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Filo. lingtist, port, n.S, p. 85-116, 2002. ANAUSE DE DOIS DICIONARIOS GERAIS DO PORTUGUES BRASILEIRO CONTEMPORANEO: O AURELIO € O HOURISS ‘Motio Tereza Comargo Bidermon* [RESUMO: Este atigo faz. uma avaliacdo de dois dicionérios gerais do portugués recente- mente publicados: 0 Dicionério HOUAISS da Lingua Portuguesa (2001) a dltima versio do AURELIO Século XXI (2000). Examina-se primeiro a fundamentac3o teérica dessas ‘obras, evidenciando-se as flhas existentes com respeito a conceitos e métodos da Teo- ria Lexical, mostrando-se como ¢imprescindivel que diciondrios se baselem emum corpus de textos jé realmente produzidos. Examina-se também a abrangéncia e a representati- vvidade do léxico registrado nestas obras eos crtérios usados na seleclo das palavras e dos lemas da nomenclatura, assim como o tratamento dado aos verbetes nestes dicioné- ris. Palavras-chave: dicionério, dicionério geral, lexicografia, corpus informatizado, macro- estrutura e microestrutura do dicionério, 1. INTRODUGAO- léxico de uma lingua natural constitui uma forma de registrar e armazenar 0 conhecimento do universo. Como diz Alan Rey, no preficio do Dicionério da lin- gua francesa — Petit Robert, ed. de 1994~0 léxico vem a ser a medida de tudo, pois exprime e reflete o universo cultural da sociedade, Ora, 0 tesouro vocabular de um idioma constitui um conjunto cujas dimensdes nao é possivel precisar. De fato, o niime- ro total de palavras de uma lingua de civilizacao € indeterminado; * UNESP, Faculdade de Ciéncias e Letras, Campus de Araraquara, BIDERMAN, Maria Tereza Camargo, Anailise de dois dicionérios gerais do Portugués Brasileiro contemporineo: o Aurlio eo Houaiss. talvez atinja uns 500,000 vocébulos ou mais. Além disso, sendo um conjunto aberto, novas palavras s4o criadas continuamente pelos usudrios, especialmente os riais cultos e mais criativos, e também pelos cientistas (as terminologias cientificas).. Por outro lado, como afirma Lara (1992, p. 20), “o dicionério representa a memoria coletiva da sociedade e é uma de suas mais importantes instituigdes simbélicas”, Assim sendo, o diciondrio vera a ser 0 depositdrio do acervo lexical da cultura. E como diz Alan Rey, o diciondrio é a meméria lexical de uma sociedade; constitui 0 acervo € o registro das significagdes que nossa meméria nao é ca- paz de reter (Prefécio do Petit Robert). O dicionério é também e sobretudo um produto lingiifstico: constitui “o resultado de uma infiriidade de atos verbais que, na experiéncia social, desligaram-se de seus atores” para passar a fr zer parte do patrim6nio cultural coletivo, especialmente o que foi dito inteligentemente no seio dessa sociedade. (Lara,1992, p. 20). O conjunto dos usos sociais da lingua é refletido pelo dicionério. Além disso, 0 diciondrio descreve o Iéxico em funéo de um modelo ideal de lingua ~ a lingua culta e escrita, $6 circunstancial mente registra os padrdes subcultos, ou desviantes da norma pa- dro, tais como os usos dialetais, populares, giridticos. Dessa forma o diciondrio convalida e promove a linguagem aceita e valorizada em sua comunidade. 2. FUNDAMENTAGAO TEORICA, 2.1 Conceito de unidade |éxica e identificagéo dos unidades complexes. Um dicionério precisa ser fundamentado em uma teoria lexical, levando em consideragio premissas bésicas da lexicologia. Como, por exemplo, 0 conceito de unidade léxica, Muitas vezes é extrema- mente dificil aplicar esse conceito, j4 que, na prética discursiva, é complexo delimitar as unidades lexicais no contexto. E nao sé é 8 Fill, lings. port, n. 8, p. 85-1 16, 2002. - dificil identificar a unidade léxica como é complicado eleger o lema para ser o caput do verbete. De fato, a identificagéo da unidade lexical ao nivel do discur- so constitui um grande desafio para um lexicégrafo, pois as frontei- ras entre as palavras muitas vezes sao difusas, Efato inconteste que as fronteiras entre uma unidade lexical complexa e um sintagma dis- cursivo so fluidas. Existe toda uma gama de graus de lexicalizagao entre os elementos de uma combinatéria lexical — dos sintagmas cristalizados como lexias compostas e/ou complexas 3s unidades fraseolégicas, as expresses idiomdticas. Essas unidades complexas, contudo, tém uma coesao interna do ponto de vista semantico, fato esse que deveria levar o dicionarista a individualizé-las como unida- des ja consolidadas do léxico. Nesse caso essa unidade complexa deveria constar como entrada do dicionario; a hipétese contraria implicaria a incluso de tais combinatérias ou fraseologias como subentradas no interior de um verbete, cabendo também ao dicio- narista decidir onde elas melhor se encaixariam. Conseqiientemente, 0 conceito de unidade léxica do diciona- rista reflete-se na organizagao da macroestrutura do diciondrio, bem como os critérios por ele usados na selegao das lemas. Ora, 0 lema representa um lexema. E 0 lexema é uma entidade abstrata que se manifesta no nivel do discurso de modo bem diversificado por ser 0 portugués uma lingua flexiva. Por outro lado, nas realizacoes dis- cursivas, as fronteiras entre uma unidade lexical complexa e um sintagma discursivo livre so muito difusas, exigindo do lexicégra- fo uma boa formacao teérica para poder decidir entre casos limitrofes. Mais ainda: 0 conceito de unidade lexical levanta proble- mas teéricos com conseqiiéncias praticas na sua identificaco e tra- tamento ortografico ¢ lexicogréfico. 2.2 Vejomos como operoram estes didonérios De um modo geral, tanto o AURELIO como o HOUAISS reve- lam desconhecimento da Teoria Lexical, Gramatical e Lingiiistica. 87 BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Andlise de dois dicionérios gerais do Portugués Brasileiro contemporineo: o Aurélio e o Houaiss. Convém lembrar que a versdo do AURELIO Século XXI coincide, em grande parte, com a edic’o de 1986, publicada ainda em vida de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira. Estruturalmente nao muda quase nada; hd acréscimos de verbetes mas ndo em volume subs- tancial. Na seco “como usar 0 AURELIO Século XI” so expostos parametros de instrucao ao consulente que refletem os conceitos e métodos subjacentes 4 elaboracdo do diciondrio. No caso do HOUAISS tais especificacdes e instrugdes também precedem o di- cionério numa secao denominada “Chave do dicionério”, texto assi- nado por Mauro de Sales Villar, Nesta secdo do AURELIO sao classificadas como locusdes (cf. nota 19) segmentos que sio, de fato, unidades léxicas complexas, tipi- cas das linguas de especialidade cientifica. 0 exemplo dado resistén- cia dos materiais nao é uma locuc&o mas um termo da Fisico-quimica e da Engenharia, Alids, é tipico dos dominios cientificos e técnicos 0s conceitos serem expressos por unidades fraseolégicas que cons- tituem uma unidade léxica do ponto de vista conceitual, sendo esse exemplo um caso de composicao. O processo de composigio é re- curso muito freqtiente na geracdo de termos das ciéncias e das técnicas. Inversamente, constituem locugdes propriamente ditas: 1) locugées adverbiais—a baila, a sério, em pé; 2) locugdes prepositivas —além de, até a, diante de, por volta de; 3) locugdes conjuncionais — ainda que, como se, de modo que, por conseguinte, etc. O AURELIO in- clui estas unidades complexas como subentradas da palavra-base sem classificd-las, nao revelando, pois, a consciéncia de que se esta diante de unidades complexas tradicionalmente classificadas como locugées gramaticais. Jao HOUAISS explica: “A unidade lexical pode ser uma palavra simples, uma palavra composta por hifen, uma locuc&o, uma redu- 40 (do tipo simbolo, sigla, abreviatura, etc.), pode ainda ser miilti- pla e, em casos mais raros, tratar-se de pequena frase”. No item 42 e seguintes deste prefacio Villar generaliza o.uso do termo técnico locugao, atribuindo-lhe o sentido de “unidade complexa do léxico”, 88 Filo. lingist. port, n.5, p. 85-116, 2002. © que no se pode aceitar. Infelizmente esta introdugéo muito minuciosa, em que Villar buscou explicitar todas as categorias e praticas do dicionario HOUAISS, mostra que seu autor no esté familiarizado com as muitas obras que tratam das ciéncias do léxi- co, particularmente da morfologia lexical e dos processos de for- macfo de palavras, para nao falarmos de outras complexidades como a histéria do léxico. Também se deveria ratificar o termo nominata usado por Villar, pois o termo consagrado em Lexicologia/ Lexicografia é nomenclatura. Os te6ricos do léxico também usam o termo macroestrutura que refere, porém, um conceito ligeiramen- te distinto. 2.3 Consideremos unidades menores que a palavra: morfemas derivacionais e elementos de composigiio. Até alguns anos atras os di- cionérios nao costumavam incluir esses elementos mérficos. De fato, no constituem unidades integrantes do patriménio lexical. £, po- rém, util pare o consulente a inclusio destes formantes do léxico; eles podem servir nao s6 a criacio de palavras novas como também. a.um melhor entendimento da constituigio do Iéxico. Na sego “como usar o AURELIO Século XXI” hé alguns infor- mes relativos aos formantes lexicais que so teoricamente incorre- tos. Cf item “3. ? Indica elemento de composicao: prefixo, sufixo, infixo (sic)”, Os pfefixos e sufixos nao so considerados na Teoria Lexical como elementos de composicéo, mas como afixos ou mor femas de derivacio ou derivacionais. Um dicionarista precisa co- nhecer bem os processos de formacdo de palavras; alids, a compo- sicdo é um processo bem diverso da derivacao. Constata-se que estes dicionaristas carecem de competéncia especializada no que tange a questo da formagao de palavras na lingua. Por exemplo: intimeras vezes as diversas classes de formantes que integram a morfologia lexical do portugués ndo so correta- mente identificadas e tratadas. Assim, é discutivel a inclusao inade- quada de muitas unidades como elementos de composi¢do em desa- cordo com a Teoria Lexical. Essa questo é particularmente séria no 89 BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Anilise de dois diciondrios gerais do Portugués Brasileiro contempordneo: 0 Aurélio e o Houais. HOUAISS, em que os deslizes séo intimeros, eivando todo 0 dicio- nario com disparates. De fato, muitas vezes so af inclufdos como elementos de composi¢ao pseudomorfemas que ndo podem ser assim categorizados. No AURELIO, as vezes a classificacao é correta e o tratamen- to do formante no verbete estd correta, e, em outras, nao. Isso porque é preciso distinguir um formante que, de fato, gera pala- vras novas no portugués de vocébulos emprestados pelo portu- gués ao latim e freqiientemente a alguma lingua moderna (inglés ou francés) que, por sua vez, havia emprestado a palavra do latim. Veja-se, por exemplo, os verbetes: “alti- (do latim) = alto, elevado: altiloquente, altimurado, alticola”. Onde recolheram tais palavras? Nao encontrei registro dessas unidades em nenhum texto do cor- pus da UNESP.’ “Digit(i) [Do lat. digitus,i] El. comp. = ‘dedo’, ‘digi to’: digitar, digitigrado...” S6 digitar seria derivado dessa base lati na, Mas, de fato, € empréstimo em portugués, e nao, derivagao. Jé prestidigitacdo, citado a seguir, é empréstimo do francés e nao de- rivago no portugués. Eo caso também do verbete arci- que registra arcifero, arciforme como derivados desse soidisant elemento de composicio. Mas es- ses cultismos nao sao palavras.geradas no portugués, mas emprés- timos. Alids, esse € um problema recorrente — com freqiiéncia se faz mengao a produtos vocabulares que seriam criagdes vocabul- res do portugués e que so empréstimos, ou tomados diretamente do latim, ou de uma lingua moderna (inglés ou francés), idioma esse que tomou emprestada a palavra a uma lingua cldssica. Jé 0 tratamento de arqui- est correto. Se confrontamos a edicdo de 1986 do AURELIO com a verso XXI, vemos que XXI altera o tratamento da matéria. Veja-se 0 0 corpus da UNESP aqui, mencionado e também em outras passagens refere-se & srande base textual informatizada da FCL da UNESP, Campus de Araraquars, que totaliza 80 milhoes de palavras atualmente, 90 Fill. lingitst. port, 0.5, p- 85-116, 2002. exemplo de-arca’ e-arca? que a versio XXI prope como duas for~ mas homénimas e elementos de composico, os quais seriam usa- dos em posicao final em relacao a base. E distingue diarca, monarca, triarca que seriam gerados de -arca' de menarca, gerado de -arca’. Mas nenhuma dessas palavras foi criada no portugués; logo é discu- tivel que -arca seja elemento de composigao de nosso idioma, se o ‘comprovante forem essas palavras. Monarca é um vocabulo relativa- mente antigo no portugués - é do séc. XIV - e é empréstimo do latim tardio. Quanto a diarca, é empréstimo erudito do alemdo (1873 segundo Cunha, 1982) e triarca é empréstimo do inglés, que 0 to- mou ao grego. A licdo da edigio de 86 é melhor. Prop6e arc(a)- como elemento de composicao para as palavras arcebispo, arcangélico (?), arcipreste, arquiduque, arquimiliondrio, Evesdade que também arcipreste é empréstimo. Contudo, no creio que existam arquiavé e arquiavé que apa- recem como entradas tanto no AURELIO como no HOUAISS (que deve ter copiado do AURELIO). Ainda no AURELIO fag(o)- € corretamente interpretado como. elemento de composicdo em fagécito, fagocitose, fagoinibidor, etc. Contudo, tais palavras do daminio da Biologia também podem ter entrado no portugués como empréstimos do francés onde elas te- riam sido criadas, pelo menos as duas primeiras, Também se classifi- ca corretamente como elemento de composi¢ao o formante imuno-. imunologia, imunodeficiéncia (-nte), imunodepressor, imunoenzimologia, imunopatologia, imunosupressor, imunoterdpico, etc. Seria preciso examinar cuidadosamente neste diciondrio os verbetes relativos a elementos de composigdo para distinguir 0 joio do trigo, ou seja, para identificar e manter aqueles que podem ser clas- sificados assim eri face da Teoria Lexical e da Historia do Portugués aqueles que deveriam ser eliminados desse conjunto. ‘Jéo HOUAISS derrapa violentamente nesta matéria. 0 dicio- nério esté eivado de um néimero incrivel de unidades que foram classificadas como “elemento de composigao”. E tal a pletora de ele- mentos de composi¢ao segundo este dicionério que, praticamente a BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Anise de dois dicionérios gerais do Portugués Brasileiro contemporineo: o Aurélio e o Hous em todas as suas paginas, encontramos varias ocorréncias. Exem- plos: cereal(i)-, deix-, desert, desequ-, desentros-, eleit, envic, epipol, fabr-, garg, ido-, lobreg-, mend-, mendac., nomo-, nud{ifo)--oivar, -olfar, plant-, pot-, prec, put-, reboc-, red(i)., senh-, simetr(i/o)-, temper-, trib etc, Nenhum lingiiista chamaria de “elementos de composicio" tais unidades formais, se é que elas tém alguma autonomia. De fato, os vocdbulos listados no interior de cada um destes verbetes como derivados do soit-disant elemento de composicao so palavras cognatas. Vejamos um desses casos: fabr-. Nesse verbete séo registrados como vocabulos formados deste elemento: faibrica, fabricacao, fax bricador [no registrado no corpus|, fabricando [classificado como adjetivoll], fabricante, fabricdvel, etc. Ignoram-se aqui dados da his- toria da nossa lingua. Alids, algumas dessas palavras berm como outras registradas em outras dessas entradas nao foram geradas dentro do portugués mas sao empréstimos do latim, ou de outra lingua latina (francés, italiano, espanhol). Na ciéncia lin; muito controversa a questo das fronteiras entre a composigao e a prefixaciio porque alguns prefixos tm uma certa autonomia — cf. contra, extra, ndo, tetra, ultra, por exemplo. E por essa razio que alguns lingilistas preferem falar em formantes, no conside- rando esses operadores lexicais propriamente como prefixos. Mas essa é uma outra hist6ria. Seja como for, nenhum lingiiista chama- tia de “elementos de composicao” as unidades formais acima ar- roladas. 3. A NOMENCLATURA DO DICIONARIO 3.1 Um corpus de reFeréncio Na moderna Lexicografia qualquer obra de vulto como é 0 caso dos dois diciondrios em exame deveria fundamentar-se em um corpus informatizado como fonte de referéncia na extraco e sele- do das entradas (lemas) do dicionério. 92 lol lingiist. pore, n.5, p. 85-116, 2002. Infelizmente estes dois grandes dicionérios contemporaneos do portugués brasileiro nao seguem este modelo, Na verdade s6 0 Diciondrio da Academia de Ciéncias de Lisboa, publicado em 2001, se baseou em uma grande base informatizada de textos (obras do sé culo XIX mas sobretudo do século XX). uso de um corpus informatizado para a confeccao de dicio- ndrios implica grandes vantagens e beneficios para o produto les cogréfico, a saber: 1) confiabilidade dos dados como representagio da lingua real- mente usada pelos falantes tanto em sua modalidade escri- ta como oral; 2) possibilidade de registro e identificacdo das fontes e de sua datacao; 3) possibilidade de identificagao dos registros ou niveis de lin- guagem; ~ 4), abundancia de dados e possibilidade de manipulagio répi- da desses dados; 5) contextualizagdo das palavras, o que permite a extragio dos valores semanticos e sintdticos das palavras com base em dados auténticos. Operando com um corpus de textos e discursos efetivamente Ja produzidos garante-se a representatividade do acervo lexical da lingua, bem como de seu uso. 3.2 Uma questao metodolégica que os autores destes dicio- nérios deveriam ter formulado de partida: qual seria a extensao da sua nomenclatura e/ou macroestrutura e qual seria o modus operandi para recother este index verborum? De fato a selec da nomenclatu- ra ndo pode ser aleatéria, Para elaborar um diciondrio das dimen- sdes do AURELIO (130 mil verbetes?) e do HOUAISS (230 mil verbe- tes?) seria preciso partir de um enorme corpus. S6 para comparar: 0 Diciondrio da Lingua Portuguesa Contempordnea da Academia de Cién- cias de Lisboa, que tem 60.000 entradas, se baseou num corpus de 100 miles de ocorréncias; o Dictionnaire de la langue francaise du 3 BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Andlse de contemporaneo: 0 Aurelio e 0 Houaiss. XIXe, et XXe. Siécle de 70,000 verbetes usou uma base de mais de 100 milhées de palavras como fonte de recolha de dados lexicais. 0 método hoje adotado é, pois: de um banco de dados infor- matizado faz-se a extragao e a selecao da lista das palavras-entrada do dicionério. Evidentemente as palavras que ocorreram com alta e média freqiiéncia deverao integrar a nomenclatura do dicionério. Contudo, as baixas freqiiéncias (menor ou igual a cinco) no corpus colocam problemas. Outros critérios como a disponibilidade, a tematicidade deverao ser considerados para colher palavras no in- terior desse conjunto. Os hapax legomena (frequéncia 1) em princi pio seriam rejeitados, pois registram idiossincrasias de autores, ou tecnicismos tipicos do discurso cientifico muito especializado. Den- tro destas categorias os dicionaristas precisam operar com muito critério, levando em conta o numerério final do dicionério planeja- do. Embora, na medida do possivel, os dicionarios gerais ambicio- nem dar conta do maior ntimero de unidades do léxico, nem por isso se pode ir incluindo qualquer palavra encontrada em qualquer texto, Para que um vocdbulo seja considerado como integrante do acervo social da lingua, ele nao pode figurar em apenas um idioleto. Assim, num grande corpus de textos e géneros representativos da lingua, os hapax legomena fazem parte das palavras que convém evi- tar na montagem da nomenclatura. No HOUAISS a lista da nomenclatura esta inchada com cria- g0es virtuais que nao estao documentadas. Nota-se que, em varios casos, 0s autores registraram exemplos criados por eles proprios para validar a palavra-entrada, o que nao serve como comprovante de sua pertenca ao Iéxico da lingua. Correndo o risco de ser moné- tona, elencarei um rol grande, mas no exaustivo, dessas criagdes virtuais a que faco aqui referéncia: abrejjerar, abrenunciagdo, abrenun- ciar, ab-renunciar, ab-rentincio, absogro, absolutivo, absonar, dbsono, absorvedoiro, agafatar, acafetado, acafetar, adjegao, adormir? Conti- jonétios gerais do Portugués Brasileiro 3 A citagdo de Fagundes Varela “adormido infante” ndo autoriza a cria¢do do verbo ‘dormir. Os poetas no sao bons documentadores do léxico da lingua porque costu- 94 Fill. lingdis port, n.5, p. 85-116, 2002. nuando: alcuza, aldagrante, aleziriado, allfédega, alminheiro, alpor- quento, altibaixo, alticolinio, arrabileiro, aspirativo {da Lingiifstica? ~ de fato é aspirado], assustoso, baconista, bacorejar, dicl?, dialeta, diluviar, dobragem, doidaria, doidejante, doidejar, doidejo, embalcar, embiocado, embiocar, enfastiadi¢o, enfastioso, énfatismo, erronia, eru- bescer, esplim.> Continuando ainda: espoar, faxindl, feriar, feridvel, finidade, funga, fuxicaria, garreira, garrana, garrafal, gastivel, génito, ‘gentaca, gnaticidio, gronho, grosar, grossaria, imérito, imersor, imeto- dicamente, imiscivel, imissdo, imitir, impoético, impolitica, impotttico, impoluivel, impulsivismo, inacusativo, incardinar, inconfortar, inesculpido, intransitado, joliz, jalida, juncada, justura, lambaréo, lambarice, lam- pado, lapujice, larvejar, latifundiado, mandadeiro, mandrianar, mandu- ca¢do, manducativo, manducdvel, manita, manzona, marimacho, mar- telefar, etc. Varios desses vocabulos sao latinismos tendo os) diciona- rista (s) aportuguesado palavras latinas. Essa pletora de latinis- mos nao documentados em textos da lingua portuguesa revela um vezo de intelectuais da velha guarda. Julgam que porque é latim € verndculo, identificando indevidamente 0 vocabuldrio do latim classico, medieval e eclesidstico com o léxico do portugués. Embora o latim se constitua numa fonte permanente na qual po- demos haurir e criar, a partir dele, neologismos para cunhar no- vos conceitos e preencher lacunas léxicas, tal eventualidade e possibilidade nao autoriza o dicionarista a ir extraindo termos do Iéxico latino e incorporando-os ao léxico portugués, ou de qual- quer outra lingua latina. ‘mam evitar 0 vocabuldrio da lingua comum; ademais, sto muitas vezes levados a “licengas poéticas” como € exatamente esse caso. 3 Do — encontrado em Baudelaire, Fleurs du Mal, portanto ni francesa, BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Andlise de dol contemporaneo: 0 Aurélio e o Houaiss, 4. RBRANGENCIA € REPRESENTATIVIDADE DO Léxco ionérios gerais do Portugués Brasileiro 4.1 A nomenclatura do AURELIO e do HOUAISS inclui um nd- mero enorme de termos técnico-cientificos, regionalismos, palavras desusadas e obsoletas assim como vocdbulos literdrios raros. Para testar a abrangéncia da macroestrutura desses diciondrios fiz um teste. Recolhi aleatoriamente em todas as letras do alfabeto 100 Palavras que ocorreram com baixa freqiiéncia (1 a 6) no corpus e verifiquei se elas estavam registradas nestes diciondrios. Constatei que ambos os diciondrios registram quase todos esses vocabulos com as seguintes excecdes — ganzé (AURELIO), cablagem (ambos; mas registram 0 verbo cablar), lacrimorréia, mafagafes, salolado, cabungd; ambos, porém, registram uma variante cabundé. Isso mos. tra que ambos s0 muito abrangentes relativamente ao acervo lexical do portugues. Pode-se notar também que o HOUAISS segue de per- to © AURELIO, o que seria de esperar j4 que aquele dicionirio foi elaborado e publicado depois. Ademais, € evidente que o HOUAISS recolheu sua nomenclatura em todos os diciondrios gerais do por- tugués que o precederam, comecando com 0 Morais (edicao de 1813). Numerosas dentre as suas entradas sao nitidamente extrai- das das seguintes obras: Morais (1813), Aulete (1888), Vieira (1871- 1874) e Candido de Figueiredo (1899) — tanto no que respeita + ques- (Go da datacao, como relativamente ao contetido dos verketes e mesmo do teor das definigées, Tanto 0 AURELIO como HOUAISS deram primazia & polisse- mia versus homonimia no processo de identificacao das entradas, 'sso teve conseqiiéncias importantes no estabelecimento de suas ‘macroestruturas, visto como consideraram hom6nimos apenas os vocdbulos que tém um étimo diferente. E 0 caso de acorde (do fi, accord) @ acorde (de acordar) seguindo 0 modelo do Diccionario de la Real Academia Espafiola conforme informou Aurélio B. de H. Ferreira em seu prefécio e também Villar no HOUAISS. Por conseguinte, quando uma mesma forma pode nomear seja um adjetivo, seja um substantivo, ou um advérbio, os dicionaristas deram-lhe uma nica 96 Filol linguist. pore, n. 5, p. 85-116, 2002. entrada, redistribuindo em subentradas as unidades léxicas que Ihe so homénimas. £ o caso de andar verbo ¢ andar sub., direito, adj., sub., adv. Consideraram, pois, tais unidades léxicas como polissé- micas. Poderiam terthes dado outro tratamento considerando-as como hom@nimas ¢ assim terfamos no primeiro caso andar! verbo, andar’, substantivo; direito', adjetivo, direito?, advérbio e direito?, substantivo, Assim 0 critério etimolégico se sobrepés ao semanti- co-lexical e sintatico, Esse tiltimo critério permitiria que cada cate- goria léxico-gramatical diferente fosse identificada como uma nova unidade do léxico. Embora tal procedimento dilate o espaco ocupa- do pelos verbetes, tem a grande vantagem de, em sendo lexicologi- camente correto, possibilitar ao consulente, néio-especialista, uma répida identificagio da palavra que procura. Além disso, muitas e muitas vezes, a mudanga de categoria gramatical acarreta altera- Ges semanticas consideraveis como é 0 caso de andar acima referi- do de vista, visto, etc. Hé um outro inconveniente em nao se separar hom@nimos como andar' verbo, andar’, substantivo - a questo das lexias complexas, fraseologias e expresses que se formaram a par- tir dessa base. E comum que tais unidades complexas se filiem ape- nas a uma das duas (ou trés) unidades enquadradas no mesmo ver- bete como ocorre neste caso e em muitissimos outros. Assim, 0 dicionario teré que registrar no fim do verbete combinatérias e ex- pressdes que se reportem apenas a uma dessas categorias. No AU- RELIO, por exemplo, em andar: andar naufragado; andar, virar e me- er, que sao derivacées do verbo e nao do substantivo, embora sigam a subentrada substantivo, visto como‘o diciondrio remete tais uni- dades para o fim. No HOUAISS, em que a lista de lexias complexas e fraseologias registradas foi maior, no fim do verbete, encontramos: andar aos cafdos, andar assim, andar atravessado com, andar de mal a ior, andar de torto em través, andar fora de si, andar para, andar pin- gando, andar politico, andar trincado, andar virar, mexer, a quantas anda, Nesse exemplo como em muitissimos outros, vé-se novamente que © HOUAISS nao se fundamentou em um corpus de textos reais para recolher suas expressdes idiomaticas. Deve té-las colhido em glos- 7 BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Andlise de dois dicionarios gerais do Portugués Brasileiro contemporineo: o Aurélio e 0 Houalss. sariog de fraseologias e dicionérios portugueses mais antigos como 0 Aulete, 0 Vieira, 0 Candido de Figueiredo. Das duas listas do AURE- LO e do HOUAISS 86 encontrei no corpus da UNESP: andar de mal a ior, andar fora de sie a quantas anda, Em compensacio confira-se 0 que estd documentado nesse corpus e que nenhum dos dois dicio- nérios registrou: andar a cavalo, andar a esmo, andar a galope, andar a paisana, andar a pé, andar a X quilémetros por hora, andar é frente, andar a jato, andar a passos de tartaruga, andar a reboque, andar & procura de, andar 4 toa, andar aos trancos (e barrancos), andar ds mos- cas, andar és turras, andar és voltas com, andar d vontade, (ndo) andar bem das pernas, andar ao léu, andar com as préprias pernas, andar de cabega para baixo, andar de Ié para cé (de cd para Id), andar de maos dadas, andar de rastros, andar devagar, andar em bando, andar em ctrcu- los, andar em ordem, andar em torno de, andar na contramo, andar na finha, andar na mira de, andar na moda, andar na ponta dos pés, andar nas nuvens, andar nos trilhos, andar pelos trinta {(quarenta, etc.) anos], andar sem destino, andar sem rumo. 4.2 Repertérios especials Existem alguns repertérios especiais de vocdbulos que s6 os dicionarios gerais podem abrigar e foi o que tentaram fazer estas duas obras. Na seco “como usar 0 AURELIO Século XXI” os autores cha- mam de rubrica as marcas de registro lingiifstico. Na verdade essas “rubricas” deveriam ser identificadas como marcas de uso, pois ora so marcadores da pertenga da palavra-entrada a uma determinada 4rea técnico-cientifica, ora indicadoras de um dado nivel de lingua- gem, tais como: regionalismo, lusitanismo, popular, vulgar. 4.2.1 Comparando-se esta nova edicdo do AURELIO com a de 1986, constata-se que existe um ndmero consideravel de termos cientificos e técnicos novos, o que é louvavel. Desde a edigio de 1986, ja se podia notar um grande esforgo para incluir termos das 98 Fill. linguist. port, n, 5, p. 85-116, 2002. mais variadas 4reas como: Botdnica, Biologia, Eletricidade, Estatis- tica, Etnografia, Geologia, Genética, Marinha, Marketing, Meteoro- logia, Psicologia, Quimica, Telecomunicacdo, etc. ‘O AURELIO também registrou um grande ntimero de termos das ciéncias matemiaticas, fisicas, da biologia, da botanica, assu- mindo claramente uma fisionomia enciclopédica. Veja-se, por exem- plo, a lista de fungdes matemiticas: arc cos, arc cosec, arc cosech, etc, 4.2.2 A incluso de palavras raras, pincadas em obras literd- rias, remete a questo da autoridade literdria como fonte privilegia- da de coleta vocabular com fins lexicograficos. Assim, 0 AURELIO e ‘© HOUAISS registraram muitas palavras raras que devem ter ocorri- do:como hapax em um texto literdrio, pois os artistas costumam ser amantes do inusitado. No AURELIO, em que esto documenta- das nao s6 as abonagées dos autores mas as fontes e se pode fazer uma pesquisa reversa na versio eletrdnica, encontrei muitos exem- plos recolhidos em escritores brasileiros e portugueses, bem como poetas. Alguns dentre eles como Euctides da Cunha, Abelaira, Camilo Pessanha, Cornélio Pires, Coelho Neto, s6 para citar alguns, primam por um vocabulario raro sé registrado em suas obras ou em apenas uma delas. E por causa da atribuic&io de autoridade literdria dada ao esctitor que tais palavras aparecem registradas no dicionario. Cons- tata-se que Aurélio B, de H. Ferreira, como fizeram outros dicionaris- tas do pasado, ficava fascinado por uma palavra exotics e a registra- va em fichas para depois incorporé-la ao diciondrio, Ver por exemplo no AURELIO vocdbulos raros colhidos em poetas: enturbar (Rai- mundo Correia), epinicio (Alberto de Oliveira), imo (Goncalves Dias), dlgido, batathante, besante e rojar (Camilo Pessanha), intercoltinio (Eu- genio de Castro), e em escritores: expluir (Raul Brando), acendalha, adinamia, azenegue, convicio, ensiforme, espenda, exsicado, farragem, galhardear, intrémulo, javardo, recha, zanaga (Euclides da Cunha), re- {ferto (Coelho Neto), rabulejar, dé relancina, tacuru (esses trés em Cornélio Pires). Diversamente, na moderna Lexicografia, considera-se que uma palavra faz parte do patriménio léxico da lingua se ela tiver sido 99 BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Anise de dois dicionérios gerais do PortuguésBrasillro ccontemporaneo: 0 Aurélio e o Housiss. usada num determinado mimero de vezes por diferentes falantes e tiver ocorrido em mais de um tipo de texto (género). O AURELIO eo HOUAISS, porém, sao tipicos herdeiros da Lexicografia do passado. Segundo esse parametro lexicogréfico, o vocabulério das grandes obras literdrias deve ser registrado no diciondrio como modelo ideal de lingua escrita para a comunidade dos falantes por considerarem sua linguagem e seu estilo dignos de serem imitados. Modernamente, a Lexicografia propde uma nova atitude face a0 acervo Iéxico da lingua. O dicionério deve recolher e registrar 0 vocabulério em circulagao em meio & comunidade dos falantes (evi- dentemente os mais educados, mas no apenas) dacumentando essa norma lingiistica de significados e usos, que nao séo necessarizmente literarios, podendo ser, por exemplo, textos jornalisticos, Inversa- mente, devemos evitar as idiossincrasias dos romancistas, poetas € escritores em geral, que muitas e muitas vezes criam palavras numa situago ad hoc, ou por razées exclusivamente estéticas; freqliente- mente essas criacdes neoldgicas nao se perpetuam na tradicao. 4.2.3 Um problema sério diz respeito aos regionalismos e as palavras que 0 AURELIO classificou como brasiteirismos desde suas duas edig&es anteriores (1975 e 1986). De um total de 115.243 ver- betes, 24.498 entradas sdo de brasileirismos e regionalismcs, isto 6, 18% do total (Oliveira, 1999, p. 90). Na edicao de 2000 repete-se © que estava nas anteriores. Dessa forma mantém-se dados que continham informagées questiondveis e que nessa iltima edicgo nao foram revistos. A marca de uso brasileirismo s6 se justifica den- tro de uma perspectiva do portugués como lingua internacional por oposicio &s demais variedades do Portugués (da Europa, da Africa e da Asia). Ou ento para um diciondrio da variedade européia como € 0 caso do Diciontétio.da Lingua Portuguesa Contempordnea da Acade- mia de Ciéncias de Lisbod'que descreve o léxico do portugués euro- peu e deve naturalmente marcar vocébulos e/ou expresses tipicos do Brasil. No caso do AURELIO parece-me que essa marca nio foi bem usada ja que todo o léxico, descrito é do Brasil. Quanto aos regionalismos, uma falha séria do AURELIO é nao ter registrado, em 100 Filol. lingifst. port, n.5, p. 85-116, 2002, suas fontes documentais, as obras onde ele teria coletado tais re- gionalismos. A professora Ana Maria P. P. de Oliveira (UFMS) defendeu uma tese de doutoramento na UNESP em 1999 intitulada 0 Portugués do Brasil: Brasileirismos e Regionalismos. Esse minucioso estudo baseado em extensa pesquisa, por mim orientada, centrou-se no dicionario AURELIO, extraindo dele todos os verbetes rotulados com estas marcas sociolingiifsticas. Em sua tese, a professora analisou deta- Ihadamente os dados do AURELIO e tentou extrair os critérios por ele adotados para examiné-los a luz da Lingiiistica moderna. Cons- tatamos que muitos sendes existem neste diciondrio quanto a essa matéria. Parece que mestre Aurélio usou como fontes glossarios ou vocabulérios de qualidade bem heterogénea, Pudemos elencar um ntimero grande dessas obras produzidas em diversos pontos do territ6rio nacional‘ e publicadas em varias épocas a partir do sécu- lo XIX. O problema é que a qualidade cientifica dessas obras é ques- tionavel em muitos casos. Muitas dentre elas foram organizadas Por curiosos e diletantes sem critério nenhum. Por outro lado, falta totalmente um controle objetivo para ajuizar da pertinéncia do re- gistro. Por exemplo: a palavra ainda seria usada e qual a abrangén- cia de seu uso? Sao vocdbulos ocasionais ouvidos pelo recenseador da boca’ de alguém que o vocabulista registrou porque os julgou curiosos? Enfim, os problemas so muitos. Creio que Aurélio B. de H, Ferreira, amante das palavras’e do vocabulétio tipico do Brasil, foi registrando tudo sem estabelecer parametros confidveis. Assim sendo, s6 podemos presumir sem poder conferir, Seria necessario fazer uma gigantesca pesquisa de campo em todos os recantos do Brasil e confrontar esses dados com os brasileirismos registrados por Aurélio e por todos os numerosos vocabulérios, glossarios e dicio- narios que deles se ocuparam para poder dirimir dtividas e restabe- lecer a verdade lexical. 101 SIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Andlise de dois éiciondrios gerais do Portugués Brasileiro ‘contemporiineo: o Aurélig e © Houaiss, Por outro lado, o HOUAISS pretende dar conta nao sé dos regionalismos brasileiros, mas também daqueles portugueses, bem como dos regionalismos dos paises de fala luséfona. Exemplos de africanismos neste diciondrio: intentagao, lamitoca, nkakana, nkanyu, nkumbi, onseneirar, parcioneiro (ant.); € ainda quibala, quibeba, quiberuxi, quigama, quigangua, etc, Esses tltimos exemplos estZo marcados como termos tipicos de Angola. Nao tenho conhecimen- to direto do trabalho dos lexicégrafos ou Jexicdlogos afticanos, ci- tados na introdugio, como responsaveis pelas informacdes relati- vas ao léxico afticano, Assim neste particular no posso ajuizar. Sobre esta matéria, na introdugdo do HOUAISS [cf. 10.h] afirma-se: “por vezes, no foi possivel localizar geograficamente determinado provincialismo portugués ou, mais raramente, um regionalismo brasileiro”. Como podem estes dicionaristas ter tal certeza sem rea- lizar pesquisa? No que concerne os regionalismos do Brasil parece evidente que 0 HOUAISS usou 0 AURELIO como fonte de informa- Bes, que tem os problemas jé referidos. E quais os especialistas portugueses que respondem pelos regionalismos de Portugal? 4.2.4 Em ambos os diciondrios hd muitas palavras obsoletes colhidas em diciondrios do passado, o que deveria ter sido assinala- do. Cf. almofia, ulmufreixe, almogaravia, cavilar, ceno, cenosidade, cerome, deporte, encruelecer, esbraguilhado, fuzilhdo, joldra, justura, nadtvel, nadivo, perecedoiro, perfazimento, perilha, sufraganeo, sumilhar, sumpto, tabardo, tdbido, tacanheza, tacanhice. 4.2.5 Foram também inclufdas as denominacées dos gentilicos de todos os municipios do Brasil, relacio essa que poderia ter sido alistada num anexo, dado seu interesse menor para um dicionario de lingua. Conferir: aliancense {natural de Alianga, PE], andaraiense [natural de Andaraf, BA], areia-branquense (natural de Areia Branca, RNJ, fabricianense [natural de Coronel Fabriciano, MG], jacareiense [natural de Jacarei, SP], mambucabense {natural de Mambucaba, Rj], raul-soarense {natural de de Raul Soares, MG], reboucense (natural de Rebougas, PR], recreense [natural de de Recreio, MG}, sousersse [natu- ral de Sousa, PB], etc. Ver também a seqiiéncia de gentilicos forma- 102 Filo, lingiist. port, n. 5. p. 85-116, 2002. dos com porto: porto-alegrense, porto-amazonense, porto-belano, por- to-calvense, porto-felicense, porto-firmense, porto-folhense, porto- ‘ranquino, porto-lucenense, porto-pedrense, porto-realense, porto-riquenho, porto-velhense. E 0 AUR :LIO Séc. XXI acrescentou ainda: porto- alegrense-do tocantins, poi to-belense, porto-estrelénse, porto-gandrense, porto-gauchense, porto-mi uense, porto-mozense, porto-segurense, por- to-unionense, porto-vera-ci uzense, porto-vitoriense, porto-waltense, por- to-xavierense. Foi um expediente um tanto inttil para ampliar 0 nd- mero de verbetes do diciondi 5, ESTRUTURA € TRATAMENTO DOS VERBETES 5.1 Encontramos definigées, as vezes, erradas. Cf. Lexeologia ~ termo raro, ndo usado na terminologia lingiifstica. O AURELIO re- mete a Lexicologia. Entretanto, a definicao de Lexicologia nao é ade- quada; de fato trata-se de uma das ciéncias auténomas do léxico e nao, parte da gramatica, como af se diz. E comum tanto no AURE- LIO, mas sobretudo no HOUAISS, a palavra-entrada ser definida com vocabulos incomuns e até raros. Seria desejével que as definices fossem feitas com um vocabulério usual, preferivelmente, um vo- cabuldrio basico de umas duas mil palavras mais freqiientes. 5.2 Com alguns pequenos sendes muitas vezes a estrutura do verbete é melhor no AURFLIO do que no HOUAISS. Cf. nervoso, p.ex. Nesse caso é criticével, apenas, 0 uso da palavra nerval no AURE~ LIO para definir, pois essa palavra, se usada, é rara, visto como nao ocorreu no corpus da UNESP. As lexias complexas (fibra nervo- sa, tique nervoso) e unidades fraseol6gicas complexas (fibra nervosa amielinica, fibra nervosa mielfnica, sistema nervoso auténomo, sistema nervoso central) das terminologias cientificas aparecem no fim do verbete, de modo destacado e coma respectiva marca de dominio cientifico. Especialmente na versio eletrénica, fica claro para o consulente cada um desses detalhes enfatizados pelo uso de co- res distintivas. 103 BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Andlise de dois diciondrios gerais do Portugués Brasileiro contemporaine: 0 Aurélio e 0 Houaiss. Cf. ainda os seguintes exemplos ilustrativos tirados do AURE- LO: cabecalho [De cabeca + -alho,] S.m. 1, Timo do carro, do qual pende a canga. 2. Titulo de jornal ou de outra publicagio periédica, que com- preende data, nlimero, periodicidade, etc.; cabego. 3. Titulo destacado de artigo, noticia, etc, 4, Titulo de capitulo, 5. Dizeres que encimam as colunas e casas de uma tabela, as paginas de um livro em branco, ou certos formulétios e fi- chas. [CE, nesta acepc., entrada (22},] ‘A T* acepgio € hoje rara; nao devia, pois, constar em primeiro lugar. As acepcdes 2., 3. € 4, poderiam ser sintetizadas em apenas um sentido e serem alcadas & posicio de primeira acep¢ao por ser © sentido mais comum, E também: cereal [Do lat. cereale, ‘referente a Ceres, a deusa das searas’.] Adj. 2 g. 1. Dizsse das gramineas e doutras plantas (trigo, cevada, mi- Tho, etc.) cujas sementes, transformadas em farinha, ser- vem para a alimentacao. 2. Relativo a pio. Som, 3. Planta cereal (1), 4, Searas, messes, [Como s. mi3€.m. us. no pl. Cf. cirial,] Esta definigao nao esté boa, Ai se da como significado bésico, © do adjetivo. Ora, em 129 ocorréncias (sing.+ pl.) do nosso corpus nem uma sé delas era um adjetivo; todas eram substantivo. Vejam- se os exemplos abaixo, extraidos do nosso corpus e que ilustram 0 valor semantico ¢ o uso desta palavra: 104 Filo. fingtist. port, n. 5, p. 85-116, 2002. Os cereais eram plantados visando principalmente a subsisténcia, Para o vice-presidente da Bolsa de Cereais de Sao Paulo.i. Nos silos, onde o cereal é estocado a gianel... OAT BRAN (Farelo de Aveia) é um cereal 100% natural. (numa pro- paganda) Jé 0 verbete ciclo esta bem definido e formulado. © AURELIO parte dos sentidos mais gerais para os mais especificos, alistando, na seqiléncia, os significados técnicos das diversas dreas cientificas tais como: ciclo anovulatério (fis.), ciclo biolégico (biol.), ciclo de Chandler {astr.), ciclo de Krebs (bioquim.), etc. Outros exemplos de definiggo geralmente boa com peque- nos senées: continuo, perene, permanente. O método de integrar 0 substantivo ao adjetivo numa entrada Gnica em fungao do critério adotado em relagdo aos hom6nimos e dando primazia ao adjetivo como se vé nesses dois verbetes continuo e permanente nao foi feliz. Embora nao seja o caso desses dois vocdbulos, muitas e muitas vezes o substantivo é mais usual que 0 adjetivo; outras vezes, o valor seméntico individualiza muito o substantivo como 0 caso tanto de continuo como de permanente. Assim, como jé se disse, a melhor metodologia seria considerar-se esses vocdbulos como um caso de homonimia e separar sempre a categoria adjeti- vo da categoria substantivo, o que é legitimo, lingiiisticamente falando. Usarei alguns verbetes mais para comentar alguns aspectos ¢ problemas que reiteradamente se verificam no diciondrio AURELIO, Comecemos com o verbete livre. O dicionarista inclui sentidos que ja nao se usam, caso tenham sido de fato usuais em etapa anterior da Iingua. Julgo que freqiien- temente induzido por registros de dicionérios que o precederam como 0 AULETE, por exemplo (1* ed. de 1881?) inclui sentidos inexistentes na lingua contemporanea. E 0 caso das acepcées 14 |livre== desregrado, licencioso], 15 [espontaneo, natural], 16 [que no tem limites: imenso, infinito]. O HOUAISS faz 0 mesmo. 105, BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Anise de dois dicionérios gerais do Portugués Brasileiro ‘contemporaneo: Aurélio ¢ o Housiss. Quanto as combinatérias fregiientes que podem gerar, ou nao, novas unidades lexicais, o AURELIO registra algumas; contudo, muitas vezes registra lexias que so raras, pois nfo ocorreram no corpus da UNESP e suspeito que sao dados pouco confidveis copia- dos de outros dicionérios, Cf. por exemplo: atmosfera~, bem (bens) livre(s); cdlice~; livre-culto, livre-cultista, pulso ~; tira ~. Nao encontrei nenhuma ocorréncia de livre-cémbio mas, sim, cambio livre que, alias, é a lexia complexa (termo) registrada em di- cionarios de economia. Algumas combinatérias lexicais parecem ser cépias do AULETE tais como vida livre com significado de . Quanto a livre vontade, acho que é um equivoco; deveria constay, sim, a expresso estereotipada “de livre e espontanea vontade", Outro decalque do AULETE: livre-alvedrio. Fazendo novamente o con- fronto com o nosso corpus constatei nao haver nenhuma ocorréncia de livre-alvedrio. Registram-se 4 ocorréncias de alvedrio (palavra iso- lada) nesse corpus. Na listagem de lexias complexas feitas ao fim do verbete algu- mas s&o combinatérias freqiientes com livre e deveriam ser referi- das como tal, Faltam aqui: imprensa livre, queda livre. O AURELIO in- lui corretamente como entradas aut6nomas: livre-arbitrio, livre-cémbio (methor cdinbio livre), livre-cornérciy, livre-docéncia, livre-docente, livre- iniciativa, livre-pensador, livre-troca. Contesto a existéncia como uni- dades do léxico de: livre-cambismo, livre-cambista, livre-cultismo, livre- cultista, livre-culto, livre troca, Por outro lado, o dicionério deveria ter registrado como combinatérias freqiientes e/ou lexias complexas: amor livre, boca-livre, livre circulagao (de mercadorias, capitais), livre comércio, livre competicao, livre conicorréncia, livre debate, livre-empresa, (direito de) livre escolha, livre-flutuagao de (dos) precos, livre iniciativa, livre negociagdo, livre trénsito. ‘Algumas dessas texias complexas foram adequadamente re- gistradas em verbetes que tém como lema um substantivo com qué livre se combina: feira livre em feira, vao livre em vao, mercado livre em mercado |embora também ocorra com freqiiéncia economia de livre 106 Filo, lings. port, 1. 5, p-85-116, 2002. mercado, sistema de livre mercado com anteposi¢ao| ¢ livre curso como fraseologia verbal dar livre curso a em curso. Ainda com respeito a estrutura do verbete. Vou comentar outro verbete em que nao houve muito critério-de ordenagao dos dados lexicais — o verbete direito. O primeiro probleina.€ o jé referido da no separacao dos homénimos direito adj., direito subst. e direito adv. Mas ndo € essa a quest’o que nos ocupa agora. A subentrada substantivo arrola, ao fim do verbete, uma grande lista muito hete- rogénea de combinatérias, a saber: direito adjetivo, ~ administrativo, ~ adquirido, ~ aéreo, ~ agrario, ~ assistencial, ~ autoral, ~ cambiario, ~ canénico, ~ civil, ~ cldssico, ~ comercial, ~ constitucional, ~ consu- etudindrio, ~ costumeiro, ~ criminal, ~ das gentes, ~ de arena, ~ de undo, ~ de petigdo, ~ de preferéncia, ~ de regresso, ~ de reproducdo, '~ de resposta, ~ de retorno, ~ do trabalho, ~ escrito, ~ Ffatencial, ~ {falimentar, ~ financeiro, ~ fiscal, ~ individual, ~ industrial, ~ interna- ‘cional privado, ~ internacional publico, ~ intertemporal, ~ Judicidrio, ~ liquido e certo, ~ maritima, ~ natural, ~ normativo, ~ objetivo, ~ penal, ~ personalissimo, ~ pessoal, ~ politico, ~ positivo, ~ privado, ~ processual, ~ piiblico, ~ real, ~ regressivo de recurso, ~ romano, ~s conexos, ~s de estola, ~s de mercé, ~s de pé-de-altar, ~ subjetivo, ~ substantivo, ~ tributdrio. Ora, nesse rol temos: lexias compostas que so termos da ciéncia do direito: direito administrativo, direito agrd- rio, direito autoral, direito canénico, direito civil, direito comercial, direito constitucional, direito do trabalho, direito fiscal, direito industrial, direito internacional privado, direito internacional ptiblico, direito penal, direito processual, direito piiblico, direito romano, direito tributdric E ainda: sintagmas freqiientes na linguagem especializada do direito e ou- tros que cairam em desuso. O dicionarista deveria ter distinguido alhos de bugalhos. 5.2 Quando a palavra tem varios sentidos, um problema muito complicado ¢ isolar os principais sentidos sem se deixar confundir pelas conotacées resultantes do contexto; e dessa forma individua- lizar apenas os significados basicos em que, de fato, se podem re- conhecer semas diferentes. Creio que, muitas vezes, essa constitui 107 BIDERMAN, Maria Tereza Camargo, Anise de dois dciondtios gerais do Portugués Brasileiro contemporaneo: o Aurélio e o Houaiss. uma fragilidade tanto do AURELIO como do HOUAISS. Ao invés de tentar fazer um esforco de separacao de sentidos e de sua ordena- ‘so, 0s dicionaristas vao expandindo o verbete e acrescentando mais e mais acepgdes, quando o ideal seria sintetizar e congregar varias delas numa mesma acep¢ao. : 5.3 O HOUAISS incluiu na estrutura do verbete um espaco. para as redes de significagio do léxico buscendo inovar, no s6 em relacio ao AURELIO, mas também em relaclo & Lexicografia tradi- cional em Lingua Portuguesa, Na nossa tradicao sé diciondrios es- peciais se ocupam de modo sistematico de sindnimos e antdnimos. Embora o propésito fosse louvavel, nao me parece que o HOUAISS foi feliz em sua inovacao, dada a forma como tratou a controversa questo da sinonimia e da antonimia, Pretendendo ser exaustivo, acaba por incluir como sin6nimos palavras que nao 0 so, De fato, como sabemos, os sinnimos verdadeiros, totais, sdio raros; assim, © dicionarista deveria ter informado que indicaria ni sé os sindni- mos, mas também os parassindnimos. E 0 mesmo se diga dos antGnimos e dos contrétios. Como nao tinha uma visio tedrica bem estabelecida sobre essa matéria, o HOUAISS extrapola de modo as- sustador. No exemplo dado a seguir do verbete permanente, 0 dicio- nario arrola como sindnimos desta palavra: arraigado, arreigado, cons- tante, continuo, definitivo, duradouro, durdvel, efetivo, estdvel, eternal, eterno, eviterno, fel, firme, fixo, imanente, imorredouro, imortal, impere- cfvel, imperturbdvel, imudlével, imutavel, inabaldvel,inalterdvel, incessante, indelével, indubitével, inexordvel, infinddvel, infinito, ininterrupto, in- quebrantével, intermindvel, invaridvel, invioldvel, irrevocdivel, irrevogdvel, leal, perdurdvel, perenal, perene, permanecente, perpétuo, perseverante, persistente, seguro, sempiterno, sdlido, tenaz, vago. E como anténimos: alterdvel, breve, caducd;descontinuado, descontinuo, efémero, extingiifvel, Jindével, finito, fragil, fugaz, fugidio, fugitivo, impermanente, incerto, inconcluso, inconstante, indefinido, infreqiiente, inseguro, instavel, inter- cadente, interino, intermitente, interrompido, interrupto, inter valado, Idbil, ligeiro, momentaneo, morredouro, mortal, movedico, mével, mudadi¢o, mudével, mutavel, ocasional, passadico, passageiro, perecedor, perecedouro, 108 Filo, lingtist. port, n. 5, p. 85-116, 2002. perecivel, perituro, perturbével, precdrio, provisional, provisdrio, tempo- rério, termindvel, transitivo, transit6rio, varidvel, vério, versdtil, voante, volatil, voltdrio, voltfvolo, volivel. E evidente que um grande ntimero desses adjetivos podem ser considerados, no maximo, como inte- grantes do campo semantico-lexical de permanente, mas nao como. sindnimos dessa palavra e nem como anténimos. Alias, muitos de- les fazem parte daquelas criacdes lexicais jé referidas, inventadas pelo HOUAISS. Nao fiz um confronto minucioso, mas creio que o HOUAISS se serviu de uma fonte problemdtica para colher sua pletora de sindnimos e anténimos — 0 dicionério analégico de Azevedo (19742), que estd arrolado na bibliografia deste artigo. Embora o diciondrio de Azevedo possa prestar servicos a um lexicégrafo e a um escritor, ele tem que ser usado com grande cautela, pois esta eivado de “alucinages” semantico-lexicais. Em suma, n&o s6 no exemplo dado, mas em muitos outros, o consulente precisa duvidar de muitas informagées registradas pelo HOUAISS no capitulo relati- vo a sindnimos e anténimos. Um diciondrio de dtima qualidade como © Petit Robert, econémico em relacao a sindnimos e antonimos, te- tia sido um bom modelo para o HOUAISS. 6. ETIMOLOGIA € HISTORIA DAS PALAVAAS / A etimologia e a datacao das palavras que se anunciou como. uma marca de superioridade do diciondrio HOUAISS sobre os dicio- ndrios contemporaneos também é questiondvel. A lingua portuguesa nao possui estudos confidveis sobre a histéria de seu léxico em seu conjunto para que se possam fazer afirmagées categéricas para um. ntimero considerdvel de palavras do nosso vocabulério. Com excecio dos diciondrios etimolégicoshistéricos de Antenor Nascentes, José Pedro Machado e Anténio Geraldo da Cunha, nado possuimos mui- tas fontes para pesquisar este tipo de informagio. E essas obras. Nao sao isentas de incorrecdes, além de nao cobrirem toda a imen- sidao do léxico. Em um ntimero significativo de casos suas licdes 109 BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Anilise de dois diciondrios gerais do Portugués Brasileiro. contempordneo: o Aurdio e © Hous. tém que ser revistas e reformuladas. Portanto, ndo creio que se possa emprestar fidedignidade a muitas informaces de cunho etimologico ¢ histérico propostas pelo HOUAISS. Nas primeiras paginas do diciondrio HOUAISS so elencadas suas fontes de referéncia, que impressionam pelo volume e pelo que revelam de erudigao. Contudo; nao creio que os autores deste dicionario tenham lido aquelas obras e as consultado. Esporadica- mente pode ser. Os responsdveis pela etimologia que talvez tenham sido também responsaveis pela histéria de muitas palavras, cuja evolugao semantica se tentou elaborar, ndo tém um curriculum cien- tifico no dominio da Linglifstica Histérica ou da Filologia Portugue- sa para constituirem autoridade sobre os ensinamentos que pas- sam aos consulentes. Examinando-se as fontes de datacdo e etimologia tem-se a impressdo de que estamos diante da lista das obras da biblioteca de Houaiss. Por outro lado, varias obras af alistadas tém interesse para um dicionarista e um intelectual interessado na his- t6ria das linguas como ele era, mas no se constituem propriamen- te numa fonte de datagdo e de etimologia para 0 vocabulério do por- tugués. Dentre outros, alguns diciondrios histéricos e etimolégicos, por exemplo: The Century dictionary. An Encyclopedic lexicon of the English language (1889-1891); Dictionnaire étymologique de ancien Srangais (1992); Dictionnaire historique de ta langue francaise (1974, Trésor de ia langue francaise; The Oxford dictionary of English etymology; e varios outros de linguas eslavas, do alemio, etc. Também se in- cluem duas edig6es do dicionério Webster — 1961 e 1996, Se a obra Portugaliae Monumenta Historica & fonte importante para a histéria do portugués, ndo me parece que diciondrios etimolégicos do in- gis, do russo, e mesmo do francés possam sé-lo. Nao ajudam nem a fazer a hist6ria das palavras na evoluco diacrénica do portugués, nem podem ser considerados como fontes de datacao, pois trata-se da historia de outras Iinguas. Foi uma temeridade o mentor do dicionério se ter langado um empreendimento tao ambicioso como este sem contar com ume equipe sdlida de fildlogos que respondesse por uma érea to comple- 110 Filo. lings. port, 85-116, 2002. xa e que exige a dedicagio de uma vida, visto como é tao pequena a produgio cientifica sobre a hist6ria do portugués e sobretudo de seu vocabulério, Julgo que fildlogos de sdlida formacdo cientifica teriam provavelmente desencorajado Houaiss de se langar a uma tal faganha cientifica sem ter os recursos para isso. O modelo de verbete do HOUAISS foi estriiturado tendo como. eixo as datages de registro escrito da palavra, bem como de seus diferentes sentidos, seguindo o modelo do grande Oxford English Dictionary. Como ja se afirmou essa foi uma opcao temeréria, pois a lingua portuguesa nao dispde de muitas fontes confidveis que per- mitam ao lexicégrafo estabelecer tais datacdes. O HOUAISS valeu- se sobretudo das obras e pesquisas de Anténio Geraldo da Cunha para esse fim. Além de problematico o registro do primeiro uso da palavra, isso tem conseqiléncias na estruturacao do verbete. Assim, em principio, o HOUAISS ordena as acepgdes em ordem cronolégi- ca, assumindo, pois, uma postura de dicionério histérico e nao de um dicionario de usos da lingua contemporanea. Convém lembrar que 0 Oxford, que Ihe serviu de modelo, pelo contrdrio, se apresen- ta como um diciondrio baseado em principios histéricos. Por con- seguinte, um consulente comum do HOUAISS, desconhecedor da diacronia da lingua, ficard surpreso ao constatar que o sentido mais comum na atualidade pode aparecer em 2°, 3°,)..., 8° lugar na suces- slo histérico-hierdrquica dos sentidos. Vejam-se trés exemplos para ilustrar. Botdo. A primeira acepcio indicada é . O sentido aparece como 8* acepgo. Consultando-se 0 Diccionario Critico Etimolégico de la Lengua Castellana de J. Corominas, que é uma das boas fontes para o estudo da histéria lexical das linguas latinas da Ibéria, vé-se que o sentido< pequeno objeto para fechar uma veste (blusa, camisa, etc.)> foi o primeiro significado registrado para o espanhol — século XII. E improvavel que, dada a intensa convivéncia e interac&o entre o reino de Portugal e os rei- nos castelhano:i nessa época, tal significado fosse exclusivo do es- Wi BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. Andlise de dois dciondrios gerais do Portugués Brasileiro contemportneo: 0 Aurélio e 0 Houaiss. panhol. Baseando-se em Cunha, o HOUAISS atribui sua primeira acepedo ao século XIV, precedendo aquele oitavo sentido. & preciso Pesquisar mais para se estabelecer tal cronologia. Faxina, A acepcaio que foi usada no passado (cf. Morais, 1813] hoje é praticamente desco- nhecida. E 0 primeiro sentido registrado neste verbete, Surgir. A acepcao aparece como ptimeira acepsiio, sentido esse que j4 caiu em desuso. Também o sentido mais comum de surgir no portugués contemporaneo 86 € registrado como 8 acepcio. Eevidente que a ordenaco dos sentidos das palavras no ver- bete causaré espanto e até dificuldades para os consulentes, 7. CONCLUSAO- Numa avaliacao geral, é preciso admitir que o AURELIO con- tinua sendo um diciondrio mais coerente ¢ de melhor qualidade técnica que o HOUAISS, apesar das muitas criticas feitas neste arti- go. Embora se tenha afirmado que o recurso a obras literdrias como fonte e aval autorizado de uso no seja indispensavel, ainda assim essa € uma qualidade que 0 AURELIO possui indubitavelmente e 0 HOUAISS, nao. E bem visivel na versio eletrénica de facil consulta, Quando o consulente constata que um grande escritor usou aquela Palavra e pode conferir, de imediato, o enunciado em que ela ocor- eu, sentir-se-4 mais seguro em usé-la. E verdade que o didonério AURELIO poderia ser de melhor qualidade, corrigindo os desacer- tos do dicionarista:Aurélio em suas versdes anteriores (1975 2 1986) @ aprimorando recur8os.que jé possufa e, sobretudo atualizando a nomenclatura, incluindo neologismos entrados para o idioma de- pois destas datas. Infelizmente, € preciso cobrar das equipes que elaboraram estas obras, o fato de um trabalho tao grande e mesmo insano ter ig Filol, lings. port, n.5, p. 85-116, 2002. falhas que poderiam ter sido evitadas. De fato, se um corpo de lin- guistas de formacdo especializada em Lexicologia/Lexicografia/Ter- minologia tivesse cooperado nestes grandes empreendimentos ¢ se essas obras se tivessem fundamentado em um grande corpus in- formatizado, representativo do Portugués Brasileiro contempora- neo, elas poderiam atingir o status de grande tesouro lexical da nossa lingua. BIBUOGRAFIA ‘AIVES, lM. (1990) Neologism. Criag lexical, S80 Paulo, Atica. ‘NULETE, FJ. C. 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Anise de dois dcionétios geris do Portugués Brasileiro contemporaneo: 0 Aurélio e 0 Houaiss, ABSTRACT. This article makes an analysis of two general dctionaties recently published: Diciondrio HOUAISS de Lingua Portugueso (2001) and the last edition (2000) of AURELIO ‘Séeulo XX1 dictionary. Primarily | examined the theoretical basis of these works and the flaws concerning concepts and methods of Lexical Theory; also indicate the need for dictionaries to be based on texts that were actually printed or produced. The wide- ranging and representativity of lexicon registered in these dictionaries and the criteria for choosing word-entries are analysed, as well asthe treatment applied to the articies of these dictionaries. Keywords: dictionary, general dictionary, lexicography, computerized corpus, macros: tructure and microstructure ofthe dictionary. 16

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