You are on page 1of 56
Povoamento do Nordeste Brasileiro TH. POMPEU SOBRINHO I Os primitivos habitantes Quando 0s europeus chegaram 4s costas do Nor- deste, as primeiras descobertas no Brasil (1), encon- traram a terra abundantemente povoada. Mesmo o trecho mais agreste e drido, correspondente ao lito- ral cearense e riograndense do norte, era percor- rido por tribus selvagens que estacionavam nos pon- tos onde os recursos naturais eram menos escassos. Das praias do Mundai até além do delta do rio Par- nafba vivia uma nacaéo numerosa e ousada de la- puias, a dos indios tremembés, composta de homens fortes, eximios pescadores e valentes guerreiros. (2) No vasto territorio que medeia do rio S.-Fran- cisco a0 rio Parnaiba, compreendendo os estados de ()—Vicente Yafiez Pinzon, no dia 28 de Janeiro de 1500, chegou a um cabo da costa nordestina que. alguns historiogra- fos julgam ser o do Mucuripe, no Ceara, e outros, como 0 pro- prio Pinzon, dizem ser 0 de Santo-Agostinho, em Pernambuco. Dai seguiu pela costa para o norte, percorrendo o litoral. Poucos meses depois, Diego de Lepe também aportou no cabo de Santu-Agostinho e seguiu para o sul, 4 vista da praia. Portanto, quando Cabral, em abril désse mesmo ano, descobriu as costas da Baia, jad as do Nordeste o tinham sido completa- mente pelos dois navegadores espanhdis. (2)—F. dificil saber ao certo o nome déstes indios, Nas di- versas cronicas em que ha referencias a éstes tapuias, escreve- Se leremembé, taramembé, tremembee, tremembé, izomembé, etc. Pos- suiam grandes canoas, eram grandes pescadores,e mui robustos, diz o Pe, ivo d’Evreux, a ponto de segurarem pelo brago um dos seus inlmigos e Alirdrem-no a0 chéo, come se dese wm capao. 108 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ Alagoas, Pernambuco, Parafba, Rio-Grande do Norte, Cearé e Piaul, viviam duas grandes familias de ame- rincolas. Pela costa, que em parte vinham recentemente de conquistar, em alguns trechos do vale do S.-Fran- cisco e na extremidade norte da serra da Ibiapaba, dominavam indios tupis. Para o interior e em relacio com as praias do Rio-Grande do Norte, mas principalmente com as do Ceard, dominavam os indios da grande familia kariré. Porém, de permeio, tribus mais ou menos importan- .tes de outras familias se acantonavam, ocupando tra- tos diversos do territorio. Sobretudo gés e karaibas constituiam os mais notaveis representantes dessas familias. Outros grupos etnico-linguisticos, ainda hoje mal conhecidos (carnijds, etc.), e certamente outros de todo desconhecidos, ao lado dos kariris, gés, ka- raibas, habitavam os nossos sertées. (3) (3)—Do grupo fap/, os mais notaveis eram: ua serra da Ibiapaba, da altura do Ipt para o norte, 0s fabojoras; na costa, mais ou menos da barra do rio Jaguaribe 4 barra do rio Paraiba, 03 peéiguarcs; em Pernambuco e Alagoas, os caetés; no interior, perto do rio S.-Franciseo, 0s amoipirde e certamente os tupinaés. A lista numerando os divetsos grupos tapuias é enorme, Os mais notaveis eram os kariris, que habitavam latgos tratos do territorio baiano e sergipano, além do rio $.-Francisco, e aquém dos sertées de Pernambuco, da Parafba, Ceara e Piaul; entre os karofbas, a tribu dos pimenteiras devia ser a mais im- portante; entre as familias nfo consignadas nos trabalhos etno- graficos cumpre salientar a dos indios carnijés, denominagaio por que hoje se conhecem varias tribus que faiam um idioma se no pode incorporar aos grupos linguisticos conhecidos. En- tanto, as referencias a éstes amerincolas, mesmo as mais recen- tes, dio-nos como da familia kariré! As praias do Ceara, conquanto nao féssem permanente mente habitadas por indios éup/s, eram todavia por éles_percor- ridas, bem como também por algumas tribus Zapuics, tais a dos jeguoriguarce, paickés, etc.,além da dos temembés, que viviam ne- las constantemente, do Mundati para 0 norte, até além do delta do Parnaiba. Os caenijés, que, ainda atualmente, vivem em aldeias, no municipio de‘ Aguas-Belas, em Pernambuco, sio um grupo de varias tribus ou restos de varias tribus que conservam, com ad- miravel persistencia, partes notaveis de suas primitivas institui- gdes, dansas religiosas, linguagem, etc., apesar do contacto e re- lagdes com as. Populacses sertanejas mestigas que os cercam por todos os Jados E’ facil nos sertées pernambucanos, ainda REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 109 A populagao indigena, ac tempo dos descobri- mentos e primeiras exploragées, ndo devia ser tio reduzida somo se poderia supor, atendendo-se as cir- cunstancias climicas da regiao. Essa populacdo nao era escassa nem nomade, como certos historiografos deixam crer. A respeito dos lupis, pode-se ter uma pdlida idea do seu valor demografico notando-se o informe, quigaé exagerado, de velhos cronistas, cujos compu- tos pedem evidentemente criteriosa retificagdo. Dan- do os devidos descontos, avalia-se em cérea de 120.000 os habitantes que talavam a lingua geral e viviam nesse tempo du barrra do S.-Francisco 4 bar- ra do Parnafba. Efetivamente, Duarte Coelho, donatario de Per- nambuco e Alagoas, encontrou nas costas da sua ca- pitania uma consideravel quantidade de tribus indi- genas da valente e operosa nacdo dos caetés, gente belicosa, que muito trabalho e despesas infligiram ao capitéo e a seu filho. Em 1601, somente ao redor da vila da Paraiba (Felipéa), havia cérea de 14.000 pe- tiguaras aldeados. Em térno de Natai, também no comégo do seculo XVII, contavam-se 4 aldeias, onde existiam 300 guerreiros ou homens frecheiros, 0 que corresponde a uma populagio de 1.500 almas. No Ceara, 4 aldeies de indios domesticados continham namero consideravel de habitantes, pois somente em uma delas Martim Soares Moreno dispunha de 900 frecheiros, correspondentes a 3.600 almas. Nas adja- cencias do estabelecimento deviam morar entio, pelo menos, uns 10.000 indios. Na serra da lbiapaba, cuja tertilidade o Pe. Vieira tanto exaltou, existiam 70 al- deias de tabajaras, perfazendo aproximadamente 60.000 pessoas. . Junte-se, a éste total,de quasi cem mil amerin- agora, colher o nome de algumas tribus carnijée: falnié, cuja linguagem € mais ou menos conhecida, cakéna, iechrilé. walei- oss, ete. . O estudo da toponimia nordestina deixa supor que os in- dios da familia kariri dominavam quasi todo 0 territorio, da ba- cia do rio Paraguacu, na Baia, ds margens do Parnafba, no Piaut, ou mesmo além, em terras do Maranhdo. Mas, afora o testemu- nho insuficiente da toponimia, pouco é possivel achar para fazer uma rigorosa classilicagdo das numerosas tribus arroladas. i10 “REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ colas ¢éwpis, os representantes numerosissimos da raca que viviam ao longo da margem esquerda do rio S.- -Francisco ou nas suas ilhargas, no interior de Per- nambuco, para onde os colonos haviam enxotado uma grande porgdo dos primitivos habitantes do litorale das matas proximas, que vinham de desbravar. (4) Mais dificil € 0 cémputo da populagdo tapuia que scnhoreava 0 sertéo e as serras do interior, in- clusive a chapada da Ibiapaba,em boa harmonia com os tabajaras. Devia, porém, ser muito maior do que a populagéo tupt. Efetivamente, s6 po Cearé Soares Moreno d& conta da existencia de 22 nacdes! Por nossa parte, conseguimos colecionar o nome de 75 tribus dife- rentes de ¢apuias, a maioria das quais da nagio ka- rivi. Calculando que cada tribu, em média, contasse apenas com 4 aldeias ou malocas, o namero de in- dios nao podia ser inferior a 150.000. Ora, a relagao que compusemos evidentemente é deficiente. (5) (4)—Depois que Duarte Coelho voltou para Portugal, dei- xando na administracéo da sua capitania Jeronimo de Albuquer- qe, seu cunhado, os indios pacificados comegaram a fazer clan- lestinamente depredagées entre os colonos; devidamente casti- gados, a gente dos culpados e acusados passou-se para as ma- tas do cabo de Santo-Agostiniio. Mas de lA vinba hostilizar_os indios amigos perto de Olinda e na varzea do Capibaribe. Em 1560, volta 4 capitania o herdeiro de Duarte Coelho com seu ir- mao Jorge de Albuquerque e logo conceriam o exterminio dos caeiés do cabo de S.-Agostinho. Depois de anos de lutas, éstes indigenas foram desalojados e as terras que ocupavam reparti- das pelos colonos. Dai foi Duarte Coelho, 0 mogo, as terras do Serinhaém, que ainda estavam sob o dominio de caetés inimigos, desbaratou-os apés muitos e mortiferos combates. A maioria dos vencidos com suas mulheres e filhos fugiram para o sertdo. Desde entao, o trecho da costa até o rio S.-Francisco ficou pa- citicado. Os indios que ai habilavam fizeram pazes com 0s co- lonos, que, abusando da sua superioridade, u muitos cativaram. Entretanto, muitos também se retiraram para o interior, sobre- tudo para as margens do grande rio, onde haviam com facilida- de abuadante pescado. (5)—Martim Soares Moreno em 1611 fez boas relagées com «3 castas de tapuyas alli vizinhos», no Cearé, onde se_estabele- cera. Moreno anota também que o Ceara «tem em 70 legoas de circnito 22 nagées de tapuyas, diferentes lingoas» {in Relagdo do Ceara, Soares Moreno). Em agostvu de 1609, 0 Pe. Luiz Figueira, descrevendo as REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ Ait Parece nfio haver exagéro em admitir-se que o mimero de tapuias que viviam entre os rios S.-Fran- cisco c Parnaiba elevava-se a cérea de 180.000, os quais adicionados aos 120.000 tupés perfazem o total provavel de 300.000 amerincolas para o Nordeste, a0 tempo em que teve inicio a sua conquista. Esta populacdo dé para a densidade demograti- ca da regidéo meio habitante por quilometro quadra- do de supertiicie. Esta devia ser a base demografica sébre que se vieram enxertar elementos einicos de varias pro- cedencias, dando lugar ao atual povoamento, que se processou como pretendemos em seguida exami- nar. (6) dificuldades da missio do Maranhio, diz: «Do rio grande (do Norte), que é a ultima povoacio dos Portugueses, a0 Maranhio sio passante de tresentas legoas, todas povoadas de tapuyas salva- gens, que so tantos qué n&o tem conta.» Segundo informacées prestadas pelo chefe potiguara Ara- giba ao holandés Matias Beck, em 1649, na costa do Ceara, en- ré o estabelecimento dos batavos e o Camucim existiam 4 na- gdes de tapuias: iremembé, guanacé guagd, jaguariguari e a dos guanacé mitim. Elias Herckman, que conheceu pessoalmenie os tapuiss da Paraiba e do Rio-Gr. do Norte, escreveu em 1639 interessante monograiia sébre os seus costumes. Relere-se, porém, somente a4nagoes: karief,da Borborema; kariefwast, que nos parece serem as tribus que habitavam o sul do Ceara; kareryjus, @ a nacao ia raityd, cujo rei era Janduim. Diz que esta tiltima, particularmente sua conhecida, compunha-se de duas partes, aquela conduzida por Janduim e outra de que era chefe Caracaré. Os jandaim ha- bitavam ao ocidente do Rio-Grande do Norte. (8)--E’ curioso conhecer a populacéo nordestina nas suas grandes datas historicas com razoavel precis&éo. Os estudos ue temos feito neste sentido, usando as [érmulas classicas, dao resultados evidentemente muito grosseiros e em alguns casos verdadeiramente absurdos. Por isto, tlvemos de procurar uma formula que se ajustasse melhor ao caso em quest&o. Partindo da hipotese de que, ao inicio da colonizagao, deviamos possuir um lastro humano, indigena, de 200.060 almas que se incorpora- Tam na massa da populagdo, chegamos 4 seguinte equacaio : Px= $2 em que Px é a populacio que se procura na data tal, t anos antes de 1920, quando se fez o ultimo recenseamento. A iérmula no se aplica para datas recentes, de 1920 para ca. Aplicada ao ano de 1872, da para a populagac nordestina 2.800.000. 112 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ Il Os ciclos do povoamento nordestino No decurzo evolutivo do povoamento do Nor- deste h& que distinguir diversos ciclos, bem defini- dos e caracterizados, de importancia e desenvolvi- mento variaveis, alguns nitidamente marcados, per- feitamente delimitados, outros de contornos mal es- batidos. Alguns se interpenetram, sem que, todavia, percam o seu aspecto especifico. A caracterizacao déstes ciclos 6 fungio de di- versos fatores, que se compéem sempre numa resul- tante vetorial, mais ou menos facil de determinar Mediante uma andlise acurada dos elementos com- ponentes. A especificagdio que a seguir vamos tentar constitue apenas um primeiro ensaio, um esbégo de sistematizacgéo com que almejamos pér um pouco de ordem na confusa complicacéo de assunto tao im- portante quanto emaranhado. O PRIMEIRO CICLO DO POVOAMENTO. — 0 primeiro ciclo do povoamento nordestino inicia-se com © trafico de mercadorias entre nativos e es- trangeiros, ao longo de toda a costa. (7) Navios portugueses, espanhéis e sobretudo franceses (1504) percorriam o litoral, estacionavam em certos pontos, de ordinario ao abrigo dos es- Ora, o recenseamento feito naquele ano foi deficiente e acusou o total de apenas 2.522.000 habitantes. A populacao nordestina ao tempo dos diversos recensea- mentos foi, em 1870, de 2,5 milhdes; em 1890, de 3 milhdes; em 1900, de 3,5 milhGes; em 1920, de 6 milhées. (7)-O0 abandono do Brasil pela metropole, magnetizada pela fascinagio da India,concorreu poderosamente para que ou- tras nagées, que se lancavam ds aventuras do mar, sob 0 esti- mulo dos descobrimentos ibericos, visitassem as costas do Bra- sil e nelas pretendessem entabolar negocios com os nativos e Tixar bases solidas e duradouras. Foi, pois, éste abondono a cau- sa mediata do primeiro ciclo do povoamento nordestino. Du- rante muitos anos, quasi livremente, traficavam no litoral do norte estrangeiros de varias procedencias. Somente 27 anos de~ pois do descobrimento veio a primeira armada poticiadora, real- mente de alguma eficiencia, confiada a Cristovao Jaques. Se- guiram-se outras sem resultados animadores. REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 113 tuarios e das abras, onde os tripulantes entabolavam relagées com os indios dvidos das missangas, ave- lorios, machados e fazendas da Europa. Trocavam éstes artigos, muitas vezes de infimo valor, por va- liosos produtos da terra. (8) As costas do nordeste do Brasil, pela sua posi- cio geografica em relagdo com os portos da Europa ocidental de onde vinham os aventureiros, ofereciam as melhores condigées para éste intercambio, geral- mente clandestino. Por outro lado, a ingenuidade e incultura relativa dos amerincolas, que podiam ser rudemente explorados, e o grande interésse que os produtos americanos despertavam nos centros con- sumidores, onde aleancavam precos elevados, com- pensavam largamente todas as cansciras e todes os tiscos a que estavam sujeitos os que déle se ocu- pavam. A posigéio mais que tudo explica por que as costas do Nordeste, nos primeiros anos do descobri- mento, foram das mais frequentadas da America e das mais ambicionadas, algum tempo depois. Com as irageis embarcacées daquele tempo era mais facil abordd-las e exploré-las do que qualquer outra. Como era natural, Portugal intentou obstar éste escambo, que avultava e cada dia despertava maior interésse no estrangeiro e de certo modo ameagava a sua soberania (8). Mas, a despeito das providen- cias dadas, o tréfico proibido progredia de modo as- sustador. Os gauleses, mais que os outros povos es- trangeiros, deram enorme incremento aos seus ne- gocios nas costas nordestinas (9). Nio tardou que as (8)—Para obstar o comércio clandestino, os portugueses, além das armadas guarda-costas, intentaram negociacées diplo- matieas, também pouco proveitosas. Finalmente, pretenderam di- retamente fazer 0 povoamento da costa, ainda sem apreciavel exito. Com as donatarias e as conquistas consequentes do de- senvolvimeto de algumas foi que se logrou obstaculo mais serio e 0 consequente declinio déste coméreio. (9)—S&o escassos os documentos por onde se pudesse fa- zer uma idea da importancia do.comércio, clandestino ou nfo, das costas do Nordeste naquele tempo. Capistrano invoca o car- regamento da nau Bretoa, mas éste carregamento procede do Cabo-Frio. Quanto 4 nau Pélérine, diz Varnhagem: «Em quanto Mar- tim Affonso navegava pelo sul, féra ter a Pernambuco uma_nau de Marselha, com 18 pecas e 120 homens, denominada La Pélé- itd REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ exigencias crescentes do comércio francés recla- Massem estabelecimentos mais estaveis; daf as fei- torias que fundaram (Itamaracd) e a necessidade de deixarem em terra, entre os nativos, compatriotas para obter, acumular e bem dispor a carga dos na- vios que deviam demorar pouco nos portos, Soube- Tam captar a confianca dos natives com mais tino que os portugueses; conseguiram relagées mais amis- tosas e duradouras; inspiravam mais confianga. Cha- mavam-lhes os indigenas mair ou ayurujuba (papa- gaio amarele). Mas, além déstes agentes comerciais, também permaneciam longo tempo na terra, em contacto com os indios, desertores das armadas, gente de pro- eedencia a mais diversa, quer da Europa ocidental e meridional, quer mesmo da Europa central (10), de- rine, e armada 4 custa do Baraio de St. Blancard. Em lugar da feitoria portugueza, de 6 homens, que ali haviam ficado, fez o capitdo da Pélérine construir uma fortaleza provisoria, que dei- xoU guarnecida de 30 homes; e regressdra 4 Europa com uma carga, que montava a 5.000 quintaes de pau brasil, 300 de algo- dio ¢ 600 papagaios, 3.000 pelles de animaes, grande numero de macacos ¢ muitas bugiarias». Fstes artigos valiam em Franca: pau-brasil, 8 ducados 0 quintal; algodao, 10 ducados o quintal; cada papagaio, 6 ducados; uma pele, 3 ducados; um macaco, 6 du- eados. Segundo St.-Blaneard, a carga total valia 62.000 ducados, que, uv cambio atual, na nossa moeda, correspondem a 3.900 eontos de réis! Além dos artigos j& mencionados, ainda eram objeto de escambo: frutas, plantas, cacas, peixe séco, iburaquatiara, sa- guins, arlefatos das industrias indigenas e até os proprios in- dios reduzidos a escravos. Fm troeca, vinham da Europa certos tecidos, machados, fouces, facas, facdes, pas, cavadores, alavan- cas, pentes, espelhos, perolas de vidro, contas, alfinetes, aguthas, linha, anzéis, etc. Por uma fouce ou um machado o selvagem dava muitas vezes tudo quanto possuia. Os indios, porém, depois que adquiriram alguma experien- cia, revelaram apreciaveis qualidades mercantis. O comércio to- mou insremento sempre maior e nfo tardou que muitos objetos estrangeiros se tornassem necessidades imprescindiveis para o aborigene, tais, entre outros, os instrumentos rudimentares da lavoura, etc. | (10)—As desergées dos tripulantes eram t&o frequentes e importantes, que ao comandante da nau Breioa foram dadas se- veras instrugdes no sentido de preveni-las. Os naufragos e desertores, marujos dos navios, eram gen- te de procedencia muito diversa. Realmente, quando D. Rodri- go de Acufia, comandante da nau S.-Gabriel, da expedicéo REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 113 gredados lusos que a justiga do tempo mandava lan- gar 4s costas brasileiras ¢ ainda soldados das feito- rias portuguesas de Igaragu e Itamaraca. (11) Esta gente, homens sem mulheres da sua estir- pe, ao pisar a terra, logo entrava em relagdes se- xuais com as indias que lhe néo opunham a menor resistencia, seduzidas pelo aspecto singular mas atra- ente e a riqueza esquiva que ostentava. Porém, alora éstes forasteiros, contribufam tam- bém para a producgdo dos primeiros mestigos euro- americanos do Nordeste os marinheiros das armadas policiadoras e dos navios e frotas do comércio en- quanto, ancorados nos portos multiplos ao longo da costa, demoravam em negociagdes e carregamento, ou mesmo para refrescarem. Alguns desertores e degredados, porém, princi- patmente os agentes comerciais de Franca, se inte- gravam 4s tribus das mulheres a que se uniam. Um velho cronista do primeiro seculo do descobrimento, referindo-se aos franceses, observa e regista a ocor- rencia de muitos descendentes loiros, alvos e sardos, havidos por indios, mais barbaros do que éstes, nas- cidos nas costas nordestinas,.onde viveram e morre- ram como gentios. (12) . espanhola que, sob as ordens de Loyasa, destinada 4s Molucas, foi desbaratada no estreito de Magalhdes, veic tera Pernambuco, em 1514, trazia, segundo Navarrete, gente que pelos nomes de- iB ser portuguesa, castelhana, genovesa, biscafnha e napo- tana. (11)—Na feitoria instalada em Iguaragu, Crist6vdo Jaques deixara 12 homens sob o comando de Manuel de Braga, isto aproximadamente em 1514. Além desta, Pernambuco teve outras feitorias antes da vinda de Duarte Coelho. Cristévio Jaques chegou 4 ilha de Itamaracé em 1526 e af por perto j achara um comégo de povoagdo que tratou de animar. Em ponto conveni- ente justalou uma feitoria (Marcus), construiu uma casa e deu outras providéncias, seguindo depois para Pernambuco, onde ins- talou outra feitoria, que devia servir de sede 4 atministragaéo da colonia. Ai encontrou o Capitéo Pero Campico, que fez trans- portar para Portugal com todi a sua grossa tazenda. Voltando do sul, onde levara a sua expedigao, encontrou navios franceses que meteu a pique e levou para a teitoria de Pernambuco cérea de 300 prisionciros franceses. (12)-Gabriel Soares, in 3.190.000» 32,1 Paraiba § > 1,370,000» 245 Rio-Grande do} Norte 52.400 2 756.000 > 14d Ceara 151.990» 1,952,000 > RS Totais e média) 388.110 » 8.617.000» 22,7 Este quadro mostra que a maior densidade de- mogratica esta em Alagoas, seguindo-se em ordem decrescente Pernambuco, Paraiba, Rio-Grande e Ceara. E’ curioso observar que as maiores densidades estio nos estados que possuem a faixa litoranea con- tinuamente humida e de maior largura, e decrescente para o norte, quasi proporcionalmente a essa lar- gura. A distribuigaéo demografica, resultante de varios fatores propulsivos e atrativos do povoamento, mos- tra-se muito irregular. Désses fatores ha que subli- nhar em primeiro lugar o complexo de causas cos- micas que caracterizam as diversas zonas que inte- gram o vasto territorio nordestino. A inspecoado da carta demografica mostra uma grande concentragéo humana ao longo da costa, das margens do rio §.-Francisco até o Ceard-mirim, no Rio-Grande do Norte. Nenhum municipio ai tem me- nos de 20 habitantes por quilometro quadrado, sendo que entre Maceié e Cabedelo, trecho o mais largo desta 4rea de concentragado,a densidade por muni- cipio nfo cai nunca abaixo de 40, podendo atingir frequentemente mais de 100 e, excepcionaimente, mais de 500, como nos municipios de Recife e Olinda, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 143 Muitas comunas de Pernambuco, varias de Ala- goas, algumas da Paraiba e uma unica do Rio-Grande tém de 100 a 200 habitantes por quilometro quadrado. Esta faixa, que é um dos lugares mais populo- sos do Pais, enquadra-se entre a Borborema ea praia. A curva do nivel de 300 metros (altitude) corta-a desde Alagoas até as extremas da Paraiba, onde passa a lhe marcar os lindes ocidentais. Ao entrar no Rio- -Grande, esta curva foge para oeste, ao mesmo passo que a faixa populosa se contrai, perlongando o mar. Além desta grande concentrag&o humana, no- tam-se mais trés outras, de extensio muito mais re- duzida e de densidade demografica também muito in- ferior. A mais notavel localiza-se em torno de Fortale- za (Ceard)}, entre a serra de Baturité (inclusive) e o oceano. O municipio da capital do Cearé tem mais de 300 habitantes por quilometro quadrado e sébre aquela serra hé zonas em que a populagao relativa varia de 60 a 80. Em seguida, distinguimos a importante concen- tracéo do «Carir{», no extremo sul do Ceara, que in- teressa também em trechos reduzidos os estados li- mitrofes. Compreende o célebre vale do Cariri, as regides circunvizinhas até a Paraiba e Pernambuco (Novo-Ext). O trecho mais densamente povoado é o proprio vale do Cariri, com municipios cuja densida- de 6 superior a 40e atéa 100, como odo Juazeiro. O municipio de Triunfo, em Pernambuco, poderia ser considerado desta concentragéio, embora esteja dela separado por um espaco de sertéo fracamente ha- bitado. A Ultima concentragéo digna de aprégo é 2 da «Ibiapaba>, nos confins ocidentais do Cearé. Com- preende uma grande regifio da Serra-Grande ou Ibia- paba, ao norte do lugar S.-Gongalo da serra dos Co- cos, e estende-se pelo lado do sertéo, indo abarcar as serras do Rosario e Meruoca, perto da cidade de Sobral. Nos principais municipios da zona a densi- nade varia de 20 a 40, A carta demografica revela que a zona propria- mente chamada «sertio», das margens do rio 8.-Fran- cisco ao litoral norte do Ceara, contornando o vale 144 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ do Cariri, 6 de escassa populagdo. Geralmente, a den- sidade ai mantém-se inferior a 10, podendo, todavia, mas raramente, subir a 20. Os trechos menos habi- tados do sertio correspondem 4s regides mais 4ri- das, onde quasi s6 é possivel uma precaria indtstria pastoril. Ndo formam manchas continuas, mas estdo espalhados irregularmente e alternam algumas vezes com zonas de densidade relativamente elevada. No Cear4, na faixa limitrofe com o Piauf, entre os mu- nicipios de Cratets e Campos-Sales, cuja populagio relativa 6, em ambos, de 6, estéo os municipios de Independencia e Taud, com densidade apenas de 3. Numa das regides mais agrestes do Nordeste, nas margens do S.-Francisco, a densidade demografica cai abaixo de 5 e pode mesmo ser de 1, como no municipio de Moxoté. Entretanto,interposto aos muni- cipios de Boa-Vista e Belém, esté o de Cabrobdo, com a densidade de 11. No litoral, o municipio de mais fraca populagao relativa é ode Touros,no Rio-Grande do Norte; segue-se o de Itapipoca, no Ceara, coma densidade de 8, Os fatores principais desta caprichosa distribui- gao demografica devem ser de ordem geografica, psicologica e historico-social. Atuaram na sua gene- se e desenvolvimento concomitantemente, numa es- treita interdependencia, ora com a predominancia de um, ora de outro, porém sempre sob a orientagéo mais ou menos precisa, tragada pelos primeiros que deram, além de um sentido Jargo, energias suficien- tes para que o processo social-historico, inclusivé o fenomeno das concentragées referidas, pudesse evo- luir como evolufu. N&o € possivel estudar estas concentracées hu- manas na sua formacéo, considerando isoladamente a influéncia de cada um déstes fatores, tais sio as relagdes de dependencia que ligam uns aos outros. Uma concentragéo humana é fenomeno que se enquadra no dominio da geografia humana e, por isto Mesmo, raramente esté sujeito a uma clara aprecia- g&o de causalidade proxima, evidente, como, ao con- trério, ocorre nos fatos de ordem fisiografica; resta apenas condicionado a uma apreciagaéo de relagées mais amplas e abertas ou mais elasticas, nas quais, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 145 em vez de um determinismo necessario, distinguem- -8e antes conexdes mais ou menos complexas. O elemento psicologico é 0 gérmen,a origem do fenomeno; mas, do meio cosmico éle tira energias e recebe uma orientagiio possivel, isto é, encaminha-se segundo um sentido mais ou menos determinado. Nao € somente do meio fisico que aufere energias. Estas promanam também do meio social e historico, numa intima colaboragao com aquele. CONCENTRAQAO PERNAMBUCANA.—Ja defini- mos sumariamente os principais caracteristicos desta concentragéo humana; importa, porém, insistir, de- senvolyendo-os. Se, na carta demografica do Nordeste, abarcas- semos Com um traco vivo os municipios cuja densi- dade demografica na zona desta concentragdo é maior de 50, teriamos uma parte nuclear, mais densamente habitada. Este nucleo margina o Atlantico e esten- de-se por 360 quilometros de comprimento, de Maceié a Cabedelo, e limita-se a oeste pelos municipios per- nambucanos de Bom-Conselho, Garanhuns, Altinho, Belo-Jardim, Caruaru, Vertente, Surubim e S.-Vicente e pelos municipios paraibanos de Campina-Grande, Alagoa-Nova, Areias, Bananeiras e Caicuras. Ao sul, nfo atinge as margens do S.-Francisco; mantém-se nos municipios de Vitéria, Anadia, Atalaia, Pilar e Alagoas. A sua drea sobe a cérca de 40.000 quilo- metros quadrados. Envolvendo éste espago, desdobra-se uma faixa de terras ainda muito povoada, com densidade su- perior a 20, mas inferior a 50, parte integrante da concentragéo que é o objeto déste estudo. A superficie da concentracdo pernambucana vai, pois, das margens do rio S.-Francisco ao Cearé-mirim pela costa e limita-se, ao poente, com os seguintes municipios que ela compreende: no estado de Ala- goas, Piranhas e Santana; no de Pernambuco, 8.- -Bento, Rio-Branco, Pesqueira, Brejo e Taquaratinga; na Paraiba, Umbuzeiro e Araruna; no Rio-Grande, Nova-Cruz, Santana, Macaiba, S-Gongalo e Ceara- -mirim. Com o comprimento de 570 quilometros de norte a sul e largura maxima de 220, mede cércade 75,000 quilometros quadrados. 146 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ A carta hipsometrica do Nordeste mostra que a maior porgdo desta superficie esta abaixo da curva de nivel de 300 metros; mas, a oeste, vai esbater-se contra o macigo da Borborema, ganhando altitude que, todavia, nao atinge 1.000 metros. Da encosta oriental desta serra, que recebe na estagdo propria os vapores aquosos do mar, defluem numerosos mananciais dagua de pequeno curso, mas alguns so perenes ga se tornam perenes de certo ponto para jusante. Estes rios e riachos recebem a contribuigéo de muitas fontes permanentes na zona da mata e irrigam suficientemente a regiao a que chamamos nuclear. Abriram os rios no macico da Borborema vales mais ou menos profundos, cujos divisores de agua constituem algumas vezes,na sua parte superior, espigdes e contrafortes da serra, pro- jetados para SE. em Alagoas e para L. em Pernam- buco e Paraiba. O solo, nos vales mais ou menos estreitos, 6 aluvional nas margens dos rios, coluvial ou eluvial nas encostas e cumiadas; argiloso, avermelhado e suficientemente profundo. Néo hé no Nordeste zona tao ampla mais plu- viosa, nem mais humida. A isohietica de 1.000 mili- metros corta-a de norte a sul e limita uma faixa lito- ranea que vai de Natal aorio S.-Francisco num ponto acima de Penedo, com largura pouco variavel, mas que atinge em alguns lugares 50 quilometros. A isohietica de 800 milimetros limita faixa ainda mais larga. Porém a cinta ao poente é de traca pluviosi- dade ou de pluviosidade média, deficiencia em parte compensada pelos brejos e vales frescos, mais ou menos abrigados dos ventos dissecantes, na encosta oriental da Borborema. A isotermica de 23° da temperatura sensivel cor- ta toda a regido longitudinalmente; mas, a tempera- tura média conserva-se entre 240 C. e 270 C. Na ca- pital da Paraiba, a temperatura varia de 160 a 33% em Nova-Cruz, no Rio-Grande, de 140 a 870; em Ja- boatéo, de 170 a 350; em Nazaré, de 110 a 350; em Pesqueira, de 130 a 360;em Garanhuns, de 100 a 380 (Pernambuco); e Maceié (Alagoas), de 180 a 360, REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 147 A humidade relativa média 6 para toda a zona de 80 %. Tais qualidades fisicas indicam condigdes pro- picias a um intenso desenvolvimento agricola, Cum- pre observar ainda que a baixa latitude, a situagio no extremo oriental da America do Sul, entre um macigo montanhoso e o mar, a conformacgaéo muito mais desenvolvida no sentido norte-sul, isto 6, orien- tada no sentido do Oceano e relativamente fraca no sentido transversal, o queimplica num contacto maior e mais intimo com o mar; um relévo do solo apre- ciavelmente suave, sem acidentes que dificultem qual- quer trabalho rural; uma fitogeografia primitivamente rica, com predominancia de largas associagdes flo- restais, ndo tio densas e agressivas como na Ama- zonia, representam um actmulo de elementos sobre- Mmaneira ajustados 4 larga e intensa exploragao agri- cola, caracteristicamente equatorial ou supertropi- cal no genero das que,no XVII seculo, tanto desper- tavam o interésse economico’ da Europa ocidental. Ai, apés a revelacio da India, as gentes abastadas se tinham acostumado e haviam tomado gésto parti- cular pelos produtos da maravilhosa peninsula asia- tica. O agucar, especialmente, pelas suas qualidades e aplicagdes se tornara artigo de grande procura e, consequentemente, objeto de animado e rico comér- cio. Porém, a regiio quente e humida (n4o superhu- mida, como no vale do Amazonas), bastante ilumina- da, fertil e de enorme capacidade agricola que vi- . mos de considerar, produzia artigos de muita esti- macado, alguns dos quais eram desconhecidos na In- dia e deviam oferecer, como de fato ofereceram, no- tavel contribuigdéo 4 economia desta concentracdo hu- mana, em varias fases da sua formagio. O arguto donatario da terra estabeleceu-se no Jocal mais conveniente 4 exploragdio gue ia empre- ender. Sabia bem a importancia do actcar, que jé prometia muito e devia ser facilmente fabricado na sua vasta donataria, terra que oferecia com a India muitos pontos de semelhanca. N&o tardou, pois, a dar o exemplo bom, plantando cana e levantando engenho. Seus parentes o imitaram, e em breve outros colonos, estimulados pelos resultados animado- 148 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ res da incipiente industria, montaram fabricas de agdcar, Com pouco tempo a zona entéio explorada era insuficiente; alargou-se e rapidamente atingiu os li- mites impostos pela economia da propria industria. O fato determinou um movimento de expansdo, que deu em resultado a conquista do litoral paraibanoe parte do riograndense. Cedo, porém, se verificou a impossi- bilidade de ampliar muito por af a area da cana, por falta de condigées fisicas das terras. Para o sul, ti- nha-se atingido a regido do rio S.-Francisco e, além déste rio, tudo estava sob o dominio baiano. Para o interior, a barreira 4rida da Borborema e os tapuias temerosos impunham um limite intransponivel. Desta maneira, formou-se ali uma concentragaéo humana que desde o inicio j4 trazia vigorosos ger- mens de vitalidade. A proporcéo que o nimero de habitantes crescia e éstes se acumulavam, densifican- do-se no interior das terras de cana, mais estas pro- duziam, trabalhadas de modo mais intensive e por- ventura mais aperfeigoado pela fixagéo de experien- . Cias uteis. Aliando-se os fatores psicologicos aos agentes cosmicos, que vimos de apontar sumariamente na feitura desta concentragao, cumpre enumeré-los, em- bora ainda mais resumidamente. De seu conjunto ressaltam evidentes, de facil apre- ensfio, 0 gésto e a moda que os produtos agrico- las e florestais da India criaram e refinaram nas po- pulagdes da Europa; o caréter, a inteligencia eo sen- so prético do donatario Duarte Coelho e dos seus su- cessores; os privilegios e favores que o Govérno da Metropole outorgava aos senhores de engenho para estimular a sua atividade na producdo do aguicar, que tanto rendia ao erario. A interdependencia déstes fatores deve ser sub- linhada. Se aterra, pela sua excepcional posigéo e qualidades agricolas, néo tivesse indicado os rumos possiveis de exploragdo, se nio produzisse com faci- lidade e economia a cana de acicar, nem o apetite déste, por mais exigente que fésse, ou 0 Seu consumo, por mais avultado que se mostrasse, nem a_ energia e boa orientagdo das administragées coloniais teriam REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 149 conseguido o que de fato conseguiram. E, vice-versa, se a terra houvesse embora sido ainda mais propicia e dadivosa no sentido em que o fora, nada se teria obtido sem aquele gésto pelas cousas da India, maxi- mé pelo acticar que Pernambuco podia produzir; sem uma orjentagéo administrativa exemplarmente ajusta- da 4s condigdes locais e sem, talvez, os favores dis- pensados aos senhores de engenho para que se ligas- sem firmemente 4 terra e aumentassem a exploracdo de sacarose que tantos reditos proporcionava ao rei, 6 de crer nao teria a concentragio pernambucana adquirido, mesmo aproximadamente, 0 aspecto e o desenvolvimento que tem. Mas, ainda assim, as couses nao teriam seguido o rumo que tiveram ea concentragéo atual nao apre- sentaria a forma nem a importancia que ostenta hoje se, além dos fatores fisico-psiquicos, outros, de natu- reza diferente, deixassem de interferir. Importa con- siderar também os agentes socio-historicos. Uma. concentragéo humana que vem de se fir- mar solidamente a uma determinada terra tende a crescer, a densificar-se e, mercé déste processo, cria energias, isto 6, aproveita fontes novas de energias, que sabe transformar em seu proprio proveito. Real- mente, as necessidades que mal se manisfestavam tornam-se imperiosamente crescentes e se somam a outras que vém surgindo por efeito da propria densi- dade maior do agregado humano. Estas necessidades provocam a importacéo de elementos industriais no- vos, invengdes anonimas de cousas e fatos uteis e, finalmente, uma atividade variada, porém de melhor rendimento. Foi justamente isto que se verificou em Per- nambuco, no correr da sua integrac¢do social. , A sociedade colonial que alf se instalou nos primeiros anos prosperou e dilatou o seu ciclo social. De principio, sob o estimulo geografico e psiquico que examinamos. Mas, logo, 0 grupo humano, num esférco indefinidamente renovado, faz, por, sua vez, geografia. A sua acio sdbre a superficie da terra torna-se cada dia mais aparente, mais ampla, mais evidente, mais profunda e mais importante. As matas ou florestas alterosas desaparecem e sio substitufdas 150 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ pelos grandes canaviais; edificacées de varias espe- cies surgem por toda a parte; as casas grandes com as suas senzalas, as vilas e cidades com as suas ruas @ igrejas aglomeram habitantes, intensificando e con- centrando o comércio e as industrias; caminhos e es- tradas encurtam as distancias, Esta atividade de cardter principalmente econo- mico, se bem equilibrada, 6 puramente social. Mas, aqui, o fenomeno de adaptagao social nio teve mar- cha normal; quebrando o ritmo do funcionamento social, trouxe perturbagées sensiveis 4 evolucdo do agrupamento. A particular energia produtiva da terra para a cultura da cana e a excelencia dos merca- dos consumidores determinaram uma situagdo ex- cepcional e perturbadora para o processo de adapta- gio economica; vieram como que forgar a producdo do agucar, a tal ponto, que apenas éste produto dos engenhos de Pernambuco, Itamaraca e Paraiba (4rea da concentragéo pernambucana) rendiam mais 4 co- roa lusitana (seculo XVII, comégo) do que todo o comércio da India! FE’ claro que uma tal situacdo de prosperidade atrai forasteiros que vém adensaro nucleo humano. Colonos de Portugal e de outras capitanias acorre- ram para a regiao das canas, dando lugar a excep- cional atividade produtiva. Esta insolita atividade economica, sem que, do mesmo passo, a acompa- nhassem os demais elementos adaptativos da socie- dade no seu dinamismo, néo podia deixar de promo- ver um complexo fenomeno historico, rico de con- sequencias e diferenciagdes importantes, Uma destas consequencias foi, sem duvida, a in- vasio e ocupacdo holandesa. Este acidente historico, bem estudado e considerado no tempo através do periodo colonial, proporcionou resultados antes bene- ficos do que realmente depressivos, sob 0 aspecto especial do desenvolvimento da concentragao per- nambucana. Abriu amplas e ineditas dissimetrias, que produziram novos estimulos de trabalho e canaliza- ram consideravel fluxo de energias novas. Evidentemente, a guerra holandesa apressou a penetracéo e a conquista dos sertdes, cousa que de h& tempos se reclamava com pouco exito e vinha REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA' 151 de se tornar verdadeiramente imperiosa para atender a, instante procura de gado e béstas para os enge- nhos e abastecimento dos povoados importantes. As relagGes de toda a especie de Recife coma Holanda e pracas comerciais de outros paises estrangeiros criaram o esbé¢co de uma mentalidade nova, impre- vista na colonia. Como que o mundo vinha de ser revelado aos pernambucanos. Aparecem os prédomos de certa rivalidade entre a capital, onde um regimen liberal se modulava debilmente, e os engenhos com o seu sistema de férrea autoridade; era o inicio de uma dissimetria que mais tarde teria de dar lugar a interessantes conflitos de cardter historico. Assim, compreende-se como, com a exploracdo do sertéo, a populacio das terras de cana péde obter elementos de maior vitalidade; péde crescer ainda mais e, portanto, adensar-se também e arrastar empés as consequencias déste fato. Este (nico exemplo da influéncia dos fatores his- toricos pa formagao e evolugéo da concentragio em aprégo basta para ilustrar ensaio tao sumério. Outros fenomenos caracteristicamente historicos poderiam ser induzidos da observacaéo das ocorren- cias verificadas e devidamente analisados sob o as- pecto das suas relagdes com aquela formagiio e evo- lugéo. Uns agiram positivamente, outros negativa- mente, mas é certo que a resultante, evidentemente de natureza vetorial, se manteve sempre ou quasi sempre positivamente. Do contrério, seria dificil compreender que, atualmente (1935), nessa 4rea relativamente pequena se comprimisse uma populacdo superior 4 metade de toda a populagdo nordestina (de Alagoas ao Cearé). A concentragaéio pernambucana conitém 5.076.000 habitantes, correspondendo 4 densidade de 70. Esta populagao representa 52,7% da populagao total dos estados que vimos de considerar,de Alagoas ao Cea- rd, e 76,1% do total da populagdo dos estados nela jnteressados, de Alagoas ao Rio-Grande do Norte. Tem-se idea mais ou menos nitida de um tal aciimulo humano e também da energia dos fafores 152 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ que o determinaram, considerando que nele vivem trés quartos dos habitantes de Alagoas, Pernambuco, Paraiba e Rio-Grande do Norte. O quadro seguinte pode dar lugar a interessan- tes comentarios de ordem social, que nos eximimos de fazer, para néo mais alongar o assunto. Popul. na Area do P Poreantagem sobre « coneentractio ESTADOS Populagao popul. tote! Pernambuco | 3.190.000 2.678.000) 83,7 % Alagoas 1.349.000) 1.247.000) 92,4 %, Paraiba 1.370.000 902.000 65,8 % Rio-Grande 756.000 253.000 33,5 % Totais 6.515.000) 5.076.000, 76,1 % OUTRAS CONCENTRACOES. -— As trés outras concentragées referidas sio muito menores, quer quanto 4 area ocupada e o valor demografico, quer quanto ao aspecto social e historico. Todas elas se localizam no Ceara e sdo, na ordem de importancia: a conventragéo de FORTALEZA, que se desenvolveu em torno da capital cearense, primitivamente Forte; a do CARIRI, que tem por base territorial principal- mente o vale domesmo nome,no sul do Estado, mas interessando ligeiramente os estados vizinhos de Pernambuco e Paraiba; e, finalmente, a concentragio da IBIAPABA, na serra déste nome, mas que tam- bém compreende trechos dos sertées contiguos. 1 Todas disp6em de uma estrutura territoria muito diferenciada e, como acidente geogralico de importancia, montanhas elevadas e frescas, de onde fluem mananciais perenes. CONCENTRAGAO DE FORTALEZA. - Os fatores fisicos desta concentragdo sobrelevam aos demais. Realmente, ao longo de toda a extensa costa cea- rense nio hé outra regiéo mais bem diferenciada REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 153 do que o triangulo de Fortaleza, zona enquadra- da entre o mar, a serra de Baturité (inclusive), as serras de Aratanha e Maranguape (ambas nele com- preendidas) ¢ 0 vale inferior do rio Chord. A érea 6 bastante reduzida, pois naéo excede 5.270 quilometros quadrados, ou sejam apenas 14% da drea da concentragdo pernambucana. A zona abar- ca duas pequenas bacias hidrograficas, cujos forma- dores de cabeceira sio perenes {rios Cearaé ou Ma- ranguapinho e rio Pirangi}. Na serra de Baturité hé& corregos perenes, que alimentam uma regular frescura e permitem, como nas serras de Aratanha e@ Maranguape, certas culturas de longo ciclo vege- tativo (cana, café, fruteiras). A carta das chuvas anuais mostra que ai esta a regiao mais pluviosa do Estado. A isohiética de 1,000 milimetros envolve quasi toda a superficie, mas, dentro da d4rea envoivida, se assinalam man- chas de pluviosidade que atinge 1.500 milimetros. A carta hipsometrica revela que a regifo é em gran- de parte montanhosa, com altitudes que excedem 900 metros e picos que atingem 1.000 metros. Do amplo maci¢o montanhoso de Baturité ¢ das serras de Aratanha e Maranguape descem riachos que, nos anos normais e de chuvas abundantes, cor- rem quasi todo o verio, e outros que séo realmente perenes até certa distancia na planicie (Pacotf, Ara- coiaba, Guaitba, etc.). Os espigdes da serra de Baturi- té, voltados para leste, e os vales que se interpdem entre as serras de Maranguape e Aratanha e esta e a de Baturité, bem como os numerosos vales abertos no recesso do macico desta Ultima, foram outrora cobertos de densas florestas dridticas. Hoje, quasi inteiramente despidos de matas, éstes vales ainda bastante humidos sio disputados para o plantio de cana (Acarape, Maranguapinho, Candeija, Aracoiaba, Potia, Agua-Verde, Bau, Itapai, ete.). A composigao variada do solo concorre para uma variagaéo ainda maior do tapete vegetal. Por outro lado, ha que notar a harmoniosa dis- posig&éo das serras e planicies, que facilita as co- munica¢ées. Desde os primeiros anos da exploracéo, os colonos abrigados 4 sombra protetora do Forte e 154 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 0s indios catequizados das aldeias circunvizinhas podiam manter suas culturas de legumes, cereais, mandioca e algodio a trés e mais leguas de distan- cia, nos sopés das serras de Maranguape e Aratanha, em solos coluviais ou aluviais dos corregos, ainda hoje estimadissimos pela sua fertilidade. A diferenciagéo e os contrastes fisicos acen- tuados explicam a razdo por que o nucleo primitivo (durante os primeiros tempos muito debil), que se organizou ao redor do fortim, péde vingare evolver. Outros nucleos contemporaneos ou mais ou menos contemporaneos que surgiram na costa, alguns até mais bem iniciados, ndo conseguiram exito; desapa- receram ou deram precarias e magras aglomeracées, O Forte, hoje a cidade de Fortaleza, foi, desde os tempos coloniais, escolhido para capital do Cea- ra, embora a barra do Jaguaribe ja fdsse conheci- da pelos precursores da conquista destas paragens. A concentracéio comegou, como € natural, pas- sivamente, hesitantemente, sob o estimulo unico da terra que Soares Moreno, 0 seu primeiro explora- dor, julgava muito capaz; mas, cedo, conflitos diver- sos vieram perturbar a paz dos colonos e soldados: indios ameacadores, por vezes, faziam devastadoras excursdes pela vizinhanga; a ocapagiio holandesa que permitiu um certo conhecimento do interior, a exis- teneia de prata e salitre; rivalidades entre povoagées incipientes (Cearé e Aquiraz) criando e mantendo es- timulos; contactos com indigenas de etnias diferentes (tupis e tapuias); ascendencia moral imposta pelas autoridades administrativas; a irradiagio de energias para oS novos povoados que se iam formando den- tro da zona e fora dela, além das fronteiras, com a conquista e exploragdo progressiva dos sertées, onde a criag¢do de gados logo tomou grande incremento, etc., constituem diferenciagdes de ordem humana, fa- tores psicologicos, historicos e sociais que concor- riam para reforgar e firmar mais solidamente o ho- mem 4 terra. A interpenetragéo consequente crescia e inten- silicava-se progressivamente, dando lugar a uma me- Jhor adaptagaéo do agregado humano. A influéncia po- Iitica e economica foi conquistando espago e péde REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA' 155 ser Jevada aos confins da capitania e chocar-se com as influéncias das capitanias vizinhas que também se expandiam. Com os recursos auferidos desta dilata- gio de influéncia, a concentracao de Fortaleza alar- gou-se ainda mais no espago e nao tardou que atin- gisse os limites decretados pelas condigées geogra- ficas. Denire os agentes mais eficientes desta concen- tracéoa cumpre destacar o contraste da zona com os sertdes circunvizinhos que se estendem quasi inde- finidamente para o interior. Este sertio, por sua vez, oferece contrastes frisantes; tio ameno e criador ao tempo das chuvas, quanto agressivo e esteril ao tempo das sécas, tio virente e alegre na estagdéo hu- mida, quanto desolado e triste no veréo. Quando as sécas ocorrem mais rigorosas, expulsam numerosos habitantes dessas paragens, onde minguam todos os recursos necessarios 4 manutengdo da vida. Bandos de relirantes abandonam os lares, e famintos, pelas estradas sem so! procuram as regides que o fla- gelo poupou, privilegiadas, tais as de concentracio humana, principalmente as do litoral, que gozam da vantagem de receber mais cedo e mais fartamente os socorros promovidos pelas administragdes. Mesmo nes anos mais ou menos normais, o sertéo fornece 4 concentragio da capital cearense apreciaveis con- tingentes de habitantes, atraidos ou seduzidos pela vida urbana, que Ihes parece mais confortavel. Numa superticie de 5.270 quilometros quadrados, vivem (1935) 334.600 almas, correspondendo 4 den- sidade demografica de 63,5. Af ests, pois, 17% dos habitantes de todo o Estado, porcentagem que tende a aumentar com o desenvolvimento industrial da Capital, o refinamento da civilizagdo nos centros populosos da concentracao, facilidade de comunica- goes com o interior e intensificagdo das relagdes urbano-rurais. CONCENTRAGAO DO CARIRI.—Desenvolve-se por uma superficie maior do que a da precedente, 11.210 quilometros quadrados, e comporta 354.500 ha- bitantes. A base territorial compreende o vale do Cariri (foco inicial), os terrenos acidentados para o norte 156 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ déste vale, inclusivé a serra de S.Pedro e ou- tras de menor importancia, até o municipio do Igua- ta; para o sul, trechos da serra do Araripe e o muni- cipio de Novo-Exi, em Pernambuco; ao poente, li- mita-se com a serra dos Quincuncds e para leste es- tende-se irregularmente, aleangando os municipios de Cajazeiras e S.-José das Piranhas, na Paraiba. A diferenciag&io fisica da regido é€ notavel, e como acidente geografico particularmente interes- sante cumpre indicar o proprio vale do Cariri, com 08 seus numerosos correntes perenes, 0 seu solo calcareo e muito fertil, que permitem extensa e exuberante lavoura de cana, e, finalmente, com a sua privilegiada situagéo a pouca distancia das fron- teiras de trés estados (Pernambuco, Paraiba e Piauf), zona naturalmente ativa. HA que referir também @ curiosa chapada do Araripe com os seus piquizais € uma extraordinaria lavoura de mandioca; as re- gides algodoeiras que se dilatam até as varzeas do rio Jaguaribe, no municipio do Iguati; os pequenos mas fertilissimos vales de Varzea-Alegre, que pro- duzem em excelentes condigdes grandes safras de arroz. Fora do triangulo de Fortaleza, 6 @ zona mais pluviosa do Cearé. A maior porcio é abarcada pela isohiética de 800 milimetros, mas ha trechos consi- deraveis em que as chuvas médias anuais variam de 800 a 1.000 milimetros. Ressalta 4 primeira vista a enorme importancia dos fatores fisiograficos na genese e crescimento desta concentracéo humana taéo afastada do mar (cérea de 600 quilometros). Porém, importa nao es- quecer o fator psiquico-social de grande péso tan- to na acomodagao interna do agregado humano, quan- to na sua morfologia e no seu especial e rapido desenvolvimento. Trata-se particularmente do fator religiao, A influéncia religiosa, que, orientada por um sa- eerdote inteligente, habil e de peregrinas virtudes, se tornou prepondérante no fim do seculo proximo passado e coméco do fluente. Entre os processos adaptativos sociais naquele meio rude—sociedade quasi incipiente ou ao menos muito rudimentar—era, eletivamente, 0 mais capaz de manter e consolidar REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 157 a coesio da comunidade. Deve-se a éste processo de adaptacdo social importante contribuigao para expli- car o rapido e consideravel crescimento demografi- co da regiao, sobretudo nos municipios de Juazeiro, Crato, Barbalha e Missdo-Velha. Constituiu atrativo irresistivel, que encaminhou ao vale do Cariri foras- teiros sem numero, oriundos de todes os estados do Nordeste e mesmo de outros mais distantes (Goiaz, Maranhdo, Bafa, etc.), dos quais muitos 14 se fixa- vam definitivamente. Todos os que chegavam eram portadores de energias, sob formas diversas (trabalho humano, dinheiro, fanatismo, etc.); estas, incerpora- das #0 meio social, logo entravam num processo de transformagao preponderantemente util & comuni- dade . O vale do Cariri, isto 6, o vale superior do rio Salgado e do seu afluente Cards, representa 0 cen- tro de gravidade da concentragéo. Os municipios beneliciados por ésse vale tém consideral densida- de demografica: Juazeiro 122, Crato 39, Barbalha 58, Missao-Velha 38 e S.-Pedro 40. CONCENTRAGAO DA IBIAPABA.—Fica nos con- fins ocidentais do Ceara, mas nfo interessa ao es- tado limitrote do Piauf. Compreende os municipios serranos de Ubajara, [biapina, S.-Benedito e Ip e os municipios sertanejos de Massapé e Sobral (inclusive Cariré). A superticie territorial mede 8.900 quilome- tros quadrados e contém 216.100 habitantes, sendo a populacaéo relativa de 24,3. Na ordem fisica os agentes mais importantes se enumeram: elevada pluviosidade (mais ou menos como no Cariri) na parte serrana donde derivam rios de certa importancia, tributarios do rio Acarat (Jai- paras, Juré, Jatoba, ete.}; notavel diferenciagao geo- grafica (serra da Ibiapaba com os seus dois aspectos caracteristicos, de propriedades tio diversas—o car- rasco séco e agreste,e a cinta, fresca e amenissima); grande namero de corregos perenes (Suguanha, A- rabé, Jaburt, Pitanga, Ipucaba, ete.), que fornecem humidade sufiente 4 irrigagéo de longas faixas, onde se cultivam cana e café; o sertio nitidamente sepa- rado da serra por uma simples mas formidavel es- carpa; as virzeas de carnaubal de Sobral e Massa- pé e os vales mais ou menos frescos das serras ar- is88 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA‘ queanas do Rosario e Meruoca com 0s seUs Tiso- nhos sitios de cana, fruteiras e mandioca. Como ocorre no Cariri, a regiio exerce um po- deroso atrativo sébre as populacdes sertancjas das zonas proximas, tanto do lado do Cear&, como da banda do Piaui. Por ocasido das sécas calamitosas, a imigracdo avuita. Muitos dos eventuais forasteiros, como no Cariri, se fixam definitivamente 4 terra que as sécas nao flagelam (diretamente). Os fenomenos de ordem psicologica ou social- historicas néo oferecem grande importancia diante da influéncia dos fatores fisicos na genese e evolu- gao desta concentragao; mais do que no Cariri, mui- to mais do que em Fortaleza, esta concentracao de- pende de elementos fisiograficos. Todavia, pode-se invocar influéncias outras que néo puramente fisicas. Trata-se de uma zona de fronteiras, naturalmente mais ativa socialmente do que qualquer outra que ordinariamente nao goze déste privilegio, e tanto mais, quanto é ela atravessada por mais de uma importante estrada interestadual. Estes caminhos sao antigos e néo foram estranhos 4 formagfio e desen- volvimento da concentragfio nos seus primordios e durante, sobretudo, os tempos coloniais, quando, s6- bre a serra, padres, missionarios, autoridades, indios e colonos do Maranhéo e de Pernambuco se encon- travam, estabelecendo uma interpenetragaéo que nao podia deixar de ser bastante ativa e rica de con- sequencias de ordem demografica, social e historica. QUADROS COMPARATIVOS.—Para que se obte- nha uma melhor aprecia¢éo da importancia relativa de cada uma destas concentragdes nordestinas e compara-las facilmente, examinemos os dados con- densados abaixo: Pop. Rels 'Poreent. shbre Concentragdes 4 popul, NE Superficie Popul. Abs. Pernambucana 73480 k. gq. | 5.076.000 hs. | 67,2 52,7 % Fortaleza 5270 » »| 934600 » | 635 B4 Cariti 11210 > >| 354.800 » | 316 36%, Ibiapaba 8900 » » 216.100 > | 243 22% Totals e médias 100.860 » » | 5.981.500 2 59,3 62,0 % REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA‘ 159 Mostra o quadro acima que, realmente, mais de metade da populacéo nordestina se acumula nas qua- tro concentracées referidas; que as densidades das duas primeiras (litoral) sao relativamente aproxima- das e diferem muito das duas outras (interior); que, finalmente, a concentracio pernambucana, a mais antiga, maior, mais importante, vale cérca de cinco vezes © total das outras, sob o aspecto demografico absoluto. CARACTERISTICAS COMUNS. — Na base fisica ha elementos de impressionante constancia, comuns a todas, que cumpre assinalar. Em primeiro lugar, é a humidade do solo maiore mais regular do que nas regides circunvizinhas, proveniente de uma mais alta e mais prolongada pluviosidade, aliada a certas cir- cunstancias ligadas 4 natureza do solo, donde a exis- tencia de fontes constantes. Além disto, essa humida- de do solo, apesar da periodicidade das chuvas, man- tém-se durante todo o verdo e permite lavouras de longo ciclo vegetativo. Em segundo lugar, ressalta uma diferenciagao fisiografica notavel e, por fim, a existencia de serras e vales frescos. A atividade produtiva do homem caracteriza-se pela predominancia da agricultura, no seio da qual sobreleva a lavoura da cana de agicar e em segun- do plano a do café. Nas concentragées de densida- de demografica superior a 50, verifica-se um_ surto da industria fabril que tende a avultar sem desfale- cimentos e, por sua vez, provoca uma constante e poderosa atragéo de forasteiros para as cidades (Re- cife, Fortaleza). As zonas super-populosas que vimos de exami- nar sio regides de sol e de humidade, plantadas como grandes oasis numa érea territorial considera- vel, regiéio de sol e insuficiente humidade. As con- centracées que vimos de caracterizar, na dinamica demografica, oferecem a particularidade de um mo- vimento centripeto que sobreleva consideravelmente o movimento inverso ou centrifugo. Constituem cen- tros apreciaveis de transformagées de energias e nis- to ainda se distinguem das regides de dispersao hu- mana, que so centros de captagdo de energias. 160 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ PEQUENAS CONCENTRACGOES.—Comumente as serras de maior vulto, sobretudo os macigos arquea- nos, so zonas relativamente frescas em vista das especiais condigdes climo-edaficas criadas pelo com- plexo das suas caracteristicas geologicas, 0 proces- so de sua formagio, as particularidades geograficas, etc. Por isto, até certo ponto, estio livres dos per- calgos das sécas e constituem atrativos para os ser- tanejos acossados pelas calamidades frequentes. For- mam-se nelas, consequentemente, pequenas e isoladas conceptragées humanas, em geral com lavoura de cana e eventualmente de café. Entre as que salientam de uma maneira evi- dente éste fato,devemos citer a serra Verde, em gran- de parte contida no municipio do Triunfo, em Per- nambuco. A extensdo e bom tratamento das culturas nessa serra, inclusivé a da cana, despertam a aten- gio e a curiosidade dos viajantes. O municipio do Triunfo tem densidade demografica de 93! Outro exempio interessante é o da serra do duartins, no Rio-Grande do Norte, cujo municipio do mesmo nome tem 20 habitantes por quilometro qua- drado. Também af se admiram belos sitios de cana e outras culturas que ndo vingam nos sertées. SERTAO.—O sertéo, terra de luz e insuficiente humidade, 6 0 dominio da caatinga, associagio flo- ristica muito conhecida e perfeitamente caracteri- zada. As condigées de vida, nesse meio, oscilam como as estagdes,; passam de um extremo a outro, por vezes com exageros terriveis. A amenidade e pro- dutividade da regiio ao tempo das chuvas regula- res e apés estas, ainda por alguns meses, nos anos normais, que, em média, s&o0 dez sébre um; as condigées gerais, particularmente propicias 4 cria- géo de gados que, na caatinga, encontra otimas e abundantes forragens nativas e outras qualidades apreciaveis, atrafram e fixaram uma populagdo que j4 6 relativamente bastante densa e oferece atribu- tos bem definidos e estimaveis. De prinefpio, os co- lonos vinham seduzidos sobretudo pela facilidade de criar, era importante para a economia geral da co- lonia produzir um artigo cujo consumo estava am- REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ 161 plamente garantido. Além desta vantagem, a explo- ragdo de bovinos nada ou quasi nada custava e tudo quanto pudesse dar de renda era lucro certo. Naqueles primeiros tempos, a inseguranca con- sequente das sortidas dus indios e os estragos na criagaéo, ocasionados pelas ongas abundantes ou pe- las serpentes venenosas, nao eram de molde a desa- nimar da emprésa deante dos fatores positivos que a tudo sobrelevavam. A rarefagéo do povoado humano e do gado espalhado pelos campos quasi infinitos facilitava muito aluta contra as sécas, cujos estragos nunca eram completos e, quando ocorria uma séca mais intensa e mais mortifera, bastava muitas vezes o recurso das retiradas oportunas, orientadas pelos habeis vaqueiros, ou até sem o concurso déstes, mas apenas do instinto do proprio gado, que tomava a ini- ciativa de fugir dos campos assolados para os lugares onde nfo faltavam as boas pastagens. Isto se tornava facil porque, sendo as fazendas muito separadas umas das outras e relativamente pouco povoadas, sempre sobravam ervas naturalmente fenadas nos campos mais distantes, ramas virentes ao alcance dos ani- mais que mas serras e nos vales frescos estavam 4 disposigio do gado; as aguadas eram mais abundan- tes, por isso que os corregos mais vizinhos das ser- ras ainda suficientemente arborizadas mantinham-se em geral perenes e 08 po¢es dos grandes rios nado secavam, resistindo 4s mais rigorosas estiagens. Entretanto, a maneira como o gado se reprodu- zia e aumentava continuava despertando o interésse e @ admiragéo dos colonos que, na primeira metade do seculo XVIII, acorreram em grande niimero para @ caatinga com os seus vaqueiros e agregados. Nas fazendas, entio instaladas, logo apareciam moradores com familia ou que af no tardavam a ter familia, regu- lar ou n&o, indios pacificos que se fixavam nas pro- ximidades. Também procuravam o sertaéo criminosos, egressos das prisdes ou ameagados pela policia, que se juntavam ao pessoal das fazendas ou se instala- vam por conta propria em terras desocupadas. As- sim, apesar das sécas, todo o sertio nordestino se povoou com espantosa rapidez. Da populacao total do Nordeste, excluida a que vive nas concentragdes estudadas, restam 2.636.500 162 REVISTA DO INSTITUTO DO CEARA’ habitantes para os sertées. Da superficie total, de- duzindo a correspondente 4s concentracées, ficam 287,280 quilometros quadrados. A densidade demogra- fica, pois, atinge a cifra de 9,1, que se contrapde a de 59,3 das concentragdes. A média da densidade humana em todo o Nordeste é de 22, 7. Embora j4 seja bastante alto éste ultimo coefi- ciente demogratico, a capacidade fisica das terras, a inteligencia e atividade dos habitantes indicam ain- da grandes possibilidades. Possibilidades que pode- rao tomar vulto extraordinario quando a administra- g4o0 pablica mais bem prevenida queira, pela apli- cagdo de metodos conhecidos e elicazes, garantir em todas as circunstancias a lavoura e a criagdo de gados e proporcionar a todos os habitantes uma edu- cacdo ajustada 4s condigdes especiais da terra.

You might also like