magreb nascidos na Franga, realizada em 1983, de Marselha a Paris, por milhares de pessoas, Daniel Cokn-Bendit: politico francés, hoje deputado curopeu, Foi lider do movimento estudantil de Maio de 1968. (N. E. Sea velocidade faz a riqueza, ao homem que gira mais rapido que sua sombra est destinada uma bela fortuna. Mas isso jamais explica que milagre leva a circulado mercantil a wansformar o nada em ouro ¢ o virar a casaca em atividade produtiva. O ex mais rdpido do reinado ultrapassou a barreira do som. Ele nao vai demorar muito a atingir sua velocidade de escape. Corolario 2 O lugar e 0 local nao sao soltiveis no silencio assustador dos espacos infinitos A contradigéo entre a mobilidade geogréfica do capital (como moeda ¢ mercadoria) e a imobilidade relativa do trabalho aparece, na época do impe- Halismo absoluro, como a forma de desenvolvimento desigual e combinado dos espagos ¢ dos tempos sociais. A organizacdo hierarquizada dos territérios ¢ a importancia crescente do controle dos fluxos (comerciais e monetarios, de informagdes ou de matérias-primas) delineiam uma “nova ordem mundial” forte que reina sobre uma colcha de retalhos de Estados fracos, Ora, a agio politica tem seus lugares e seus ritmos prdprios. Os acontecimentos ganham nomes de cidades (Comuna de Paris, Petrogrado, Turim, Hambuzgo, Barcelona), de campos de batalha e de datas em que se deram (14 de Julho, 17 de Outubro, 26 de Julho). Enquanto a mercantilizaggéo do mundo ¢ o fetichismo da abstragio monetdria uniformizam os espacos, somente a lura de classes, sustentava Henri Lefebvre, ainda pode produzir diferencas espaciais irredutiveis & légica econémica tinica. Corolério 3 A conti géncia estratégica é irredutivel @ necessidade econdmica A arte da decisio, do momento propicio, da bifurca cio aberta para a esperanga € uma arte estratégica do possivel. Nao 0 sonho de uma possibilidade abstrata, em que tudo que nao ¢ impossivel seria possivel, mas a arte de uma possibilidade dererminada pela situagdo concreta: sendo cada situacéo singular, © momento da decisao ¢ sempre relativo a essa situacao, adaptado ao objetivo a ser atingido, Indo além das antinomias formais do sujeito ¢ do objeto, da estrutura ¢ do acontecimenco, do material ¢ do simbélico, do previsivel e do imprevisivel, a ruzio estratégica é a arte da resposta apropriada. Fla nao domina ituacio. Nao a sobrevoa, Nao a sobrepuja. Enraiza-se nela para novamente a siruagao. por em questio as sepras as normas estabelecidas Corolario 4 / O objetivo nao é sohivel no movimento, nem 0 acontecimento no processo O discusso da pés-modernidade concilia o gosto pelo acontecimento sem hiscia, simples happening em passado nem futuro, com 0 gosto pele Nudes sem crise, pela continuidade sem ruptura, pelo movimento sem objetivo. Em gua retorica da resignagéo, a destruicao do futuro atinge o grau zero da csttatgia: viver © momento, sem no entanto desfrusé-lo sem eneraves! Os arautos do futuro que desencanta contentam-se em pregar um “comunismo do 5, concebido como “um movimento gradual, permanente, sempre inacabado que inclui momentos de choques e rupturas™. Eles prop6em “um nove conccito 0, uma evolugéo revolu- de revolucao”, “um revolucionamento sem revolt ciondtia’, ou ainda uma “ultcapassagem sem demora”, em uma imediaticidade fora do tempo’, Para eles, “a revolugao nao € mais 0 que era, uma vez que nao hé mais momento tinico em que as evolucées se cristalizam’, “nao hd mais grande salto, grande dia da revolucdo social, nem limiar decisivo"*, mas um longo rio tranqiiilo de reformas gerenciais. A luz do social-liberalismo a0 molho financeiro da esquerda plural. “esse comunismo do ja’ tem um aspecto bem inexpressivo. Se nao hd momento revoluciondtio tinico, de epifania milagrosa ¢ de os decisivos ¢ limiares criticos a partir histéria, hd, no entanto, muitos momx dos quais se desencadeia uma légica do acontecimento. O desaparecimento da tuptura na continuidade corresponde & ilusio de um poder estatal soltivel na desalienagio i ndividual: “A formagdo progressiva de uma hegemonia leva mais +p : . sdiat (Paris, Plon, 1999) Piette Zarka, Lin communisme a swage immédiat (Paris, Plon, 199 * Lucien § ve, Commencer par les fins (Paris, La Dispute, 1999) * Roger Martelli, Le communisme, autrement (Paris, Syllepse, 1998) Pa cedo ou mais tarde ao poder nas condigées de uma anuéncia majoritéria”, garante Lucien Séve A austa de se dar tempo ao tempo, esse “mais cedo ou mais tarde” — versio modesta das “leis mecénicas da historia” — justifica uma politica fora do tempo, Ele afirma ignorar o circulo vicioso da reificagdo ¢ a reproducéo das servidoes involuntirias. A luz de um século em que osnomes proprios do desastre (Italia, Alemanha, Espanha, Chile, Indonésia) se seguem como as estacdes de um calvario, essa beatitude histérica parece bem imprudente. Coroldrio 5 A crise nao € solavel na eternidade majestosa das escruturas O passado de uma ilusdo, de Francois Furet, termina com um veredicto desesperadamente melancélico: “O individuo democrético vé tremer em suas bases, nesse fim de século, a divindade historia”, A ameaca de incerteza, junta- se 0 escandalo de um futuro fechado: “Eis-nos condenados a viver no mundo em que vivemos”. O capitalismo teria se tornado, entao, o fim da histéri 10 horizonte intransponivel de todos os tempos, Nao haveria mais depois, nem outro lugar. Estarfamos, a partir de entao, condenados a girar em cfrculos numa repeticao infernal das estruturas iméveis, como no pétio de um presidio, No entanto, ainda hé conflito contradiséo. Ha mais do que nunca um mal-estar na cultura e na civilizagio, Do mal-estar & crise, é apenas um passo, A crise € muito diferente de uma “guinada histérica’, que é, dizia Péguy, uma pobre “metéfora de um catrossel”, Ela sobrevém & intersecdo das presses da situagao e da contingéncia da aggo, Abre uma brecha no citculo vicioso das repetigdes, Faz seu buraco na o sta endurecida das dominacées, Semeia a desordem na rotina bem organizada dos trabalhos e dos dias. Nesses “pontos de crise” ¢ de “teviravolta”, a parte determinada liga-se a parte nao fatal do futuro, a Idgica histérica & irrupeao dos acontecimentos, A ctise ainda nao é 0 acontecimento, mas jd € seu antincio, uma porta entreaberta pela qual podem surgir a qualquer instante essas possibilidades téo distantes que a propria espera pareceria entorpecida, As horas entao se transformam, de repente, em minutos, € os anos em dias. Corokirio 6 , Auta politica ¢ irredutivel ao movimento soci a luta social ¢ a luta politica, nao ha nem Muralha da China nem re a . ancias 3 racéo absolura. A politica surge € inventa-se no soc al, nas resisténcias 2 separagao abs' hut 0 6 opresséo, no enunciado de novos direitos que transformam as vitimas em re ativos. Como instituigao sep: ; oe como encarnz¢a0 iluséria do interesse geral e garantia, apesa dee espago publico irredutivel 20 aperce privado, o Estado estrurura um ca politien especfio, ume relagio de forgas particular, uma inguager propria i conflito, Os antagonismios sociais manifestam-se af num jogo de mudangas e de dealiangase de oposigées. A luta de classes toma, assim, 2 forma arada que paira acima da “sociedade civil”, su condensagées, mediada de uma luta politica de partidos a ‘udo ¢ politico? Em certa medida e até certo ponto, Em “tltima instanci: se quisermos, € de diversas maneinas. se Entre partidos ¢ movimentos sociais, mais do que uma simples trabalho, ha uma seciprocidade ¢ uma complementaridade, Enquanco subordinacéo dos movimentos sociais aos partidos politicos seals i estatizacio do social, a dissolucio dos partidos no movimento social signi es ait ba ail lones um inquietante enfiaquecimento da politica, Reduzida a um prolong imitari: by cs ivo. A soma de interesses direto do social, ela se limitaria ao /obby corporati : particulates sem vontade geral acabariz delegando 2 uma burocracia todo- poderosa 2 representacao do universal. . A dialética da emancipagio néo € uma marcha inevitével ramo a um fim garantidot as aspiracbes ¢ as expectativas populases sio variadas, contraditozias, i ere ur én i de e uma demanda de freqitentemente divididas entre uma exigéncia de liberda ¢ em articulé-las ¢ conjugé-las seguranca. A fungio especifica da politica co por meio de um furaro histérico cujo fim continua incerto. Escdlio 6.1 Comentando ecimenro das opgées politicas auténticas € consi 01 © desapareci ‘© das op 0 tand a interferénc! cernati © so trai s, em alguns lo que a interferéncia das alternativas de classe so traduzidas, en i ns incoerentes € paises, por plataformas “arco-itis", concebidas como colagens incoerente slogans abrangentes indexados pelas pesquisas de opiniao, Zygmunt Bauman se pergunta sobre a capacidade que tém os “novos movimentos sociais” de fornecer uma resposta para a crise das politicas. Eles nio escapam dos tracos caracteristicos da pés-modernidade: um tempo de vida curto; uma continuidade fraca; a formaco de agregados tempordtios de individuos reunidos pela contingéncia de um tnico dano ¢ dispersadgs logo que o litigio € resolvido. Nao é uma questao, especifica Bauman, de falta de programas ou de dirigentes: em tempos de desacordo, essa inconsténcia € essa intermiténcia tefletem sobretudo 0 caréter ndo cumulativo dos softimentos ¢ das queixas. Portanto, esses movimentos de ambicées modestas nao sao muito capazes de cxigir grandes transformages em grandes questées. Sua fragmentagéo é 0 reflexo fiel da perda de soberania de Estado nacional, ele mesmo reduzido as fungées de vigia de seguranga e de repressdo penal no ambiente permissivo do laisser-fuire mercantil’. Richard Rorty suspeita de uma ligacao estreita entre pés-moderaismo € derrotismo politico’. Slavoj Zitek vé na disperséo dos novos movimentos sociais, na proliferacao de novas subjetividades, na volta aos “estados”, aos “status” € aos “corpos” a conseqiiéncia do obscurecimento da consciéncia de classe ¢ da resignagdo as decroras sofridas, A isso ele opde uma recusa radical do recalque do social ¢ do formalismo politico em voga nas “filosofias politicas” da tiltima década. O gesto que pretende tragar a fronteira entre politico ¢ nao-politico, para tirar da politica algumas areas (a comecar pela da economia), é, na verdade, de seu ponto de vista, “um gesto politico por exceléncia”. Escélio 6.2 Segundo Ernesto Laclau, a emancipaio seria indefinida e fatalmente contaminada pelo poder. Sua completa realizacao significatia 2 extingao cotalitéria ” Carta de Zygmunt Bauman a Dennis Smith, em Dennis Smith, Zygynunt Baseman, prophet of post-modernity (Cambridge, Polity Press, 1999) * Richard Rorey, Philosophy and social hope (Londres, Penguin Books, 1999). S 2 Yes, please!” em Judith Butler, Ernesto Laclau ¢ Slavoj Zizek, Contingency hegemony. universality (Londres, Verso, 2000), p. 95. oj Zick, “Class struggle or post-modernii daliberdade, A crise da esquerda seria o resultado de um duple aniquilamento do a faturo: a faléncia do comunismo burocratico e a bancarroca do reformismo juturot keynesiano. Se vo imaginério social”. Uma ver que Laclau renuncia, de cara, a qualque: nov 1 1s improvével renascimento passaria pela “reconstrucéo de um alternativa radical, 2 férmula é deliberadamente vag. Diante da nova domesticidade de cencro-esquerda e de suas causées rizek insiste, ao contrario, na necessidade de “manter aberto intelectuais, Slavoj ‘ 0 espaco ut6pico de uma alternativa global mesmo que ese espago sae “ permanecer yazio a espera de seu conteuido”. Na verdade, a oa ‘ exquerda” deve escolher entre a resignayio ¢ a recusa da chantagem liber segundo a qual toda tentativa de mudanca radical levaria necessariamente« um novo desastre totalitario. O proprio Laclau nao abandona nenhum objetivo de unificacéo. Mas a dispersio dos movimentos The parece insuperivel. Acéfalos, reticulares, rizomaticos, estariam condenados & inceriorizagao subalterna do discurso dominante, No entanto, podem também anunclar a teorganizacio das resisténcias nas diferentes esferas da reproducéo social e uma multiplicasao dos campos de luta. Seriam entéo portadores de especanea, desde que ultrapassassem sua atomizagio € pensassem sua articulacao. Sem isso, nao terlam outro futuro possivel a nao ser o papel de grupo de pressio de ambicao limitada; sua unificagdo autoritaria por meio da palavra de um chefe ou de uma vanguarda cientifica (um novo avatar do “socialismo cientifico” de sinistra meméria), ou a subordinagéo a uma vanguarda “ética” ¢ ao imperativo categérico da razao pura. Entio, esses movimentos nao conseguiriam mais se juntar na extensio do dominio da luta. Nos discursos da resisténcia, essa dificuldade é freqiientemente revelada, mas nao resolvida, pelas expresses “autonomia relativa”, “articulagéo” ou “homo- logia”. A “autonomia relativa” opde-se auconomia absoluta, mas relativa a qué? © que é que constitui a “homologia” entre os diferentes campos? O que torna sua “articulacéo” pensével po’ Os campos néo séo todos equivalentes. “Nas sociedades contemporaneas, 0 campo econdmico nao é realmente distinto dos outros universos”, escreve Bemard Lahire. Mesmo quando se cultiva a autonomia do campo no mais alto Sfau, acaba-se sempre por encontrar, em um ou outro momento, “a légica econémica, que € onipresente”*, Por sua vez, Pierre Bourdieu considera que © campo politico tem a particularidade de no poder se tornar completamente auténomo, uma vez que estabelece principios de visio e de divisao pertinentes em relacao a reproduc3o social. E particularmente 0 caso da oposicéo significativa entre divisio de classe e divisao de raca. A relacéo de exploracio ¢ a opressio de sexo desempenham, entéo, um papel particular. Ele se traduz pelo papel especifico e pelo lugar singular dos sindicatos edo movimento das mulheres nos “novos movimentos sociais”. O agente que, apesar de tudo, torna possivel a convergéncia das resisténcias, para além dos mtltiplos efeitos de dominacio prdprios & reificacdo mercantil, €0 proprio capiral. Escélio 6.3 Essas observagdes convidam a tratar com seriedade um debate curiosamente subestimado na Franca, O jargio filosdfico da pés-modernidade realmente significa, em suas verses dominantes, um adeus & luta de classes e a0 projeto de emancipagéo comunista. No entanto, um marxista heterodoxo ¢ critico deveria levar a sério sua interpelacéo, insistindo em novos encargos relativos & dialética do universal e do singular, da diferenga ¢ da alteridade. Deveria também considerar a producéo dos discursos ¢ das imagens uma dimensio essencial da reprodugio social e da domingo simbdlica. Enfim, deveria se dedicar 2 uma andlise aprofundada das condigées espaciotemporais da democracia polftica, Besnard Lahire, Le travail sociologique de Pierre Bouerdicu (Paris, La Découverte, 1999) Teorema 2 A LUTA DE CLASSES E IRREDUTIVEL AS IDENTIDADES COMUNITARIAS Durante muito tempo, o marxismo dito “ortodoxo” atribuiu ao proletariado uma misséo herdica: uma ver que sua consciéncia alcancasse sua esséncia, rornando-se o que ele ¢, ele seria 0 redentor de todaa humanidade. Para muitos, as desilusdes do dia seguinte so proporcionais as ilusdes da véspera: na falta de se tomar “tudo”, 0 proletatiado seria doravante reduzido a menos que nada. No entanto, a luta de classes nfo tem muito a ver com a sociologia positivista, Nao encontramos em Marx uma abordagem estatistica da questao. Nio pelo fato do estado embrionario da disciplina (cujo primeiro congresso internacional se deu em 1853), mas por razées mais fundamentais. Nio ha, em O capital, definigao classificatoria ¢ normativa das classes, mas um antagonismo dindmico que ganha forma, em primeiro lugar, no nivel do ptocesso de producio, em seguida, no do processo de circulacao ¢, finalmente, no da reproducao geral. As classes néo sao definidas somente pela relacéo de ptoducao na empresa. Elas sto dererminadas a0 longo de um proceso em que se combinam as relagdes de propriedade, a luta pelo salirio, a divisio do trabalho, as relacdes com os aparelhos de Estado e com o mercado mundial, as cepresentagdes simbdlicas e os discursos ideolégicos. Portanto, o prolecariado nao pode ser definido de modo resttitivo, em fungio do caréter produtivo ou nto do trabalho, que entra somente no livro I] de O capital, sobre 0 processo de circulagao’ Essas questées foram amplamente debatidas nos anos 1970, principalmente em opasigao 3s delinigGes restritivas entio desenvolvidas pelo partido comunisra No século XIX, falava-se em classes trabalhadoras, no plural. O termo alemao Arbeiterklasse ou a expressio inglesa working class continuam extrema- mente genéricos, “Classe ouvriére”, dominante no vocabulario francés, tem uma conotacio sociolégica propicia a equivocos. Ele designa principalmente o proletariado industrial, com excegio do assalariado de servigos ¢ de comércio, que se submete a condicées de exploracéo analogas do ponto de vista de sua relacio com a propriedade privada dos meios de produgdo, de seu lugar na divisdo do trabalho ou da forma salarial de sua renda. Marx fala de prolecdrios. Apesar de seu aparente desuso, 0 termo ¢ a0 mesmo tempo mais rigoroso mais abrangente do que classe operdria. Nas sociedades desenvolvidas, 0 proletariado da industria e dos servigos represen- ta de dois tergos a quatro quintos da populacéo ativa. A questéo interessante nao é a de seu anunciado desaparccimento, mas a de suas metamorfoses so- ciais e de suas representagées politicas. Embora seu componente industrial propriamente dito tenha tido uma baixa efetiva nos tiltimos vinte anos, ainda estamos longe de sua extingao, Como tessaltam Stéphane Beaud ¢ Michel Pialoux em sua pesquisa sobre Montbéliard, a “condicéo operatia” nao desa- pareceu, “tornou-se invisivel””, As cigncias sociais universitdrias tém certa res- ponsabilidade nessa ocultacao. Internacionalmente, a tendéncia forte € & “proletarizacao do mundo”. Em 1900, a estimativa cra de mais ou menos 50 milhdes de trabalhadores riados em uma populacao global de 1 bilhao de habitantes. Calcula-se, hoje, por volea de 2 bilhées em uma populagio de 6 bilhoes. assal: A questéo é tedrica, histérica ¢ culeural, assim como socioldgica, O historiador inglés E, P. Thompson dizia graciosamente que “nao se pode falar (especialmente em seu ctarado sobre o capitalismo monopolista de Estado) ou, 2 partir de outras consideragdes teéricas, por Nicos Poulantzas, Poder politico e classes sociais (S40 Paulo, Martins Fontes, 1986) ¢ Clas no capitalismo de hoje (Rio de Janeiro, Zahar, 1978), ou por Baudelor ¢ Establer, La petite bourgevisie en France (Paris, Maspero, 1970). Ver também 2 colegao de revistas Critique de (Economie Politique, Critique Communiste, Cahiers de la Taupe Scéphane 1999). jeaud ¢ Michel Pialoux, Retour sur la condition ouvridve (Paris, Fayard, de amor sem amantes”, nem de classes sem atores. Sua insisténcia na “formacao” das classes salienta que se trata “de um processo ative”: elas nao surgiram em um determinado momento, “como o sol”, mas sio “partes interessadas em sua propria formacio”. Nao se trata de uma escrutura imével nem de uma categoria defnitiva, mas de um fendmeno histérico que nao se pode cristalizar em um momento particular de seu desenvolvimento, Assim, pode-se falar de classe “quando apés experiéncias comuns, que pertencem & sua heranga compar- tilhada, os homens percebem ¢ articulam seu interesse comum em oposi¢ao a outros homens cujos interesses colidem com os seus". As classes se autopro- duzem, seguindo um processo de cristalizagao de interesses coletivos, de uma consciéncia desses interesses e de uma linguagem para expressd-los, Elas se situam no ponto de encontro entre um conceito tebrico € uma declaragéo que nasce da luta, © sentimento de pertencer a uma classe resulta do trabalho politico ¢ simbélico, assim como de uma determinagio socioldgica. Numa perspective inspirada em Edward Thompson, Pierre Bourdieu distingue a “classe provavel” da “classe mobilizada’, Por que provavel e nao improvavel? Reciprocamente, as intermiréncias de sua mobilizagio significam imento da consciéncia de classe uma eclipse de sues probabilidades? © obscure implica o desaparecimento das classes ¢ de suas lutas? Ele € conjuntural, ligado ao fluxo e refluxo das relacdes de forga? Ou estrurural, em fungao dos novos procedimentos de dominaco sociais ¢ culturais, que Michel Surya resume na nocao de “capitalismo absoluto”? Se a efetividade da luta de classes ¢ ampla- mente arestada pelas resisténcias cotidianas ao despotismo de mercado, a fragmentacao individualista pés-moderna permite que se reconstituam coletivi- dades solidarias? A generalizacao do fetichismo mereantil e da alienagao consu- mista, 0 reino do efémero e do instantanco, o frenesi do clip ¢ do zapping ainda petmitem formular projetos durdveis, para além dos momentos de intensidade de fuséo sem dia seguinte? No entanto, quem ousaria duvidar serlamenre da existéncia da burguesia aburguesante? Ela ndo é apenas uma “classe provével”, mas uma “classe mobi- rd Palmer Thompson, A formuagiia da classe operdria inglesa (Sao Paulo, Paz Terra, 1997) lizada”, que 0 Medef” encarna muito bem’. Em suma, a prova da luta de classes € 0 bario Seillitres” em pessoa. Como alvo da flexibilidade, da individualizagso do processo de trabalho ¢ da atomizacao social, os trabalhadores nao se transformam, por outro lado, em trabalhadores sem classe? Tendo demonstrado que a “condicao operiria” subsiste, Stéphane Beaud ¢ Michel Pisloux se perguntam sobre o destino mais incerto da “classe operéria”. Algumas correntes da sociologia critica salientam o aspecto construtivista da nogao de classe: ela nao seria o reflexo da realidade, mas 0 produto de uma construcao tedrica. O construtivismo é um vasto titulo. Lembrar que toda nogio tedrica ¢ um “constructo” é uma banalidade. Ha muito tempo se sabe que o conceito de cio nao late € que as palavras nio sio as coisas. Mas 0 que seria uma coisa inomindvel? E, sem as coisas, as palavras do seriam sem sentido? Para que o conceito de cio seja inteligivel, € preciso que de fato existam c&es reais, que latem ¢ que mordem. E preciso que a palavra tenha uma relago com a coisa. Por mais “construida” que seja, a ‘mao invistvel do mercado” comete crimes bem reais! A luta de classes nao existe indepen- dentemente das palavras que a expressam, mas essas palavras supdem uma realidade dizfvel. Se se trata de afirmar, cm nome do construtivismo, que todo conceito ¢ pura convengao de linguagem e resultado de relagdes de forgas no campo tedrico, cai-se em um idealismo lingiifstico, de resto, extremamente paradoxal: se a luta de classes fosse, antes de mais nada, um efeito de linguagem, esta seria uma razdo a mais para privilegiar essa representacio do mundo em oposicéo As suas representagdes em termos de enfrentamentos raciais, étnicos ou religiosos! ‘Nas turbuléncias da globalizac4o mercantil, o declinio da consciéncia de classe (principalmente em sua dimensao internacionalista) ¢ a crise das legitimidades * Mouvement des Entreprises de France: organizac3o patronal que representa os dirigentes das empresas, criada em 1998 para subscituir 0 Conseil National de Patronat Frangais (CNPF). (N. T.) Ver Michel Pingon e Monique Pingon-Charlot, Nowveiex patrons, nouvelles dynasties (Paris, Calmann-Lévy; 1999) ¢ Sociolagie de la bourgeoisie (Paris, La Découverte, 2000). ™ Ernest-Ancoine Seilligres, empresario francés, foi presidente do Medef de 1997 a 2005. (N. 1.) 38 sacionais alimentam uma visio racial ou religiosa dos conflitos comunitétios. As nulsoes purificadoras em ago nos Balcis se inscrevem numa tendéncia planetéria ito mais inquietante do que imaginam as inteligencias servis da Oran quando “comunista’. se contentam em ver nisso os tiltimos sobressaltos do totalitarism A wansformagio tendenciosa de um conilito nacional entre israelenses e palestinos em guetta de religides entre judeus e mugulmanos dé um novo exemple disso. Escélio 1 A publicagdo recente de um texto inédito de Lukes, em defesa de Histéria consciéncia de classé, contradiz cm parte a interpretagdo segundo a qual sua representacso do Partido seria a forma enfim encontrada do Espirito absoluto hegeliano’, Condenado por “subjetivismo” em 1925, durante o V Congresso da Internacional Comunista ¢ da “holchevizagdo”, recusou um ano depois a tese segundo a qual o prolerariado estaria condenado a agir de acordo com seu ser sendo 0 papel do Partido limitado, entio, a “antecipar esse desenvolvimento” O papel espectfico (politico) do Partido resulta precisamente, segundo cle, do fato de a formacdo da consciéncia de classe se chocar permanentemente com o fendmeno do fetichismo ¢ da reificacao. Como ressalta Slavoj Zidek em seu posficio, o Partido desempenha entéo o papel de meio termo de um silogismo entre a universalidade da historia ¢ a particularidade do prolerariado, Para a socialdemocracia, a0 contrdrio, o proletariado seria o meio termo entre a historia € a ciéncia encarnada por um partido educador. Enfim, para os stalinistas, 0 Partido se prevaleceria do “sentido da historia” para melhor legitimar sua dominagio sobre o proletariado. Escélio 2 Fm uma polémica com Slavoj Zitek, Ernesto Laclau enfatiza que nada de realmente anticapitalista surge espontaneamente das aspiracdes operirias. O * Encontrado recentemente na Hungria, esse texto de Lukécs foi publicado em inglés com 0 titulo ln definse af History and class consciousness: tailiso and she dialectic (Londres, Verso, 2000), acompanhado de um posficio de Slavoj Zitek, 39 argumento segundo o qual a lute de classes seria portadora de universalidade por se enraizar no cerne do sistema, enquanto as lutas culturais ou relativas & identidade setiam facilmente integraveis a sua reptodugio, parece-lhe to pouco convincente quanto o acordo de incorporar (mesmo com uma obstina¢do cheia de subentendides) a exploragao de classe & lista das opressdes mais vatiadas (sexuais, nacionais, raciais, religiosas ou de geracées). Na problemitica de Marx, © conflito de classes ndo deveria se juntar as diversas identidades sociais. Ele constitui o préprio eixo em torno do qual se articulam e se definem as identidades: “Ao ser inscrito em uma lista, 0 termo classe perde esse papel, sem adquirir em troca nenhum significado preciso”, Ele se torne “um significante flutuante”®, Laclau conclui entao que a luta de classes no tem o menor papel privilegiado a desempenhar. Para Zidek, a0 contrério, os elementos da luta pela hegemonia no sio equivalentes: 0 conflito de classe determina todo 0 encadeamento. Uma compreensio nao redutora da teoria de Marx implica nao considerar a cultura nem simples teflexo da relagao de produgao, nem elemento externo a formacao das relagses de classe. Quando as classes sao percebidas em termos de “raga” ¢ de “sexo”, as andlises em torno dessas questées nao constituem acréscimos acessérios ou suplementos da alma; a articulagio do conjunto baseia-se na relacio estreita entre exploragio € optessio, modelada pela dominacao do capital. Em sua critica do “novo espitito do capitalismo”, Luc Boltanski e Eve Chiapello restabelecem, com toda a razio, o vinculo orginico entre exploragdo ¢ exclusio no cerne de suas contradigoes. Escolio 3 Uma redefini¢&o global das estruturas territoriais, das relagées juridicas, dos lagos sociais, atualmente na ordem do dia, tende a reconstituir as condigies da acumulacdo do capital e da reprodugio da relagdo social apoiando-se nas “novas cecnologi © Judith Butler, Ernesto Laclau e Slavoj Zitck, Contingency, hegemony, universality, cit. p. 297. sence A crise de “mutagao” de forgas politicas tradicionais, como a democracia- 9s consetvadores britinicos ou a direita francesa tradicional, 0 questio- amento da funcio que elas desempenharam, desde a Guerta, no compromisso constitutive do Estado social ¢ na coesto do Estado nacional, inscrevem-se nessa perspectiva, Nela também se inscrevem as transformagées da socialdemocracia curopéia. Por meio da privatizacéo do seror piblico, as elites gerencials privadas anobreza do Estado integram-se organicamente as camadas dirigentes da burguesia. Confiantes na fraqueza das direitas tradicionais, os partidos socialde- moctatas so assim conduzidos a desempenher 0 papel motor ad interim na adaptasao do capital 3 evolugéo do mundo atual. Eles carregam em sua érbita os restos dos partido pds-staliniscas, atormentados por seu passado insupertvel, ea maior parte dos partidos verdes, hipnotizados pelas delicias de uma insticucionalizagao acelerada, Por meio do “novo centro” ou da “terceira via” caros a Tony Blair, Gerhard Schitider, Bill Clinton ¢ Romano Prodi, delineia-se assim, no mapa social europeu minimalista ou por trés da “refundacio social” do patronato francés, nao um liberalismo sem regras, mas uma forma inédita de liberal-corporativismo ou de liberal-nacionalismo, Seria preciso ser miope para nao ver 0 populismo em sua inica variante francesa de um “soberanismo” & moda de Pasqua e Villiers’. A cruzada em favor da participagio aciondria dos assalariados ¢ dos fundos de pensio privados em detrimento da solidariedade mutualista visa congelar as desigualdades ¢ perenizar a regressio dos direitos sociais imposta durante os anos da ctise. A “refeudalizacao” do laco social pelo viés dos contratos interindividuais, sindnimos de subordinagéo pessoal, triunfa sobre a relagao baseada na lei impessoal teoricamente igual pata todos. Delincia-se nitidamente uma nova forma de associagao capital-trabalho, da qual uma pequena camada de vencedores consegue se safar em detrimento da massa vitima do desastre da globalizacdo. ‘Charles Pasqua e Philippe de Villiers, policicos franceses de diteita, ul:aconservadores, Criaram em 1999 a chapa Reunido Pela Franca (RPE), para disputar as cleicies ao Parkmento Europeu, mas depois romperam (Charles Pasqua foi condenado, em 2008, 2 dezoito meses de prisio isentos de cumprimento pelo financiamento ilegal dessa campanha). Philippe de Villiers preside desde 1994 0 Movimento Pela Eranga (MPF), € foi candidato as eleigdes presidenciais de 2007. (N. E.) 4 Essa tendéncia é perfeitamente compativel com formas convulsivas de nacional-liberalismo 4 Putin ou Haider. Putin é produto do desmembramen to de um impértio burocratico e do advento de um capitalismo mafioso. Haider € produto de uma situacio marcada pela destrtiggg da zona-tampao no Leste, pela integragao da Austria 4 Unido Buropéie ¢ pelo aumento de populismos repionais vingativos. Também € rebento dos treze anos de co- gestio entre conservadores e socialdemocratas, de uma opeio de construgio européia liberal ¢ de politicas de austeridade impostas em seu nome. Por isso, foi estupidez diabolizé-lo invocando a analogia com os anos 1930 para legi- timar a unigo sagrada de boas consciéncias consensuais em nome de um antifascismo reflexo. E necessdrio Jucar contra Haider (sem esquecer a complacéncia de seus detratores bem-pensantes em relagéo a Berlusconi, Fini, Millon e Blanc’). E necessério também apoiar as oposigées austrfacas, em yer de acreditar na possibilidade de isolar a Austria por longos anos, proibindo seu acesso 4 Unido Européia. Porém, mais do que reencenar como farsa as tragédias de ontem ou anteontem, é urgente refletir sobre as ameagas inéditas do presente: 0 papel dos regionalismos (catintianos ou padanianos) na reconfigurecig européia, as bodas de sangue do nacionalismo e do liberalismo, chauvinismo dominador da “Europa-poderosa”, Manchete de uma entrevista coletiva & imprensa, “Blair e eu contra as forgas do conservadorismo”’, Haider nao perde humor negro: “Nossos dois partidos querem escapar da rigidez do Estado-Providéncia sem criar injustica social”; ambos querem “a lei ¢ a ordem”; ambos consideram que aqueles que se encontram em condigées de trabalhar nao devem ser estimulados a inatividade * Silvio Berlusconi, empresirio e politico italiano de direita, atual primeiro-ministro da Icilia, foi acusado de corrupeao e ligacoes com a mafia ¢ apoiou a guerra dos Estados Unidos contra o Iraque; Gianfranco Fini, jornalista ¢ politico italiano, ultracon- servador de dircita, é presidente da Camara de Deputados da Ielia; Charles Millon, politico francés, fundador do parcido da direita liberal crist, foi ministro da Defesa no governo Juppé Etienne Blanc, advogado ¢ politico francés de diteita, € depurado: na Assembléia Nacional francesa. (N. E.) > Daily Telegraph, 22/2/2000. | i } pelas formas de assistgucia. B também 0 que proclama o Medef ao atacar 0 seguro-desemprego. Como Blais, Haider avalia que “a economia de mercado pode criar novas possibilidades pera 0s asalariados ¢ para as empresas’, desde que rfaco © partido trabalhista beitanico ¢ o partido liberal aus gja flexibilizada [Freiheitliche Parcei Osterreichs — FPO] compartilhariam uma abosdagem “nao dogmética do mundo em plena transformagio em que vivemos’, enquanto “as : “Blair m os acordos velhas categorias de esquerda ¢ de dircita se tomam caducas”, Conclusa © Partido Trabalhista sio de direita sob 0 pretexto de que aceita de Schengen e sao favoriveis a uma legislagao estrita sobre a imigragao?”, “Se Blair nao 6 extremista, entio Haider também nao ’* C.Q.D. Na verdade, Haider no é uma simples réplica nostdlgica do nacionalismo dos anos 1930, mas um nacionalista liberal contemporaneo, partidério da Oran, da moeda Gnica, da ampliagéo da Unido Européia, Por isso continua prisionciro dacontradigéo entre seu eleitorado e seu programa. Por isso também a politica de sangées ¢ de isolamento praticada durante um ano pelos governos europeus estava condenada ao fracasso ¢ a0 ridiculo, Corolério 1 ‘A discérdia social nao é solivel na harmonia comunicacional Avcxemplo da misic, a comunicagéo ¢ o comércio foram considerados capares de arenuar os habitos rides do mercado. Alguns sonham apaziguar 0 mundo por meio de uma lingua comum universal, volapuque ou esperanto. Vilfredo Pareto imaginou um diciondrio da comunicagao perfeita, que climinaria os equivocos € 08 mal-entendidos, fontes de conilico, Gramsci respondeuche que “os pragmaticos teorizam absccatamente sobre a linguager como causa do erro”. Néo seria possivel reduair uma lingua viva a uma técnica utiliciria, desprovida de significados metaféricos ¢ de equivocos polissémicos. Gramsci pereebeu muito bert ligacio de parentesco entre o formalisme légico dla “tegra do jogo” eo formalismo juridico das teorias da justica. * Idem. 43 Enquanto os sujeitos consensuais da comunidade comunicacional ideal aparecem como anjinhos etéreos ¢ ectoplasmas sem emogées nem paixdes, a lingua é um lugar em que os “falantes” se enftentam: 0 discurso peremptdrio dos dominadores ¢ a palavra subalterna dos doming dos. “O agir comunicacional” Go escapa dos conflitos e das relagdes de forga, Hd palavras que ferem e palavras que matam, Corolatio 2 A diferenga conflituosa nao ¢ soltivel na diversidade indiferente Contra a reducio dogmitica de qualquer conflito social ao conflito de classe, a hora ¢ da pluralidade de campos ¢ de contradisées. No entanto, na consa- gracao da mercadoria, a abstracéo monetéria nivela as qualidades ¢ os valores. Assim, ndo haveria mais oposicgo irredutivel entre vermelhos e brancos, entre burgueses ¢ proletdrios, entre possuidores ¢ possuidos. Seu antagonismo se anularia em uma humanidade média, reduzida a uma cliencela de sondados ¢ aum po cinaa de “gente” sem qualidades. Nao haveria mais esquerda nem direita, mas um Aomo politicus ambidestro. Nem panos de prato nem toalhas de mesa, mas um monte de tapos. Nao sé as oposicdes de classe, mas qualquer diferenca conflituosa se tornatia soltivel no que Hegel denominava “uma diversidade sem diferenca”, uma constelagio de singularidades indiferentes. Cada individuo é uma combinagao original de pertencas miiltiplas. Mas a maior parte dos discursos da pés-modernidade faz a critica da valgata ortodoxa até dissolver as relagées de classe nas aguas turvas do individualismo metodolé- gico. A defesa da diferenca se reduz entao a uma tolerdncia liberal repressiva, simples no que diz respeito ao consuiidor da homogeneizacio mercantil. Contra esse simulacro da diferenca ¢ seu individualismo sem individualidade, as reivindicagoes de identidade tendem inversamente a hipostasiar ¢ a nacura- lizar as diferencas de sexo e de raga, Esse “narcisismo de pequenas diferencas”, descobetto outrora por Freud, € propicio a volta dos ancestrais ferozes, 3 arqueologias identitérias, aos panicos comunitarios que constituem tantas respostas alienadas a uma situagéo inédita, Como apontou o saudoso Jacques 44 Hassoun, essas hipostases da “pequena diferenga” permitem “despertencer-se” como cidaddos ou membros de uma classe social, para aderir melhor a uma “etnia matricial” € enguer locais de adoracao sobre as ruinas desoladas da praca publica A dialética da diferenga ¢ da universalidade est4 no centro das controvérsias sobre a questao da paridade, assim como no papel do movimento homosexual. Enquanto a diferenga representa uma mediagao entre o singular e 0 universal, a diversidade em migalhas renuncia a qualquer horizonte de universulidade Quando se renuncia ao universal, adverte Alain Badiou, o que triunfa ¢ 0 horror universal, O que est4 em questéo nao é a nogio de diferenga (ela permite construir oposig&es estruturantes), mas sua naturalizacao biolégica ¢ sua absolutizacao identitéria. A “Queer Theory” angio-saxénica proclama, assim, o desapare- cimento das diferengas em um reflexo flutuante de singularidades’. A Logica das necessidades sociais dilui-se entao na fome de consumo compulsive e na retdrica mortifera do desejo. Vivendo no momento uma sucessio de identidades sem histria, 0 sujeito queer nao é mais um(a) homossexual militante, mas um individu ambivalente, um feixe de sensacdes fugazes e de desejos versiteis. Nao é de espantar que a industria culeural americana tenha aceitado esse discurso com uma relativa benevoléncia. A celebracao do fluido e do labil convém ao fluxo incessante das trocas ¢ das modas. A transgressio, que desafiava as normas ¢ preparava a conquista de noves direitos, banaliza-se assim nos éxtases liidicos da subjetividade consumista Enquanto 0 movimento gueer proclama a abolicdo das diferengas de género em prol de orientagdes sexuais individuais nao exclusivas, enquanto Queer: bizarro. Originalmente, trata-se de um insulto devolvido pelos homos- sexuais para afirmarem uma difcrenga que concebe a homossexualidade nao mai como uma diferenga em relagéo & heterossexuslidade, mas como uma descons- trugio da norma. A Queer Theory inspirou Queer Studies universitarios, dos quais a filésofa de Berkeley, Judich Butler, é uma eminente tedrica. Sea ensaio com 0 significative titulo de Problemas de género (Rio de Janciro, Civilizagao Brasileira, 2003), publicado originalmente em inglés em 1990, suscitou debates calorosos ¢ importantes, ilustrados principalmence por Nancy Fraser em seu livto Justice interruptus: critical reflections on the “postzocialist” condition (Nova York, Routledge, 1997). desvaloriza qualquer afirmasao coletiva como obrigatoriamente redutora, Jacques Fortin esboca, ao concririo, em seu Adiew azx normes, uma dialética da diferenca, necessdria ao estabclecimento de uma relacio de forca diante da opresséo, ede seu enfraquecimento, inscrito numa perspectiva historica de uni- versalizacdo concreta”, Escélio 2.1 A propésito disso, desenvolveu-se uma tica discussio entre Nancy Fraser, Judith Butler e Ric redistribution a la reconnaissance” [Da redistribuiggo a0 reconhecimento], ificativo titulo “De la rard Rorty'". Em um aftigo com o sigi Naney Fraser busca reconciliar a reivindicagao de identidade do multiculeu- ralismo € a politica keynesiana da socialdemocracia cldssica, Contra a sactalizagao ¢ a teificagao das identidades e contra a tirania de um comunitarismo reptessivo (que exerce uma pressio normativa no grupo, seja ou nao homosexual), ela prop6e uma sintese entte as politicas de reconhecimento e de redistribuigéo, que nao mais oporia as identidades exclusivas 2 humanidade fracionada. Tratar o “néo-reconhecimento” (mivecognition) como “um dano cultural auténomo” levatia, a0 conteitio, a cortar a injustiga cultural da matriz institucional ¢ das desigualdades econdmicas. Nancy Fraset parte, portanto, de uma distingéo entre injustica de disctibuicao e injustica de reconhecimento. As segundas ndo sio “simplesmente culturais’, mas decorrem de modelos de avaliacio ¢ de relagées sociais institu- cionalizadas irreduciveis a uma ma distribuicéo (misdistribution) de recursos € de riquezas que a ela podem estar ligados. Introduzindo uma distingdo entre classes sociais ¢ status sociais, ela formula a hipdtese de que © proceso de diferenciagdo, salientado por Max Weber ¢ exacerbado pelo capitalismo tardio, aprofunda a distancia entre classes ¢ status. Ndo-reconhecimento ¢ ma distri- " Jacques Fortin, Homorexualités, ladiew ane normes (Paris, Textuel, 2000). “Os artigos de Judith Bucler e Nancy Fraser foram reproduzidos nos numeros 227 ¢ 228 da New Lefi Review (1998). A revista Mouvements (n. 12, nov-dez. 2000) publicou um debate esclarecedor entre Richard Rorty ¢ Naney Fraser. buicéo ndo séo mais, entio, “mutuamente conversiveis”. A questao decisiva é que “6 no-reconhecimento constitui uma injustica fundamental, esteja ou ndo ada a uma desigualdade de distribuigao”. Nao ha necessidade de demonstrar que ela pode produzie discriminagdes econdmicas ¢ sociais (0 que pode ontecer com os gays € com as lésbicas) para exigir que esse dano seja reparado. As injusticas de status devem ser consideradas tao sérias quanto as injusticas relativas & distribuigéo as quais elas néo podem ser reduzidas: “Os dois tipos de danos séo fundamentais ¢ conceitualmente irredutiveis um a0 outro” Richard Rorty admite que 0 termo “reconhecimento” possa descrever 0 que almejam os negros, as mulheres ou o(a)s homossexuais, mas salienta 0 cardter arbitrdrio dessa enumeragéo minuciosa de comunidades que demandam ser “reconhecidas”. Segundo ele, essa “necessidade de reconhecimento” substitui “a climinagao dos preconceitos” que designava hd algum tempo a luta contra as disctiminac6es. Passar-se-ia, assim, da negacio dos danos infligidos para a reivindicacao positiva de uma identidade, da “humanidade fracionada” para 0 “econhecimento de diferencas culturais”. Esse deslocamento da revolucao politica frustrada para a revoluggo cultural (ou do social para o “societal”) seria conseqiiéncia de uma conjuntura de recuo ¢ decepeao. Ele tem um preco: uma revoluedo cultural dos costumes, desvinculada de uma perspectiva de revolugao politica, levaria & tribalizagao das culturas € @ fetichizacao de diferengas sem horizonte de universalidade. Para Rorty, a via do universal néo passa pela diversidade das culturas, mas pela diversidade dos individuos “que constroem a si mesmos”. Ele propée que novamente se dé prioridade ao econdmico em relacio ao cultural, & redistribuicdo social e & luta contra os preconceitos discriminatérios remanescentes. Em sua resposta a Rorty, Nancy Fraser sustenta que, em vez de renunciar a qualquer politica de reconhecimento, é preciso reformulé-la em termos de status. Pois o ndo-reconhecimento no se contenta em depreciar uma identidade de grupo. Constitui um obstéculo a participacao politica compartilhada. Trara-se, entio, de “vencer a subordirlacéo por meio de uma desconstrugao dos cédigos gue se opGem & paridade participativa ¢ de substitui-los pelos cédigos que a favorecem”. As formas de néo-reconhecimento nao sc reduzem a subprodutos das relagdes de exploracao que uma politica de redistribuicao eqititativa seria suficiente para eliminar, Recorrer & categoria de status, distinta da de classe, 47 permitiria nao rejeitar a necessidade de reconhecimento com a politica de identidade. O reconhecimento em si ¢ insuficiemte, No entanto, nao se trata de remontar ao tempo para retomar as politicas redistributivas da esquerda, como reivindica Rorty, Nancy Fraser opée-se, ao concritio, 40 desacoplamento de uma esquetda cultural ¢ de uma esquerda social (distincao retomada por Jacques Julliard quando opés esquerds moral ¢ esquerda social, movimento de migrances ilegais ¢ greves salariais), Com a condicao de néo contradizer 0 respeito ao que ¢ comum (o que o poeta Jean-Christophe Bailly denomina “o em-comum’), 0 reconhecimento cultural pode ser um reconhecimento da universalidade recusada ¢ pode desencorajar a logica de separacéo e 0 comunitarismo repressive. Traca-se, entio, de “complezar o respeito pelo universal com a atengao voltada para as diferengas” ¢ “de opor uma dose saudével de ceticismo desconstrutivo a qualquer sistema classificador’”. Escélio 2.2 Acusa- a de subordinar as (utas contra a opress4o heterosexual & |uta de classe contra a Judith Burler acusa Nancy Fraser de um “marxismo neoconservador”, exploracdo capitalista. Insiste na fecundidade da “autodiferenciacao” dos movi- mentos sociais, que tornaria possivel coletivos nao identitatios. Se, como susten- tavam as feministas dos anos 1970, a luta concra a familia desempenhava um papel decisivo na reprodugao social, a luta contra essa regulacao familiar ameaca- ria diretamente o préprio funcionamento do sistema. Butler conclui entio que a regulagdo heteronormativa das relagoes sexuais é parte integrante da estrutura 0 social do trabalho nem 0 modo de econdémica, “embora nao estruture a divis exploragio da forca de trabalho”. Para Nancy Fraser, a distingZo entre 0 econ6mico ¢ 0 cultural esté no centro da discusséo com Judith Butler, cuja conduta aistérica faz do modo de regulacéo sexual um elemento invariante da relacio econdmica através das épocas, Critica- a por estender abusivamente 2o capitalismo tragos especificos de relagoes de parentesco especificas das sociedades pré-capicaliscas (principalmente a auséncia de diferenciacao entre relagdes sociais ¢ estrutura econdmica). Exige, a0 contritio, que se historicize a distingdo que se torna essencial no capitalismo tardio. Temendo 48 que historicizar as relacoes de reconhecimento levasse a relativizd-las, Burler cometeria um contra-senso, A histoticizacio permitiria precisar sua fungao € avaliar melhor a defasagem entre classes ¢ status, Seria poss(vel, entao, suprimir zbisme entre correntes multiculturalistas, preocupadas com o reconhecimento social, ¢ correntes sociodemocratas, ligadas a justica social. Para Nancy Fraser, os danos causados aos gays ¢ & lébicas evidentemente 10 s40 apenas simbdlicas. Eles envolvem disctiminagées juridicas e econdmicas. As injustigas de “ndo-reconhecimento” sao tao materiais quanto as da distribuicgo parcial das riquezas. Ela descreve “a esséncia do nao-reconhecimento” como “a construcéo material de uma classe de pessoas desvalorizadas ¢ impedidas de uma participacio igual” na vida comum, Ao derivar da estrusura econdmica os danos culturais, Butler acabatia acteditando que a transformagio das relagées de re- conhecimento seria suficiente para transformar mecanicamente as relagées 0, sé € necessdrio mudar a estructura de distribuicao. Fraser pergunca, en econémica do capitalismo contemporineo para reparar os danos econdmicos infligidos aos homossexuais. Ela pede que nos interroguemos sobre o que é preciso entender exatamente como “estrutura econémica’. A regulacio hete- ronormativa resulta diretamente da economia capitalista ou de uma hierarquia de status “articulados de maneira complexa”? De modo mais geral, as relagdes de reconhecimento coincidem na época do capitalismo tardio com as relagées econd: micas? Ou as diferenciacées proprias do capitalismo contemporaneo se traduzem por uma distancia maior entre os status € as classes! Em sua controvérsia com Rorty e Butler, Nancy Fraser levanta questées pertinentes e desenvolve argunentos sélidos. Uma vez que a discussio tem por objeto as injusticas de reconhecimento ¢ de redistribuigio, nao se vai além da formula evasiva segundo a qual elas esto “relacionadas de maneira complexa”. Aparecem, assim, desvinculadas das relagdes de produgio. A nogao problemécica de “estrututa econdmica” ngo é suficiente para preencher essa lacuna. Em Marx, O capital é 0 sujeito de um processo nao estritamente “econdmico”, Ele articula 8 processos de producao, de circulagao (portanto, de distribuicso) ¢ de reproducdo simulcaneamente. A “critica da economia politica” é antes de mais nada, uma critica do fetichismo econémico ¢ de sua ideologia, que nos condenam a pensar “a sombra do capital”. Ao dissociar desse movimento Conjunto as injusticas, contentamo-nos em corrigir as discriminagées ¢ retificar 49 ama distribuicdo, sem ter de revolucionar as relagdes de producéo e, portanto, as relacées de propriedade. A reconciliagao entre esquerda cultural ¢ esquerda Aixados pelo desporismo socialdemocrata torna-se assim concebivel nos limit de mercado. Escélio 2.3 Alguns autores opdem a categoria bioldgica “sexo”, “mais concreta, specifica ecorporal”, i categoria social “géneto”, Pretendem superar assim 0 “Feminismo dlo género” em prol de um “pluralismo sexual” de geomettia varidvel. Nao é de espantar que rejeizem tanto 0 marxismo quanto o feminismo critico. Para eles, as categorias marxistas teriam constituide uma ferramenta eficaz pelo periodo de tempo em que se tratava de pensar as quest6es de género ligadas as relagdes de classe ¢ 4 divisio social do trabalho, Em compensacéo, para compreender “o poder sexual” ¢ fundamensar uma economia dos desejos distinta daquela das necessidades, seria necessaria uma teoria biopolitica auténoma, ‘A nova tolerancia mercantil e repressiva do capital em relagio ao mercado gay leva, no entanto, a matizar a idéia segundo a qual as orientagbes sexuais jimprodutivas seriam, por natureza, contraditérias com o principio de rendi- mento capitalista. A percepcéo, historicamente fundamenrada, de um antago- nigmo irredutivel entre a ordem moral do capital ¢ as orientacSes homossexuais levou a se acreditar que a simples afirmagio da diferenga seria um fator suficiente de subversio espontiinea: bastaria que os homossexuais se assumissem como tais pata abalar a ordem social e moral estabelecida. A critica da domi- nagéo homofobica esgota-se, entio, no desafio da auto-afirmagio ¢ nas hipdstases da identidade, Se as eategoria hetero e homossexualidade séo histrica ¢ socialmente construfdas, sua relagdo confliruosa com a norma envolve uma dialética da diferenga e de sua superagao tendencial. Escélio 2.4 Para Jon Elster, a idéia de uma centralidade da luta de classes é realmente Ver Ernest Mandel, Significado da Segunda Guerra Mundial (Sio Paulo, Atica, 1989). 59 A quzada “ética” pregada por Tony Blais, Bernard-Henri Lévy ¢ Daniel Cohn- crusada “ética " Bendic durante a intervengao da Oran nos Bi s confunde a moral € 0 direito, humanitério ea tario de Estado. Concribui, assim, para o enfiaquecimento ee dtio ea da politica, considerada entre as fatalidades de um mercado autémato ¢ 2s das” de uma ética de mao Unica. “obrigagoes ilimi Se “a arma & a esséncia dos combatentes”, a nova guerra tecnolégica, em que ipremacia téenica for esmagadora, o risco nao é¢ mais rec{proco enquanto a em que a distingdo entre combatentes ¢ civis se apaga sob as condenagées do — ’ ities inéditas de uma solura, suplicio aéreo, prefigura as barbéries inéditas de uma guerra absolura Escélio 3 Atualizar a nogao de imperialismo, nao s6 do ponto de vista das relacées de dominacdo econdmica, mas como sistema global (tecnoldgico, ecoldgico, militar, geoesteatégico, institucional, cultural), corna-se urgente no momento em que cabecas, ainda ontem reputadas equilibradas, consideram que ela se tornou obsoleta com 0 aniquilamento de sua réplica burocriitica no Leste. Mary Kaldor fei, no inicio da década de 1980, uma siete da campanha pelo desarmamento nuclear, contra “o exterminismo” e a instalacao de misseis Pershing na Europa. Hoje, ela avalia que “a distingao caracteristica da cra westfaliana entre paz interna ¢ guerra externa, lei sancionada internamente € anarguisingernactonal,acabou junto com a Guersa Pea". Terlamos entrado numa era de “progresso constante rumo 2 um regime legal global”, Sem temer a contradicéo nos termos, a partir de entéo alguns passaram a falar de “imperialis- mo ético” ¢ Mary Kaldor, de um “imperialismo benevolente”, A campenha miditica orquestrada por ocasiao da Guerra dos Bélcés produziu um efeito de zoom no softimento (real ¢ intolervel) dos kosovares, ocultando a perspectiva histérica © 0 contexto geoestratégico. Em nome da urgéncia humani- taria, ela reduziu o acontecimento a um presente desenraizado, sem antecedente nem dia seguinte, € 0 discurso da guerra a uma proclamacio ética despolitizada. A negacao da rela¢io de dominacao imperial permite, assim, modificar os enunciados do conflito e reorganizar a visto do mundo em torno de uma oposigao teoldgica entre o Bem (0 Ocidente, as democracias, a civilizagio) ¢ 0 Mal (0 totalitarismo e os rogue states). A intervengio militar é entao justificada 60 antecipadamente como legitima defesa da civilizacao ameacada e como expedicao punitiva contra os delinqitentes ou os terroristas internacionais: o Panama antes de ontem, 0 Golfo ontem, os Bilcas hoje, 2 Colémbia amanha? Corolério 1 A soberania democritica nao é soltivel na Humanidade com H maiusculo Houve um tempo em que uns afirmavam representar a justica em nome de uma Historia com H maitisculo. Hoje, outros (3s vezes, os mesmos) afirmam. administré-la em nome da Humanidade com H maitisculo. De onde Thes viria o diteito de falar e julgar em nome dela? A humanidade nao é uma substancia da qual se possa apropriar, mas um futuro, uma construcio, um processo de humanizacao. Fla se desenvolve através do direito, dos costumes, das instituigdes por meio de um lento trabalho de unificagao das multiplicidades humanas, Até que isso aconteca, invocar uma legitimidade humanitiria as vezes serve de méscara para os interesses da dominag4o imperial. Alain Madelin’ ousou proclamar que a operacéo Forga Aliada nos Balcis “anunciou o fim de certa concepgao da politica, do Estado ¢ do Direito”: “A partir de agora, 0 unico soberano absoluto é 0 homem”, Mas que homem? Um homem abstrato, sem histéria nem pertengas sociais? Esse “direito do mais fraco” é idéntico A moral do mais forte. No processo de globalizacéo desigualitaria, ele justifica a ingeréncia do forte no frnco ¢ a negagao unilateral das soberanias democraticas. Corolario 2 O direito internacional nao € soliivel na “moralina” humanitaria A fungao dos Estados-nagio, tal como foi constituida no século XIX, esté se esgorando. Sua substancia foge para o alto, para um espaco supranacional, ¢ para baixo, para uma fragmentagio de “paises” e regides. Politico francés ultraconservador de dircita. Em 1968 foi ferrenho opositor dos mor mentos estudantis. (N. E.) A Europa viu surgirem nos tiltimos anos mais de dez novos Estados formalmente soberanos ¢ se delinearem mais de 15 mil quilometros de novas fronteiras. © termo pejorativo “soberanismo” confunde o nacionalismo rangoso € 0 chauvinismo nauseabundo com a aspiracao legitima a uma soberania democritica contra a concorténcia de todos contra todos. O direito dos bésnios, dos kosovares, dos chechenos ou dos palestinos a autodetermina¢ao continua a ser uma teivindicaggo de soberania. O direito internacional ainda est4 condenado a caminhar durante muito tempo sobre duas pernas ¢ 2 conjugar duas legitimidades: aquela, em emer- géncia, dos direitos universais do homem ¢ do cidadao (algumas instiruigdes, como o Tribunal Penal Internacional, constituem cristalizaces parciais dela); ¢a das celagées interestatais em que se baseiam instituigées como a Orga- nizagao das Nag6es Unidas. Sem atribuir 8 ONU vircudes que ela nao tem, ¢ sem esquecer seu saldo desastroso na Bosnia, na Somilia e em Ruanda, é preciso salientar que um dos objetivos da operagéo Forca Aliada nos Bélcis era modificacéo do projeto da nova ordem imperial em beneficio da Oran (cujas, misses foram ampliadas na primavera de 1999 durante a reunido de cipula do cingiientenério), da Organizagéo Mundial do Comércio ou do clube fechado do G7. Tudo isso em nome de uma preocupasao por eficiénci conttaposta A misétia orgamentaria ¢ 4 impoténcia militar das Nag6es Unidas. Constituida pelas relagdes de forcas resultantes da Segunda Guerra Mundial, a o» mudancas do panorama planetrio, Assim como 0 antiparlamentarismo nio 1U deve ser reformada ¢ democratizada para ter em conta as impede que se proponham reformas legislativas democréticas, a critica das instituigées internacionais nao impede que se exija um fortalecimento dos poderes da Assembléia, uma reforma do conselho de seguranga ¢ a supressto de seu conselho permanente. Nao se trata de conferir 4 ONU uma legitimidade legislativa também ilusoria, mas de agir de maneira que uma representagio da “comunidade internacional”, por mais imperfeita que seja, reflita a diversidade de interesses ¢ dos pontos de vista (como ilustrou a tomada de posi¢ao dos setenta paises dominados contra um “direico de ingeréncia” de mao tinica). Da mesma m: neira, impée-se uma reflexao critica sobre as instituicdes judiciarias internacionais, como o Tribunal de Haya, os cribunais penais de excegio 0 fucuro Tribunal Penal Internacional. 62 Roan. te iscélio 2.1 Philippe Corcuff adverse judiciosamente contra uma detracio do huma- nitério que subescimaria sua dimensio politica ¢ sua contribuigdo para os novos movimentos sociais, Reduzindo o mundo a um simples céleulo utilitarista, equivaleria a arruinar as visdes humanistas ¢ universalistas de uma politica de emancipacio social’, O discurso humanitario certamente nao ¢ uma méscara confor vel posta sobre as forgas opressivas dominantes. O jogo de interesses € a defesa de valores estio sempre imbricados, Tomando, por principio, o partido das vitimas, 0 cengajamento dos(as) militantes humanitdrios(as) se opde sempre As relacdes de dominagao em vigor. Em sua relagio com a nogao problematica da humanidade, co humanitério parte de uma conquista profundamente politica, considerando que todos os humanos sto humanos da mesma maneira, Enfim, o humanitario levanta problemas tedricos e praticos findamentais no contexto da globalizagio 0 da transformacao do direito internacional ¢ o das solidariedades sem fronteiras. Qualquer que seja a sinceridade de suas intengées, o humanitaria nao pode, no entanto, ser dissociado de suas implicacdes ¢ de seus efeitos, Uma “politica da piedade” que considerasse 0 softimento das vitimas como Gnico fundamento @ tinica referéncia os abstraria do campo concreto das relagdes de poder e 0s fecharia em uma posicao de objeto de compaixdo, em vez de torné-los sujeitos de sua propria emancipagdo. £ 9 que, com a seguranga de uma experiéncia indiscutivel, salienta Rony Brauman quando constata “a dificuldade essencial que tem o humanitario de ver as conseqiiéncias problematicas de sua acao”. O movimento se encaixou no molde preparado para cle. Apesar de se distanciar do conflito, do contexto, das disputas pelo poder; seu discurso generoso continua no limiar da politica. E o limire (a fronceira invisivell) para além do qual “o ingresso humanitario nao ¢ mais valido” ¢ a partir do qual o universal evocado diz respeito ao ato de f°. * Ver os artigos de Philippe Corcuff ¢ de Philippe Mesnard na revista Mowvements, a. 12, noveder. 2000 > Rony Brauman, entrevista, em Philippe Mesnard, Consciences de la Showh (Paris, Kimé, 2000). 63 Em outras palavras, ndo se pode escamotear a relagao que o discurso humanitario mantém com a politica ¢ a ideologia dominantes. Se 0 engaja- mento humanitétio nao se reduz a uma funcio de legitimacao. dela também nao escapa, Quando os donos do mundo falam de guerra ética ou de guerra humanitéria, o cardter e os objetivos dessas guertas s4o escamoteados por trés vel da falsa evidéncia da interv cao compassiva. Disso resulta uma detestdi confusio da moral ¢ do direito, segundo a qual a pureza proclamada dos fins justificaria os mais abjetos meios, Philippe Corcuff reconhece graves lacunas na politica humanitéria, A ela faltam a relagao com o tempo, a meméria das derrotas e das vitorias passadas . Além disso, ela seria por demais a projeco num futuro radicalmente diferent insensivel 4 dimensio “maquiavélica’ da politica e cega ao fato de que as relagGes de forcas so suscetiveis de transformar as boas intengbes em resultados catastr6ficos. E precisamente por isso que a ideologia humanitéria, quando pretende ocupar o lugar da politica, torna-se uma politica sem politica, ou seja, uma obra de despolitizacio. Corolario 3 © bem comum da humanidade nao é soltivel na privatizagao do mundo Dizem que existem “lugares em que os espiritos sopram”, Em novembro de 1999, Seattle tornou-se um desses lugares, simbolo de uma mudanga no clima da época, Nao que a atmosfera cenha se tornado subitamente escarlate, mas em comparago com 0 cinza sinistro dos anos Bill Gates e Soros, houve enfim uma retomada das cores. A autodissolucao da santa Fundacéo Saint-Simon e o fato de Bernard-Henri Lévy ter novamente se interessado mais por Sartre do que por Aron sao, se € que ha necessidade disso, sinais irrefurdveis! Ao percorrer 0 mundo ¢, em sua evolugzo, delinear uma estranha geopolitica de resistencias, “o espirito de Seattle” soprow a partir de entéo em Millau, Praga, Genebra, Washington, Porto Alegre, Nova York, Bangcoc, Nice ¢ Dacar, Sua proclamagéo inicial deu a volta no planeta: “O mundo nao é uma mercadoria!” A frase vai longe, muito além de sua simplicidade biblica, por menos que seja levada a sério, O “mundo” nao é uma mercadoria? Entdo, 0 que € exacamente 0 mundo? Onde comeca ¢ onde acaba? Se ele nao é uma meteadoria, ¢ sat adoria, © saber do mundo também nao 6, nem o oxganismo vivo, nem o direito 4 sacl A satide, a educagao ¢ a habitagdo. Desa maneira, apa ce 0 valor Pedagégicu da io cultural”: ela poe em evid vérsia ambigua sobre a “exces ncia a necessidade de tirar do desporismo do mercado algumas atividades sociais, asim como seus produtos. Os fndices da Bolsa e a ordem fatslizada da coisa econdmica caminham exatamente no sentido contritio, vao até mais longe do que “a apropriagao privada dos meios de producao ¢ de trace”, muito mais longe do que a privatizagdo dos servigos ¢ da seguridade social. A privatizacio generalizada do planeta estende-se as informacoes, ao direito (prevalecendo 0 contrato privado sobre a lei geral), & solidariedade (seguro privado e fundos de pensio em oposicao aos seguros miituos e & seguridade social), 4 violéncia (na Pranga, hd is segurangas ¢ milicias privadas do que policiais “priblicos”) e até mesmo aos presidios. Fla vai ainda mais longe. A terra jé era propriedade privada. Agora, trata-se das cercanias da cidade, com seus bairros protegidos e seus condominios fechados cm conglomerados urbanos que privilegiam a seguranga ptiblica para os abas- tados; a agua, com a canalizagio lucrativa de Vivendi ¢ companhia: 0 ar, com 0 projeto de um mercado mundial de direito de poluir; do organismo vivo, com o frenesi do patenteamento, com a perspectiva plausivel, a partir de agora, de um mercado de embrides e de clones ou de exploracéo privada do genoma humano, Esse estreitamento do espaco puiblico reduzido a uma pele de onagro & cheio de perigos para a democracia, formal ou nao. Eis que chegou 0 tempo dos mercendrios ¢ das méfias, das desigualdades galopantes ¢ da ciberctiminalidade. Desde as crises de 1998, as instituigdes intemnacionais se inquietam com essa evolugao, certamente menos por filantropia generosa do que por temor por seus interesses, De seminérios a coloquios, James Wolfensohn, presidente do Banco Mundial, espanta-se que 0 crescimento retomado se traduza por maiores desigualdades. por uma mortalidade infantil explosiva, por fendmenos de analfabetismo®, “Nao ha absolutamente a menor razio para milhares de criangas morrerem diariamente de doengas evitdveis!”, © James Wolfensohn, “S‘unir pour agir dans une économie mondiale”, Le Monde, 14/4/2000 dizele. E, no entanto, elas morrem! F cle prossegue: “Nao € normal que milhoes de habitantes da Asia, da América Latina ou da Africa sejam privados da abundancia de idéias que transformam o resto do mundo”. E, no entanto, cles so privados! “Nao ha a menor razao para que 0 desenvolvimento econdmico se traduza pela destruicao do meio ambiente”, continua ele. Entretanto, 0 perigo relative ao meio ambiente cresce dia a dia. No melhor dos mundos mercantis possiveis, essas “anomalias” ¢ desatinos so a regta. As promessas reiteradas nos encontros do G7 ou de Fundo Monetério Internacional continuam sem efeitos notérios. Os compromissos nao respeitados das cpulas do Rio e de Kyoto sobre o controle do efeito estufa sao a ilustracio flagrante disso. O Relatétie 2000 das Nacées Unidas para 0 Desenvolvimento Humano mostra de mancira acachapante que © crescimento tio vangloriado dos anos 1990 néo contribuiu para reduzir as desigualdades entre pafses ricos € paises pobres, muito pelo contrério: “A relagdo entre o bem-estar econdmico ¢ 0 desenvolyimento humano nao ¢ automdtica nem evidente”, conscatam os relatores, Em nenhum lugar, o indice de desenvolvimento humano regrediu de maneira tio considerdvel quanto na Russia, onde a insergao caética no mercado mundial, longe de significar um acesso ao eldorado do consumo levou a uma explosio das desigualdades. O crescimento também nio se traduziut por uma reducao da pobreza e das desigualdades nem mesmo nos paises ricos. Enquanco 0 20% mais ricos da populacao consomem na Franga ou na Alemanha 5 vezes mais do que os pobres, nos Estados Unidos ¢ no Reino Unido, eles consomem de 8 a9 vezes mais, Finalmente, 0 crescimento nao levou a uma melhor igualdade social entre os sexos: as mulheres so, em escala planetéria, as grandes vitimas da globalizagio liberal. Em julho de 2000, a cuipula dos paises ricos em Okinawa reconheceu “as inquietagdes resultantes da globalizagao", 0 agravamento dos conflitos armados © a multiplicago das crises humanicérias. Manifestou-se a preocupacao de remediar os excessos da desregulamentacio mercantil, Em suma, emitiu-se a resolueao de uma globalizagie bem moderada ¢ de uma concorréncia hums- nizada. Piedade tocante. Efetivamente, a globalizacao imperial baseia-se numa contradigao entre sua pretensio de universalidade ¢ os interesses particulates do capital, Essa antinomia nao poderia ser superada sem uma mudanca de sofrware: inventando um mundo que nao seja mais uma mercadoria e opondo 66 ao dircito sagcado da propriedade o direito profano & existéncia, que {1 ‘ncia, que He denominava também “o direito de miséria”. Eseélio 3.1 O exemplo do sistema operacional Linux e de sofiwares “livres” ilustra bem 2 contradicéo inerente a tendéncia a socializ 0 dos conhecimentas, Podemos considerd-los como a traduc4o, em uma linguagem de programacio determinada, de um raciocinio semelhante a uma argumentacio matematica. Sua validacio se baseia numa livre circulagio de informacées entre pesquisadores que permite cortigir os possiveis ertos. Compreende-se melhor, entéo, “a étiea” profissional reivindicada por alguns criadores de sofiwares livres. Ela vai além de um desafio feita aos monopélios como o da Microsoft. Revela a incorporacio crescente de massa cinzenta socializada & producio e & reprodugio social do todo. Da mesma maneira, na maior parte das pesquisas cientificas ¢ médicas, a circulagdo da informagao é uma condigao essencial para a confiabilidade ¢ a qualidade, Em compensacio, 0 paenteamiento dos programas de informatica faz com que as instituigdes ptiblicas (de pesquisa, de estatisticas, de ensino) nao possam mais pagar pelo acesso, abusivamente caro, a informagSes que elas ajudaram a produzir gracas a financiamentos piblicos! A exigéncia de “livre circulagao das idéias e dos conhecimentos” parece fornecer um argumento paradoxal para os chantres da livre circulaco liberal ¢ da desregulamentas 0 radical preconizada pela Organizacio Mundial do Cométcio. Isso significaria esquecer a diferenca decisiva entre “a livre circulagao mercantil”, pela qual se paga um alto preco, e uma “livre circulagao gratuita’. O que ainda ontem podia parecer uma utopia ingénua se tora uma possibi- lidade efetiva. A oposigao entre uma légica de cooperagdo ¢ uma légica comercial de competicao selvagem e segredo ciosamente guardado deixa entre- ver possibilidades animadoras: a conduta que se revelou “eficaz na concepeio no desenvolvimento de softwares livres poderia, de fato, ser da mesma maneira para qualquer atividade de criacao”. Robert Sihol, “Les logiciels libres, une alternative 4 Microsoft?”, In Extensa, Dijon. n, 0, 2000. Escol: A privatizagéo do mundo tem como conttapartida uma “plublicizacac” crescente da vida privada, Nao s6 dos homens ditos “piblicos”, que exibem sua imagem privada por necessidade de promogéo mididtica, mas também de cidadaos andnimos cagados em seu espago privado pelo telemarketis ciscuito integrado de cameras, pelo controle dos fluxos de comunicacdo ou pelos sistemas de observagdo militar. E 0 sinal de uma revolugio em curso na grande a. O a intimidade toma-se uma divisio entre privado e ptiblico estabelecida desde 2 Revolugéo France voyeurismo mididtico ¢ o exibicionismo fazem pa io hd mais mercadoria negocidvel ¢ 0 pudor tornia-se uma cafonice vitoriana. “ ninguém que nao deseje ser visto”, constata Michel Surya, Ele qualifica lindamente esse desejo como “desejo de iranspari¢ao”. A “visibilidade” tornou- se 2 palavra mestra de uma sociedade de engodos, espetdculos e aparéncias*. Esse “comércio do visivel” institui, dia Paul Vitilio, um “mercado do olhat” que ultrapassa de longe a funcdo de propaganda promocional: a lei de bronze da concorréncia impée que se espiem, se comparem, se copiem € aré mesmo se espionem uns aos outros, em uma ciberversio da guerra de todos contra todos. Sob a viséo onividente do ciclope eletrdnico, a espionagem informatizada, adentincia ¢ a delacao generalizadas nunca esto muito longe. Multinacionais de espionagem privada se langam na conquista do mercado da investigacéo. Essa \igilincia globalitatia se esconde por tris da celebragéo encantadora da “trans- paréncia”, como se a inflagio da palavra pudesse compensar o déficit da reali- dade democratica. “A imediaticidade nua ea nudez completa” rém a partir de agora um nome, ironiza Michel Surya: “Essa época quer a transparéncia como outras antes dela quiseram a revolugio”, Considera-se que essa transparéncia se opée ao segredo da instru¢ao, ao segredo bancario, ao segredo de Estado e & opacidade dos negécios. Na realidade, inicia-se em seu nome “a maior operagio de justificagéo ideolégica” da dominacao. Apesar de tudo, a democracia sai vitoriosa? “Sob pretexto dos negécios ¢ por trés da objurgagao da transparéncia’, a dominagao ® Michel Surya, De la doraination: le capital, la transparence et les affaires Tours, Fartago, 1999), 68 do capital trabalha mais para que sejam “redefinidas as condigGes impresctitiveis da propriedade”. Por trés da transparéncia didfana ¢ da pureza celeste, a santa propriedade terrestre! A contra-reforma religiosa zelou outrora para que se dissimulasse 0 sexo dos anjos. A contra-reforma liberal se vangloria de exibi-lo, Em 1968, certa mao inspirada escteveu nos vidros do campus de Nanterre: “A transpartncia nfo é transcendente”, Maxima premonitéria. Coroléric 4 A troca entre a espécie humana ¢ seu ambiente natural € irredutivel 4 medida miseravel dos mercados financeiros Na raiz das desregulamentacées planetarias, existe a oposigio entre uma socializago crescente dos conhecimentos, do trabalho, da cultura, ¢ sua apropriagao privada: quer se trate de organizar as relagdes sociais, de gerenciar os recursos, de discribuir as riquezas ou de avaliar as trocas, 0 valor mercantil torna-se cada vex mais irracional. Proclamar que “o mundo nao é uma merca- doria” quer dizer que a concorréncia tem seus limites, que os beneficios atribuidos 2 mio invisivel do mercado estéo longe de compensar os crimes de seu punho visivel ¢ que o valor mercantil e monetdrio ndo é a medida de todas as coisas, A Unica légica realmente alternativa seria a do setviga piihlico ¢ do bem comum, do direito imprescritivel ao patriménio comum da humanidade, quer se trate dos recursos naturais (a terra, a dgua, 0 ar), dos medicamentos ou dos conhecimentos acumulados a0 longo dos séculos ¢ das getacdes. A idéia de um dominio publico da informacio, as vezes evocada a propdsito do desenvolvimento das telecomunicacées eletrdnicas, ou a de um livte acesso dos paises pobres 20s medicamentos sio apenas casos particulares de uma questio “global” inerente & propria “globalizacao” capitalista 69 Teorema 4 SSA-LO, O COMUNISMO BUROCRATICAS Da mesma maneira que se esforca para dissolver o imperialismo na concorrén a leal da globalizacéo mercantil, a contra-reforma liberal que dissolver 0 comunismo no stalinismo, O despotismo burocrdtico seria a con. tura revolucionaria, ¢ Stalin o descer seqiiéncia inevitavel da ave Lente legitimo ico ¢ © desastre obscuro do de Lenin e Marx. O desenvolvimento his linismo jd se encontrariam em estado larente nas nodes de ditadura do pro- nova versao do Géne etariado ou de partido de v 0 pecado guarda, Nes original ¢ 0 verbo comandam 0 mundo de determinada época. Embora tenhamos de procurar as lacunas e as fragilidades No entanto, uma teoria social é a D critic: enas uma interpretac: que a desarmaram diante das provas da historia, ndo poderiamos julgé-la de acordo com os critérios anacrénicos de outra época. Assim, as aporias da lismo democracia herdadas da Revolucdo Francesa, o impensado do plu organizado, a confusia do povo, do partido ¢ do Estado, a fusto decretada do ico (considerado social e do politico, a cegueira diante do perigo burocrét 11 de abril de 1871. Qs revolto: ndole da domi <0, como igo principal” da restauracao capitalista) foram sia dos anos 1930. Efe- Ao como “uma reacdo do Estado secundario em jacio ao “pi propicios 4 contra-revolucao termidoriana na Riis | tivamente, se concebermos a contra-revolu contra a sociedade™', entao se trata realmente de uma contta-revolugao colossal “The jections in England~Tories and whigs”, New York Daily Tribune Apesar do mito refundador da tabula rasa, esse processo mistura de manera inextricavel elemencos de continuidade e de descontinuidade. Objeto de muitas controvérsias, a dificuldade para datar precisamente o triunfo da reagdo 10 Soviética resulta fundamentalmente da assimetria histética burocratica na Us entre revolugao e contra-revolugao. Esta nao ¢ a imagem invertida da revolucéo, uma especie de avesso da revolugao. Como dizia Joseph de Maistre (um especialistal) a propésito do Termidor, a concra-revolugio nao ¢ uma revolugéo no sentido oposto, mas “o contratio de uma revolucao”. As “revolugdes” dicas de veludo sio o epilogo crepuscular de derrotas desde muito consumadas Trotski situa o inicio da reagao termidoriana por ocasiéo da morte de Lenin. ‘Mas ela somente ¢ vitoriosa de mancira cfetiva no inicio dos anos 1930, com a vitéria do nazismo na Alemanha, 0 processo de Moscou, os grandes expurgos € 0 terrivel ano de 1937. Em Origens do totalitarismo”, Hannah Arendt adota uma cronologia semelhante, que data de 1933 ou 1934 0 advento do torali- tarismo burocratico propriamente dito. Trabalhos historiogrdficos mais recentes, como o de Mikail Guefter, baseados na experiéncia pessoal ¢ na abertura dos arquivos soviéticos, chegam a conclusées andlogas. Em Russia-URSS-Russia, 0 historiador Moshe Lewin evidencia 2 explosio quantitativa do aparelho burocritico do Estado no fim dos anos 1920. A repress4o dos anos 1930 contra 08 movimentos populares no o simples prolongamento do que prefiguravam, desde o inicio dos anos 1920, as praticas da Vetcheka ou os trabalhos forgados como pena politica nas ilhas Solovki. Ela marca uma mudanga de escala, um salto qualitativo, gracas ao qual a burocracia do Estado destedi e digere o partido que acredicava poder controli-la. A descontinuidade atestada por essa contra-revolugio burocritica ¢ funda- mental de um triplo ponto de vista. No que se refere ao passado: a histéria, que ndo ¢ a narrativa absurda de um idiota, mas o resultado de fendmenos sociais, de conflicos de interesses de final incerto, de acontecimentos decisivos em que as massas, € no somente os conccitos, estio em jogo. No que diz respeito a0 presente: os efeitos em cadeia da contra-revolugéo stalinista contaminaram toda a época e perverteram de maneira duradoura 9 movimento operdtio inter- ” Hannah Arendt, Origens do totalitartsme (S20 Paulo, Companhia das Letras, 1989). (.T) nacional; muitas concradig6es e impossibilidades presentes s40 ininreligiveis sem uma compreensio profunda do stalinismo. Finalmente, no que se refere ao futuro: as conseqiiencias dessa contra-tevolugéo, em que o perigo burocratico ganhou formas ¢ proporcées inéditas, ainda pesarao durante muito tempo nos ombros das novas geragées. Como escreveu Etic Hobsbawm, “nao poderiamos compreender a historia do ‘curto século XX’ sema Revolug4o Russa e seus efeitos diretos ¢ indiretos”, Corolario A democracia socialista nao € soltivel no estatismo buro ‘dco Deduzir a contra-revolugéo stalinista dos vicios otiginais do “leninismo”, nogao forjada em 1924 no V Congresso da Internacional Comunista para legitimar a nova ortodoxia do Estado, nao ¢ apenas historicamente falso, mas & politicamente mistificadot. Bastaria entéo ter compreendido ¢ cottigido os erros € 08 desvios tedricos para se prevenir contra os “petigos profissionais do poder” © garantir uma sociedade democrética transparente! A licéo dessa experiéncia desastrosa impoe a rentinciz ao curinga da abundancia que dispensaria a sociedade de escolhas ¢ arbitragens: se as necessidades sociais sio historicas, a abundancia € obrigatoriamente relativa. A dura experiéncia do século impde cambém a rentincia — as duas coisas ca- minham juntas— ao mito de uma transparéncia absohuta, baseada na homoge- neidade do povo bom (ou do proletariado libertado) ¢ na répida aboligao do Estado. E. preciso tirar todas as conseqiigncias da “discordancia dos tempos”: as escolhas econémicas, ccologicas, juridicas, os costumes, as mentalidades, a arte dependem de temporalidades diferentes, As contradigies de género e de geracdo nao se resolvem da mesma maneira nem no mesmo ritmo que os anragonisinos de classe, A hipstese do enfraquecimento do Estado ¢ do direito, enquanto tsferas separadas, nao poderia significar sua aboligio por decreto, sob pena de ver ances a sociedade estatizada que o poder socializado. A burocracia ndo € a conseqtiéncia deplorivel de uma idéia falsa, mas um fenémeno social. Ele assumiu uma forma particular na acumulacéo primitiva na Riissia ¢ na China, mas planta , 5 raizes na gestao da pentiria ¢ na divi ligho social do uabalho. Fle existe, em diversos graus, de maneira universal. Ess histérica incita a0 aprofundamento de suas conseqiigncias programaticas concernentes principalmente a um pluralismo politico inicial, & independénc cA autonomia dos movimentos sociais em relagio a0 Estado ¢ aos partidos, a uma cultura do direito ¢ a uma separacéo dos poderes?, No vocabulério politico dos séculos XVIII e XI ruigdo virtuosa — 0 poder de excecdo tempordria legalmente designado pelo © termo “ditadura” tinha a conoragao de uma insti- Senado romano ~, em oposigéo a “titania”, que eta o nome do poder arbitcério®, Hoje, cle se tornou carregado demais de ambigiiidades e associado a experiéncias historicas extremamente dolorosas para ainda poder ser utilizado sem risco de confusio. Essa simples constatagao nevessariamente traz 3 tona as questoes da demo- ctacia represencativa, da relacao entre social e 0 politico, das condigoes de enfraquecimento da dominagao 4s quais, sob a forma “enfim encontrada’ da Comuna de Paris, a “ditadura do proletariado” pretendia dar uma resposta. Escdlio 1 Pensar o stalinismo, nao como a conseqiiéncia inevitavel de Outubro, mas como uma contra-revolugio burocritica enraizada em contradigées sociais colossais, permite dirimir o cardter fatalista da histéria, Atualmente, isso estd longe de ser a coisa mais compartilhada do mundo, Contra-reformadores liberais ¢ stalinistas arrependidos concosdam em ver na reacio stalinista 0 desenvolvimento genético natural da revolugéo bolchevique. Também chegam essa conclusao os “renovadores” pés-stalinistas, quando pensam o stalinismo como um “desvio teérico” € nd0 como uma terrivel reagao social. Roger Martelli vé no stalinismo essencialmente um avatar da “forma partido”, Por nao ter avaliado seu papel socialmente contra-revolucionario, cle situa “o apogeu do comunismo”... apés 1945! Em Commencer par les fins, Ver 0 documento sobre La démocratie roctaliste adotado em 1979 pelo XI Congreso da [V Internacional 3 Ver Alessandri Galante Garrone, Les révolutionnaires de XIX siecle (Paris, Champ Libre, 1975). 74 Lucien Seve avalia, ao contririo, que a etapa “socialista”, concebida como etapa preliminar da sociedade comunista, distanciou-se desta, em vez de aproximar- se, sob as formas gémeas do estatismo socialdemocrata ¢ do despotismo stalinista. Essa tese poderia suscitar um debate fecundo se fosse articulada com as controvérsias histéricas ¢ estratégicas do periodo entre as duas grandes guerras, sobre a “revolugdo permanente” ¢ “o socialismo em um éinico pais”, ndo $6 a partir das teses de Trotski, mas também dos escritos de Gramsci e de José Carlos Mariacégui A énfase dada a um “erro” tcérico desligado dos processos histéricos ¢ sociais de burocratizagéo sugere que bastaria corrigi-lo para dissipar o perigo burocrético, A explicacio do stalinismo come sendo um “desvio tedrico” lembra, entdo, a procura de um pecado original. Ela leva nao sé a uma liquidacio do “leninismo”, mas também, em grande medida, a uma rentincia ao marxismo critico, ou mesmo & heranga do Tluminismo: da culpa de Lenin, logo se remontou & “culpa de Marx” e mesmo a “culpa de Rousseau”! Se o stalinismo foi essencialmente fruto de um “desconhecimento”, como escreve Martelli, uma maior lucidez tedrica deveria ser suficiente para se proteger dele’, Seria extremamente simples. No que diz respeito ao desconhe- cimento, a pobreza desses debates comprova uma espessa camada de ignorancia e de esquecimento que recobre as grandes polémicas do pasado. No entanto, elas foram ilustcadas — entre outros — pelas contribuigées de Trotski, Preobrajenski, Pannekock, Dunayevskaia, Bruno Rizzi, Burnham, Milovan Djilas, Ernest Mandel, Rudolf Bahro, Tony Cliff, Pierre Naville, David Rousset ¢ Moshe Lewin: ou ainda pelas de Georg Lukécs, Henri Lefebvre e Merleau-Ponty, Nessas contribuigées encontramos uma exigencia intelectual ¢ uma cultura histrica muito diferentes dos balbucios recentes, que, no entanto, se beneficiam de fontes incomparavelmente mais numerosas € mais precisas. * Lucien Séve, Commencer par les fins, cit. * Roger Martelli, Le comimunisme, aurrement, cit Escélio 2 A publicacdo francesa de A era dos extremos, de Eric Hobsbawm, foi aclamada pela esquerda como uma obra de salubridade intelectual, que contestava a historiografia de Furet ¢ a judiciarizagao da histéria conforme Stéphane Courtois. Essa recepgao revestida de uma ligeira sensagio de alivio deixa na sombra a parte problematica do livro. Hobsbawm nao nega a responsabilidade dos demolidotes termidorianos, mas a minimiza e registra 0 que aconteceu como 0 que deveria rem virtude das leis objetivas da histéria. necessariamente aconte: Nao vendo 0 que poderia ter sido feito de diferente, ele chega ao que considera o paradoxo desse “estranho século”: “O resultado mais duradouro da Revolugao de Outubro foi salvar seu adversirio na guerra, assim como na paz, incitando-o a reformar-se"®, Como se tratasse de um desenvolvimento natural da revolugao € nao do resultado contingente dos enormes conifitos sociais € politicos cujo desfecho foi a contra-revolucao stalinista! A objetivacéo da historia realmente exiscente em detrimenco de suas possibilidades descartadas levou logicamente a avaliagio de que, em 1920, “os bolcheviques cometeram um erro que, com o tempo, parece fundamental: a divisio do movimento operério internacional”, Embora as circunstancias nas quais foram adotadas ¢ aplicadas as “21 condicées de adeséo 4 Internacional Comunista” requeiram uma analise critica, nio se pode imputar a diviséo do movimento operdtio internacional a um erro doutrinario, mas a0 choque bésico da propria revolugao, que determinou um novo divisor de éguas entte os que tomaram sua defesa (mesmo que fosse critica, como Rosa Luxemburgo) ¢ os que se associaram mais, ou menos, & santa alianca imperialista. O historicismo de Hobsbawm tem a ver com a problematica que leva algumas pessoas a considerar um “Congresso de Tours as avessas’, Embora o periodo entre guetras signifique, para cle, uma “guerra civil ideologica em escala internacional”, ela nao opée as classes fundamentais, 0 capital ea revolucéo social, mas “valores”: progresso ¢ reacdo, iluminismo e obscurantismo, antifascismo ¢ fascismo. Nessa perspectiva, o balango critico da Revolucéo Alema, da Revolucio Chinesa de ® Eric Hobsbawm, A eve dos extremos (S40 Paulo, Companhia das Letras, 1995), 7 Idem, 1926-1927, da Guerra Civil Espanhola e das fences populares foi nulo, Por nao encarar para valer a contra-revolugdo burocrdtica, Hobsbawm se contenta em registrar que, desde 0 inicio dos anos 1920, “quando a poeira das batalhas baixou, 0 antigo império russo ortodoxo dos ceares ressurgiu essencialmente intato, mas sob a autoridade dos bolcheviques”. No entanto, somente em 1956, com o aniquilamento da Revolugéo Huingara, “a tradigio da sevolugdo social se esgotou” e “adesintegracéo do movimento internacional que Ihe era devotado” dew provas da “extin 0 da revolugéo mundial”, como um fogo que se apaga lentamente na sombra da noit . Afinal de contas, “foi sobretudo pela organizacéo que o bolchevismo de Lenin mudou o mundo’! Dessas idéias a atribuir a revolucio a uma técnica comprovada de golpe de Estado nao ha uma grande distancia, Essa oracao fiinebre evita uma critica séria da burocracia, designada en passant como um simples inconveniente da economia planejada estabelecida com base na propricdade social. Como se essa propriedade fosse, na Russia burocritica, realmente social! E como se essa burocracia constituisse um lamentével gasto extruordindrio, em vez de uma terrivel forca de opressio € de reacao! Apesar de suas qualidades, o trabalho de Hobsbawm se insere, assim, na perspectiva de uma “histéria historiogréfica” mais do que de uma “histéria critica” ou estratégica, que di muita imporrancia as grandes bifurcagées deseritivas dos acontecimentos, Pierre Naville salientou bem o impacto desse vigs metodolégico: Os advogados do fato consumado, quaisquer que sejam eles, jamais cometem um erro. E que os historiadores, paradoxalmente, tém uma visio mais curta que os homens politicos. O marxismo ativo ¢ militante tende a uma étice freqtientemente contraria & da histéria. Ao afirmar que a politica deve, a partir de entao, “primar sobre a histéria”, Walter Benjamin segue na mesma direcao. Os historiadores, que acham que 0 acontecimento revoluciondrio € natural quando 0 movimento avanca, sio freqiientemente os primeiros a atacé-lo quando as coisas se complicam e torna- se necessirio ir contra a corrente. Eles tém entao a maior dificuldade para conceber o imperative politico de “escovar a historia 2 contrapelo”, * Walter Benjamin, Théses sur le concept d'histoire (Paris, Deno#l, 1971). [E teses foram publicadas no Brasil em Michael Lowy, Walzer Benjamin: aviso de Conelui Naville: Isso da & histéria a possibilidade de expor sua sabedoria retrospectiva enumerando e catalogando os fatos, as omissées, as besteitas. Mas infelizmente esses historiadores itido conduzir um moderado & vitéria se abstém de indicar a via justa que teria per revolucionéria ou, ao contririo, teria permitido indicar uma politica revoluciondria raroavel ¢ vitoriosa em um periodo termidoriano, Escélia 3 Impde-se uma discusséo aprofundada, tanto sobre a nocéo de totalitarismo em geral ( sobre suas relagées com a época do imperialismo moderno) quanto sobre a do “totalitarismo burocrético” em particular. Ficamos impressionados com o uso freqitente que Trotski faz dessa categoria, cuja maxima ele cunha magistralmente em sua obra Stalin: “A sociedade sou eu!”, No entanto, ele nio estabelece de maneira precisa o status de um conceito que pode se mostrar ttil para se pensar a0 mesmo tempo algumas tendéncias contemporaneas (pulve- rizagao das classes em massas, etnicizacao ¢ enfraquecimento tendencial da politica) analisadas por Hannah Arends em sua crilogia sobre as Origens do totalitarismo, nem a forma especifica que elas tomam no caso particular do totalitarismo burocrdtico. Esse esclarecimento permitiria evitar que um uso vulgar ¢ extremamente eldstico servisse para fazer da oposicéo entre democracia pura e totalitarismo indefinido a tnica linha divisoria legitima de nosso tempo. Escdlio 4 As tentativas de explicacao do stalinismo (por meio das teses do “capitalismo de Estado”, de Mattick a Tony Cliff; da “nova classe exploradora”, de Rizzi a Burnham ou Castoriadis; do “Estado operdrio degenerado”, de Trotski a Ernest Mandel) tiveram conseqiiéncias priticas divergentes. No entanto, sto todas compativeis com a idéia de uma contra-revolugéo burocratica, Insistir nessa ultima caracterizagao nao implica de maneira alguma enterrar o debate sobre o incéndia: uma leitura das“ Teses sobre 0 conceito de historia” (Sao Paulo, Boitempo, 2005). (N.T.)) balanco das revolucées no século, ¢ sim revoma-lo gracas a um melhor distanciamento critico’. Quando se afirma que a luta contra a nomenclatura no poder exigia uma nova revolucdo social e nao so uma revolucdo politica, nao se trata de uma simples questao terminoldgica. De acordo com a tese de Trotski desenvolvida por Mandel, a contradigao principal da sociedade de transigan situava-se entre a forma socializada da cconomia planejada e as normas burguesas de distribuigéo na origem dos privilégios ¢ do parasitisme buro- crético. A “revolucao politica” teria consistido, entao, em pdr a superestrutura politica em conformidade com a infra-estrutura social dada, Isso ¢ esquecer que, nas sociedades pés-capitalistas, o Estado ¢ parte da infre-estrutura, uma vez que desempenha um papel determinante na estruturagao das relagdes de produgiot é por esse viés que, para alm da forma salarial comum, a burocracia, grupo social estatal, pode se encontrar em relagdes de exploragio com os produtores diretos."° A observacao é pertinente, embora fosse melhor evitar fantasiar essas sociedades com um “pds” alusivo, como se clas viessem cronologicamente ‘depois do” capitalismo, enquanto dele sio contemporaneas € continuam determinadas pelas contradig6es da acumulagio do capital em escala mundial. i i toine Artous em > Ver as contribuigoes de Catherine Samary, Michel Lequenne € Am Critique Communiste, 0. 157, 2000. jers”, Critique be ers, G © Antoine Artous, “Emest Mandel et la problématique des Ecats ou¥!? Communiste, n. 157, 2000. 9 MODERNIDADE | O discurso filoséf modernidade foi, diz Habermas, “impregnado pelo | Pressentimento de que algo esti prestes a acontecer”. Procurava-se um sentido para @ histéria universal: 0 da odisséia da razo ¢ do progresso ilimitado. A grande desilusao de 1848 arranhou essa bela confia nga 0. Criticos da moder dade, Baudelaire ¢ Nietzsche sio também precursores da pos-modernidade Ocfao de sua dimensao sagrada, a arte bus si nevas fungées pedagdgicas Torna-se em si mesma seu prdprio fim; o artista aparece como a antitese do trabalhador forcado; ¢ sua obra, desafiando 0 tempo, como a antit da mercadoria perecivel. rnidade e de | | | | e crit | | Ao privilegiar uma periodizagao escética, as nogées de m pés-modernidade nao constiruem duas seqiiéncias cronolégicas, mas duas tendéncias contraditorias inerentes & [égica do valor que se valoriza: centra- nas obliques e vertica ‘orca espacial (1920-1), v mismo uboy Popova: Construcao jarmonia das formas « sma d no cu 0 e fragmentagao, cristalizacao e di do, deslocamento e territo- , economia durdvel e dilapidacao efémera, unidade ¢ dispersio, universalidade ¢ singularidade, razdo ¢ desrazao. Elas parecem obter vat agem alternadamente em fungao das variacdcs de conjuntura. A pés-modernidade - triunfa nos momentos de doenca e de depresséo, quando soa a hora do a da ecletismo e da resignas Ela acompanha, hoje, sua musiquinha de cma nulacao flexive contra-reforma liberal, & destegulamentacéo mercantil ¢ @ act Tendéncia storica ou fendmeno transitério? ista, Ma movimento: “Tudo 0 que era sélido e esta Desde 0 Mi ¢ duplo rx pegou em sua fonte el se desmancha no ar, tudo o q) era sagtado € profanado”. Maximas da modernidade, como sustenta Marshall Berman? Ou temas caracteristicos da pés-modernidade, como afirma David Harvey'? Sem diivida, ambos, na medida em que a propria modemidade € desde o inicio ambivalence, Baudelaire vé no enlace do eterno e do efémero seu proprio espitito: “A modernidade é 0 transitdrio, o fagidio, o contingente, a metade da arte da qual a outra metade € 0 exerno ¢ 0 imutdvel”. Nietzsche ressalta a singularidade autodestruidora da ¢poca Esse mundo, um monstro de energia, sem comeco nem fim, confinado pelo nada como numa fronteita: um mar de forcas se revalvendo ¢ rebentando, eternamente mudando e eternamente recomecando,.. Meu mundo dionisiaco, perperuamente se autoproduzindo e perpetuamente se aurodestruindo, esse mundo misterioso alm do bem e do mal, sem outro objetivo a nao ser a alegria do‘circulo, que ¢ em si mesmo seu préprio objetive Em sua Lettre de Lord Chandos, manifesto da dissolugéo da palavra e da narrativa, do esmigalhamento, da pululacio e da dissipagio de todas as cvisas, Hofmannschal descreve um mundo “fugaz em toda parte”: Meu caso € brevemeate o seguinte: perdi roralmente a capacidade de pensar ox de falar de mancita coerente sobre 0 que quer que seja, Para mim, tudo se desagroga fem partes, essas partes em outras partes, e nada mais permice cizcunserever um conceito, Todos modernos? Ou pés-modernos? O “discurso filoséfico da modernidade” apresentava-se como uma retérica da clareza, como uma ldgica do tercciro excluido, da incompatibilidade dos contrarios, da repulsa & miscura, ao hibrido, ao mestigo, ao heteragéneo, 20 impuro € 20 bizarro, de aversio ao “viscoso” (Sartre) ¢ a0 abjeto (Kristeva). Ele iniciou uma guerra sem perdao contra o ambiguo ¢ 9 irresoluto, Inversamente, © gosto pés-moderno pela ambivaléncia e pelo incampleto associa-se hoje a uma ciivida muito pouco metédica ¢ a um telativismo cético mais senil do que critico, A pés-modernidade aparece, assim, como um protesto recortente contra a modernidade, contra a matematizacdo do espaco e do tempo, contra o despo- Marshall Berman, Tido 0 que é sélido desmancha no ar: a aventura da modernidade (Sao Paulo, Companhia das Letras, 1986); David Harvey, Condigao pes-moderna (Sao Paulo, Loyola, 1992) 82 tismo do mapa ¢ do cronémerro, contra os efeitos da urbai 0 macica e do trabalho forcado. Ela exprime uma revolta contra a fé secular no sentido d. lo da historia © na ordem do progresso, Pretende apresentar uma revanche &s res disciplinas da raréo, tao freqitentemente associadas & dominacio do Estado whe ilusdes do Progresso. A imagem da Baixa Idade Média, a “baixa modernidade” (agquela do ‘capitalismo tardio”, de acordo com a expressdo que Fredric Jameson toma emprestada de Emest Mandel) conhece 2 dissolugao das regras © 0 desregra mento da medida. Sob o choque da mercantilizacao generalizada, ela traduz um processo de confusio e de falta de diferenciagéo. Celebra-se a miscelanea, a mistura e a transversalidade, tendo como contraponto 0 aumento dos fantasmas purificadores, Nao hé mais povo, mas “pessoas” sem qualidades, Nao hé mais classes, mas clas, lobbies e mafias. Nao ha mais projetos, manifestos, vanguardas, mas fragmentos ¢ aforismos. Artisticas ou politicas, as vanguardas envelheceram, reduzidas por uma irdnica inversio de sentido a proteger as retaguardas de uma civilizagao ameacada. A politica passa diretamente do arco-fris para 0 monocromo, A cultura do consenso triunfa sobre a do conflito. © pés-moderno, resume Perry Anderson, “é que acontece quando o adversario [de classe] parece ter-se retirado sem ter softido derrota”. Esse discurso depressive deixa pouca esperanca de se inverter a ordem do capitalismo ¢ sua “violencia capitalizada”. Ele poe unilateralmente a énfase em A ichi ‘LN i farali- uma das tendéncias do fetichismo mercantil, No entanto, ndo tradus. as ties, mas a combinagdo dessa s iitimos vinte anos. dades teenoldgicas da revoluge da infor revolucao técnica com as derrotas politicas sofridas no he Intimamente ligada 3 “critica social” (das injusticas e das desigual “critica artistica’ (ou “societal” fo dela se separa anos 1960 ¢ 1970, a “critica artistica” (ou “societal”) da alienagao 4 ° 5 sociais © As carreiras fa, A moda faz as coma razio assim sob 0 golpe de desilusées propicias &s cooptagoe domesticadas’, A linguagem do comércio ¢ do consumo triun ry = ed istae vezes da novidade. Sob o pretexto de acabar com 0 cdlculo ego's ii entao, cdo ida-se, a partit de instrumental, a hora € do simulacro ¢ do postico. Convida-se 4 Vee tiicet ies Paris, Seuil, 1999): Farrago. 2000). 2 Ver Luc Boltanski e Eve Chiapello, Le nouvel esprit du capitatismae (P Michel Surya, Partnait de Vintellectuel en animal de compagnie (Paris, 83 lea toda sem vergonha nem escrtipulos, pata a danga macabra do Capi infernal das mercadorias. O reencantamento pos-moderno sua mitologia nao constituem, no entanto, um anridoto para as destazdes modernas. A recusa & argumentagdo racional, a dissolucao da totalidade nas partes, o obscurecimento da universalidade em beneficio das origens, das ratzes e das propriedades, a estetizacéo despolitizante da politica presidem as novas nupcias barbaras da arte ¢ da técnica. Como as duas faces de Jano, modernidade e pds-modernidade constituem, entéo, os dois pélos magnéticos da acumulacéo do capital. A oposicao entre modernismo ¢ pésmodernismo se apaga para “dar lugar & andlise das relagdes internas produzidas pelo Capital em sua toralidade”’, Delincia-se, assim, 0 bom uso possivel da critica pés-moderna, Ela estimula ndo tratar a diferenga ¢ a alteridade como aditivos acessérios a critica da . Contribui para dar toda a sua importancia 4 producéo economia politi simbélica na reproducao social. Convida a analisar as condigdes espaciais ¢ temporais da democracia politica, Reabilita o papel crucial da “produgio do espaco”. Atualiza um materialismo geo-historico confrontado com a recom- posicao dos territérios ¢ com a rotacao acelerada do capital, com a histerizagio da vida cotidiana e com o sentimento mérbido de fuga do tempo. Apesar de sua pertinéncia, essa critica nio poderia, entretanto, fazer tibula rasa do Iluminismo da modernidade, de seu horizonte de universalidade e de sua ambicio de verdade. Escdlio 1 De acordo com a férmula canénica de Baudelaire, a modernidade caracteriza- se como 0 que ¢ efémero € fugaz, como 0 transitéric oposto 20 ideal de beleza eterna. A pés-modernidade aparece, entéo, simplesmente como uma moder- nidade acentuada ou como uma modernidade ao quadrado. Conseqiien- temente, a auséncia de consenso sobre sua definiggo ¢ as dificuldades de periodizacio que levam a duvidar de sua pertinéncia: a elasticidade do conceito Ihe custa uma imprecisio desencorajadora. * David Harvey, Conehj ja pés-moderna, cit. 84 De mancira geral, 0 termo pos-modernidade representa simplesmente di con io humana apds a perda de conflanga nas grandes promessas do fatto, Para Zygmunt Bauman, a morte do comunismo enquanto aventura exemplar da modemidade que coloca um fim no pesadelo do progresso e apaga as Luzes, Alguns autores consideram sobretudo que, se a pds-modernidade coexiste com 4 modernidade, a querela da qual é objeto salienta uma telagéo inédita de continuidade-descontinuidade na reprodugdo da ordem existentet, A modemidade designaria, assim, uma conliguracio social, politica ¢ cultural, organizada em torno da busca sistemética do lucro, do desen- volvimento cientifico, do Estado nacional modemo e da grande promessa de Progresso perpétuo. O incelecrual “legislador” seria, segundo Bauman, seu padre seculas, aquele que enuncia 2 lei e zela para que ela seja respeitada, Inversamente, a pés-modemidade traduzitia 0 enfraquecimento ¢ 0 enxuc gamento dos Estados nacionais, o abandono dos compromissos Keynesianos ¢ das formas de economia dirigida, 0 crescimento da incerteza ¢ da inseguranga. De legisladores, os intelectuais destronados tornar-se-iam simples comentaristas intérpretes de sinais, Corolario 1 A totalidade ¢ irtedutivel a seus fragmentos espatsos O discurso filoséfico da pés-modernidade aparece como uma obra metédica de despolitizacao do social e de estetizacio da politica. Sob 0 choque da com- pressio espaco-temporal ligada acumulagao globalizada do capital, 0 espago Piblico se deteriora. As solidariedades se desfazem na decomposigéo do “eu tmuiltiplo” e nas subjerividades pulverizadas de uma socializagio em migalhas, A individualizagao em série do consumidor de massa responde a diversidade das estruturas de opresséo,¢ dos campos de dominacio aos quais ele & a partir de * Ver Fredric Jameson, Pis-modernisme: a ldgica cultural do capitaliono tardio, cit., € A virada cultural (Rio de Janeiro, Civilizacéo Brasileira, 2006); Perty Anderson, As origens da pis-modernidade (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999); Alex Callinicos, Against postmodernity (Cambridge, Polity Press, 1989) as ido ( 1 a ettita, viacad). N entao, submetido (percengas de classe, género, sexo, etnia, nagéo), Nenhuma contradicao, psincipal ow transversal, parece estar em condigdes de combind c unificé-los, No entanto, uma “grande narrativa” sobrevive ao fim anunciado do Sujeito com 5 maitisculo e de sua narragdo épica: a do Capital ventrfloquo, sujeito tiranico impessoal na cena desolada do mundo. Os individues sao, a sua revelia € contra a sua vontade, 0s drgéos ¢ os membros deste. A ideologia dominante se perpetua, assim, no fim proclamado das ideologias. idéias, “o eu pontual” flutua ao Sem horizonte de espera nem seqiiéncia n long do instante. A pluralidade do social se reproduz, assim, na multiplicidade intima dos “eus” contraditérios que se disputam neuroticamente em cada um € cada ume: “Esté bem! Fu me conrradigo.,. Sou amplo... Contenho uma multidao. teivindicado das identidades oprimidas com o ideal de igualdade proclamado. o respeito ”*, Essa conjuragdo dos egos quase ndo permite reconci Uma sociedade “multicultural” suporia ao menos uma nosao compartilhada de pluralidade tolerincia, © que estd longe de ser obvido, Surge, assim, 0 perigo de uma recusa dogmitica da totalidade, de sua decomposigéo, como escreveu Hofmannsthal, em “partes de partes” sem coeréncia de conjunto, reduzidas a membros esparsos ¢ a antinomias estereis, A destotalizagéo pés-moderna pressupée paradoxalmente a mediacio de uma totalidade articulada ¢ sua determinagdo em iltima instincia, Na falta disso, a sopa de legumes litetdrios ¢ 0 caldeitéo de culturas mercantis nio constituiriam nem sequer mais um pensamento. Para Hegel, 20 conttario, um é sempre um do outro no devir de uma toralidade em movimento’, A Logica interna do Capital certamente nao é a de uma totalidade substancial, mas de uma toralidade relacional, de um organismo vivo, de um sistema cibernético, ¢ nao de uma mecdnica de sentido nico. Como no célebre teste de psicologia das formas, ela pode ser perecbida ora como um pato, ora como um coelho, A totalidade da sentido 4 sua unidade: pato e coelho! Mas, para * Wale Whitman. © Em Marxism and totality: the adventures of a concept from Lukdes to Habermas (Berkeley/Los Angeles, University of California Press, 1984), Martin Jay tagou 1 es hiscdricas, novamente as aventuras desse conceito de totalidade e suas transforms 86 perceber © coelho, & preciso comecar por se desprender da falsa evidéncia unilateral do pato. A heterogeneidade supse a homogeneidade, O outro, 0 mesmo. A medida relativa, a medida absoluta’. Ea parte, o todo. Para que d erentes pontos de vista fagam sentido simultaneamente, ¢ preciso admitir um fundo comum, Para Lukdes, a parte somente tem sentido como passagem ¢ como momento de totalizacio; pois a totalidade 1 io dogmadtica néo é Ser ou Esséncia, mas devir. A “categoria crucial” da toralidade concreta opée-se, assim, 4 ldgica de atomi- zasto e de fragmentacéo prépria da reproducao do capital. Opée-se a toralidade abstrata, & “totalidade false’ que pesa sobre 0 conjunto das relagbes socials ¢ obriga a se pensar, queira ou nao, sob a condi¢ao do capital. Enquanco a ideologia dominance é a da imediaticidade ¢ das aparéncias, sua critica combate as evidéncias enganadaras dos fatos pulverizados ¢ 0 falso soncreto dos dados imediatos da consciéncia: “A categoria somente se torna dialética no contexto da totalidade”®, A “totalidade articulada & dominante” invocada por Althusser leva em conta, assim, 0 papel das mediacoes e a desarmonia dos tempos. Ela sé & pensdvel através de scu desenvolvimento histérico. Manifestacdo de uma “causa au- sente”, ela se parece mais com 0 “deus escondido” de Pascal do que com a “tota- lidade expressiva” de Hegel, da qual cada parte seria a emanacio € 0 holograma do todo, A toralizacio dialética supoe a impossibilidade, para sujeitos particulares, de terem acesso a essa posigéo suspensa. Num contexto em que a exaltacio do instante se opoe & inteligibilidade histérica, em que os conceitos universa- Mzantes sao enfraquecidos, 0 de totalidade torna-se suspeito de desvios rotali- tarios. Mas o fato de considerar “modestamente” o capitalismo um conjunto incoerente, simples colagem de dominagbes justapostas, ¢ no um todo gover- ” A medida absolura, antigamente denominada “metrética’, corresponde & prépria idéia de medida sobre a qua! se baseia a possibilidade da medida de acordo com a pr6pt coisa © G, Lukes, fy definte of History and class conscioustess: zailism and the dialect, cit, p. 113. Damascius ja considerava que © primeiro ato do pensamento consiste em ‘estabelecer o todo”, Mas, acrescenta ele, a negasio do todo é precisamente a condicso da afirmagao do todo. a7 nado por uma légica imanente, permite conciliar as resistencias parciais € pontuais com a subordinagao global & dominagio do sistema, Para Fredric Jameson, a teoria de Marx responde a um “imperative de toralizacao”. A “guerra cotalidade” expressaria inversamente um temor difuso em relagéo a qualquer projeto radical de revolugao social. Uma vez dissipado esse mal-entendido, a verdadeira questdo posta pela perspectiva de totalidade é a das condigaes histéricas de que ela seja possivel. Escélio 1.1 Em Politico, de Platao, 0 estrangeiro de Eléia se opoe A divisao entre gregos € nao-gregos que grous dividiriam os seres vivos em grous ¢ nao-grous, O todo comanda a légica da diferenciagao e da contradicio. As classes, os grupos, os géneros nao so substincias auonomas, exteriores e indiferentes umias 2s outras, que somente entrariam em oposicao em um segundo momento, mas os pélos conflituosos de uma relacdo interna & totalidade. Na formacao social conrem- pordnea, essa relacao é simplesmente 0 proprio Capital. Escolio 1,2 Nao nos livramos facilmente da totalidade. Pierre Bourdieu fala de tota- lizagao hipotetica ou condicional. Henri Lefebvre, de “toralizagdo aberta”. Sartre, de “totalidade destotalizada”: “S6 pode haver luta se 0 Todo nio for jamais a unidade sintética total ¢ se as partes nunca se isolarem comple- tamente””. Se a totalidade abstrata tem uma conduta totalitéria, a toralizacéo concreta, aberta a sua prdpria negacao, opde-se 3 tirania do absoluto. Em uma polémica com Lulics, Adorno rejeita com toda a razdo a miragem de uma totalidade apaziguadac harmoniosa, de uma visio do mundo unificada em um sistema nao problematico de valores estéticos e morais, Ele opde aelao trabalho da negativa ¢ do decalhe que resume e refrata 0 todo, Nem por isso a totalidade desaparece. Ela se reconstr6i sem cessar a partir de suas partes. Da mesma maneita que a universalizagdo supde © universalizavel ¢ a unificagio » Jean-Paul Sartre, Cahiers pour wine morale (Paris, Gallimard, 1983), p. 92 88 sup6e © unificdvel, essa totalidade relacional, ou processo de totalizagao nos antipodas de uma totalidade despética preestabelecida, supde algo totalizavel, Em outras palavras: da toralidade, do universal ¢ da unidade ao estado de possibilidades em mudan Escélio 1.3 A liquidacdo pés-moderna da totalidade aparece como uma rejeigio dog- matica das estruturas ¢ dos sistemas. Ela vai contra pesquisas em ciéncias naturais (biologia ou quimica organica) e sociais (quer se trate de teorias de informaco ou do conceito de ecossisvema, central no desenvolvimento de uma ecologia critica). Desde a lingitistica de Saussure ¢ da Teoria geval dos sistemas’, de Bertalanffy, as nogoes de causalidade estrutural (ou sistémica), de auto- tegulacao e de homeostasia tém aplicagées cada vez mais amplas. Elas nao dizem espeito nem a uma légica mecAnica nem a simples combinagdes quimicas, mas a uma légica orginica da totalidade. Sem o sistema da lingua, @ palavra nio teria sentido. Sem a coeréncia de um modo de produgio, as relagées sociais se reduzitiam a um agregado ininteligivel, Em vez de repudiar a légica dialética da toralizagao, melhor seria se dedicar a elucidar o modo de articulagio entre 0 todo ¢ suas partes, “Deverminacio em tilkima instancia”, eficécia prépria de uma causa ausente? “A verdade é que nio podemos deixar de nos perguntar sobre a sociedade global”, diz Pierre Bourdieu, A relacao entre os diferentes campos da pdtica social para ele roma 4 forma de “homologia’. A pergunca permanece: o que fundamenta o isomor fismo entre esses campos? Todos eles desempenham um papel equivalence? Em uma formagio social historicamente determinada, algumas relagaes (de sexo ede classe) ganham uma importancia particular que repercute nas outras esfe- ras da vida social sem, no entanto, abolir sua autonomia relativa? O capital néo teduz a dominagécsentre os sexos a relagdes de classe, mas transforma suas modalidades mudando a funcao da familia, Ele nao esgota a questéo das velagdes entre a sociedade ¢ a natureza, mas coloca-a de maneira especifica, “Ludwig von Bertalanfly, Teoria gen! dos sistemas (Rio de Janeiro, Vozes, 1973). (N.T.) 39 no ambito da dimenséo mercaatil do mundo. Néo suprime as opressbes nacionais, mas as redistribui de acordo com a lei do desenvolvimento desigual e combinado, Escdlio 1.4 Jean-Francois Lyotard definiu a pés-modernidade como “a incredulidade em telago as grandes narrativas”. O enunciado abrange tanto @ rejeigao do funcionalismo em heneficio da mistura de estilos ¢ de géneros quanto as cendéncias pés-estruturalistas anglo-saxénicas em filosofia, ou 0 “novo espirito do capitalismo”, Ela manifesta “um sentimento de fim” ¢ marca uma ruptura apocaliptica com o discurso do Tluminismo e a odisséia do Progresso, O presente nao tira mais sua justificativa do futuro. A verdade se liquefaz, A realidade se toma virtual. A época é de flexibilidade ¢ de inconstancia, de monstros fracos e de pensadores contorcionistas. Essa “condicao pés-moderna’ é propicia aos pastiches nostilgicos de um passado histérico mitificade. Nessas condisdes, nao é de se espantar que 0 reencantamento do mundo ande junto com a volta do teligioso, com 0 milenarismo de bazar ¢ com a “espititualidade totalitéria” da Nova Era. A partir de entéo, ndo se € mais 0 que se faz, mas 0 que se compra, O peregrino torna- sé turista © consumidor de exotismo climatizado. O novo-rico, traficante de indulgéncias da Bolsa. O modernismo pretendia ser uma estética da conscigncia de si, Ele exprimia um forte sentimento do tempo ¢ da historicidade. Celebrava um culto da novidade permanente, cujas vanguardas eram as cabecas pesqui- sadoras. Para Zygmunt Bauman, a modernidade combinava, assim, o sentido da mudanga permanente, 0 advento do Estado nacional, a consagracao do poder cientifico, a luta profana pelo progresso terrestre ea racionalizagao de um capitalismo administrado. Inversamente, a condicao pés-moderna surge quando se deixou de crer nas grandes promessas. Esse aniquilamento dos horizontes de espera remeteria a decadéncia dos Estados-nagio, 20 abandono das regulacdes keynesianas, ao declinio do imperialismo curopeu. Disso resultaria um sentimenco difuso de inseguranga que “a sociedade de risco” de Ulrich Beck ou “a heuristicado medo” de Hans Jonas expressam. Portanto, a 90 época é de interpretagoes sem verdade ¢ de proliferagio de subcu as sem uma medida comum. Em 1989, Modernidade ¢ holocausto’ marcou uma guinada na obra de Bauman, uma desafeicdo em relacio a uma modernidade da qual ele tinha sido um fervoroso partidario. Essa reviravolta resignada resultow em uma volta identitaria & judeidade, até entio reprimida em nome de um universalismo resolutamente cosmopolita. Essa crajetéria nada tem de excepcional: outros fizeram 0 caminho inverso de Damasco a Yeshiva. Em 1991, em Modernidade ¢ ambivaléncid’", Bauman descreve a modernidade como um desejo de ordem (econémica, cultural, militar), simbolizada pelo Pandprico de Bentham. A nova elite pés-moderna seria, 20 contrario, a dos glabe-trorters supersonicos, dos ciberguerteiros, dos financistas ndmades, dos “cavaleiros conexionistas” de uma nova Idade Média, Sua visio do mundo, reticular ¢ ramificada, seria simbolizada por um Sindptico: em vez de uma tinica pessoa vigiar a multidao, sao os olhares da grande maioria que convergem, a partir de entio, para os herdis anémicos do espetéculo televisivo, Escélio 1.5 Para Fredric Jameson, a época pds-moderna é aquela que esqueceu como pensar historicamente, © pastiche sem contetido substitui a parédia, O frenesi do “neo” ¢ do “pés” trai a colonizagéo do presente pelos modos nostilgicos, como se estivéssemos condenados a fazer o falso novo com 0 verdadeiro velho. Enquanto o romance histérico (de Walter Scott, Dumas, Zevaco) respondia a uma experiéncia do presente enquanto momento histérico, a futurologia cinematografica espacializada aniquilow o lugar nos espagos infinicos. © modernismo representaria entéo “uma experiéncia incompleta da modernizagao”, cujas vanguardas intépidas exploravam a fronreira mével. Em compensagao, 0 pés-modernismo seria o suspiro de um periodo de transi¢ao, 0 espirito de um mundo sem espitito, a ideclogia de uma nova pequena burguesia conectada e de uma nova clite globalizada em equilibrio entre duas Zygmunt Bauman, Modernidade e holocausto (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998). (N.T.) Idem, Madernidade e ambivaléncia (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1999), (N. T.) eras do capitalismo. Consciente do carter paradoxal de um empreendimento que procura sistematizar 0 que se apresenta como radicalmente anti-sistémico, historicizar 0 que se quer resolutamente aistorico, Jameson nao pretende nem celebrar nem condenar uma pés-modernidade esquartejada entre a aversio neo- romantica ¢ o fascinio fetichista da mercadoria. Ele se esforga para compreendé- la de modo a melhor subverté-l . Fla Ihe aparece, entéo, como “uma revolucio , como uma resisténcia saudavel permanente na vida intelectual ¢ na cultur: 20 perigo de petrificagio em doutrinas positivas que ameaca as teorias criticas. Ao renunciar & critica sistémica do capital, 0 jargao filoséfico da pés- modernidade contribui, no entanto, para naturalizar ¢ despolitizar o campo econémico. Ele reduz sua contestagéo a um reflexo de experiéncias Iidicas sem continuagio nem projeros? Ou contribui para repolitizar resisténcias ainda ontem relegadas no santudrio inviolavel da vida privada? A relativa autonomia © 0 contetido critico da cultura sio neutralizados pela légica mercantil do capitalismo tardio? Ou a expansio de uma cultura profana até os poros da vida cotidiana contribui para uma dessactalizacao libertadora? Esse dilema, 20 mesmo tempo politico ¢ estético, esta vinculado ao debate encte Benjamin ¢ Adorno sobre a obra de arte na época de sua reproducao técnica ¢ sobre a perda da aura. Colocada sob sua forma alternativa, “ou... ou”, a controvérsia ndo tem saida, Trata-se sobretudo de trabalhar no cerne de uma contradi¢ao em que se enfientam possiveis opostos!” Corolario 2 O universal nao ¢ sohivel no particular A universalidade abstrata é firegtientemente a méscara ¢ 0 dlibi da dominagio (colonial ou masculina). A critica da universalidade abstrata ¢ de seu formalismo ndo pode evitar a referencia implicita a uma universalidade conereta em mudanga: a desmistificacio da primeira pressupoe a segunda, O projeto de “mudar 0 mundo” apdia-se em uma classe particular poctadora de univessali- zagdo conereta ' Ver Walter Benjamin, Ecrits francais (Paris, Gallimard, 1990) 92 No entanto, esse universal deve mancer, diz Ernesto Laclau, “um lugar vazio, tum vazio que somente pode ser preenchido pelo particular, mas que através de sua propria vacuidade produz. uma série de efeivos deci ivos de desestruturacao e de reestruturacéo das relag6es sociais"”. Qual é entéo o furuto do universal nas sociedades desarticuladas? Ble é condenado pela proliferacéo indiferente de particularismos que representam, a partir de entao, as tnicas alternativas modestas ao sonho de emancipacio universal? Elas devem se resignar 3s ambicées limitadas do ‘pensamento fraco” ¢ a seu horizonte plimbeo? Ou ainda se pode esperar uma retomada da emancipacdo universal a partic de uma multiplicidade reconhecida? Coroldrio 3 O real nao € soliivel no virtual, nem a busca da verdade na inconstincia das opinises A apologia do fato consumado provém da percepgio unilaceral de um mundo constituido de pegas soltas, sem pé nem cabeca, O fetichismo tautoldgico dos fatos que “so os fatos”, obtusos ¢ obstinados como fatos. é 0 prego da rentincia a um horizonte de verdade. O pensamento se da, a0 contrario, no devir que ele ajuda a determinar. Slavoj Zidek sustenta que a politica revolucionéria nao € uma questao de opinido, mas de verdade. Do ponte de vista da cotalidade, no entanto, falsidade ¢ verdade brincam de esconde-esconde. “Tu seguitas a via da verdade e evitards avia da opiniao”, recomenda Parménides. Como se as duas vias fossem paralelas ou categoricamente opostas, sem cruzamentos nem intersegdes. A condenagio Go sofista como antifildsofo, por Alain Badiou, ou do doxémano como anti- socidlogo, por Pierre Bourdicu, diz respeito a esse corte ideal entre verdade ¢ opiniao, do qual o filésofo-rei ou o socidlogo-rei scriam as garantias. Hoje, assim como anteriormente, sofistas e doxdmanos estio ligados ao mercado € ao comércio das imagens. A necessidade de seduzir a opiniao da qual se alimentam & sempre carregada de tentagdes demagégicas. Fla flerta com a Emesto Laclau, “Identity and hegemony”, cit, p. 58 93 aparéncia ¢ com o inauténtico, Trai uma subjetividade adulterada, desinte- ressada de tudo, que perambula na praca barulhenta onde as mercadorias aliciadoras se expdem ao desejo ¢ 208 caprichos do fregues. No entanto, o sofista ¢ duplo. Muitas vezes venal e demagogo, ele é também oalter necessirio do filésofo, o democrata que impée limites ao despotismo da verdade dogmatica. Como tecet, a partir das diferengas, um laco social sélido? E como conviver sem essa pluralidade constitutiva? Nessa histéria muito antiga, 0 fildsofo ¢ depois 0 sabio pretenderam eliminar, a servica do legitimo saber, a opinio falsa, as pré-nogbes os preconceitos. Jamais conseguiram escapar deles completamente. A verdade nio é estranha ao senso comum. Mas 0 senso comum tem uma historia: até recentemente uma critica impertinence das hierarquias do saber, hoje mantém uma relagao de concubinate notorie com a ideologia dominante. A politice nao é nem uma comperéncia particular nem uma cigncia exata. A democracia aposta no fato de que a soma das incompeténcias individuais pode constituir uma competéncia coletiva ou, pelo menos, a menor das incompeténcias, Nao se pode, entéo, se abster da opiniao sem arriscar o pesadelo de algum despotismo esclarecido. Thomas More pretendia estabelecer com ela uma relacio nova, de “conduta indireta’, capaz de forgar as resisténcias levando em conta suas objecdes: Se vocé nao pode extirpar radicalmente opiniées erréneas, isso nao ¢ motivo para se desligar da coisa publica, [...] Mais vale proceder indiretamente ¢ se esforgar 0 quanto puder para recorrer 4 diplomacia, de modo que, se nfo conseguit obeer uma boa solugao, pelo menos tenha encaminhado a menos cuim possivel. Pois, como rodas as coisas seriam perfeitas se todos os homens nao 0 séo mais, o que néo espero ver acontecer amanha.? De fato, a politica ndo resulta de um saber cientifico, mas de um saber estratégico. Nao obedece a uma verdade autoritaria sem oponentes. Estabelece “relagdes de verdade” relativas a uma situagio concreta. Pée em tensio verdade ¢ opiniao. omas More, L/topia (Sao Paulo, Martins Fontes, 2001). 94 Escélio 3.1 O fim das crengas misticas e das certezas absolutas nao significa o desaparecimento de toda certeza relativa. O fato de as verdades serem relativas nao significa que tudo seja posstvel ou permitido e que voltaré o ten po dos miagicos: “O homem deve assumir sua finitude estabelecendo sua existencia nao como transitéria ¢ relativa, mas nela refletindo 0 infinito, ou seja, estabelecendo- acomo absoluta”'*. Pois o absoluco nao ¢ 0 ponto de vista de Deus sobse a histéria, €a maneira como homem ¢ cada coletividade concreta vive sua histéria. Ao renunciar ao absaluto transcendente, vocé nao cai na relatividade absoluia, vocé dé ao homem seu valor absoluto.!* A hipéstase da verdade resulta da ciséo entre 0 sujeito ¢ 0 objeto. Ela se reduz, entéo, a uma objetividade inerte: 0 que permanece quando a subjeti- vidade ¢ tirada do jogo, Hegel, ao contririo, entende o verdadeiro como sujeito © como devir, Aparece, assim, o nticleo temporal de um processo de verdade concebido nao como adequagao & coisa — correspondéncia fiel entre a realidade € seu conceito ~, mas como devir-verdadeiro da propria coisa através do desenvolvimento de seus momentos. Assim, parece concebivel superar a oposicéo absoluta entre a verdade ¢ 0 senso comum. No conhecimento dos fendmenos sociais, a verdade reveste a forma paradoxal de “verdades relativas” ou de “telagdes de verdade”. Ela conhece graus de certeza e de probabilidade, Que a verdade tenha, em suma, uma histétia, permite cvitar a oposicao estéril entre diivida e certeza: as certezas ndo sdo soliveis na divida e vice-versa, 5 Simone de Beauvoir, Por uma moral de ambignidade (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005) » Jean-Paul Sartre, Cabiers pour wne morale, cit, p. 437 Para o existencalista ateu Jean-Paul Sartre ( "0 absolute nao € 0 ponte de vista de Deus sobre a h como cads homer e cada coletvidade concreta vive sua Desenho de Loredano. or 15-1980), a maneira storia” Fermata A CORRENTE INFLAMADA DA INDIGNAGAO NAO E SOLUVEL NaS AGUAS MORNAS DA RESIGNACAO CONSENSUAL Como se reconhece nosso contemporineo, 0 homo resignatust Como se reconhecem nossos politicos bem modezados, os da direita do centro, da direita ecentrada, assim como os da esquerda do centro, da esquerda recentrada? Como se reconhecem nossos inteleccuais domésticos, especuladores da Bolsa ousados durante o dia e pregadores moralizantes durante a noite? Por seus joelhos esfolados de tantas ajoelhagées e gemuflexdes diante dos novos feriches € dos velhos idolos! Por suas costas curvas de tantas sapos engolidos ¢ reveréncias vergadas diante do altar dos mercados! Por seu sangue gelado e por sua impassibilidade anfibia diante da ordem impicdosa das cois, Por sua soberba indiferenca, de tantos acomodamentos e tantes rentincias consentidas! Por que nés, que jamais fomos verdadeiramente modetnos, deveriamos acordar de repente pos-modernos? Por que nés, que jamais fomos indiferentes, deveriamos nos descobrir de repente cinicos? Por que nés, que jamais renunciamos a rir de tudo ~ mas no com qualquer pessoa —, deverlamos a partir de agora nos contentar em zombar de nad Além da modernidade e da pés-modernidade, resta-nos a forga irredutivel da indignagao, que ¢ exatamente 0 contrério do hébito € da tesignacio, Mesmo que ainda se ignoze 0 que poderia ser a justiga do justo, resta a dignidade ¢ incondicional recusa da injustica, A indignagao ¢ um comeco. Uma maneira de se levantar ¢ de entrar em acdo. E preciso indignar-se, insurgir-se ¢ s6 depois ver ao que da. E preciso indignar-se apaixonadamente, antes mesmo de descobrir as raz6es dessa paixao. Estabelecer-se os principios antes de serem calculados os interesses ¢ as oportunidades: “Que fosses frio ou quente, mas porque és morno, nao és fiio nem quente, eu te vomitarei da minha boca!” " Apocalipse de sio Joao, 3, 15-16. 98 Sobre o autor Daniel Bensaid, fildsofo e ativista politico francés, nasceu em 1946, em Toulouse ‘Tebrico do movimento trotskista, foi um dos participantes mais destacados do Maio de 1968, como militante da Juventude Comunista Revoluciondria GER). Apés a fusdo da JCR com o Partido Comunista Incernacionalista, em 1969, que deu origem & Liga Comunista Revoluciondria (LCR), Bensaid entra para seu diretério politico, £ membro do secretariado da IV Internacional e professor de Filosofia da Universidade de Paris VIII. Entre suas obras destacam-se: Mai 1968, une répétition générale. Patis, F. Maspero, 1968. (com Henri Weber) Le deusxiéme souffle’: problémes du mouvement éudiant, Paris, R. Maspero, 1969. La révolution et le pouvoir. Paris, Stock, 1976. Lianti-Rocard ou les haillons de U'utopie. Patis, La Bréche, 1980 Swratégie et parti. Montreuil, Presse Edition Communication-La Bréche, 1987. Moi, la révolution: remembrances d'une bicentenaire indigne, Pais, Gallimard, 1989, Walter Benjamin sensinelle messianique: & la gauche du possible, Paris, Plon, 1990, Jeanne de guerre lasse. Paris, Gallimard, 1991. 1a discordance des temps: essais sur les evises, les classes, Uhistoire. Paris, Lid. de la Passion, 1995, Marx Vintempestif: grandeurs et miséres d'une aventure critique, XIN-XX sidcles. Paris, Fayard, 1995. [Ed. bras.: Marx, 0 intempestivo: grandezas ¢ misérias de wa aventura critica, Rio de Janeiro, Civilizasao Brasileira, 1999.] Lepari mélancolique: métamorphoses de la politique, politique des métamorphozes. Paris, Fayard, 1997. Lionel, qulas-tu faie de notre victoire? leur gauche et la nétre. Patis, A. Michel, 1998 Contes et légendes de la guerve éthique. Paris, Textuel, 1999. Qui est le juge?: pour en finir avec le eribunal de Ubistoire. Paris, Fayard, 1999 Eloge de ha résistance i Le sourire du spectre: nowvel esprit du communisme. Paris, Michalon, 2000. (0 Paulo, Xana, 2000. (com Michael Léwy) héoremes de la résistance a latr die temps. Paris, Textuel, 2001. du temps. Paris, Textuel, 1999. Marxismo, modernidade ¢ utopia. Les irréductibles: Passion Kurl Marx: les hiéroglyphes de la modernité, Paris, Textuel, 2001. Résistances: essai de taupologie générale, Paris, Fayard, 2001. Les troiskysmmes, Paris, Presses Universitaires de France, 2002. Un monde ie changer: mouvements et straségies. Patis, Texwuel, 2003, Le nouvel internationalisme: contre les guerres impériales et la privatisation du monde, Paris, Textuel, 2003. Une lente impatience. Patis, Stock, 2004. Fragments méerdants: sar les maythes identitaires et la népublique imaginaire, Paris, Lignes, 2005. Les dépassédés: Karl Marx, les valeurs de bois et le droit des pauvres. Paris, La Fabrique, 2007, . Un nouvean théologien: Bernard-Henri Lévy. Paris, Lignes, 2007. (Fragmenss mécréants 2). Eloge de la politique profane. Patis, A. Michel, DL, 2008. 100 OUTROS LANCAMENTOS DA BOITEMPO EDITORIAL SBENSAIOS w faces do guero ofc Wacquant fradugéo de Paulo Cezar Castanheira Orelha de Marco Ausélio Santana Lrolegérnenos para uma ontologia do ser social (no prelo) Georg Lukics Apresentacéo de Ester Vaisman Posfécio de Nicolas Tertulian Tradugéo de Lya Luft e Rodnei Nascimento A ercola ea letra (no prelo) Flivio Aguiar e Og Déria (orgs.) Projeto grafico de Ricardo Ohtake O peder das barricades Tariq Ali Orelha de Emir Sader Tiadugio de Beatriz Medina Adami Sinith em Peguim Giovanni Arrighi Apresentagio de Theotonio dos Santos Tradugéo de Beatriz Medina CACOLECAO MARX/ENGELS A sieuapao da clase trabathadora na Inglaterra Friedrich Engels Inttodusao e supervisio editorial de José Paulo Netto Tredugéo de B.A. Schumann A tdeologia alema Karl Marx e Friedrich Engels Supervisio editorial de Leandro Konder Introdugio de Emir Sader ‘Tradugao de Rubens Enderle, Nélio Schneider ¢ Luciano C. Marcorano EECLASSICOS BOITEMPO™ Or deuses tem sede Anatole France Traducao de Daniela Jinkings e Cristina Murachco

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