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Introdugao Tatau Godinho Un aesatio constante no trabalho de Alexandra Kolontai foi tentar convencer seus companheiros de luta revolucionaria de que a mudanca nas questées da vida privada, do comportamento, da sexuali- dade, do amor eram parte imprescindivel das responsabi- lidades da revolugao. Ao contrario da vis4o predominante, de que s6 devemos, ou s6 poderemos nos dedicar a elas quando a transformagio econémica e politica ja estiver as- segurada, Kolontai insistia que a gestagao desta nova mo- ral deve ser, necessariamente, um componente do proces. so de luta. Convencida da importancia das transformagées econémicas e politicas para que uma efetiva libertagao pudesse existir, nao se conformava com que, nestas ques- t6es, a prioridade fosse sempre adiada. Afinal, diziaela, “A experiéncia da historia nos ensina que a elaboracao da ide- ologia de um grupo social e conseqiientemente da moral Alexandra Kolontai sexual também se realiza durante o proprio processo de luta deste grupo contra as forcas sociais adversas”. Nesta, e em varias outras questdes, com certeza néo imaginaria o quanto sua luta permanece atual quase um século mais tarde. Uma das tinicas mulheres na diregéo do partido bolchevique durante 0 perfodo revoluciona- rio, Alexandra Kolontai desenvolveu uma reflexao rica e singular sobre a libertagio das mulheres, com uma pos- tura exigente e profundamente critica das relacées pes- soais, dos valores da familia e da moral tradicional. Sua posicao radicalmente libertéria no debate sobre o amor e a sexualidade se mantém com uma atualidade surpreen- dente. A lucidez na insisténcia do respeito a individuali- dade de cada um na construgo das relagées afetivas; s0- bre a importancia da sexualidade na formacao psicolégi- ca dos individuos; na critica ao casamento tradicional fundado na visao de propriedade e subordinagao da mulher ao homem; na visao aberta sobre a construcao de novas formas de relacdo afetiva e sexual sem se enganar que sob formas aparentemente modernas se mantém re- lagdes de dominagao; na defesa da autonomia material e psicoldgica das mulheres. Com uma critica aguda as relacdes de dependéncia eco- némica, de subordinagao das mulheres sobre as quais se constréi o casamento e familia tradicionais, suas reflexes insistem sobre a importancia da autonomia econémica, da construgio da individualidade independente das mulhe- tes, do seu desenvolvimento profissional e intelectual, da ruptura com os valores de feminilidade assentados na sub- missao. Uma ruptura que exige a transformagio de mu- Iheres e homens. E que exige um investimento politico conc para nao da ig taca das deb: cion post vers esta em 193% prir inte tos afa sarr cio, da tan pol ale sex cul era sist de: ma anova mulher € a moral sexual conereto na mudanga das condigdes de vida das mulheres para que as necessidades econémicas ou a maternidade nao sejam empecilhos & sua libertagao. Dai a importancia da igualdade no direito ao trabalho, a énfase sobre a liber- tacao das mulheres da escravidao do trabalho doméstico, das politicas em relagao a maternidade. Os temas abordados por Kolontai foram parte de um debate inovador nos meios socialistas da Russia revolu- ciondria. E ainda que tenham sido apagados no periodo posterior na Unido Soviética, ou em que pese a contro- vérsia politica que marca sua biografia na reagéo a0 estalinismo, e que até mesmo a legislagao progressista em relagio As mulheres tenha retrocedido apés os anos 1930, permanecem uma referéncia importante. Nos seus primeiros anos, a Revolugio Russa iniciou um processo intenso de mudangas na legislacao, nos diversos aspec- tos em que a lei reafirmava a subordinagao das mulheres a familia e ao poder masculino. Na legislagao sobre 0 ca- samento, simplificacao dos procedimentos para o divér- cio, eliminagao das restrigées ao emprego ete. Para além da legislagao, foram se introduzindo mudancas impor- tantes para alterar a vida das mulheres. Inicio de uma politica de creches, de restaurantes no local de trabalho, a legalizagao do aborto, entre outras. Mas as mudancas, sem diivida avangadas, esbarravam nao apenas nas difi culdades econémicas de um proceso revoluciondrio que era atacado por todos os lados. Chocavam-se com a re- sisténcia das relagdes de dominagao entre os sexos. Intransigente com © machismo arraigado na postura de companheiros, mesmo entre os que se pretendiam os mais revolucionarios, Kolontai era aguda na critica. De- Alexandra Kolontai nunciava que quando se tratava de romper com as ve- Ihas estruturas, lutar pela mudanca das velhas relagdes de producao, ser intransigente com a sociedade burgue- sa, pode-se encontrar unidos para isso todos os revolucio- narios. Mas, no momento em que se trata de romper com a velha mentalidade patriarcal, romper com o papel su- bordinado das mulheres, em particular na vida privada, entao, nao é incomum encontrar que os revolucionarios se unam em defesa dos mais atrasados preconceitos comportamentos totalmente incompativeis com as mu- dangas que defendem. Refletindo sobre o que é a nova mulher, seu trabalho procura detectar 0 novo perfil que surge com a entrada massiva das mulheres no mundo do trabalho e as exi- géncias de independéncia que vao se impondo. A mu- Iher moderna preconizada por Kolontai énecessariamen- te independente economicamente mas, mais que isso, constréi uma autonomia que estrutura sua individuali- dade, independente de suas relagdes familiares. Na construgéo de novas relagdes, Kolontai enfatiza a importancia de se refazer todo o estofo sobre 0 qual se fundam as relagdes pessoais. Repensar 0 amor e a sexua- lidade sobre novas bases, fundados na igualdade, no res peito mtituo, no companheirismo, na “liberdade absolu- ta, por um lado, e igualdade e verdadeira solidariedade como entre companheiros, por outro”, sabendo que a tran- sigdo e a ruptura com a moral tradicional exigira um lon- g0 periodo e uma dedicacio sincera a este lado da trans- formagao social. A separacao entre a vida puiblica e a vida privada 6 um dos elementos mais importantes na conformagao de ‘a nova mulher e a moral sexual valores, do modo de vida, em conflito com um projeto radical de igualdade. O descaso pelas questdes de trans- formacao pessoal, a redugao dos horizontes da luta poli- tica, sem incorporar de forma efetiva o questionamento dos valores, comportamentos e privilégios que reforcam a dominagéo masculina, limitam a elaboracdo de uma nova moral, uma nova ética que orientem as relacdes pes- soais e sociais. Sem deixar de considerar os conflitos pes- soais ¢ psicolégicos presentes no desenvolvimento de uma nova mentalidade para as mulheres, de novas for- mas de amor ¢ sexualidade, Kolontai, entretanto, nao chegou a elaborar sobre as contradig6es entre a opressio de género e de classe. Nao contava, obviamente, com os elementos teéricos sobre a opressao das mulheres de que dispomos hoje; por outro lado, compartilhava uma visio que nao desafiava, do ponto de vista te6rico, os conflitos dentro da propria classe. Sua critica & incoeréncia dos revolucionarios quando se tratava da opressao das mu- Iheres, no entanto, indicava, na pratica, o enfrentamento de um problema que ainda hoje ocupa as militantes de esquerda: as contradig6es entre as relagdes de género e as relacbes de classe, entre os interesses individuais que se alimentam da opressdo das mulheres e os objetivos coletivos visando a construgao da igualdade em todos os campos da vida social. Profundamente critica a duplicidade dos valores so- bre os quais se estruturam as relagGes pessoais tradicio- nais, Kolontai discute, em outros termos, temas que s6 sero retomados com félego na esquerda a partir da dé- cada de 1960, pelas maos do feminismo. Nao é por acaso que seus textos foram, durante muitos anos, inspiracdo e 1 leitura obrigatoria para as feministas socialistas ¢ mili- tantes, mulheres e homens, que buscam construir uma ética libertaria nas relagdes afetivas e pessoais. E que acre- ditam que transformar radicalmente 0 mundo s6 sera Possivel se as mulheres forem, com igualdade, sujeitos legitimos deste proceso. Reeditar Alexandra Kolontai é também renovar a esperanca neste projeto. Alexandra Kolontai ANOVA MULHER E A MORAL SEXUAL Pee 2904 Prelioaao eam S24 EXPRESSIO POPULAR

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