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0 HOMEM DO NORDESTE TH. POMPEU SOBRINHO Nos tempos pre-coloniais, habitavam na costa do Nordeste, do rio Jaguaribe para o sul, amerindios da familia tupi e no interior e praias do norte do Ceara, os tapuias, na sua quasi totalidade do grupo cariri. Duas dreas culturais diferentes, de aspectos etnogralicos caracteristicos, esbogavam-se e desenvol- viam-se desigualmente nos dominios respectivos des- ses indigenas. Foi toda a regiéo senhoreada pelos invasores portugveses e mestigos que se expandiam de quatro centros ou fucos de irradiacéo. Da Baia, pela costa, em procura da bacia do Sao Francisco; e de Pernam- buco, primeiro para o sul,em busca daquele mesmo ponto; e, segundo, para o norte, demandando o Ma- ranhio. Soldados portugueses, mamelucos, negros e mulatos, aliando-se aos Potiguaras e Tabajaras de- pois de destruirem ou aiugentarem os Caetés, firma- Tam-se, mais ou menos solidamente, nesses mesmos sitios, a0 longo do mar, organizando nticleos de po- pulacgéo, onde avultava o elemento indigena tupi, Nao tardou que a excelencia das terras de criar do interior e a perquirigéo de minas despertassem o interesse dos colonos. De Séo-Paule, desceram bandeiras que, com as entradas da Bafa, devassaram os sertées do rio Sao-Francisco, penetrando no alto Piranhas e na bacia do rio Parnafba, no Piaui. Da Paraiba e do titoral, em geral, subiam expedicdes para os sertées a dominurem as terras da Borborema, do Agu, do Jaguaribe, do Chor6, do Curt, do Aca- ratte da Ibiapaba, em cuja chapada se defrontavam com as que vinham do Maranhdo, geralmente de ca- rater mais religioso do que colonizador. Numerosas fazendas de criar foram situadas nos 322 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ sertdes 4s margens dos rios ou riachos e raramente nas encostas das serras, mas sempre onde a agua era segura, A propriedade das terras de caatingas para a eriagdo de gado cedo foi notada, e assim abrolhou heséas amplus regides uma civilizagéo caracterizada pela sua industria dominante e quasi exclusiva,—o pastoreio. O litoral do Nordeste nado se prestava tio bem para a criagdo a lei da natureza, em vista das suas condigées cdaficas, climicas e biogeogratficas; ao passo que oferecia vantagens de ordem ffsica e s0- cial & lavoura que ai se expandiu e particularmente avultou, tumando grande importancia nas terras hi- midas do curso inferior dos rios costeiros e dos bre- jos que, aquem da Borborema, se abriam até a Bafa, sobretudo de Pernainbuco para o sul. © sertéo ficou num relativo isolamento, consti- tuindo-se entéo dois ciclos culturais perfeitamente distintos, o dos «vaqueiros» dominando as caatingas ¢ campos do interior, e 0 dos «agricultores», ua faixa litoranea e no curso baixo de certos rios, ondea cul- tura da cana podia medrar, Mas essa faixa litoranea, impropria para a criagdo, oferesia duas divisées su- ficientemente nitidas. A parte mais himida e mais larga, principalmente do rio Paraiba para o sul, di- ferenciou-se, formando uma sub-area cultural, a dos engenhos. A parte menos himida e mais es- treita daquele rio, notadamente para o norte, aber- ta em praias rasas, taboleiros arenosos, de mais fraca pluviosidade, nio oferecendo condicdes propicias as Tavouras de longo ciclo vegetativo, nao conseguiu cultivar @ cana, sendo em zonas muito restritas de certos e raros vales frescos. A industria por exce- lencia dessa sub-area cultural foi a pesca no mar e nos estuarios, com o desenvolvimento da lavoura pouco exigente da mandioca e eventual cultura de legumes, cereais e algodéo. Assim, pois, podemos distinguir, no periodo co- lonial, trés 4reas etnograficas no Nordeste do Brasil: a dos vaqueiros, dominando a caatinga; a dos enge- nhos, dominando o litoral e os vales humidos da costa ag ocidente da serra do Mar, e a dos pescadores, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 323, dominando as praias baixas, arenosas e bordadas de dunas. Na primeira, predomina o tapuia, com a ex- clusio quasi absoluta do negro; na segunda, predo- mina o negro, mas também avuitam os elementos branco e tupi; na terceira, 6 ainda o elemento indi- gepa que faz a maioria, sendo os outros elementos em proporgées sensivelmente iguais entre si—o bran- co @ o negro. Mesmo no periodo colonial pequenas perturba- gées ja se registam, quebrando o ritmo etnico dentro dessas dreas, sem contudo modificarem o carater geral de cada uma. A descoberta de ouro no vale do rio Salgado, no Cearé, deu lugar 4 introdugéo de negros africanos no Carirf, aumentando alf o indice desse elemento. No litoral, a dominagado flamenga, durante quasi meio seculo, deixou uma apreciavel percentagem do sangue nordico, infiltrado no seio dos selvagens,dos mulatos e mamelucos, maximé do Rio-Grande a Alagoas. Levas de judeus, sobretudo durante o dominio holandés, e de ciganos expulsos de Portugal depois de 1728. complicaram parcial- Mente a fusio no cadinho nordestico, embora sem alterar sensivelmente a grande superioridade das trés ragas principais. Por outro tado, tratos de terreno com mesologia fisica diversa, formando iJhas no interior das trés zonas referidas, modificavam a distribuigdéo etnogra- fica, criando nicleos de tendencias culturais diversas das que os caracterizam. Tais diferenciagdes acen- tuaram-se no ultimo seculo. E’ assim que, no sertio, a terra por excelencia do vaqueiro, a fisiogralia do vale do Cariri, com as suas terras calcareas, [rescas, abundantemente irrigadas por fontes numerosas que jorram das escarpas do Araripe, permitiram destacar uma mancha de cultura diferenciada pela preponde- rancia da lavoura de cana, que a introdugéo dos ¢s- cravos africanos, referida, facilitou. Ai, constitufu-se uma pequena regiéo com caracteristicos sociais que lembram a area dos engenhos. Pontilhando a vastidéo dos sertdes aqui e alf, algumas serras frescas, mercé dos seus cérregos pe- renes, atrairam gente dada as lavouras de cana, de cereais, de mandioca. Nos vales montanhosos e hu- 324 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA' tnidos, os rigores das sécas nao destruiam facilmen- te as plantas cultivadas, mesmo as de longo ciclo vegetativo, como 0 café, etc., originando pequenos focos culturais diversos dos que modulou a ca- atinga. Somente a praia nao sofreu infiltracdes que Ihe criassem exvepcdes. Os pescadores aparecem ime- diatamente nos suburbios das grandes cidades, com a sua fei¢do propria, as suas jangadas, os seus habi- tos seculares, cantigas e moda de vida,sem que uma brecha, fora dessas mesmas cidades, ameace dife- renciacdo digna de nota. Por outro lado, cumpre mencionar tambem as grandes cidades litoraaeas, as capitais das provincias ou estados, cuja cultura oferece aspecto diverso do das zonas onde estéo encravadas mercé dos feno- menos de urbanismo, da facilidade da circulagéo em relagdéo aos grandes centros distantes, da sede da administragéo, da concentragdo da riqueza drenada de vastas zonas. Nas diferentes dreas definidas, as condi¢des cos- micas, biogeograficas, etnicas ou antropologicas e sociais diferem mais ou menos sensivelmente, criam tendencia manifesta para a diferenciagdéo entre os habitantes respectivos, somente contrariada pela ge- neraiizagaéo da cultura universal, que ganha terreno por toda a parte, procurando nivelar as condi¢ées de vida, os processos de adapta¢ao social e, consequen- temente, uniformizar os fatos historicos, malgrado a sua {utima dependencia dos fatores teluricos. To- davia, a civilizagio moderna, esfor¢ando-se para substrair o homem as contingencias criadas pela am- bientagio fisica, estabelecendo regras racionais de higiene alimentar, de defesa sanitaria, ete., caminha para uma indiferenciacéo, cujas consequencias sido ainda desconhecidas. Entretanto, mesmo nos paises mais cultos e particularmente no Brasil, ainda se esté muito longe dessa indistingdo. As forcas orientadoras do meio fisico sobre o homem e a sociedade ainda preponderam, imprimin- do caractcristicamente a sua marcha indelevel no facies social e historico, criando consequentemente diferenciagées flagrantes, armando dissimetrias ricas REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 825 de elementos, donde resulta ‘a multiplicagdo de fe- nomenos de toda a especie na ordem cultural, so- cial e historica. Para chegarmos 4 definicao utilmente precisa do homem nordestino, teremos, pois, de analisar, com prudente aten¢éo, embora muito sumariamente, neste simples e modesto ensaio, a sua geografia da histo- via pelas zonas etnograficas estabelecidas. Mas, como vimos especialmente visando a Terra das Sécas, apesar das correlacdes multiplas e frequentes do habitante desta regiio com o das areas vizinhas, e das influencias cosmicas e sociais dessus sobre éle, pouco diremos daqueles que 86 indiretamente experimentam os efeitos do fenomeno climico das sécas. Assim, consequentemente, colima- mos aqui, de modo especial, a gente da drea histo- rico-cultural das caatingas, embora nos vejamos to- davia forgados a referencias aos das dreas circun- jacentes. Antes, porém, de particularizarmos o estudo da nossa gente, verdadeiramente sertaneja, cumpre se- ber como esté distribuida no espacgo a populagéo nordestina. O censo de 1920 mostra que, naquele ano, 6 estado brasileiro mais densamente povoado, nao con- tando com o Distrito Federal e o Rio-de-Janeiro, era 0 de Alagoas, com 28,5 almas por K:. Seguiam-se res- pectivamente os de Sergipe e Pernambuco, com 22,1 e 21,7. Sio-Paulo tinha entéo 18,5 habitantes por K*, quasi tanto como a Paratba, cujo indice mon- tava a 17,1. Curioso também é observar que a den- sidade demografica dos trés estados do extremo Nor- deste se elevava a 11,1, sOmente superada por dois estados extra-nordestinos (Séo-Paulo e Rio-de-Ja- neiro). Atualmente (1934), dado o coeficiente de cres- cimento das populagées deste reeanto do pais, a po- pulagdo dos trés estados deve ser: 326 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ Ceara . . . . 1.806.000 hs. Paraiba . : + : 1.316.000 >» Rio-Grande do Norte : 735.000 » Total . : . 3.857.000 » com a densidade demogratica de 15. O mais densa- mente habitado é6 o da Paraiba, com 23 almas por K* segue-se o Rio-Grande do Norte com 14 e, fi- nalmente, 0 Ceara, com 12. E' a ordem cronologica do povoamento; mas a razio destas cifras 6 outra, como veremos adiante. A populagaéo, distribuida pelas areas culturais, divide-se da seguinte maneira: CEARA PARAIBA Rio-G. do Norte AREAS rn T Pp area t| bop. /4"8) érea e| 0p. fe rea Re, pop. fan. 1 Sertiio ) 190.00011.000.000 a 41.000, 1.09 " s000| 438.000) 10 An ge- rae | | Serras - . agrico-| | | | las 20,400} 510.000, 25] 14.000) 365.000] 45! 11.000! 227.000! 20 Praias | 1.200 worl 41] 200) 10.000) i 700) 24.090) 84 a-| des. _ 185,000) —| —~ 166.000) 48.000} Donde se vé que a maior populagao cuja ativida- de esté dedicada a agricultura é a da Parafba, a qual supera a do sertéio respectivo. Isto provém, de certo, da influencia colonizadora de Pernambuco, foco de irradiag4o cultural, muito proximo, sobretudo notavel no periodo colonial, quando a lavoura da cana, para 4 producdo do acucar, adquiriu consideravel impor- tancia, Esta causa néo é unica, alia-se as infiuencias teluricas. : Podemos ensaiar um esbégo da implantag&o do homem civilizado no Nordeste brasileiro procurando discernir as suas principais conexGes com a na- tureza. Sabemos que a necessidade maxima dos seres vivos, sobretudo em climas como o nosso, é a ali- REVISTA DO INSTITUTO DE CEARa’ 327 mentacéo, isto é, a possibilidade de obter a nutrigio precisa 4 manutengio de vida e de trabalho. Portan- to, aquela implantagdo se correlaciona mais intima- mente, 00 caso em aprego, com a pluviosidade, com as condigées edaficas, com o regime das aguas, agen- tes principais da produgde dos generos alimenticios. Tais elementos, certamente, preponderam, nfo séo unicos; por si sés, ndo bastariam para explicar a dis- tribuicgéio, aparentemente caprichosa,dos homens em uma dada regifo, a qual obedece a leis muito mais complexas, onde intervém determinantes de ordem historica e psicologica com que se hiéo de combinar os efeitos geograficos. Todavia, estes, tomados no que apresentam de mais essencial, podem fazer al- guma luz. por vezes bastante intensa. O mapa demografico dos trés estados nordesti- nos revela quatro concentragées humanas de densi- dades diferentes, mas perfeitamente caracteristicas e quasi que isoladas umas das outras. A primeira ¢ mais importante esta localizada no litoral, a Jeste da Borborema, de Natal para o sul. E’ sobretudo nota- vel no estado da Paraiba (1), onde alguns municipios da respectiva zona oferecem densidade demogralica superior a50,sendo que cércea de trés comunas apre- sentam cifras que excedem a 100, embora nenhuma corresponda & sede do Estado. Segue-se a segunda também no litoral, entre a serra de Baturité {inclu- sive) e 0 oceano, em térno de Fortaleza. A densi- dade demografica € menos importante; contudo, os principais municipios exibem indices que excedem a 30, sendo que um, sobre aquela serra, atinge a 62 (Pacoti). O municipio da capital do Cearé é quasi tio povoado como a Belgica: 341 habitantes por K*. A terceira concentragio localiza-se ao ocidente do Ceara, da serra da Ibiapaba 4 serra da Meruoca. Os municipios mais densamente povoados sio os de Sao-Benedito, com 33 almas por K*, vindo em segui- da Ubajara, Massapé, Ibiapina e Sobral, todos com mais de 20. Finalmente, a quarta concentragéo esté no '1}—Estudamos aqui especialmente os trés estados nordes- tinos Ceara, Rio-Grande do Norte e Paraiba. 328 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA' sul do Ceard, consta principalmente do vale do Cariri, nias se estende aos estados da Paraiba e Rio-Grande do Norte. O foco desta concentragao eompreende os municipios de Barbalha, Juazeiro, Missao-Velha, Crato e Séo-Pedro, com mais de 30 habitantes por K*. : Ora, sobrepondo ao mapa demografico a carta pluviometrica, vé-se imediatamente que tais zonas de concentragéo humana correspondem aproximadamen- .te 4s de maior pluviosidade. Por outro lado, os es- pagos de fraca densidade demografica se ajustam aos de escassas precipitagdes. No Ceardé, as comunas menos habitadas, de densidade inferior a 5 (Taud, Campos-Sales, Independencia, Quixeramobim, Jagua- ribe-Mirim, Morada-Nova) tém precipitagdes médias inferiores a 750 m/m, ao passo que as mais povoadas, de 20 a 100 habitantes por Ke, esto em zonas de alta pluviosidade, isto é, de 750 a 1.400 m/m. O mes- mo se verifica no Rio-Grande do Norte, na Parafba, em Pernambuco e principalmente na Baia. Na pri- meira e na segunda zona de concentragdo que indi- cimos, a média das chuvas varia de 800 a 1.400 m/m; na terceira e na quarta, varia de 750 a 1.500. Os grandes claros demograficos oferecem man- chas onde a populagio escasseia muito, nfo exce- dendo geralmente a 2 habitantes por K2. Ai, as chuvas médias sio sempre inferiores a 600 m/m, sen- do que hé tratos onde nao atingem a 500 m/m, como em certos pontos ao longo do rio Saéo-Francisco. Mas o que caracteriza a zona das sécas bio é tanto a pluviosidade média, porém a pluviosidade dos anos secos, como o de 1915, por exemplo. Nesse pe- riodo, as chuvas ni coneentracdo oriental ainda se elevaram a médias que variaram de 600 a 1.400 m/m; na segunda e quarta (Fortaleza e Carirf),as médias va- riaram de 200 a 600 m/m; na tereecira, de 400 a 800. Isto explica de alguma forma a importancia superior daquela. A situagdo da regiao ocupada pela terceira (Ibiapaba) e quarta (Carirf) e 0 fato de a segunda conter uma capital de estado dizem um tanto da in- versdo da ordem que as condicdes naturais apontam. Contudo, o ajustamento das zonas de conceatra- gio demografica com as de alta pluviosidade é ape- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 329 nas aproximado; nado se fazrigorosamente. Aqui e all, uma excede a outra, j4 projetando uma faixa re- lativamente habitada no seio das terras mais aridas, ja retraindo-se (0 que 6 menos comum). Tais pertur- bacdes provém, em grande parte, de outras influen- cias teluricas, de que cumpre salientar o relévo e a natureza do solo. Ora sio as serras, onde o regi- me das aguas é mais regular (Baturité, Martins, Me- ruoca, etc.); ora as aluvides uberrimas de certos va- les que permitem o cultivo da cana, como em Patos e S.-Manuel, na Parafba, em plena caatinga, do algo- dio (Jaguaribe), etc., mesmo com pouca chuva. Por vezes sao as influencias biogeograficas que atraem os homens; aqui, 6 a carnatiba (baixo Jaguaribe, Acarag, Aga), que lhes proporciona quanto exige o seu mo- do de vida simpies, e até recursos pecuniarios impor- tantes, apesar das sécas; ali, a extrema facilidade com que prosperam os rebanhos, mercé de certas pasta- gens que resistem 4 escassés das precipitagdes (So- bral, ete.). As terras de pluviosidade média superior a 800 mjm e de parca populagéo revelam-se em geral re- lativamente estereis, improprias para qualquer la- voura e de pastagens fracas, como hé exemplos su- gestivos no norte do Ceara (muuicipio de Granja) e no Rio-Grande do Norte (municipio de Touros, etc.) Desde o comégo do povoamento pelos invaso- res brancos, a penetragdo se fez pelo litoral e pelos tios de maior caudal, fixando-se os colonos nas terras ferteis da costa ou nas margens dos cursos degua embora nao pavegaveis. S6 mui tardiamente subiram as motanhas frescas, cobertas de matas e portanto de dificil acesso. Em toda parte onde era possivel conseguir agua perene, fésse de cérregos ou riachos que nao secam ou de cacimbas no leito dos rios, fésse de pequenos reservatorios, que se faziam bar- rando-se rudimentarmente 0 sangradouro das lagoas, @ homem que invadiu estas paragens plantou resi- dencia e conseguiu proliferar até atingir a situagaéo atual. Como em geral acontece, as fixagdes mais no- taveis se fizeram onde a agricultura prosperou mer- cé do solo e das condigées climicas. 330 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ Os caminhos, quer aproveitando as veredas dos indios, quer seguindo‘e aperfcicoando os trilhos do gado, logo se abriram, estabelecendo relagées mais ou menos regulares e permitindo a defesa mais ou menos facil contra os primitivos incolas. Surgiram entéo, sob influencias diversas, nticlees de populagdes urbanas, germens das nossas atuais cidades. Aqui fora principalmente o cruzamento de caminhos que os determinou; ali a abundancia e seguranca dagua potavel; além, um caminho de plavicie que findava para continuar em rampa de acesso a serras frescas; mais adiante, um pequeno porto servindo a zona que tomava incremento; senéo, o término de um curso dagua navegavel e o inicio de estradas para o inte- rior, outras vezes, nas zonas mais dridas, pontos de excelente agua potavel permanente. Observando o quadro da distribuigao da popu- lag&o pelas areas culturais, impressiona a densidade demografica das praias nordestinas: 41 no Ceard, 34 no Rio-Grande do Norte, 50 na Paraiba. Isto néo éum fato excepcional; em todos os tempos e em toda parte, o homem manifestou sempre uma certa atragéo pelo mar. As causas variam. Muitas vezes sao a facilidade, a abundancia e a seguranga da pesce. Outras vezes, é ainclemencia do clima do interior,a séca estiolando frequentemente as culturas, que determina a prefe- rencia das praias. N&o raro, os fatores psicologi- cos influem no sentido de adensar as populacdes marinhas. No Nordeste, provavelmente, junta-se mais de uma causa: colonos e indios e pescadores, praias abundantes e piscosas, imigragao ¢o interior flagela- do pelas sécas. Fora do quadro terrestre, cumpre aliar o espirito de imitagéo, a rotina que perpetua a fixagdo de gera¢des sobre: geragées, a lembranca dos entes queridos que ai viveram e morreram. Fi- nalmente, a extraordinaria proliferagéio da nossa gen- te ribeirinha, pobre mas bem alimentada. Isto posto, voltemos ao sertéo, a gente das caatin- gas, objetivo principal destas observacgoes. Nos trés estados em apreco, montam os serta- nejos a pouco mais de dois milhdes de almas, distri- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 331 bufdas por 211.000 quilometros quadrados, 0 que da a média de 9 habitantes por uvidade de area, Nao é, conseguintemente, um indice de pouca importancia. A terra e a incultura atualndo explicariam, para 0 momento, cifra mais consideravel que aquela, objeto de admiragéo para quem ndo sabe que se trata de regides por excelencia de «concentracdo ativa>. Ter- ra que pede esforgos consideraveis para se viver, fato correlacionado com um exagerado crescimento numerico da especie. Nestas paragens, a fecundacdo biologica nao se enquadra com a da natureza. Uma tendencia se ve- rifica constante e insofismavel: a proliferagéo buma- na parece experimentar um estimulo estranho e des- conhecido, para preencher sempre os claros demo- graficos abertos pelas forgas naturais de destrui¢do. FE’ realmente espantosa a proliferagaio depois das grandes calamidades climicas. Todos os seres vivos como que porfiam na reprodugéo das respectivas especies. E tudo vinga, prospera e cresce, antes que outra calamidade se aproxime, pois, quando o fizet, encontraré pasto abndante para a ceitfa de vidas. A temperatura amena e relativamente doce, sem variacées sensiveis, e os longos periodos normais de estiagens pao estimularam os primeiros habitantes no sentido de aprimorarem os seus abrigos, as suas casas. Os amerindios nao utilizaram as cavernas, como os trogloditas de alhures; preferiam pernoitar em cabanas rudimentares batidas pelas ventanias hi- gienizantes. Os colunos e as populagées atuais construiram casas muito simples, de taipa, geralmente cobertas de telhas, salvo onde abundam as palmeiras, como nos vales dos maiores rios ou nas proximidades das serras. Neste caso, o tecto passava a ser de palha entrangada, Quando o palmar é consideravel, toda a casa, paredes, tecto, divisées, giraus, méveis e mui- tos utensilios sio fabricados com materia prima ti- rada dos estipetes, das palmeiras ou dos frutos destas plantas. Exemplos tipicos encontram-se ainda hoje frequentes no vale inferior do rio Jaguaribe, do Aga, 332 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ do Acarat, etc., ou nas varzeas de carnaiibal pro- ximas da costa, Em vista das condig¢ées meteorologicas, a madeira 6 dificil em todo o interior do Nordes- te, & caatinga nio dé taboado de importancia e facil de aparelhar. Por isto, ndo ba casas de ma- deira. A pedra abunda, mas o seu trabalho re- quer pericia e esforgos mais consideraveis que © adobe, a taipa e o tijolo, visto como a argila para o fabrico de tais artigos nado falta em toda parte. Por estas razdes, as construgdes de pedra sio raras. To- davia, onde as rochas xistosas se deixam partir facilmente em lages, parajelipipedos ou blocos regu- lares, como em Sant’Ana do Cariri, tais edificios avultam: casas, muros, cercados, etc. O tempo pro- prio para o preparo daqueles artigos, para construir, reconstruir ou consertar as casas, é o fim das chu- vas, quando as aguas dos pogos, das ipueiras, dos cabocés ainda nfo desapareceram. O tipo de construgéo mais comum no sertao 6 0 da casa do vayueiro, que, quando nio habita com 4 familia a casa grande da fazenda ou do proprietario, cousa que tende a rarear e desaparecer, vive numa pequena moradia de taipa ou tijolo, sem rebéco, co- berta de telha, baixa, com uma unica porta de en- trada na frente, abrigada por uma latada de ramas sécas, e outra porta de saida na parte posterior. Uma ou duas pequenas janelas, chao de barro batido, ge- ralmente esburacado pelo uso, paredes também com furos, por onde entram de dia résteas de luz solar e de noite a viragéo amena que vem do litoral. As ca- sas tém, sempre que é possivel, a orientagao classi- ca: frente ao nascente. A situacdo é fun¢do da agua- da proxima. A inclinagdo das cobertas é, em geral, insuficiente; abusa-se da escassez.das chuvas e da falta de ventos violentos. As casas grandes nas fa- zendas ou exploragées rurais importantes néo s4o frequentes no sertdo. Eque, na zona de criacdo, tais estabelecimentos nunca tiveram oalto valor que ad- quiriram nos engenhos, fazendas e sitios de cana. Aqui e ali, perdidas na amplidéio das caatingas, deparam-se contudo casas enormes, baixas, de pare- des estupidamente grossas e madeirameato pesadis- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 333 simo. Em geral, provém essas moradias de antigos doaos de engenhos que situavam fazendas de criar nos sertées, com o fim de lhes proporcionarem boiadas para as almanjarras, animais pare o comercic dos engenhos, bem como o leite e queijos para o consu- mo domestico. Essas fazendas nado séo as mais anti- gas; malgrado a distancia, passarum a ser residen- cia definitiva, senfio estagéo de recreio ou repouso para a familia dos seus abastados proprietarios, que af vinham passar os deliciosos meses do fim do in- verno, quando éles proprios faziam a ferra dos be- zerros, dos poldrinhos, dos burros ¢ assinalavam as ovelhas e cabras com as marcas da fazenda e da fre- guesia, A instituigéo de familia ainda én0s nossos ser- tées de uma rigidez admiravel]. Isto se combina com a facilidade de achar-se agua potavel por todaa par- te, no fundo dos vales, em cacimbas abertas no leito dos rios e riachos, nas grotas das serranias ou nos pocos naturais das penedias, se nio em pequenos agudes para explicar a extrema disseminagio das habitacdes, do que resulta a raridade dos niucleos demograficos importantes, povoados, vilas, cidades. As primeiras reunides de casas fizeram-se com os aldeamentos des indios, muites dos quais gera- ram vilas e cidades: Granja, Baturité, Crato, Saic- -Mateus, Vigoss, etc., no Ceara; Escada, Limoeiro, etc., em Pernambuco; Campina-Grande, Piancd, Sao-doao, ete., na Parafba; Apodf, Siio José, ete., no Rio-Gran- de do Norte; Santo-Amaro, Penedo, etc., em Alagoas, Muitas vezes, porém, a origem dos nossos nt- cleos de populagéo é outra,provém de um primilivo centro, sede de fazendas de criar ou de sitios de plantar, convenientemente situados no interesse das relagdes comerciais. De ordinarie, no cruzamento de caminhos de grande curso (Icd, Sobral, Quixera- mobim, ete.), sendo no sopé das ladeiras que condu- zem asserras frescas (Itapipoca, Ipu, Bananeiras, etc.). As vilas e cidades sertanejas foram geraimente instituldas por necessidades da justicga, sendio rara- mente por influencia politica. Por isso, nfo temos, como no velho mundo, cidades-fortalezas, cidades industriais, cidades de aguas ou de turismo ou de 334 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ qualquer outra categoria, salvo talvez a cidade de Jua- zeito, no Ceara, que se pode classificar no grupo das cidades religiosas, visto como surgiu por efeito principalmente do acimulo de habitantes de proce- dencias as mais diversas, que ai se vinbam abrigar contra todos os males, 4 sombra protetora e santa de um padre de grando prestigio proprio. Fortaleza, capital do Cearé,e Aga, no Rio-Grande do Norte, de- vem sua origem e conservagéo a pequenas fortale- zas destinadas 4 protegio dos colonos contra o as- salto e depredagdo dos indios. Nem por isso devem ser consideradas como cidades-fortalezas. Os eaminhos s4o aspectos geograficos da mai- or importancia e rigorosamente indispensaveis em qualquer parte onde exista uma regiaio habitada. No Nordeste, quasi todos os que serviram duraute os tempos coloniais provieram das veredas dos indios aproveitadas pelos primeiros exploradores, pelas ex- pedicSes contra os indigenas rebelados e pelos fa- zendeiros que se situaram 4s margens dos rios e ria- chos, Uma dessas estradas estendia-se de Olinda 4 vibeira do Acarat, no Ceardé, com desenvolvimen- to de centenas de leguas e estava em relagéo com outros caminhos que conduziam 4 Bafa, Somente muito mais tarde apareceram, e isto rarissimamente, os caminhes de origem politica, os quais nada mais foram,em geral,do que o melhoramento de alguns dos ia existentes. Ainda hoje, os principais caminhos ser- tanejos se desenvolvem ao longo dos cursos dagua, por causa da existencia certa e segura do precioso liquido nas areias do leito ni, durante o verao e as sécas. Por isto, tais caminhos se chamam “estradas da ribeira”. As modernas estradas de ferro, rodovias e es- cassas linhas aéreas ji come¢am a imprimir na es- frutura economica e moral.dos sertanejos modifica- gdes sensiveis que 0 espago de um artigo nos ndo permite apreciar. A industria que, durante seculos, conseguiu pros- perar nas caatingas nordestinas, suplantando quais- quer outras, foi a criagéo de gados bovinos, equinos, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 335 eaprinos, ovinos, por isto que se correlaciona inti- mamente com a natureza da terra, com os camirhos e com a cultura do povo coevo, Nem as sécas nem os indics reacionarios puderam opor obstaculos se- rios ao desenvolvimento da pecuaria, malgrado os seus metodos rudimentarissimos, porém suficientes para 0 tempo e para o meio sociai de entio. Conforme o testemunho de Gabriel Soares, as primeiras reses vieram para a Bafa no tempo do primeire governador geral; dai, ganharam pronta- mente os sertées de caatingas do rio Sio-Francisco e do Nordeste. Foi simples e facil a penetragio e disseminacdo do gado, em vistn da propria natureza das caatinges, mato aberto, devassavel sem csfor¢o, abundante em gramineas e ramas forrageiras aliamente nutritivas. Enquanto,os colonos portugueses ou de origem exotica se entrelinham na agricultvra do Reconcavo, feita sem perigos, 4 sombra das autoridades, a eria- cao devia ser reservada aos escrayos € aos mame- lucos, que néo trepidavam no embrenhar-se pelos matos longinquos e situar-se onde as condigédes lo- cais ines parecessem boas. Quando muito, algumas pessoas ricas e j4 bem firmadas na terra, donos de engenhos, tiravam sesmarias e as mandavam povoar com alguma semente de gado que confiavam a va- queiros fiéis. «Contentes com o embélso do preco das boiadas, néo visitavam suas propriedades», de inecomodo e perigoso acesso. Tempos depois, esses proprietarios e muitos colonos, ji n&éo encontrando ocupacbes suficientemente remunerativas nos enge- nhos, se aventuraram pelos sertées, indo morar nas fazendas ou em situagdes novas, isolando-se perdi- dos e contentando-se quasi somente com os recursos minguados da terra. Segundo o sabio alem&o von Martius,—«concor- rera também para isto o espirito de liberdade, pro- pulsor do povoamento dos sertées da Norte, ao con- trario dos do Sul, em que a ambicdo de lucro foi a alavanca». (apud Capistrano) Contudo, os nativos e seus descendentes conti- nuaram numericamente dominando na regifio, ora como vaqueiros de colonos ou ricos senhores de Per- 336 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ nambuco e Bafa, cujosatazeres e incomodos das viagens os alastavam quasi permanentemente das suas fazendas, ora como agregados indispensaveis daque- les proprietarios que se entregavam pesscalmente as labutas de criagdo primitiva, 4 lei da natureza. O autor anonimo do «Roteiro do Maranhéo a Goiaz» observa que, nio havendo que derrubar ma- tas, quasi nada se muda a superficie da terra; le- vantada uma casa, coberta pela maior parte de palha, estio povoadas trés leguas de terras (Capistrano de Abreu). Por este motivo, o Nordeste povoou-se mais rapidamente do que a regiio das minas e das matas. A multiplicagéo do gado foi verdadeiramente prodigiosa entre o Séo-Francisco e o Parnaiba, isto 6, no dominio das caatingas. A exploragdéo tornou-se sobremaneira rendosa, porque néo exigia despesas, tudo era lucro, e, nestas condi¢cées, podia afrontar as sécas. O gado que destas se salvasse seria ainda iucro e semente para ulterior e rapido aprovisiona- mento dos campos. Os centros consumidores, Bafa, com © seu Reconcavo pontilhado de engenhos, e Pernambuco (Olinda, Recife, praias e bangiiés) viram- se bem cedo ligados aos campos de criacéo, por meio de caminhos para a condugdo das boiadas. Eram estradas sinuosas, mas largas, evitando as matas onde faltava alimento para o gado, as serras de difi- cil acesso e as chapadas desprovidas de aguadas, que serpenteavam pelas cautingas adustas. Os pro- dutos dos serties—os gados—eram mercadoria que se n&o onerava com o trausporte, pois~ «nfo neces- sitam de quem os carregue; eles sio sés os que sentem nas longas murchas todo o péso do seu corpo». As boiadas desciam aos magotes de cem e du- zentas cabegas, conduzidas por gente perita e deste- mida, no meio da qual nado faltavam os indios. O modo de levar o gado era pitoresco e inteligente. Certos tangerinos iam adiante, cantando uma toada monotone e quasi lugubre que, parece, embevecia a manada; outros ficavam ao couce, falando As reses retardatarias. Assim caminhavam diariamente de 4 a 6 leguas, conforme as pastagens e as aguadas. Os sertanejos, cuja atividade era exclusivamen- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 337 te empenhada nos labores da criagdo e do seu comer- cio, passavam por «gente perversa, ociosa e inutil, pela aversdo que tinham ao trabalho da agricultura>. Porém cumpre notar que essa gente n&o podia en- tregar-se a outros cuidados, maximé 4 agricultura, cousa dificil, incerta e perigosa nas caatingas, onde vivia; as serras freseas ainda nio eram bem conhe- cidas e nelas em geral se acastelavam os indigenas que ainda se nfo haviam acomodado & nova vida, Natural, pois, 6 a nota daquele autor desconhe- cido do «Roteiro»: «Tem a este exercicio (o das fa- zendas de gado) uma tal inclinagéo, que procura com empenho ser nele ocupada, constituindo toda a sua maior felicidade em merecer algum dia o nome de vaqueiro.» Ainda hoje, nos centros de criagdo mais importantes do sertéo, é assim. Isto, em parte, pro- vém de causas psicologicas que as condi¢ées fisicas da terra reforgam. Os vaqueiros e os seus agregados e ajudantes, quasi unicos habitantes desses rincdes, sabem que os seus pais nio exerceram alf atividade diversa; a tradi¢io apega-os fortemente a prolissio dos seus maiores, profisséo que, por sua vez, tem atrativos poderosos. O vaqueiro goza de uma liberdade ampla, n&o tem patrdo muitas vezes e, quando o tem, este é antes um socio aque éle acompanha pela superio- dade que Ihe confere 0 conhecimento da terra, do gado, dos metodos de criagéo e a responsabilidade direta das cousas da fazenda. A vida do vaquetro 6 pouco atormentada: nao Ihe preocupam o espirito aborrecidos trabailhos materiais sobre que tenha de meditar, nem a possibilidade de sécas destrui- doras, nem os negocios economicos ou a manuten- gao e educacio da familia. Nao podia haver pro- fissio mais adequada aos descendentes dos indige- nas, habituados a uma vida sem coacdo de ordem administrativa. A sua atencdo principal é dirigida no sentido de manter nedio e forte 0 cavalo de sela, com que ro- deia, caca ou derruba as reses recalcitrantes, com que se exibe nas fazendas vizinhas ou nos povoados e aldeias, perante os colegas e os proprietarios de outras situagdes. De fato isso devia ser assim mes- 338 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA‘ mo, era o determinismo cosmico-social que 0 impu- nha. Nas fazendas de criar (ainda presentemente é a regra) os trabalhos materiais sio quasi nulos nos anos normais, nove sobre dez no cerrer dos tempos. A vastiddo quasi infinita dos campos de eriar dispen- sava mangas ou areas cercadas, cujas necessidades sfo relativamente recentes e de mais a mais impe- riosas com a introducdéo de reprodutores exoticos e caros. Nao havia agricultura, sendo raramente em pe- quenos tratos nas coroas dos rios, onde alguns agre- gados se davam ao trabalho de cultivar uma insi- gnificancia de milho, feijaio, melancia, algodéo. Pouco bastava, porque a terra fertil oferecia rendimento espantoso e escassas eram as bocas para 0 consu- mo dos cereais e legumes. Com o algoddo, fiavam-se e teciam-se em toscos teares fazendas grosseiras e principalmente rédes de dormir. O comercio era in- significante e os artigos da sua predilegéo tiravam- -se do proprio gado. A pele dos ruminantes domesti- cos chegou a ser materia prima de aplicacéo quasi universal entre os sertanejos do XVIII seculo. As grandes necessidades de alimento, satisfazia-as o gado—a carne fresca e séca, a que osertanejo sem- pre foi afeicoadissimo, o leite de vaca, durante a estagio piuviosa, e o queijo,em todo o tempo. Mes- mo no verdo contava-se com o queijo de cabra, cujos rebanhos se nutriam com ramas e cascas de arbustos e arvores. O mais, isto 6, a rapadura e a farinha, obtinha-se em troca do couro das reses sacrificadas para 0 consumo e pelas morrinhas. A indumentaria simplissima pouco exigia. Os homens usavam em casa cerculas e camisas de al- godao que as mulheres da familia fiavam e teciam; no campo, a roupa de couro de veado, caprichosa- mente curtido e finamente pospontado, que lhes pro- tegia o corpo dos espinhos. As mulheres vestiam camisa de fazenda mais fina, de cabegdo muito aber- to e mais ou menos adornado de rendas, e saias de chita, artigos que, com a roupa domingueira, eram comprados nas cidades pelos passadores de gado que conduziam as boiadas as feiras ou por seu inter- medio encomendados. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 339 Mais tarde, com o desenvolvimento das aldeias, as lojas locais ofereciam aos sertanejos vizinhos te- cidos, linha, alguma ferragem, enfim, tudo quanto dantes era adquirido custosamente nos centros lito- raneos. J& entéo se plantava mandioca e se fazia farinha. Com o aumento de importancia das fazendas derramadas pelos sertées e a vinda de pessoas ha~ bituadas a outras exigencias, proprietarios que se domiciliaram no interior, oriundos dos engenkos, so- bretudo de Olinda, de Guiana, de Penedo, da Baia, do Recife, ete. u situagéo economicae 0 trato domestico de muitas fazendas sofreram sensivel alterag&o, se bem que a tecnica da criagdo se née modificasse. Os generos de maior valor, tecidos caros, utensilios que os artifices locais nfo sabiam fabricar, tiveram de ser comprados nas pragas da Bafa e Pernambuco, com o produto das boiadas. O nivel cultural elevou- se um pouco, mas as lutas armadas que resultaram dessa nova situacéo permitiram um surto notavel da civilizagao sertaneja. Dentre os fazendeiros que vieram pessoalmente assistir nos seus dominios, alguns, querendo ostentar major poderio, independencia e riqueza do que ou- tros, dominados dos mesmos sentimentos de grande- za, Numa competicéo desarrazoada, interesseira e até criminosa, io raras vezes deram origem a con- flitos sangrentos que o meio aspero e despoliciado, o animo belicoso dos indigenas e dos seus descen- deutes e o orguiho dos polentados estimularam até a perpetracaéo de grandes crimes, horriveis tragedias @ @ propria guerra. Esta situacaéo, que culminou no. segundo quartel do penullimo seculo, foi fertil em desastradas consequencies na ordem economica. Os proprios autores desse estado de cousas, sem o am- paro da experiencia, que o espirito de rixas nao dei- xava tempo 4 observac&o das cousas estranhas as lutas, sentiram o péso das sécas que devastavam uma vez por outra os currais, desbaratando-lhes os ha- veres. Por esse motivo, as comunicacées com os grandes centros, focos mais intensos de irradiagio cultural, foram escasseando. O desenvolvimento da crisgdo atingia agora as proximidades daqueles na- 340 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ cleos que j& se podiam abastecer em parte com pro- dutos das fazendas vizinhas, dispensando a contribui- gio das mais longinquas, isto é, das dos sertées de além Borborema, do Ceara e Piauf. Em compensa- gHo, outros centros de menor importancia se disse- mipavam pela marinha, ao abrigo dos estuarios. Mais proximos e mais modestos, atraiam de preferencia os fazendeiros. Dentre outros, cumpre citar Guiana, Mamanguape, Mipibi e, principalmente, Aracati, no Ceard, onde breve se estabeleceram fabricas de carne séca (xarque) para a exportacdo. Ao mesmo tempo e em consequencia dessa cir- culacio, as autoridades litoraneas puderam conhecer melhor 0 sertio e logo passaram a influir naque- le meio. As lutas entre os potentados preparam o ger- me do banditismo que a injustiga das autoridades fez desenvolver-se (2). A expulsio dos jesuitas que governavam as aldcias e incutiam no espirito dos indios os principios da religido cristé, concorreu também para exacerbar aquele germe nefasto que até hoje nos traz dificuldades enormes. Esbogamos assim, em largos tracos, a formagao etnografica (nao dizemos etnica) do sertanejo das caa- tingas nordestinas. Devemos agora completar estas observagées com uma rapida apreciagdéo do aspecto demologico desta populacd4o, nu momento presente. O estudo de determinada populacio, em pleno evolver, dentro de uma drea geograticamente defini- da, pode fazer-se partindo dos caracteristicos etnicos da sua formagiio, visto como o aspecto da vida social depende essencialmente dos atributos raciais gene- ticos, modificados pela acomodacdo ao meio. Neste caso, importa perquirir, em cada grupo formador, a preponderancia do tipo constitucional, isto é, a sua férmula endocrinica que, como se sabe, esté intima- (2)—Ainda hoje se registram com tristeza causas desta especie. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 341 mente relacionada com as qualidades fisiopsiquicas {tipo de temperamento, de inteligencia, etc.). Talvez fésse mais conveniente estudar direta~ mente no sertio nordestino as caracteristicas soma- ticas, os painéis drapenianos ou os tipos kretchme- tianos e depois ascender 4s origens formadoras, para se obter uma prova da exatidio das observacées diretas. . . Entretanto, certas dificuldades, oriundas da in- suficiente extensdo das observagées locais; nos des- viam desse ‘caminho, induzindo-nos a seguir aquela ordem inversa, mais acentuadamente analitica, a qual, por fim, nos conduziré aos resultados das observa- goes diretas, tanto mais exatas, quanto mais confor- madas a0 processo genetico verificado no decurso da evolugéo dos elementos formativos no meio ser- tanejo. Importa contudo notar que os resultados a que se haé de chegar, por esta ou por aquela via, se- réo ainda bastante incompletos, para que sejam tidos como acabados e definitivos; devem ser considerados antes como aproximacao que estudos estatisticos pos- teriores modificariéo, aconchegando-os mais a ver- dade. Os tipos etnuicos que concorreram para a forma- ¢ao da nacionalidade, no Nordeste do pais, sio, come é do conhecimento de todos,.o ariano peninsular, particularmente o portugués dos.seculos XVI a XVIII, o africano importado e o amerindio que ocupava a regiio ao tempo da conquista. Perturbando a misci- genagéio desses tipos, ha que contar com doses me- nores de sangue nordico infiltrado diretamente pelos holandeses que ocuparam, durante mais de meio se- culo, o litoral; de sangue semita espalhado pelos ju- deus e, finalmente, de sangue cigano, que Portugal mandou derramar nestas regides da sua grande co- lonia americana, Apés a reconquista da peninsula iberica aos ara- bes, duas monarquias semelhantes, a testa de um .povo aventureiro e mistico, bravo e fanatico, se for- maram com as surpresas das guerras, o fragor das batalhas e o entusiasmo das vitérias. Durante se- culos de lutas frequentes se forjara a alma nacional, vibrante de exaltagéo belicosa, simples, quasi inge- 342 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA# nua, fragosa e dura até a crueldade, mas estuante’ de férca, contendo numa tensdo desmedida energids! insopitaveis. Uma especie-de selegio natural elimi- nara quasi todos os -que ndo tinham as virtudes de guerreiros, os mal-conformados, os timidos e os iner-, tes, cujas reliquias se.recolhiam & paz dos conven;y tos. Ficavam os fortes, os ousados, os que se podiam adaptar facilmeute As circunstancias especiais de, um quasi. continuo ¢stado de lutag.., -., 4% .eoh Abrasados: pelo, fervor divino, sedentos de mo-. vimento, dinamicos,- sanguinarios pela pratica secu- lar de matar inimigos, endurecidos pelo exercicio das guerras, sentem os novos ibéros uma predestinacdo, que nao é possivel compreender. Embriagados pelas, vitérias faceis sobre o inimigo fugitivo, julgam-se..du- plamente fortes, mercé da sua propria constituigdo organica e gragas 4 grande fé cristaé que Ihes subli- ma a existencia. + ‘Tanta energia destarte acumulada era fér¢a viva que n&o podia desaparecer rapidamente com a ces- sacdo dos conflitus oriundos da defecgao do inimigo. Tal energia constitufa de certo capacidade de im pulsdo, quantidade de movimento, resultado logico da integragao- individual-e -secular-de. um.povo formado como. yimos de referir acima. O seu valor cinetico devia, pois, ser consideravel. t3) : Sabe-se hoje que os principios universais de inercia e de conservagao de energia se aplicam tam- bém aos fatos historicos, sociais e biologicos. . Podemos, consequentemente, concluir que nao seria possivel, a inercia-n4o pernitiria que a massa que codéedtrata tio gtandé dnergia ‘estancasse de repente. ' Era miétér, por efeifo desse determinismo fisico, que se operasse alguma transformagdo pro- porcional e compativel com ‘as circunstancias do meio cosmico-social. : . eG “"" Gea” transforiiagio de energiad ‘préstes ‘a se processar’ | podia ser pr vista, altas “diversdmente, 8 — red Ser der me neg LH" curioso observar como’ ainda, presentemente, milorla destas qualidades explicam detalhes dos terriveis acon* téeimentos ‘que. ensanguentam o solo da Espanha. so ’ REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 343, lug:de outro principio da fisica social. Nos primei- ros lustros do XV seculo, armaram-se os termos de formidavel dissimetria no espago social. do circulo iberico. De um lado, numa concha da balanca, pe- sava vigorosamente a educacdo militar de um povo, feita em lutas sangrentas e multisseculares; e, do outro lado, a concha quasi vazia se elevava, baloucando a feigo de problemas sociais de ordem economica e politica, mas sem gravidade bastante para equilibrar a situagdéo. Consequentemente, par forga do principio de Curie aplicado ds ciencias sociais, fenomenos de simetrizagéo teriam de surgir no sentido geral de modificar ou degradar progressivamente a estrutura militar, fundamente burilada na almas das nagdes pe- ninsulares, porém j4 quasi inutil. Ter-se-ia de achar porta bastante larga por onde se escoasse essa indomita energia calcada no peito dos guerreiros, que eram, néo sé a fina flor da ‘so- ciedade (que os conventcs nao atrairam e recolhe- ram, com as suas organizagoes economicas de base agraria), como também a quasi totalidade da popula- ¢ao pleblea. Uma especie de induc&o eletrica fazia também vibrar os coragées femininos, estimulando a ansia de aventuras que pairava como um véu didfa- no por sobre as monarquias peninsulares. Ja nfo havia campos de batalha que compor- tassem feitos proporcionais 4 educagéo militar, in- conscientemente gravada no amago da psique nacio- nal, onde os atributos guerreiros se pudessem ple- namente exercer, Dai, 0 transbordar da onda rolando para a Afri- ca vizinha, quasi 4 mao. A tomada de Ceuta (1415), pelos portugueses, e a pretensdo da conquista de Mar- rocos devem ser consideradas como efeito precipuo da energia dos lusitanos, quando j4 nfo havia mouros para combater no seu proprio territorio. Importa notar bem que o novo fenomeno devia ser compativel com as circunstancias de simetria deo meio. Naquela ocasifio, a marcha da transformagdéo da energia definida teria de obedecer as condigdes na- turais do meio, seguir pelo caminho de menor resis- 344 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ tencia. Por isto, aquela energia, sob tio elevado potencial, nfo poderia passar 4 uma energia constru- tora, de aspecto pacifico, como, por exemplo, 0 ama- nho das terras,o desenvolvimento ou aperfeigoamen- to. das industrias, a criagéo de processos politicos novos, etc. A lavoura, devido mesmo 4 inseguranga pessoal consequeute das lutas, havia-se abroquelado nos latifundios dos conventos. As industrias e oficios, malgrado os esforcos dos reis,nao avultavam e assim tudo mais quanto importava 4 economia nacional fora da prujecéo do mar,—conquistas ultramarinas, comer- cio, escravidio. De fato, 0 rumo mais compativel com os dados do problema apresentava-se natural- mente como uma condicgio da geografia fisica da Peninsula: 0 caminho do mar. Ai estava a linha de maior atragéo e de menor resistencia. Sulcar oceanos desconhecidos, conquistar para a economia nacional regides remotas, porém fabulo- samente ricas, arrebatar de m&os estranhas o mono- polio do comercio das Indias, ganhar para Deus almas aos milhées, eram certamente empresas mais bem ajustadas & fei¢éo moral e & contextura organi- ea de gente afeita ao rigor das batalhas e percal¢os de guerras seculares. Assim, pois, o grande drama dos descobrimen- tos portugueses h4 de ser considerado como a resul- tante logica e natural das circunstancias historicas, geograficas, etnicas e sociais que os precederam. Os trabalhos arduos e perigosos das navegacoes, as conquistas faceis e enganosas, 0 luxo e os vicios do ocidente,o desenvolvimento do mercantilismo pa- rasitario, a escravidio dissolvente do negro, que su- cedeu 4 do mouro, a decadencia da agricultura, a insuficiencia alimentar contribuiram entao para a de- gradacdo daquelas energias. Logo apés o descobrimento, o Brasil néo des- pertou interesse. Sdmente depois de alguns anos, comecou a colonizagaéo com gente que ainda trazia na alma os remanescentes daquelas energias, porém agora mais afeita & mercancia. As circunstapcias geograficas da terras impunham todavia a explora- géio agraria. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 345 “Quando se reconheceu que valia a pena explo- rar o Brasil, o que restava no Reino e até na India portuguesa de mais eugenico, de mais forte, de mais aventuroso e dinamico se encamivhou para c4. Houve uma evidente selegdo emigratoria, Realmente, para emigrar de um para outro continente, viajar décadas e décadas no bojo de frageis embarcagées, em busca de terras desconhecidas, cheias de indios bravios e antropofagos, mudar de genero de vida, deixar-fa- milia, o aconchego do lar, & preciso dispor de forte dose de coragem, de excepcional energia, de cego fatalismo, imprevidencia e instinto aventuroso. Se- gundo A. Bell, o carater portugués 6 cheio de con- trastes, mistico, poetico, calmo, docil, ao mesmo -tem- po que impetuoso e cruel, ete. : Mesmo os degredados, que foram obrigados a vir para o Brasil, nao eram todos gente, como se supde geralmente, tio indesejavel. Os crimes que entio se puniam duramente nem sempre tinham gra- vidade em proporgéo com as penas estatuidas. Na maioria,eram de natureza religiosa ou sexual e abso- lutamente destituidos de importancia. A penetracéo dos sertées nordestinos comegou na ultima metade do seculo XVII, quando ja as ter- ras litoraneas do Paré a S.-Vicente eram mais ou menos colonizadas. Em Pernambuco e na Bafa, havia cérca de um seculo floreciam os engenhos opu- lentos, com a sua escravatura africana e peucot indios. - A guerra holandesa alargara a faixa de coloni- zacdo, porém o sertéo, de que jé havia, pelo comer- cio dos indios, mais amplas informacées, continuava inexplorado, A luta tivera também o efeito eugenico de reavivar e retemperar em dose apreciavel, nos portugueses imigrados e nos seus descendentes, 0 instinto de aventuras, 0 dinamismo das antigas guer- ras e dos descobrimentos, com as suas virtudes cor- relatas. Daf, a iniciativa das bandeiras e entradas, que nestas paragens nfo tiveram nas minas e na insigniticancia das lavouras o estimulo do dinamismo 346 REVISTA DO INSTITUTO:DO CEARA’ -paulista. Sem as lutas para av-expulsie dos batdvos, sa penetragdéo do Nordeste do Bragil,teria: sido retar- ada ainda por alguns anos. , Nao se podia exigir dos wgricultores de cana, gente: radicada fortemente a iterra feraz que tudo produzias gente cujas enengias eram todas absorvidas pela labuta das plantacdes, da moagem e do comercio, empresas que exorbitassem da vizinhanca dos seus largos dominios. Demais, os engenhos, com a sua pomposa economia e complexa estruture social, incorporavam os forasteiros que vi- nham do reino & procure de trabalho remunerativo. A gente das bandeiras e expedi¢des ao sertio nfo se recrutava entre esses agricultores, eram tipos mais afeitos as aventuras, soldados ou ex-soldados portugueses, mamelucos e indios munsos. Nessas penetracdes, nfo raro, entire as tribus- longinquas ficavam elementos das bandeiras, que se incorporavam a sociedade indigena. Mal desbravadoe mal defendido contra os indios, o-sertio se foi colonizando com gente valorosa que néo temia enfrentar a solidio perigosa que os pri- mitivos habitantes exasperados n&éo queriam aban- donar aos invasores. Mesmo rodeado de indios man- sos e mamelucos destemidos, 0 portugués ou o ma- zombo que se aventurava a tanto devia possuir dotes excepcionais de coragem e energia. O elemento In- sitano, geralmente orjundo das expltoragées do litoral ou recém-chegado do reino, muitos deles ex-suldados dos presidios ou das expedigdes de reconhecimento ede guerra contra os indios, nao era avultado. Esse portugués, herdeiro direto dos caracteres somaticos @ fisio-psiquicos dos seus antepassados, mistura de autoctones da Peninsula com adventicios varios, so- bretudo africanos (mouros), trazia certamente a f6r- mula genotipica caracteristica que atualmente (e pou- co deve diferir da de 200 anos passados) é a segninte: dolicocefalo 90%, braquicefalo 10%, moreno 99%, louro 1%, estatura alta 1%, estatura baixa 99%, ca- belos escuros 85%, castanhos 15%, ondulados 90%, lisos 10% (Ripley). . Os elementos predominantes: dolicocefalia, tez morena, cabelo preto e ondulado, estatura baixa e olhos escuros (férmula fenotipica), sio aqueles que REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 347° mais sé correlacionam com o temperamento ciclotimi-- co. Realments,“o portugués dos descobrimentos, se- gundo‘Capistrano, apud Costa Lobe, era fragueiro, de imaginacao“urdente e propenso ao misticismo; forte: e cruel! Segundo outros “autores, era contemporiza- dor, de «cdnstituigéo social vulcanica» e de extrema: sensibilidate’ religiosa. sos ..., Spéuindo o reinol, vinha ém ,miaidr numero 0, Portugués’ nascido na terra, 9, mazompo, naturalmen- te melhor aclimado, mas menos estimnada so¢ialmente, diante’ da pretensac le gupériorjdude cultivada pelos: Advendg.” an baer a a A facilidade extrema com que o colonizaderlu-~ sitano se unia 4s gentes nativas das terras conquis- tadas,4s mulheres das ragas-de cor, dificulta a apre- ciagéo cientifica da sua aclimac&e nos tropicos. .To- davia, h4 algumas observacées iuteressantes. Segundo G. SuCorreia, os descendentes de portugueses imi- grados hé mais de 200 anos na Indiae na Africa eonservam os caracteristicos antropologicos e ‘fisio- logicos dos atuais metropolitanos. Colonos portugue- ses no Havai (operarios) demonstram possuir quali- dades morais, valores psiquicos n&o inferiores aos que revelam no pafs natal. Verificou-se alf que, em previdencia, resolugao, pertinacia, «self-control», fideli- dade, «self»-determinagdo, éles sdo apenas um pouco inferiores aos japoneses e chineses seus concur- rentes, Desde os primeiros tempos da colonizag&o, foram futroduzidds ‘negros’ africanos e ¢rioulos'no. sertéo nordéstino,’comd auxiliares dos vaqueiros. Alguns’ alf chegarai fugidos dds éngenhos e das-cidades da costa, Memoram este fato localidades com os nomes’ de dutlombo e mutamho.'' | ' B . ;-Asminerag&o-.colonial no Carirf (vale do rio Sal- gado, no Ceara) levou aquela zona 67 negros bantos,, escravos mo¢os e fortes que por 14 ficaram. Ante- riormente (1742), arribara a Fortaleza o bergantim N.-S.-do-Socorro, com um carregamento de negros 348 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ da Guiné. Pesoas abastadas adquiriam no Recife es-. cravos africanos, para o servico domestico. A contribui¢éo do sangue: africano nas popule- odes nordestinas é pequenae com manifesta tenden- ois para diminuir. Algumas razdes de ordem geo- grafica e social concorreram para esse fato. A terra unpropria para a lavoura e, portanto, quasi inculta durante o.periodo colonial dispensava o concurso do trabalhador escravo, isto é, do regro afrieano- As sécas frequentes 0 devastadoras por vezes atingiam nos seus efeitos a vida dos seres humanos, fazendu vitimas de eleigdo nos escravos (negros), .dentre to- dos 08 menos amparados contra o flagelo, em vista da inferioridade das suas condigées sociais. No rigor das calamidades, os senhores, muitas vezes sem meios de resistencia que protegessem eficientemente a sua propria vida e a da sua familia, facilitavam ea fuga dos escravos famintos, quando deles nfo. podiam dis- por, vendendo-os aos agentes negreiros de outras provincias. Para que se faga uma idea justa dessa especie de selecao eliminatoria do sangue africano no Nordeste, basta se. atente no seguinte fato histo-- rico, ocorrido na séca de 1791-1793. Nesse periodo fatidico, morreram de fome muitos escravos negros da abadia de S. Bento, na Paraiba, de cuja avultada escravatura escaparam apenas os cativos que conse- iram manter-se nutrindo-se com ervas agrestes! ra, se tal aconteceu com os escravos de um con- vento prestigioso, bem maior devia ter sido ent&éo o- morticinio ou a fuga dos escravos dos particulares estabelecidos nos longinquos sertées mais rigorosa- mente acgoitados pelo flagelo climico. Os comerciantes de escravos acabaram conhe- eendo bem as circunstancias dificeis dos fazendeiros nordestinos durante as sécas calamitosas e as explo- ravam como podiam, concorrendo para desfalcar os negros dos nossos sertées. “ Dai, as causas principais da reduzida pereen- tagem do elemento etnico africano nas gentes das caatingas. Et 1904, entre 320 operarios que serviam na coustru¢aéo do «Canal do Sul», da réde de irriga- go do agude «Cedro>, em Quixadd, apenas se con- tava um negro (crioulo) que parecia puro. Em 1909, no infcio da construgdéo do-agude «Acarapev, entre REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 349 850 operarios, somente existiam trés negros nas mes- mas condicées. A tendencia para a diminuigéo progressiva do negro é manifesta no Brasil onde, em 1798, tinhamos 1.767.000 negros para 1.010.000 brancos (Santa-Apo- lonia); em 1818, 1.728.000 para 1.043.000 brancos (Bal- bi); em 1872, deviamos ter 16,5% de negros e 38,1 % de brancos, percentagens que 0 recenseamento se- guinte, de 1890, modificou respectivamente para 12% e 44./°. Em 1922, Roquete-Pinto computa a propor- gio em 14% de negros, contra 51°/. de brancos. Vé-se que a marcha para o aniquilamento é bastante rapida. Nas caatingas do Nordeste essa marcha pa- rece igualmente acelerada, conquanto as: causas de- terminantes nem sempre sejam as mesmas de outras regides do Brasil. Efetivamente, em S.-Paulo e alhu- res, 0 desaparecimento do negro est4 fortemente condicionado 4s mds condigdes de higiene em face das do clima e consequentes 4 sua inferior condigie social. No Nordeste, essa causa influe numa propor- gao evidentemente muitissimo menor. Ao tempo da exploracio da borracha no Amazonas, a emigragio dos negros foi bastante sensivel e ali, menos do que os caboclos, sabiam lutar contra a agressividade do meio, do que resultou um retérno insignificante. Mas, no meio sertanejo, o negro se adapta quasi tio bem como qualquer outro tipo etnico que tenha concor- rido para a populacdo local. No Ceara, em 1872, 0 recenseamento oficial, para uma populagdo de 721.686 almas, achou apenas 42.593 pretos de ambos os sexos, contrapondo-se a 268.836 brancos (ceriamenteinclusivé todos os seus fenotipos em reversdo para tipo branco), ou sejam respectiva- mente 5,8% de negros e 37,20/o de brancos. Nesse tempo, s6 restavam no Cearé 233 negros africanos, constrastando com 1,292 europeus (brancos puros). Em 1922, o' dr. Lébo da Silva, com cérca de 30.000 fichas de soldados do pais, verificou que, no Ceard, a percentagem do negro sobre o total dos in- dividuos examinados era de 7 0/o, e a de brancos as- cendia somente a 38°/c. Para os Estados nordestinos,os dados desse ilus- tre antropologista sao: 350 REVISTA DO iNSTITUTO DO CEARA’ ESTADOS Brancos | Mesticos | Negros Cearé | 88% | 58% | 7% ‘Rio-Grandée do Norte. | 37% 58% 3% Pernambuco. «| 58% | 85% | 6% Alagoas. . . | 84%, 55% oe Sergipe . : : | 89% 36% oh 17% Estas percentagens nao correspondem aos coe- ficientes etnicos, pelo fato inccnteste de que os trés elementos das populacées nordestinas nfo procuram -o exercito em proporgdes andlogas. Os brancos se es- quivam mais do que os mestigos eos negros. Toda- via servem para mostrar a reducgio extraordinaria ‘do elemento negro e para salientar o aumento do ‘Dbranco que, apesar da sua repugnancia pela baixa milicia, ainda acorre com taxa tao elevada. Os dados colhidos nos recenseamentos oficiais também nfo exprimem a verdade com rigor, visto como os mestic¢os de consideragio se declaram ge- ralmente como brancos. O numero destes, pois, de- ‘ve estar exagerado, em detrimento do computo dos mesticos. Das consideragées aqui expendidas, podemos ad- mitir para a populagéo cearense de 1912 as seguin- tes percentagens etuicas: Leucodermos . : 35 % Faiodermos e xantodermos . . 61% Melanodermos . . . : 4% Dos numeros af anotados, tira-se todavia que 0 contingente de sangue alricano diluido na massa da nossa gente sertaneja nio é de todo desprezivel e deve ser levado em conta no estudo da populegdo. Para o Brasil, vieram negros de varias etnias africanas, portanto de varios tipos constitucionais. En Pernambuco, porém, onde o sertéo nordestino foi buscar quasi todos os seus escravos pretos, pre- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ B51 dominavam os bantos da drea cultural de Congo. En- tretanto, como elemento acidental, havia negros su- daneses da 4rea cultural ocidental, que se irradia- ram principalmente da Baia, de ordinario nao atin- gindo os sertées da Paraiba e do Ceardé. Esses_negros, segundo o retrato descrito por Frederico Miiller, e compietado por outros observa- dores, seriam predominantemente, pela biotipologia. de Kretschmer,do tipo “picnico”, “ciclotimico”, ou re- ferido ao “braquimorfo” dos autores portugueses & aproximadamente ao “brevilineo estenico” de Pende.. Os caracteristicos psiquicos dominantes desses. nhegros e que mais impressionavam os observadores. eram: fantasiosos, sensitivos e de uma serenidade expansiva; conformados com a sorte, sem preocupa- ¢des do futuro, olvidavam rapidamente o passado. Sem energias notaveis, pareciam dotados de muita bondade; sem espirito de previdencia, eram hospita- leiros e magnanimos. Benevolentes para os amigos © eruéis para os contrarios, mas a sua colera desapa- recia rapidamente. A vida que levavam estava cheia. de contrastes, como os seus sentimentos, alegrias e tristezas; embalavam-se em esperancas e afundavam- -se em terrores insensatos; avaros e prodigos, ao mesmo tempo (Miller). Embora os bantos mostrem alguns tipos consti- tucionais diferentes,em consequencia dos cruzamen- tos com os poves vizinhos, sudaneses, boximanes e hotentotes, oferecem contudo um tipo primitivo que ressalta do confronto: talhe inferior 4 média dos negros, cabeca achatada e rejativamente menos pro- gnata, nariz mais proeminente. Dentre €les, o Nordeste recebeu sobretudo os angolas, que passam por terem dado o tipo do capa- docio, engragado, perito na arte culinaria, sensual, de maneiras delicadas e insinuantes. Segundo o testemunho do pintor holandés Z. Wagner (1661-64), os cativos africanos de Pernambu- co—«nio se importam com o futuro e cuidam sdmen- te de encher bem a barriga, tém contudo esperanca de uma vida melhor; as mulheres sio esbeltas como os homens e bem proporcionadas>. Um observador francés que percorreu o Nordeste no come¢go do se- 352 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA' culo passado diz que os escravos airicanos siio menos robustos do que os carregadores europeus; tém o peito abaillado e as coixas nervosas; pele preta, luzidia e glabra; bragos e pernas de ordinario fra- cas; mas, nfo raro, se véem negros de formas apo- lineas. As negras, segundoo mesmo autor, ostentam geralmente talhe flexivel e elegante, ombros e bra- gos bem modelados, peito firme e carnudo, movimen- tos suaves e cheios de graca, perna regular e pé estragado por falia do calgado. Os viajantes ingle- ses Bates e Wallace acharam os negros alegres, vivos e loquazes. Pitt-Rivers aprecia a espontaneidade das ‘suas dancas. A vespeito dos angolas, talvez a nagéo que mais contribufu para a mescla do povo nordestino, ja Gas- par Barlacus, em 1640, os considerava como sendo os mais laboriosos, e Koster os julgava mais aptos para os oficios mecanicos. Henrique Dias, o chefe negro, em carta para os holandeses (1647), informa que os mizas sio bravos, 0s ardas fogosos e os angolas tio robustos que nenhum trabalho os cansa. Bryant e Seligman exaltam a memoria, a intui¢do, a percepgio e a assimilagdo dos negros e notam que as criangas bantos, até os 12 anos de idade, so in- telectualmente mais precoces do que as europeas (G. Freire, in «Mental Development of the South African Native»). A 4rea cultural do Congo, fonte mais abundante do negro das caatingas, era particularmente agricola, tendo cabras, porcos, galinhas e cées domesticados. Havia ali mereado para o comercio dos produtos agricolas, ferros e balaios; escultura artistica em madeira, etc. O terceiro elemento etnogenico do Nordeste é © amerincola. Duas familias concorreram principal- mente para o caldeamento. O tupé, cujas tribus be- licosas habitavam o litoral do Ceara para o sul e certas pequenas zonas do interior, como o trecho setentrional da serra da Ibiapaba. A outra familia que, 80 tempo do inicio da colonizacéo, ocupava o interior da Bafa ao Piaui, e cujo concurso foi muito mais importante, é a dos cariris, nagdes de tapuias. Além dessas, algumas tribus também tapuias de REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 353 voutras familias, em zonas reduzidas, em trechos di- ferentes do largo territorio nordestino das caatingas, pertencentes aos grupos Gés e Caraibas, participa- ram da miscigenagéo etnica. Encontraram-se também -amerincolas que nao podem ser referidos a nenhuma ‘das familias conhecidas, como os remanescentes que ainda hoje vivem mais ou menos isoladamente, nos +serté6es pernambucanos, os Carnijés ou Fulnidés,com lingua e cultura especiais, os quais vém, entretanto, de hé muito, embora lentamente, sendo incorporados -4s populagées sertanejas. Quando os invasores europeus chegaram ao Nor- deste do Brasil, ai apenas se esbogavam duas dreas -culturais diversas. A litoranea no territorio que os tu- pis vinham de ocupar, substituindo os tapuias repelidos para o interior até a bacia do rio Jaguaribe, no Ceara, e a do sertio, compreendendo todo o interior nordes- “tino, da bacia do rio Paraguagt, na Baia, ao litoral do Cearé e das fraldas orientais da Borborema 4 bacia do Parna{fba, no Piaui, confinando todas as terras de caatinga onde viviam os fapuias, na sua grande maci- ‘tia constituidos de tribus da familia Cariré. Pouco sabemos da biotipologia indigena, mas -da sua cultura material poderiamos fazer uma relagio bastante completa e instrutiva. As caatingas do Nordeste, no coméco do XVII seculo, estavam muito mais habitadas do que se a- credita e os elementos indigenas que as ocupavam ndo tinham essa mobilidade que os nossos historio- -grafos tém registado, Eram muito mais ligados ater- ra do que se podevia crer possivel numa regiiio ba- tida por sécas frequentes e devastadoras. Os indios Cariris, supde-se, desceram do norte ou noroeste, mas jé ocupavam a regifio que habitavam havia longo tempo. Tinham sido repelidos do litoral, da Baia até o Ceara, pelos fupis, que af os substi- “tuiram, Segundo o testemunho dos holandeses, os tapuias - nordestinos eram «extraordinariamente altos, fortes e corpulentos, cobertos duma pele bruna; usavam lon- :gos cabelos negros. As mulheres eram grossas e gordas». (Zacarias Wagner) Estes caracteres somati- -cos sdo confirmados por Elfas Herckman, que acres- 354 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ centa: «Os seus ossos sao grossos e fortes, a cabeca: grande e espessa (chata). Tém 0 cabelo muito grosso- e aspero (4). As mulheres sao indistintamente peque- nas, mui bonitas de cara. Em geral (estes indios) atingem a uma idade muito avangada.» Trata-se, pois, de gente alta e robusta (corporum habitus robustus, minaces vultu, diz Gaspar Barlaeus,. que repete: homines vasto corpore, deformi vuito, prolize capillitio); de cor escura, cabega grande e chata, braquicefalos,como sio os seus atuais descen- dentes. Sob o aspecto dinamico humoral e psiquico, ha que salientar a grande resistencia fisica que lhes per- mitia enormes caminhadas, rapidez extraordinaria nas corridas, e imprimir grande velocidade aos dardos e azagaias, quando os langavam na guerra ou na caga. Fssas qualidades eram tais que causavam admiragao aos fortes soldados da Holanda. Alimentavam-se de toda a especie de animais silvestres e tao extraordi- nariamente, quando se lhes deparava oportunidade,. gue, segundo Herckman, «um homem podia comer tanto quanto 5 ou 6 dos nossos»>, Em compensagio, eram susceptiveis de sofrer, sem demonstrarem indi- cios de fraqueza, durante 4 e 5 dias, absoluto jejum.. Tinham o h4bito singular e macabro de comer os cadaveres dos parentes, porque, de acérdo com as suas ideas, «nio se podia dar aos mortos melhor se- pultura do que no corpo dos vivos». O alimento que usavam era geralmente assado,, quando aisto se prestava. Além da caga, nutriam-se com farinha de mandioca, tuberculos e frutas silves- tres, mel de abelhas, milho (?), ete. Os meninos aprendiam a andar com dois a dois: e meio anos de idade e logo aprendiam também a nadar. Em geral atingiam idade muito avangada, mais de 100 anos, segundo os cronistas holandeses. Das doengas que os afligiam pouco se sabe, muas,. provavelmente, nio eram muitas nem graves, pare- (4)—Estudos que estamos fazendo em esqueletos achados recentemente no interior do Ceard revelam diferenciacdes impor— tantes, REVISTA DO INSTITUTO DE CEARA’ 355 eendo que, antes do contacto com os invasores,o que havia de mais comum eram as chagas ou feridas +{behé), consequentes das Jutas, as quais 4s vezes su- puravam, exalando mau cheiro (cohé) e destilando pus (sané). Os missionarios que com éles assistiam ndo re- gistaram outras entidades morbidas além das que os atingiam depois daquele contacto. A bexiga, por exemplo. Todavia, os fapuias sofriam algumas enfermi- dades que eram tratadas com extremos cuidados pelos seus medicos, habeis na sugestéo terapeutica. Misticos, acreditavam na imortalidade da alma, em seres sobrenaturais que invocavam e em honra dos quais celebravam certus cerimonias religiosas com canticos, como o Waiuca e o Soponhiu. Tinham -oraculos, a quem consultavam quando queriam in- dagar dos parentes ausentes ou de cousas futuras. Estes elementos sio muito deficientes para a definigdo da formula endocrinica. O tipo etnico pa- Tece no se enquadra em pnenhuma das subdivisées de Viola e de Pende, mas deve ser um responsivo de Grote. Temos que o perfil dominante é o do bra- quitipo, talvez da terceira combinacio de Barbara, -sendo, menos provavelmente, da variedade C do mes- -mo biotipista, apesar da estatura elevada a que se referem os observadores holandeses. “As caracteristicas sociais que cumpre sualientar sio: organizaciio politica que supera a dos seus vi- -zinhos, mais completa sucessdo hereditaria do gover- ‘no, autoridade e distingio dos chefes maia desen- volvidas do que entre os tupis, uso de cabanas e -rédes, fidelidade das mulheres, que eram muito ser- vigais e obedientes aos maridos, casamento com ce- timonia complicada, poligamia, excessivo trabalho das mulheres, cerimonia de iniciagdo dos rapazes e de -funerais com a manducagaéo ritual dos cadaveres, in- clusivé dos ossos, culto dos mortos e grande respeito aos velhos. Agricultura rudimentar, ceramica abun- dante, armas menos perfeitas e cuidadas do que as dos tupis. Empregavam, entretanto, o propulsor de palheta, que aqueles seus vizinhos néo usavam. Ma- -chados e utensilios de pedra polida. 356 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ Vivendo fora da zona das caatingas, que 86 aci-- dentulmente perlustravam, os tupis pouco concorre-- ram para a formacdo etnica dos sertanejos do inte- rior. Eram contudo indios de estatura mais baixa e cor mais clara, porém muito membrudos, alegres e folgazées. Guerreiros mais habeis do que os ‘apuias,. destemidos e altamente vingativos. Habeis navegan- tes nos rios e no mar, em canoas que sabiam cons-. truir. Amigos de dangas, folguedos e bebidas alcoo- licas. Muito asseados e hosgpitaleiros. Antropofagia guerreira e ritual. Religifo mais rudimentar que a dos cariris. Viviam atormentados por terrores absur- dos. Agricultores mais adeantados que os seus vizi- nhos, mas, como éles, nio possuiam animais realmen-- te domesticados. Ceramica e arte culinaria relati- vamente desenvolvidas, porém muito inferiores as dos negros africanos. Praticavam a cowvade, que era desconhecida dos cariris. Dotados de grande memo-. ria e espirito de imitagiéo, gostavam dos discursos, historias e lendas. Observadores, pacientes, misticos.. Entre os tupts, dominavam provavelmente os braquitipos mais bem caracterizados do que entre og cariris, O temperamento ciclotimico parecia o mais. comum, embora ndo tanto quanto entre os negros. Os indios nordestinos, sobretudo o tupt, eviden- temente nio podiam ser esses esquizdides tipicos. que parece ressaltam da descrigéo feita pelo nosso velho naturalista Rodrigues Ferreira, h4 mais de um seculo, por observac&o certamente de representantes de outras familias amerindias, talvez em posi¢do so-- cial diversa da primitiva. Os outros tipos etnicos que complicaram a mis-- cigenagao do Nordeste do Brasil, embora em dose pequena mas ponderavel, foram os franceses, os ho- landeses, os judeus e os ciganos. Aqueles entre os tabajaras (tupis) da serra da Ibiapaba, mas sobretu- do pelos mamelucos que vieram do Maranhao. Os holandeses ocuparam 0 litoral do Nordeste, de 1624. a 1654 e, mais do que se pode crer, deixaram vesti- gios do seu sangue nordico, sobretudo no Rio-Grande do Norte, Parafba e Pernambuco. Nas cidades cos-- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 357 teiras,o elemento holandés remanescente foi rapida- mente absorvido; porém dos que penetraram os ser- tées o tipo caracteristico aflora, n&éo raramente, de entre a massa etnica, teimando em recordar nas re- versdes atavicas a constituicdo da gente flamenga, o longitipo astenico, francamente esquizdide. Em cer. tas regides, € mais comum do que o reversivo afr: ecano. Pode ser que, em parte, a origem desses ser- tanejos dolico-louros nio seja apenas a fonte fla~ menga do XVIII secuio, mas também o lusitano de origem germanica. (5) E’ bem conhecida a invasdo de semitas judeus nos tempos coloniais em todo o Brasil, mas, princi- palmente, na Bafa e Pernambuco, sobretudo durante o dominio holandés, Entretanto, como os sertées nic ofereciam campo propicio 4s suas exploracées mer- cantis, éles, de ordinario, restringiam sua atividade & zona dos engenhos e as cidades litoraneas. Sue influencia etnico-social no povo das caatingas 6, con- sequentemente, desprezivel. Todavia, por vezes, se deparam -nos sertanejos o nariz convexo, o olhur vivo e brilhante, o labio inferior espésso, a reducdo do perimetro toraxico e o eritrismo, que lembram o povo de Israel. Bem mais importantes que o judeu na etnoge- nia nordestina das caatingas sao os ciganos, elemento de origem asiatica que a metropole portuguesa nos mandou a contar de 1718, como degredados. Files co- megaram aqui a sua vida errante de nomades incor- rigiveis, percorrendo o intericr em grupos mais ou menos numerosos, Apesar da tendencia endogenica que manifestavam, a maioria encorporou-se 4 popu- lacdo sertaneja, sobretudo em virtude de uma deter- Minagao régia que dispunha fdssem os rapazes de pouca idade entregues a mestres que Ihes ensinas- sem oficios e artes mecanicas, e aos adultos se assen- tisse praca de soldados, repartindo-os pelos presidios fin Antonio Bezerra—«O Ceara e o Cearense»). Em- bora mal cumpridas, essas ordens concorreram para {5)—Temos anotado varios tipos perfeitamente caracteris- ticos, cujos pais, entretanto, ja nao oferecem um quadro de ele- Mentos etnicos tio completo. 358 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ modificar 0 nomadismo desse povo, 0 que sobremo- do favoreceu a sua mistura com os elementos da terra. O cigano, diz Antonio Bezerra (apud Lenan e Tissot), considera a liberdade o maior dos bens. ‘Temperamento sunguineo, ativo, ligeiro, ineagotavel disposigaio de animo, concep¢do rapida, imaginagao fertil, observador que sabe sempre apanhar o lado fraco das pessoas. Estima os bons ditos,os gracejos, e a sua presenga de espirito sabe livrd-lo dos lances arriscados. Extremamente prolifico, acessivel a todos os sentimentos generosos e leais. Por este quadro de caracteres psiquicos, vé-se que o cigano deve ser um cicléide. Estatura abaixo da média, mesocefalo e mesorrino (Boule, Pittard). Temos especificadamente revistado em largos tragos a constituigdéo dos tipos etnicos que concor- Treram para a formacdo da nossa gente das caatingas. Resta examinar agora o problema complexo de como tais concurrentes se combinuram sob a agio mode- ladora do meio especial dentro do qual se vem cons- tituindo e caracterizando esse tipo antropologico dos sertdes nordestinos, A determinacéo do normotipo ainda é problema por solucionar, mas no qual jé leboram estudicsos dedicuGes. A despe to disto, podemos fazer, com o auxiiio ‘tos conhecimentos j4 adquiridos, uma serie de consideragdées em torno do homem da Terra das Sé- cas, que pos permitem compreender um pouco 08 motivos da sua situagao presente, das manifestagdes mais variadas da sua atividade criadora, do seu comportamento perante a agressividade telurica, dos processos atuais da sua adaptacdo social, dus suas tendencias, etc. Dos fatores geneticos do perfil biotipologico do nordestino das caatingas, j4 aprecidmos o patrimonio hereditario: pouco hé que dizer da sua morfologia, dos seus caracteres dinamo-humorais e da sua fisio- nomia psiquica. Dada, porém, a correlagéo desses elementos, face da piramide tetraedrica de Pende, o REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 359 conjunto das observagées registadas permite a im- pressio de uma idea aproximadamente razoavel. Pode-se avaliar a estatura média do nordestino através das fichas colecionadas pelo antropologista Lébo da Silva, com que organizamos 0 quadro se- guinte: Estat. média} Estadi Estat. bai: Estat. alta | Estat. nordestinos P “[600 mt = 1600-1829 | "00 mils | mil Cearé. . | 32,9 | 57,6 | 95 | 1.622 R.-G.do Norte 38,8 57,8 8,9 1.622 Paraiba . | 24,8 57,8 17,4 1,682 Pernambuco, 27,4 56,7 15,9 1,632 Médias. . | 300/o B7o/o 1382/5 1.627 A média da estatura encontrada para os quatro estados nordestinos 6 ligeirameute interior.A calcu- jada para todos os estados do norte, da Bafa, inclu- sivé, ao Amazonas, a qual foide 1629. As divergen- cias entre referidas médias provém de que nelas se incluem os homens da faixa litoranea, mais ampla e mais rica de recursos alimenticios na Paraiba e em Pernambuco, onde justamente as percentagens da es- tatura elevada sio mais fortes. No sertdo, nao ha tais divergencias, devendo a média ser aproximada- mente de 1629. Para os estados do Norte, referidos, o dr. Artur Lébo achou os seguintes dados, pelos elementos etnicos: leucod: rmos . : - 1629 Jaiodermos. : . 1627 melanodermos ‘ . 1644 xantodermos , . . 1616 que podemos controntrar com os dos quatro estades nordestinos mencionados: 360 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ ESTADOS |Leucodermo | Faiodermo {Melanodermo| Xentodermo Ceara. . | 1.626 | 1.616 1.616 | 1.624 R.-G.doNorte| 1.620 1.623 1.628 1.585 Paraiba . | 1.632 1633 1.624 — Pernambuco.) 1.632 1,630 1.645 1.637 Médias. . | 1.627 1.625 1.628 1.614 A comparagao ressalta que todos os tipos sao respectivamente mais baixos, sendo a maior diferen- ca enire 08 negros, o que também se pode atribuir As melhores condigées de alimentagae dos estados do extremo norte e do amplo e populoso litoral da Bafa. E’ de crer que, para o sertéio, os dados sejam um pouco inferiores, como no quadro infra: leucodermos . . : 1626 faiodermos. . 3 1624 melanodermos . : 1626 xantodermos . : . 1612 médias. . . 1622 Observando gente mais selecionada, sobretudo soldados do Corpo de Bombeiros da Capital Federal, o dr. Isaac Brown achou para os estados do norte valores mais elevados, como era natural, concluindo pela preponderancia de formas longitipicas relativas, nos leuco e faiodermos, mas subretudo nos melano- dermos. Resumindo, vé-se que a populacdo nordestina | do interior é de «estatura média>, segundo o criterio de Artur Lébo 160/169 em relagio ao Brasil, e, se- gundo M. Boule, 1600/1649 em relacéo a populagdo do mundo. Corresponde & estatura dos chineses do sul, dos judeus russos e dos ésquimos da Groenlandia. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 361 Relativamente ao perimetro toraxico, que d4 uma idea da resistencia individual, os daaos fornecidos pelo dr. Artur Lébo mostram que os indices mais elevados sic os dos estados onde domina a popula- cao indigena —Amazonas, Para, Goiaz. A média geral para o Brasil foi de 833 mil me- tros, cabendo o maximo aos xantodermos com a média de 842. No Ceardé, a média foi de 830, mas o tipo que aqui ofereceu maior perimetro médio foi o faiodermo, com 834. No Rio-Grande do Norte,a média geral ascendeu a 870,levando os faiodermos a prima- zia com a média relativa de 868. NaParaiba,a média geral foi de 852, cabendo a primazia aos melanoder- mos, com a média relativa de 855. A média geral em Pernambuco foi de 829, tendo os xantodermos alcangado a média relativa de 853. Estes dados pe- dem observagées. No Ceara, foram deduzidos de 1.393 homens examinados, ao passo que no Rio-Gran- de do Norte o foram apenas de 500, na Paraiba de 569 e em Pernambuco de 627, gente julgada apta para o servico militar. Mais interessante do que o perimetro taraxico € o indice de robustez de Pignet, que permite dar uma idea bastante aproximada da constituigaéo quan- to a robustez, relacionando a altura do individuo com © seu perimetro toraxico e péso. Os indices inferiores a 10 revelam excelente constituigdo organica; entre 11 e 20, constituigéo for- te, muito boa; de 26 a 30, média; de 31 a 35, fraca, e de menos de 36, muito fraca. Em Franca predominam entre os Gonscritos indices de 21 a 25. Em 29.633 recrutas do exercito brasileiro, o dr. Artur Lébo achou estas médias : leucodermos . . 25,2 constituigfo média faiodermos . . . 24,0 2 melanodermos. . 232 > » xantodermos . . 24,6 » > A maior robustez, tivemo-la no soldado negro, e @ menor no branco. No Ceardé, as médias parciais variaram de 22 para os faiodermos a 24,7 para os leucodermos, sendo 362 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ a média geral de 23,1, portanto indicando uma boa constituigéo organica. No Rio-Grande do Norte e na Paraiba, essa média foi melhor: 19,4 e 20,7 rsspecti- vamente; mas, em Pernambuco, se tornou inferior & do Cearé com 23,7. Notando-se que sodmente numeros inferiores a 25 habilitam o recruta para o servico militar, 6 de crer que os indices reais para os homens das caatin- gas sejam um pouco superiores as cifras médias aqui anotadas. Apoiado na pequena serie de determinagdes por nos feitas diretamente no sertio, admitimos para o homem das caatingasa cifra de 25,3 como uma apro- ximacao razoavel, embora provisoria. © dr, Artur Lébo observa que o indice dos mesticos 6 superior a0 dos brancos. Quanto a0 péso, verificou-se que a gente mais pesada do Brasil ¢ a do Rio-Grande do Sul, cuja mé- dia sobre 4.722 recrutas do exercito ascendeu a 62,7 quilogramas, e que a mais leve é a do Maranhéo, com a média de 54,8 sobre o total de 103 recrutas. No Ceara, a média sobre 1.393 recrutas foi de 56,4, atingindo a 57 nos faiodermos; no Rio-Grande do Norte, sobre 500 homens, foi exatamente a mes- ma, atingindo a 58,7 nos melanodermos. Na Paraiba, a média elevou-se a 57,3 sobre 560 recrutas, atingin- do 58,3 nos melanodermos. No sert&éo, excluindo o homem mais hidrico do litoral, a média deve ser um pouco inferior. Digamos, aproximadamente, 56 quilogramas. A média geral para todos os recrutas aptos (29.633 fichas) foi de 58,2 quilogramas, sendo que a percentagem dos pesados (mais de 66 ks.) foi apenas de 14,3,a dos leves (menos de 51 ks.) baixou para 16,7, ficando os pesos médios (de 52a 65 ks.) com maioria, ou sejam 69%, No Ceardé, a percentagem do péso pesado Joi apenas de 6,7, ao passo que nos outros estados nor- destinos se elevou a 8 e 10. A percentagem do péso leve no Cearé subiu a 20,2; no Rio-Grande de Norte, a 22,2, e na Paraiba, a 18,1. Estas diferen- gas se explicam em parte pela desproporgdéo do mumero de recrutas dos estados e pelas condigées REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 363. diversas dos habitantes da faixa litoranea, muito mais diferenciada em relagdo ao sertio, nos estados que ficam ao sul do Ceara. Ao passo que a zona serta- neja 6 antropologicamente muito homogenea, da Baia ao Piaui, a litoranea oferece uma sensivel disconti- nuidade. J& entre a Paraiba e o Ceara, a diferenca é notavel. Segundo Isaac Brown, 0 homem faiodermo do norte do Brasil, inclusive o de todo o nordeste, em relagéo ao faiodermo do centro, & um braquitipo excedente, ao passo que onegro do norte é um bra- quitipo deficiente. Essas qualidades biotipologicas sio também verdadeiras, considerando-se o faiodermo das caatingas; mas, relativamente ao melanodermo, temos divida se seré realmente ainda um braquitipo de- ficiente. De acérdo com a mesma autoridade, e tomando para termo de comparacéo o normotipo brasileiro, © leucodermo do norte 6 um braquitipo deficiente; paracentral inferior braquitipico de Berardinelli; en- quanto o faiodermo do norte 6 um braquitipo exce- dente; paracentral superior braquitipico de Berar- dinelli. « A relacio parece-nos a mesma, considerando-se apenas os leucodermos e faiodermos sertanejos das caatingas. Comparado como normotipo italiano de Emilia, o leucodermo do norte 6 um macrosomico harmoni- co e 6 faiodermo um longitipo com autogonismo. E’ interessante notar que Viola e Zisa (apud Brown) acharam para a estatura doitaliano standard de Ve- neza e Emilia 168 centimetros, cifra inferior ao que Brown achou para o foiodermo doNorte: 168,9 cent. Alias, essa estatura nado confere com a de Artur Lébo, 162,9, nem mesmo com a estatura média do ho- mem branco do sul, que este antropologista echou ser de 167 cent. Finalmente, Brown concluiu que os leucodermos do Norte se enquadram na variedade B de Barbara, os faiodermos na 1.4 e 34 combinagéo do mesmo autor ituliano. Outros caracteres mortolo- gicos dominantes na populacdo dos sertées nordesti- nos sao: cor da pele como a do indio tupf, mais cla- ra que a do indio cariri, alias preponderante no cal- deamento; cabelo castanho escuro, quasi preto, liso- 364 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ trico, relativamente fino, tendencia a hipotricose; o- Thos escuros e grandes; nariz, misorrino; craneo, bra- quicefalo; tronco maior do que os membros; apendi- ces distais curtos e largos; rosto achatado e face hi- poplastica. Relativamante 4 cor da pele, em 2.969 recrutas, o de. Artur Lobo achou: leucodermos. . : 1.077 ow 36,2 % faiodermos e : xantodermos. . . L731 » 583% melanodermos : . Ii» 55% resultado este que confirma a preponderancia da cor parda sobre a branca, e, em particular, extraordina- riamente sobre o preto. Com isto também se pode fa- zer uma idea da escassa concurrencia do elemento africano no melting poet nordestino. Com o mesmo criterio que vimos adotando, pas- semos a vista rapidamente sobre o fator dinamico humoral dohomem das caatingas. Aalimentagio constitue problema do maximo interesse, a que entretanto néo podemos reservar o espaco compativel com a sua importancia. A extrema oscilagdo dos fatores climicos que mais influem sobre a producéo agricola, quer no es- pago de um ano, quer no correr dos tempos, ocasi- onando sécas tremendas ou pluviosidade excessivae muitas vezes calamitosa, imprime um especto espe- cial ao regime alimentar do sertanejo que, sob este particular, difere de tudo mais que se pode observar alhures, pelo Brasil a fora. Nos anos normais, de pluviosidade regular e bem distribufda, a terra feraz, convenientemente irrigada, produz abundantemente todos os generos ulimenticios que 0 sertanejo vem secularmente utilizando na sua nutrigdo. Durante o periodo colonia! e até recentemente, a carne e o leite constitufam o alimento de eleigéo do homem das caatingas. Os vaqueiros e proprieta- Trios, os negociantes e funcionarios publicos utilizavam a carne ¢€ 0 leite dos bovinos; os moradores—a gente REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 365 pobre--, a carne e o leite das mitcas (ovelhas e ca- bras). Todos faziam e ainda hoje fazem largo con- sumo de farinha de mandioca e rapadura. Com a expansio do comercio do gado e consequente enca- recimento da carne, os feijdes e favas tomaram par- ticular importancia na nutrigiéio de toda a gente. As- sim, pois, as protefnas sfio fornecidas abundantemen- te pela carne, leite, laticinios e pelo feijio; os hidro- carboretos, pela farinha de mandioca, pelo arroz ¢ pelo milho, em dose menor; as gorduras, pelo gerge- fim (Sesamo orientale), amendoim (Arachis ipogoea) v, principalmente, pela manteiga de garrafa e tou- cinho de porco; 0 agucar, pela rapadura. Finalmen- te, em certas zonas, ao longo dos rios piscosos, fa- zia-se e ainda se faz bastante consumo de peixes dagua doce (curimatis, trafras, jutubaranas, cards, surubins, cangatis e bagres); as frutas so raras, salvo a melancia e mais dificilmente 0 melio e 0 mamao em certa epoca do sno, Ultimamente, a bananeira tem invadido o sertéo e é cultivada nos brejos e terras frescas, bem como o coqueiro da praia. O uso de verduras 6 desconhecido; apenas se admitem nas carnes cozidas 0 quiabo, o maxixe e o jerimt (abo- bora). Também é frequente o consumo de certos tu- berculos, como a macacheira (aipim), a batata doce, os cards e os inhames. Esta lista parece suficiente para garantir nutri- cio completa e sadia, capaz de permitir ao sertanejo um regime racional. Eatretanto, as circunstancias cosmnicas e, sobretudo, a deficiencia de educagao hi- gienica criam uma situagiio desfavoravel que se vai refletir no desenvolvimento economico e na evolugio social da regiao. A primeira inconveniencia do regime alimentar do sertanejo depara-se na diferenciagéo flagrante da sua nutrigdo dos ultimos meses da estagaéo pluviosa e primeiros do periodo séco que constrasta com a dos outros meses do ano normal. Naquele periodo de abundancia e variedade de produtos excelentes, quer de origem vegetal, quer de origem animal, o sertanejo alimenta-se excessiva e desordenadamente. As criagées nedias concorrem com as colheitas 366 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ abundantes de cereais e legumes; a fartura nas fa- zendas, nas moradias rurais é geralmente considera- vel. A venda das safras, dos produtos dos rocados permite a aquisigaéo do que o campo nao produziu: o café, a rapadura e, algumas vezes, a farinha, 0 toucinho ou a banha de porco. Mas essa fartura vai diminuindo no correr do verdo esteril e, ao comecarem as chuvas da proxima estacgdo hibernosa, quanda a faina das plantagdes se torna extremamente exigente ou a labuta com o gado mais pesada, geralmente j4 de hé tempo desaparecu, tornando-se as reservas escassas e incompletas, se- ndo de todo faltosas nas casas dos mais impreviden- tes, isto 6,da maioria dos sertanejos. Sobretudo, urge trabalhar, embora a maquina humana nfo receba combustivel alimentar bastante, quanto ao aspecto energetico, para cobrir as despesas correspondentes do organismo, provocando um desequilibrio dinami- co de vida, extremamente nocivo. Muitas vezes, a nutrigéo do sertauejo é entéo insuficiente para aten- der as proprias exigencias do metabolismo basal que sofre oscilagGes relativamente rapidas, Normalmente, 0 metabolismo basal do sertanejo deve oferecer um coeficiente mais elevado que alhures. . O trabalhador nordestino, nessas condigées, vai aurir energias para a sua labuta extraordinaria nas reservas destinadas a outros fins,em detrimento das suas fungées vegetativas. Caleula-se que um homem do péso de 60 ks., com 160 cents. de altura, exija uma despesa funda- mental correspondente 4 1.220 calorias; a energia gasta no trabatho de cultura do campo, a razdo de 340 ca- lorias por hora de ocupa¢aéo, deve montar a 3.400 calorias; a energia suplementar de repouso em 14 horas sera de 1.386 calorias, podendo ser inferior no nosso clima, digamos 1.000 calorias, e finalmente a energia gasta pelo trabalho especifico da alimenta- gdo pode ser avaliada em 560 calorias, montando o gasto total, em 24 horas, a 6.180 calorias,que devem ser cobertas em alimentos que o sertenejo nao pos- sue suficientemente, porém na razdo de 4,1 calorias por um grame de prote{na, 9,3 calorias por um grama de gorduras e 4,1 calorias por um grama de hidratos de carbono. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 367 Ora, atendendo-se as circunstancias de clima,um homem como o que consideramos exige diariamente pelo menos 60 gramas de proteina, 1.220 gramas de hi- dratos de carbono e100de goriuras,a fora os alimen- tos inorganicos. Seria preciso eutdo que ingerisse:- meio quilograma de farinha,que custa no sertéo pelo verdo $300, uma rapadura de 750 gramas, que custa $600, trezentos gramas de feijao, custo $100, e finalmen- te cem gramas de toucinho, custo $300, afora o café, cérca de $200, 0 que daria uma racéo no valor de 1$500. Mas o sertanejo tem familia,de ordinario avul- tada. O seu dispendio, supondo 5 pessoas por familia, montaria com a alimentagdéo, no minimo,a 4$500 dia- rios,importancia de que est4 muito longe de ser per- mitido a maioria dos ser:anejos dispor algum tempo depois de negociada a sua safra anual]. EB’ verdade que elementos da familia também trabalham, porém ainda fica um deficit grande. Isto significa, consequentemen'e, que quando os tempos correm favoraveis o regime do sertanejo é mui- to irregular: 3-4 meses de extrema fartura e 6timos alimentos,—carne, leite, coalheda, queijo fresco, manteiga, milho e feijio verdes, ovos, farinha, pao de milho (cuscts), ete.; segue-se um periodo em que faltam o leite, a coalhada, o milho e os legumes fres- cos, substituidos pelo feijao séco, as vezes bicha- do. Vem em seguida o pior tempo, o fim do verao e coméco das chuvas, de Novembroa Margo ou Abril, quando, em geral, falta tudo quanto féra produto da safra e se torna necessario comprar nas vendas o teijao ordinario, a farinha velha, muitas vezes mofa- da, a rapadura salgada, etc. Essa alimentagdo 6 defi- ciente e prejudicial, incompleta,sem o teor necessa- rio de vitaminas. Conforme a regiao,o tipo de ragao de verdo varia. A margem dos rios de maior cur- so, onde hé pocgos perenes, o peixe concorre para a ragéo comum. Nas zonas onde as cabras e ovelhas sao mais abundantes, torna-se frequente o uso de carne fresca ou séca desses ruminantes. Nas proxi- midades das serras frescas, hé algumas frutas, como banana, laranja, abacax!, manga, etc., de efeitos mui- to salutares, A irregularidade maior, porém, ocorre quando ha sécas calamitosas, porque entéo, durante longos 368 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ meses, quando nao falta de todo a alimentagado, im- pelindo os sertanejos & emigragaéo, ao abondono do lar, se véem éles sujeitos a longos e terriveis jejuns, a uma alimentagdo selvagem, com tuberculos, medu- jas de palmeiras novas, de cactos ou de bromeliaceas, e outros recursos alimenticios de fraquissimo teor nu- tritivo e geralmente venenosos., Sobrevém entio dis- turbios graves ao organismo ja cambalido pela fome. Esse regime de intermitencias com os paroxis- mos das sécas calamitosas nfo pode deixar de in- Huir consideravelmente sobre a populagdo das caatin- gas, concorrendo para a diferenciagdo tipologica. Produz-se assim uma selecdo natural, porque os mais fracos, os menos constitucionalmente aparelha- dos desaparecem definitivamente,deixando 0 lugar aos mais bem adaptados a terrivel situacdéo. E’ por isso que o nordestino, hoje como em todos os tempos, é de todos os brasileiros o mais apto para suportar in- colume longas e cruciantes abstinencias; nenhum ou- tro 6 capaz de resistir aos mais pesados e estafan- tes labores, com alimentacdo tao parca. Talvez resulte, em parte, desse regime 0 aspec- to relativamente delgado do seu corpo, a deficien- cia de individuos obesos. Também é de crer que a necessidade de eliminar maior porgéo de calor con- tribua para as formas delgadas ou esbeltas, tio co- mums 00 sertéo, sobretudo entre os vaqueiros habi- luados a equitacdo. A falta de vitaminas nos alimentos, em os pe- riodos criticos da nutricdo anual, pode-se atribuir certamente uma das razées da baixa estatura do nor- destino das caatingas. A acuidade visual e auditiva dos sertanejos é notavel e isto parece ser uma heranga dos indios. A capacidade de locomogéo € extraordinaria; néo ha quem, como o nordestino, seja capaz de andar durante semanas, 4 razifio de 5 a 8 leguas por dia. E’ outra heranga dos primitivos babitantes destas terras. A aptidao para o trabalho em posic¢éo encurvada ou de cocoras é bem caracteristica. As mulheres 86 Javam as roupas, as panelas e utensilios domesticos REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 359 acocoradas 4 margem das lagoas, agudes ou rios. Até h& poucos lustros, o sertanejo, em geral, nao usava mesa para as refeigdes, nem cadeiras ou pancos. «O costume mais geral, diz Koster, 6 acoco- rarem-se em cima de uma esteira, onde toda a fami- lia forma um circulo em roda de cabagas e assim € que fazem as suas refeigdes.» Entretém longas conversagées assentados sobre © bordo do caleaneo de um dos pés, com a respecti- va perna intletida fortemente e a outra servindo de escora. Ainda hoje esta posigéo é frequente no cam- po. Até quando jogam cartas, 4s vezes durante horas, se conservam nessa posigéo, que nos parece horri- velmente incémoda. O seu trabalho, qualquer que seja, é sempre lento, pausado e bem regulado, porém tenaz, dura- doiro, O rendimento em tempo curto é pequeno, mas num espago mais dilatado é consideravel. Em relagéo com as fun¢gdes de reprodugdo, im- porta registar a precocidade do catamenio, que se atribue principalmente a influencia do elima, embora a raga tenha também a respeito uma a¢iio bem co- nhecida. No interior nordestino, 0 catamenio apare- ce normalmente entre 12 e 18 anos, havendo casos raros de maior precocidade e menos raros de retar- do, sobretudo estes ultimos, nos periodos de sécas calamitosas. A ovulagéo persiste geralmente além dos 50 anos. As faculdades de geracdo no homem comumente vaio além dos 60 anos, néo sendo raros os casos em que se prolonga até os 70 anos e mesmo aos 75. A fecundidade das mulheres nordestinas 6 pro- verbial e parece nao encontra simile noutra regiao do pais. Casam-se cedo. Malgrado o vulto da prole, que é, em geral, maior do que em todas as outras regides brasileiras, a mulher das caatingas néo entra prematuramente nessa decadencia organica que se observa alhures, talvez porque elas se nao entregam nunca ao sedentarismo a que se condenam as mulhe- res noutras partes do pais, principalmente nas 4reas onde mais abundou o escravo negro. O sertéo nordestino nunca criou esses homens «moles, de m4os de muther, amigos exagerados da réde, 370 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ yolutuosos do ocio, aristocratas com vergonha de ter pernae pés para andar e pisar o chio como qualquer escravo ou plebeu», dos engenhos, nas areas culturais dos grandes canaviais. O que as caatingas criaram foram vaqueiros audazes, intrepidos e de uma ener- gia e vigor fisico de espantar. E’ que, como observa o viajante francés L. F. Tollenare, quando percorreu o Nordeste, pelos fins do primeiro quartel do seculo passado, , e, logo adiante, acrescenta : «O cearense vinga-se quasi sempre com uma facada; 0 caboclo vinga-se quasi sempre com um sorriso de desdém. O cearense é audaz, atrevido, falador. O caboclo é irio, suspicaz, discreto. O cearense faz sempre valer o seu direito, agindo, discutindo, brigando. O cabo- clo vence quasi sempre... cedendo! O cearense tem uma férmula altiva que muito comumente repete: «ndo dou o meu direito a ninguém.» O caboclo repete quasi sempre: «néo vale a pena brigar», cede aqui para vencerali. O cearense afronta o perigo de fren- te, o caboclo contorna-o.» O que o habil observador José Carvalho chama cearense é o nordestino das caatingas, que vai afrontar a agressividade da Ama- zonia, desbravar as matas portentosas, os rios mons- tros, domar as feras e lutar contra os miasmas mor- tiferos. Ora, por esta descrigéo, compreende-se bem que o homem do Nordeste € um tipo acabado do extro- vertido de Wung, enquanto o paraense (caboelo) é um introvertido bem definido. Tais qualidades dominantes no nordestino das caatingas influem em todos os seus atos, durante toda a vida. O exagéro desse temperamento nao provém sd- mente da hereditariedade, pela concorrencia nos trés genotipos dos mesmos atributes; mas, sobretudo, do fato importante que consistiu no reférco dos seus agentes, sob a acdo propicia do meio fisico, da evo- lugéo social e do modo de vida. As notas impressionantes e mais distintivas da 382 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ alma nordestina das caatingas séo o exagéro, 0 con. waste violento, as agées inopinadas e desassom- radas. Na faina do gado é o vaqueiro «destemido que penetra o matagal numa carreira louca, montado num cavalo nervoso e, como éle, iatrepido, agil e forte»; no lar o sertanejo 6 manso, lerdo, dorminhoco; no eito dos rogados, ao sol canicular, o dorso nd, numa emulagao de trabalho espantoso ou nas matas secu- jares do Amazonas, abatendo a machado as arvores gigantescas, é incomparavel, ninguém o vence na resistencia, no rendimento do trabalho; na marcha, quando néo tem pressa ou nao o esporeia algum in- terésse de urgencia, move-se lento e mole, parece doente; de pé, recosta-se fatalmente, escora-se como se lhe faltasse o equilibrio natural, ou acocora-se displicentemente, em geral sobre um pé s6, cujos ar- telhos sustentam todo o péso do corpo, Dir-se-ia can- sado. Mas, se qualquer motivo lhe desperta as ener- gias, reage instantaneamente, com violencia muitas vezes desnecessaria, transforma-se, levanta-se de um salto, apruma-se, corre celere, agita-se e, con- forme as circunstancias, chega a parecer um pos- sesso. E' preciso, porém, nao exagerar estas quali- dades, como fez Euclides da Cunha, que os viu em lances muito especiais, num caso grave de misti- copatia. Na fartura, come mais do que um alemao epicu- vista; na miseria, pode passar dias no mais absoluto jejum. Suporta a séde como um camelo; é capaz de andar a pé centenas de leguas (viagens do Cearé a Recife, a Pedra-do-Fogo—falta de cavalos, nos anti- gos tempos—, etc.). Porigual é capaz de dormir Gias inteiros. Este contraste de atitudes parece encerrar uma contradicéo constitucional, pois teriamos no mesmo individuo um bradipsiquico bradipragico, com os seus habitos preguigosos, temperamento apatico, sonolen- to, lerdo, que de repente, sob um estimulo externo, se transforma no tipo antitetico do taquipragico ta- quipsiquico, com os seus movimentos rapidos, res- pondendo proata e energicamente 4s reagées estimu- ‘lantes do meio, E’ que o homem das caatingas goza REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA' 383 de uma disposigéo organica particular, que lhe dé maior sensibilidade endocrinica; um certo estimulo, que passaria inapercebido a outros tipos. parece capaz de exagerar a excitacdo do corpo tiroideo, determinan- do rapidamente um aumento do autacéide correspon- dente va cireulagéo, produzindo-se entio o efeito de transformar, em poucos instantes, um hipotirofdeo num hipertirofdeo de maneiras muitas vezes exage- radas. Esta mutagdo de fato, conforme os relatorios dos melhores observadores e a8 nossas proprias indaga- gdes pessoais, acompanha-se de uma visivel modifi- cagdo do aspecto geral somatico. O matuto tardo, de olhar inexpressivo, amolentado, dA a idea de um bre- vilineo; quando excitado, reage; como que se alonga, se adelgaga, tomando aparencias que lembram o tipo do longilineo. Dominado pela religiiio, torna-se beato de um misticismo incomparavel, como esses que se concen- travam no Juazeiro do Padre Cicero; dominado pelo crime, 6 0 cangaceiro que supera na crueldade, como na violencia,na astucia e na prudencia, a tudo quan- to j4 se viu (Antonio Silvino, Lampedo e outros); as- soberbado peia politica, ou 6 um forte, como Floria- no, Joio Cordeiro, etc., ou um pusilanime. As nobres ideas facilmente o empolgam; por elas se apaixona até burlar e desprezar as leis, enfren- tar a_f6rga ptiblica e arriscar a vida na sua detfe- sa. Haja vista a campanha da aboligéo dos es- cravos. Se é& deshonesto, de um 86 bode sabe tirar dois couros; se é probo (caso quasi universal}, é de uma magnanimidade sem limites; a sua hospitalidade nao tem par. Soldado, 6 téo valente como os melhores do pais; se estuda, em geral se distingue nas letras, nas artes, nas ciencias. Devemos & sua energia e cora- gem a conquista do Acre, o desbravamento da Ama- zonia, custando este ultimo feito muitos milhares de vidas. Seria interessante comparar o sertanejo das caatingas, sob esses diversos aspectos, com o nor- destino das praias e com o nordestino da drea dos 384 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ engenhos, e bem assim caracterizar a sua diferencia- cio em face do brasileiro das outras 4reas culturais, tarefa que se enquadraria neste esbé¢o, mas que os limites de um simples artigo repelem. Dos fatores de adaptagdo social, o processo re- ligioso ainda é soberanamente preponderante na com- pressio reciproca dos individuos. A influencia do clero catolico continua consideravel, como se vem de observar nas duas primeiras eleic¢des realizadas depois da ultima revolucado politica. Em todas as mo- radias,da mais miseravel choupana ao melhor e mais tico palacete, avultam vistosas e inesteticas figuras de santos venerados, pendentes das paredes, ou san- tuarios mais ou menos luxuosos,repletos de. imagens, &@ que se sobrepdem geralmente o Cristo crucificado ea vela benta, indispensaveis aos moribundos. E’ pelo temor de Deus e pelo horror das penas eternas do inferno, que se evitam muitos atentados e crimes. Certas tendencias mas podem abortar simplesmente pelo fato de estar presente uma figura do santo da devocao. Algumas vezes, perturbagdes sensiveis do processo religioso deram causa a fatos historicos de earater muito expressive, tais as misticopatias de Pedra-Bonita, de Canudos e de Juazeiro, do Caldei- réo, de Marruds, ete, com o seu cortejo de conse- quencias insolitas. A moral sertaneja, sob certos aspectos, torna-se rigida e inconfundivel. O dever de hospedar o pe- regrino, de homiziar o perseguido da justiga, de vin- gar a honra conspurcada da mulher, da filha moga, da irma ou da noiva, de aceitar as criangas enjeita- das, de assistir aos doentes, de enterrar os cadave- res, etc., tem um carater de grande intransigencia e rigor. Muitas vezes, essas obrigagdes morais deram lugar a lutas terriveis e a crimes hediondos. Quanto & facies juridica, ha diferenciagdes no- taveis, singularidades dignas de registo, que nao po- demos analisar convenientemente, devido a premen- cia de espacgo. Nos nossos sertées nordestinos, as leis da nacdo, mal conhecidas e pessimamente inter- pretadas, nio podem sempre ter aplicagdo razocavel e quasi nunca valem pelo seu prestigio ou valor in- trinseco. Os codigos civil, penal, comercial e tantos REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 385 -outros, que ultimamente tém sido discutidos, estio em evidente conflito com as condigées sociais da cultu- Ta sertaneja das caatingas, donde o desrespeito fla- grante que lhes vincula a estrutura ou 0 esquecimen- to relativo em que se acham. Os bons costumes, po- rém, os substituem, com mais ou menos eficiencia. Alguns exemplos bastam para a inteligencia do que dissemos. As prescrigées sobre tapumes, que o Cod. Civil define (Art. 588), ainda nfo foram obedecidas depois de 19 anos de vigencia da «lei». No sertao, nao ha quem se julgue obrigado a cercar terras de sua propriedade rural, para deter as proprias aves domesticas e animais, tais como cabritos, porcos, earneiros. Se os vizinhos sentem a nocividade des- ses animais, constroem tapumes especiais que ampa- Tam as suas lavouras e hortas. Em certas zonas, 0 furto de cavalos constitue crime gravissimo que exige repressio mais severa do que qualquer outro grande crime. Finalmente, sio muito mais numerosos os delinquentes contra as pessoas do que contra a moralidade, e estes, por sua vez, superam os delin- -quentes contra a propriedade. O direito penal do sertanejo difere um pouco do direito brasileiro, que nao prescreve a «vinganga pri- vada», tio amplamente praticada. Néoraro, 0 canga- ceirismo resulta dessas vingancas, em face da acdo ‘sempre negligente, incompleta, tardia e errada da policia ou da

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