You are on page 1of 17
Aspectos vetogtne clo Leltura Angela Kleiman 12° EDICAO Pontes 2009 Capitulo 2 OBJETIVOS E EXPECTATIVAS DE LEITURA Concluimos o capitulo anterior tragando um quadro um tanto uniforme do processo de compreensio, pois focalizivamos o papel do conhecimento mituo, comum entre leitores e autor, ¢ afastévamos, momentaneamente, o carater individual e Gnico de cada leitura e de cada leitor. A fim de repor a perspectiva mais certa, em que esses aspectos séo relevantes, comecarei este capitulo citando parte de um ensaio de Virginia Woolf chamado “Como se deve ler um livro?” (1932), onde a autora diz que quer, “primeiramente enfatizar o signo de interrogacéo no fim do meu titulo”. Continua a autora: “ainda se pudesse responder & pergunta para mim mesma, a resposta se apli- caria somente a mim, e nao a vocé. O tinico conselho, de fato, que uma pessoa pode dar a outra sobre leitura € o de seguir conselho nenhum, seguir seus instintos préprios, chegar a suas conclusdes pré- prias”. “Se isso for de comum acordo”, ela diz, “entaéo eu me sinto & vontade para expor umas poucas idéias e sugest6es porque assim voc8 nao permitiré que elas restrinjam essa independéncia que é a qualidade mais importante que um leitor pode possuir”. A autora enfatiza aquilo que ha de individual na leitura, os aspec- tos que sao tinicos e que, em grande medida, so determinados pelos objetivos e propésitos especificos do leitor. A compreensao, o esforgo para recriar o sentido do texto, tem sido varias vezes descrito como um esforco inconsciente na busca de coeréncia do texto. A procura de coeréncia seria um principio que rege a atividade de leitura e outras atividades humanas. Ora, um dos 29 caminhos que nos ajudam nessa busca é 0 engajamento, a ativacio de nosso conhecimento prévio relevante para o assunto do texto, Um outro caminho, que discutiremos a seguir, é 0 estabelecimento de objetivos e propésitos claros para a leitura. Cabe notar aqui que 0 contexto escolar nao favorece a delineacao de objetivos especificos em relagao a essa atividade. Nele a atividade de leitura é difusa e confusa, muitas vezes se constituindo apenas em um pretexto para cépias, resumos, andlise sintdtica, e outras tarefas do ensino de lingua. Assim, encontramos o paradoxo que, enquanto fora da escola o estudante é perfeitamente capaz de planejar as acdes que o levario a um objetivo pré-determinado (por exemplo, elogiar alguém para conseguir um favor), quando se trata de leitura, de inte- racdo a distancia através do texto, na maioria das vezes esse estudante comeca a ler sem ter idéia de onde quer chegar, e, portanto, a ques- tao de como ira chegar 14 (isto é, das estratégias de leitura) nem sequer se poe, HA evidéncias inequivocas de que nossa capacidade de processa- mento e de meméria melhoram significativamente quando € fornecido um objetivo para uma tarefa. Numa experiéncia realizada por alunos nossos, foi solicitado a adolescentes cursando o 2.° grau noturno que Jessem um breve texto expositivo. O texto era o mesmo para todos os estudantes havendo, no entanto, variagdes nos objetivos dessas leitu- ras. Apés a leitura, os alunos deviam fazer um resumo do texto; um grupo nao tinha objetivo nenhum para esse resumo, enquanto que um outro grupo devia fazer um resumo que deveria ser submetido ao jornal da escola, que precisava publicar um artigo sobre o assunto. Os alunos que tinham um objetivo especifico, nao somente escreve- ram melhores textos como também demonstraram terem percebido melhor o tema do texto original que serviu de base para os resumos; os alunos que apenas deviam fazer um resumo nao conseguiram de- preender nem o tema, nem os subtemas do texto original além de nao terem conseguido produzir um texto coerente. A explicitacéo de obje- tivos, entao, possibilitou a compreenséo do texto, mesmo num con- texto altamente desmotivador como é 0 contexto de curso noturno, ¢ mesmo com objetivos artificialmente impostos, no ditados pelos in- teresses dos prdprios leitores. Ha também evidéncia experimental que mostra que somos capa- zes de lembrar muito melhor aqueles detalhes de um texto que tém a 30 ver com um objetivo especifico. Isto é, compreendemos e lembramos seletivamente aquela informag&o que ¢ importante para o nosso pro- posito, Numa experiéncia realizada por dois psicélogos americanos, os sujeitos da experiéncia deviam ler o trecho abaixo, imaginando que estavam querendo comprar uma casa, ¢ que a casa descrita no texto Ihes interessava para essa possivel compra: (1) “Os dois garotos correram até a entrada da casa. “Veja, eu disse a vocé que hoje era um bom dia para brincar aqui”, disse Eduardo. “Mame nunca estd em casa na quinta feira”’, ele acres- centou, Altos arbustos escondiam a entrada da casa; os meninos podiam correr no jardim extremamente bem cuidado. “Eu nao sabia que a sua casa era tio grande”, disse Marcos. “E, mais cla esté mais bonita agora, desde que meu pai mandou revestir com pedras essa parede lateral e colocou uma lareira”. Havia portas na frente e atrdés e uma porta lateral que levava & garagem, que estava vazia exceto pelas trés bicicletas com marcha guardadas ai, Eles entraram pela porta lateral; Eduardo explicou que ela ficava sempre aberta para suas irm&s mais novas entrarem e sairem sem dificuldade. Marcos queria ver a casa, entéo Eduardo comegou a mos- tré-la pela sala de estar. Estava recém pintada, como o resto do primeiro andar. Eduardo ligou o som: o barulho preocupou Marcos, ‘Nao se preocupe, a casa mais préxima esté a meio qui- lémetro daqui”, gritou Eduardo, Marcos se sentiu mais confor- tével ao observar que nenhuma casa podia ser vista em qualquer diregéo além do enorme jardim. A sala de jantar, com toda a porcelana, prata e cristais, nao era lugar para brincar: os garotos foram para a cozinha onde fizeram um lanche. Eduardo disse que nfo era para usar o lavabo porque ele ficara tmido e mofado uma vez que 0 encanamento arrebentara. “Aqui é onde meu pai guarda suas colegdes de selos e moe- das raras”, disse Eduardo enquanto eles davam uma olhada no escritério. Além do escritério, havia trés quartos no andar supe- rior da casa. Eduardo mostrou a Marcos o closet de sua mae cheio de roupas e o cofre trancado onde havia jdias. O quarto de suas 3 irmas nfo era t&o interessante exceto pela televisio com o Atari. Eduardo comentou que o melhor de tudo era que o banheiro do corredor era seu desde que um outro foi construfdo no quarto de suas irmas. Nao era to bonito como o de seus pais, que estava revestido de marmore, mas para ele era a melhor coisa do mun- do” (traduzido e adaptado de Pitchert, J. & Anderson, R. Taking different perspectives on a story, Journal of Educational Psycho- logy, 1977, 69). Se fizermos uma lista das informacdes que sao relevantes para o comprador da casa, ela provavelmente corresponderia as informacdes que os sujeitos da experiéncia conseguiram lembrar depois de ter lido © texto: tamanho da casa, ntimero de cémodos, tamanho do jardim, revestimento de pedra, lareira, pintura nova, nimero de banheiros, méatmore no banheiro, closet no quarto de casal. Nessa mesma expe- riéncia, o texto acima foi também apresentado a um segundo grupo de leitores com a instrugdo de que tentassem se lembrar de tudo aquilo que seria interessante para um ladrao que estivesse planejando arrom- bar a casa. Nesse caso, os sujeitos conseguiram lembrar informacdes como o fato de a mae nao estar em casa nas quintas feiras, os arbustos que isolam a casa, a distancia dos vizinhos, as bicicletas, som, tele- visio com Atari, colegio de selos e moedas, roupas, jdias, e assim sucessivamente. Portanto, dois objetivos diferentes, procurar no texto a descricéo de uma casa que interessava ou para comprar ou para arrombar, resultaram na recuperacao de informagdes diferentes. Alguns especialistas em leitura afirmam que nao ha um processo de compreensao de texto escrito, mas que hé varios processos de leitura, sempre ativos, tantos quantos forem os objetivos do leitor, muitas vezes estes Ultimos determinados pelos tipos ou formas de textos. E citam como evidéncia a enorme diferenga envolvida nas lei- turas de textos como nos exemplos (2) e (3) abaixo: (2) BOLINHO DE TAPIOCA 1 litro de leite 1 kg de farinha de tapioca 3 ovos inteiros 3 colheres de manteiga 1 pitada de sal 32 Mistura-se tudo numa tigela, pondo primeiro o leite e depois os outros ingredientes. Quando tiver bem misturado, faca os boli- nhos (feitos de arroz), utilizando 1 colher (de sopa) da massa, e leve para assar em forno bem quente por 30 ou 40 minutos. Fica durinho por fora e timido por dentro. Da uns 48 bolinhos. (3) A MATERIA SUPERAQUECIDA E SUPERCOMPRIDA O nticleo de um dtomo possui a maior densidade de matéria na natureza. Se empilhdssemos os niicleos lado a lado, em um centimetro ctibico, teriamos alguns milhdes de toneladas de massa. No entanto, tal como a conhecemos, a matéria nao é densa. Isso porque os nucleos dos atomos que a compdem sao envolvidos por uma nuvem de elétrons que ocupa a maior parte do espaco. O raio de um nticleo é da ordem de alguns fermis (1 fermi = 10°°m), enquanto o raio de um dtomo é da ordem de alguns angstroms (1 angstrom = 107? = 10 fermis). O nticleo se com- poe de prdtons e néutrons, chamados genericamente de nticleons, e € caracterizado pelo ntimero de massa A, que é igual ao nt- mero total de nticleons, e pelo niimero de carga Z, que é igual ao nimero total de prétons do nticleo. (Revista Ciéncia Hoie, 8. 46, 9/1988). De fato, a forma do texto determina, até certo ponto, os objetivos de leitura: hd um grande ntimero de tipo de textos, como romances, contos, fabulas, biografias, noticias ou artigos de jornal, artigos cien- tificos, ensaios, editoriais, manuais diddticos, receitas, cartas; parece claro que 0 objetivo geral ao ler o jornal € diferente daquele quando lemos um artigo cientifico. Por exemplo, na leitura de um jornal, j4 na primeira pagina o leitor faz uso de mecanismos para a apreensio rapida de informacdo visual dando uma mera passada de olhos, (pro- cesso este chamado de “scanning” ou avistada) geralmente a fim de depreender o tema dos diversos itens a partir das manchetes. Uma vez localizada uma noticia de interesse, é provavel que o artigo seja lido procurando detalhes sobre o assunto, comparando com o que ja se sabe sobre o assunto. Por outro lado, se estamos em dtivida sobre o possivel interesse de um artigo, é provavel que utilizemos uma pré-lei- tura seletiva um processo chamado de “‘skimming”, literalmente, des- natamento) que consiste em ler por exemplo, seletivamente os primei- ros ou tiltimos periodos de pardgrafos, as tabelas, ou quaisquer outros 33 itens selecionados pelo leitor, a fim de obter uma idéia geral sobre o tema e subtemas. Essas diferentes leituras porém, residem apenas nas diferencas entre mecanismos mais superficiais do processamento visual. Estes sio necessdtios ao processamento, j4 que é através do olho que o input grafico é percebido, mas uma vez que a imagem € apreendida, ela passa pelos processos analiticos préprios da procura de significado, que sao comuns a qualquer leitura. Mas hé também diferencas entre as leituras determinadas em parte pelo tipo de textos, daf considerarmos a leitura de uma bula de remédios tao diferente da leitura de um romance, pois a primeira sé se presta a pouquissimos objetivos, enquanto a tltima pode atender um conjunto infinite de propésitos. A escritora Virginia Woolf, j4 cita- da, também descreve muito habilmente a liberdade de definigéo de objetivos que os textos imprevisiveis, ou menos previsiveis, nos per- mitem. Assim, ela lé os grandes romances dos grandes escritores para conhecer outras realidades perfeitamente consistentes em si mesmas embora contrérios € contraditérios uns com outros, esses mundos nao so nunca incoerentes € nisso reside o fascinio do romance para essa leitora. A escritora 1é livros menores, como biografias, por exemplo, a fim de satisfazer uma curiosidade insacidvel que ela acha seme- thante aquela curiosidade que as vezes nos invade, ao anoitecer, quan- do vislumbramos uma casa com as luzes acesas ¢ as cortinas abertas. que nos mostra, em cada janela, uma segiio diferente da vida humana: pois para ela a biografia acende uma luz em muitas casas paisagens iguais a essa vislumbrada. Para a autora, um objetivo alternativo na leitura desses livros é que eles servem para motivar outras leituras, pois, embora essas estérias tenhham momentos passageiros de verdade e beleza, elas se tornam cansativas no final, e criam o ambiente e 2 disposigdo e até a necessidade de desfrutar “a abstracéo maior, 2 verdade mais pura da ficcdo”, cuja expressdo 6, para ela, a poesia Em outras palavras, nao ha objetivos na leitura por prazer. O objetivo € o prazer. Por outro lado, na leitura de textos mais previsiveis, de nao ficc&o, a leitura com objetivos bem definidos permitiré lembrar mais e melhor aquilo lido. A capacidade de estabelecer objetivos na leitura é considerada uma estratégia metacognitiva, isto ¢ uma estratégia de controle e regulamento do préprio conhecimento. Por exemplo, decidi 34 que uma certa tarefa nos tomaré quatro horas é uma decisfio de tipo metacognitivo, pois é uma decisfo tomada apés uma ayaliagao de nossas capacidades ¢ das facetas envolvidas na resolugao da tarefa. Também a estratégia metacognitiva implica uma reflexaéo sobre o pré- prio conhecimento; por exemplo, saber quando jé estudamos o sufi- ciente para saber uma matéria é um conhecimento alcancado através de uma reflexdo sobre o préprio saber, ¢ € considerado, portanto, conhecimento metacognitivo. Esse conhecimento metacognitivo é de- senvolvido ao longo dos anos de uma pessoa; sabe-se que as criangas pequenas mostram maiores dificuldades para avaliar 0 proprio conhe- cimento desta maneira, isto €é, para controlar o conhecimento ou para refletir sobre ele. E devido ao papel das estratégias metacognitivas na leitura que podemos afirmar que, apesar das diferengas j4 discutidas, a leitura € um processo s6, pois as diferentes maneiras de ler (para ter uma idéia geral, para procurar um detalhe) sio apenas diversos caminhos para alcangar 0 objetivo pretendido. Cabe notar que a leitura que néo surge de uma necessidade para chegar a um propésito nao € propriamente leitura; quando lemos por- que outra pessoa nos manda ler, como acontece freqiientemente na escola, estamos apenas exercendo atividades mecanicas que pouco tém a ver com significado e sentido. Alids, essa leitura desmotivada nao conduz & aprendizagem; como vimos anteriormente, material irrele- vante para um interesse ou propésito passa desapercebido e € pronta- mente esquecido. A pré-determinag&o de objetivos por outrem nao é, contudo, necessariamente um mal. Se o leitor menos experiente foi desacostumado, pela prépria escola, a pensar e decidir por si mesmo sobre aquilo que ele 1, entéo o adulto pode, provisoriamente, su- perimpor objetivos artificialmente criados para realizar uma tarefa interessante e significativa para o desenvolvimento do aluno (por exem- plo, para se preparar para um debate representando pro ¢ antiaboli- cionistas durante o Império). Assim, indiretamente, através do modelo que o adulto Ihe fornece, esse leitor estabeleceré eventualmente seus proprios objetivos, isto é, desenvolverd estratégias metacognitivas ne- cessatias e adequadas para a atividade de ler. Os objetivos séo também importantes para um outro aspecto da atividade do leitor que contribui para a compreenséo: a formulagao de hipdteses. Varios autores consideram que a leitura 6, em grande 35 medida, uma espécie de jogo de adivinhagao, pois o leitor ativo, mente engajado no processo, elabora hipéteses e as testa, & medic que vai lendo o texto. Na discussao até este momento, deve ter ficac evidente que 0 texto nao é um produto acabado, que traz tudo pro: para o leitor receber de modo passivo. Ora, uma das atividades leitor, fortemente determinada pelos seus objetivos e suas expecta vas, € a formulagao de hipéteses de leitura. Por exemplo, se temo: como objetivo saber qual é a opiniao do editor do jornal que com pramos sobre um novo programa econémico, leremos 0 editorial com uma série de expectativas j4 presentes (pois conhecemos o posicic namento politico do jornal, conhecemos a situag&o sécio-econémicz e politica do pais, etc.) e formaremos uma série de hipdteses, tantc sobre a estrutura do texto (tratando-se de um editorial, ele provavel- mente conterd uma tese a ser defendida com evidéncias que o editor julgar adequadas) quanto sobre o contetido (isto é, esperamos que © texto desenvolva tépicos e subtépicos relacionados a economia interna. e nao, para citar um exemplo, sobre as relagdes diplomaticas com a Africa do Sul). As hipoteses do leitor fazem com que certos aspectos do proces- samento, essenciais 4 compreensdo, se tornem possiveis, tais como o reconhecimento global e instantaneo de palavras e frases relacionadas ao tépico, bem como inferéncias sobre palavras nao percebidas durante © movimento do olho durante a leitura que nao é linear, o que per- mitiria ler tudo, letra por letra e palavra por palavra, mas é sacddico, © que significa que 0 olho dé pulos para depois se fixar numa palavra e dai pular novamente uma série de palavras até fazer nova fixacao). Ambos, o reconhecimento instanténeo e a inferéncia a partir da visao periférica, so essenciais para a leitura rdpida, que, por sua vex 6 essencial para n@o sobrecarregar os mecanismos do processamento inicial (chamado de meméria imediata) com o material que nossos olhos, muito rapidamente, continuam a trazer para o cérebro proces- sar. Se o material que os olhos estéo percebendo nao for processado rapidamente, haveré uma situagdo semelhante ao engarrafamento que se forma quando o tréfego de carros deixa de fluir normalmente numa hora de pique. Chegado um momento, tudo péra; na leitura, esse é © momento em que estamos apenas passando o olho por cima, sem compreender nada. A crianca em fase de alfabetizacZo 1é vagarosamente, mas o que ela esta fazendo € decodificar, um ptocesso muito diferente da leitura, 36 embora as habilidades necessérias para a decodificagéo (conhecimento da correspondéncia entre o som e a letra) sejam necessdrias para a leitura. O leitor adulto nao decodifica; ele percebe as palavras glo- balmente ¢ adivinha muitas outras, guiado pelo seu conhecimento prévio e por suas hipdteses de leitura. Pode parecer que os comentérios acima contradizem o quadro tracado anteriormente, quando mostrdvamos que o que determinava tanto o grau de compreensdo do leitor como o tipo de detalhe que ele conseguia lembrar dependia de certas manipulacdes do texto: a eliminacao do titulo, por exemplo, ou a presenga de instrugdes mani. pulativas para definir interesses e objetivos. Nao pareciam cruciais, como afirmamos aqui, as expectativas do leitor. No entanto, as situa- g6es descritas anteriormente so situagdes experimentais, onde texto e leitor estio descontextualizados. O leitor deve ler trechos parciais, desprovidos das informagées relevantes sobre o tempo e lugar em que foram escritos, textos incompletos, sem data, sem fonte. Nessas con- dig6es, o leitor néo tem como utilizar seu conhecimento prévio, nem esté motivado pelos seus préprios objetivos para assim formular e testar hipdteses de leitura. Também os textos podem ser propositada- mente obscuros ou ambiguos, sem que haja uma unidade maior que permita iluminar as obscuridades e desfazer as ambigitidades. De fato, até nessas situagGes experimentais o leitor formula hipdteses de lei- tura; acontece que as pistas sao insuficientes pois elas sao apenas in- tratextuais. No texto a seguir, adaptado de Bransford e Johnson, intitulado “Observando uma marcha de protesto do vigésimo andar” as pistas sao intratextuais; o texto foi utilizado numa experiéncia sem forne- cimento de quaisquer outros dados sobre autor, fonte; o texto foi, de fato, escrito para a experiéncia: (4) “O espetaculo era empolgante. Da janela podia-se ver a multidao embaixo. Tudo parecia extremamente pequeno, mas dava para ver as roupas coloridas. Todos pareciam estar indo na mesma diregao, com muita ordem, e parecia haver tanto criangas come adultos. A aterri- zagem foi suave e afortunadamente a atmosfera era tal que nao havia necessidade de usar trajes espaciais. No inicio, havia muita atividade. Mais tarde, quando os discursos comecaram, a multi- 37 dao foi se aquietando. O homem com a camera de televisao filmou muitas cenas do lugar ¢ da multiddo. Todos estavam muito tranquilos e pareciam contentes quando a musica comecgou” (Traduzido de Bransford, J. e McCarrell, N. “A Sketch of a cog- nitive approach to comprehension: Some thoughts about unders- tanding what it means to comprehend”, in Johnson-Laird, P. € Wason, P. Thinking: readings in cognitive Science, Cambridge University Press, 1977). Na experiéncia em que esse texto foi utilizado, os sujeitos deviam ler ¢ depois recontar o que lembrassem da est6ria. Os resultados mostraram que os sujeitos conseguiam lembrar quase todas as infor- magoes exceto aquelas sobre a aterrizagem. Alguns dos leitores lem- bravam que havia uma sentenga sobre aterrizagem que nao conse- guiram entender, mas a maioria dos leitores simplesmente nao mencionava nada a respeito dessa informagao. Para os autores da experiéncia esse fato é evidéncia de uma falha na compreensao devida & incapacidade dos leitores de ativar conhecimento ndo-lingiiistico apropriado face aos dados formais lingiifsticos, que produziam uma inconsisténcia. Mas também podemos interpretar esses dados a partir da atividade de formulacéo de hipéteses. Desde 0 inicio, a partir do titulo e da primeira sentenga, vao se acumulando no texto informac6es pertinentes e consistentes com a interpretacdo- de observacao de um protesto, a partir do vigésimo andar de um prédio: as pistas so varias, como espetaculo, multidao, tamanho dos participantes devido & dis- tancia, atividades préprias de uma marcha de protesto. A quinta sen- tenga, que introduz a aterrizagem, nao é consistente com a interpre- taco que estava sendo construida. Ja a continuacao descreve ativida- des proprias de uma marcha de protesto novamente: tanto os dis- cursos, como a filmagem, a tranqiiilidade dos participantes e a mnisica reconfirmam a hipdtese inicial de que o texto descreve uma marcha de protesto. Visto que a maioria das proposigdes contém informagoes que reconfirmam a mesma hipétese, 0 leitor que participou da expe- riéncia ou nfo processou a informagio inconsistente, ou, ao proces- sé-la, a descartou, persistindo na hipétese inicial. Neste caso, a manutengao da hipdtese de leitura (isto €, que ha- veria informagdes sobre uma marcha de protesto) é eminentemente razo4vel uma vez que todas as marcas formais do texto, os elementos lingiifsticos, confirmam a validade da hipétese, 4 excego de uma pro- 38 posigio que € prontamente esquecida ou no é compreendida. Cabe apontar, para concluir o exemplo, que um grupo de leitores que leu © mesmo texto com o titulo “Uma viagem espacial a um planeta ha- bitado” nao teve dificuldade para lembrar a passagem sobre a ater- rizagem. Numa experiéncia realizada por nds usando a metodologia de protocolo verbal (0 leitor verbaliza seus pensamentos € impressdes & medida que vai lendo o texto) obtivemos evidéncias interessantes so- bre o papel das hipdteses de leitura na compreensdo. Neste caso, trata-se de uma experiéncia onde o pré-direcionamento a partir das hipéteses do leitor, baseadas nas suas experiéncias ¢ conhecimento prévio, dificultaram enormemente a compreensdo. O leitor leu o trecho a seguir, de Vilém Flusser, a partir do titulo, “Vacas”, ¢ devia ver- balizar, tanto quanto possivel, enquanto lia: (5) “Sao maquinas eficientes para a transformacéo de erva em leite. E tém, se comparadas com outros tipos de maquinas, van- tagens indiscutiveis. Por exemplo: sao auto-reprodutivas, e quando se tornam obsoletas, a sua “hardware” pode ser utilizada na forma de carne, couro € outros produtos consumiveis. Nao po- luem o ambiente, e até seus refugos podem ser utilizados econo- micamente como adubo, como material de construgéo e como combustivel. O seu manejo nao € custoso e nao requer mao-de- obra altamente especializada. Sao sistemas estruturalmente muito complexos mas funcionalmente, extremamente simples. Ja que se auto-reproduzem, ¢ ja que, portanto, a sua construcao se da auto- maticamente sem necessidade de intervencdo de engenheiros e desenhistas, esta complexidade estrutural ¢ yantagem. Séo versd- teis, jf que podem ser utilizadas também como geradores de energia € como motores para veiculos lentos Embora tenham certas desvantagens funcionais (por exem- plo: sua reprodugao exige mdquinas em si antiecondmicas, touros, € certos disturbios funcionais exigem intervengdo de espe- cialistas universitdrios, de veterindrios, caros) podem ser consi- deradas prototipos de mdquinas do futuro, que serao projetadas por uma tecnologia avangada e informadas pela ecologia. Com efeito, podemos afirmar desde j4 que vacas sao o triunfo de uma tecnologia que aponta o futuro” (Em Natural: mente, Duas Ci- dades, 1979). 39 O leitor em questao, adulto e proficiente em leitura, teve grande dificuldade em mudar sua hipdtese inicial de que o texto versava sobre vacas mecAnicas, hipdtese esta formulada com apoio na primeira sentenca (“So maquinas. ..") e, segundo explicou mais tarde, porque tinha em mente um programa recente de televisio sobre vacas meca- nicas que o teria impressionado. No inicio, esta hipétese nao € con- flitante com o material formal, mas quando depara pela primeira vez com a proposicao “‘séio auto-reprodutivas” o leitor hesita, faz uma longa pausa e diz nao ter conseguido entender. Logo depois, face a novas evidéncias conflitivas (“seus refugos podem ser utilizados como adubo”, “nao requer m&o-de-obra especializada"...) ele reformula parcialmente sua hipdtese inicial e conclui que o autor esta fazendo uma analogia entre a vaca mecénica ¢ a vaca, ¢ que algumas das pro- posigdes se referem a primeira, enquanto outras proposigdes (as con- flitantes) se referem a segunda. A expresso que vem logo depois “Ja que se auto-reproduzem, e j4 que portanto a sua construgdo se da automaticamente sem neces- sidade de intervencéo de engenheiros e desenhistas” compromete no- vamente sua compreensao: lé, relé, faz uma pausa extensa e final- mente declara, novamente, nao ter entendido, pois acredita que nessa passagem “sé pode estar falando de vacas” (de fato, interpretacio congruente com os elementos formais do texto), “‘mas, se o autor est fazendo uma comparacao entre as duas” (interpretagéo nao consistente com os elementos formais), “é estranho que escolha as vacas”, (con- sistente) “quando o tépico que esta tentando desenvolver € as vacas mec4nicas” (inconsistente). Apesar de repetidas leituras e retomadas, os comentarios subseqiientes deixam entrever que o conflito nao é superado, © © leitor, ao terminar, disse nao ter entendido o texto, atribuindo o problema ao autor, que desenvolve demais um termo da comparacao (“vacas”) em detrimento do termo que deveria ter sido melhor desenvolvido pois, segundo ele, era o tépico: “vacas me- cAnicas”’. Ora, 0 texto nao apresentou dificuldades a leitores até menos experientes que participaram da experiéncia, que percebiam, logo depois da leitura da sentenga “sao auto-reprodutivas” que o tdpico do texto era, tal qual o titulo indicava, “vacas”. E que se tratava de uma parédia de um texto de divulgagio cientifica. O leitor que nao conseguiu fazer sentido da metéfora ficou limitado pelas suas préprias 40 expectativas e experiéncia prévia, fato este ndo incomum entre leitores menos experientes. Assim, embora o leitor percebesse as inconsis- téncias, ele foi incapaz de resolvé-las mediante o abandono da hipé- tese inicial e a construcdo de uma hipétese alternativa consistente com as pistas formais. Poder-se-ia pensar que, 4 que uma determinada hipotese inicial pode ser to restritiva, como no caso acima discutido, seria mais conveniente desenfatizé-la, mas isto € uma falacia. Geralmente, em se tratando de leitores inexperientes, a rigidez e inflexibilidade na for- mulacao de hipdtese se deve, na maioria das vezes, 4 inatencdo aos elementos formais, e 4 incapacidade de analisdé-los em fungao do texto global (nao foi esse o caso no exemplo discutido acima, pois houve ai a devida consideracdo de pistas formais, tanto que a inconsisténcia foi detectada). Certamente, nao iriamos acreditar que a crianca apren- derd a analisar elementos formais do texto enquanto elementos que contribuem 4 significagao total através da leitura amorfa, sem expec- tativas nem hipéteses que sugiram caminhos. Pelo contrério, é através da formulagéo de predigdes que a tarefa de andlise se torna vidvel, pois ela é extremamente dificil para quem esté acostumado a consi- derar as palavras do texto como elementos discretos na sentenga. A tarefa converte-se, mediante o engajamento do leitor, numa tarefa de verificagao de hipdteses, uma tarefa mais limitada, e portanto mais acessivel, retendo, contudo, o cardter global que permitira a sintese posteriormente. Para resolver esse tipo de tarefa, o leitor adulto tam- bém pode fornecer um modelo adequado, levando o leitor a se ques- tionar sobre os possiveis tépicos e subtépicos do texto a ser lido. Mesmo que as auto-indagacées do leitor estivessem longe do assunto de fato tratado no texto, o fato de iniciar a leitura com uma indagacao j4 € vantajoso e pode ajudar a compreender o texto. Ao levantar hipéteses, o leitor tera, necessariamente, que postu- lar conteidos ¢ uma estruturacéo para esses contetidos, isto 6, tera que imaginar temas e subtemas. Por exemplo, a partir de dados como © titulo de um artigo. “A quimica dos cniddrios”, a fonte do artigo Revista Ciéncia Hoje, e com o apoio da ilustragio de uma alga ou flor marinha, o leitor, com a mediagao do adulto, podera predizer que © texto trar4é uma definicio ou explicagao dos cniddrios (que ele, leitor, j4 pode imaginar que sao seres marinhos), dard exemplos de cni- darios, traré uma descricao deles (que ele j4 pode supor que sao muito 41 simples, como as algas) e explicaré algo interessante sobre suas rea- des quimicas (que ele, pelo que jé sabe de polvos e outros seres marinhos poderé imaginar que produzem alguma substancia para ata- que e defesa). Essas hipéteses, além de predizerem contetidos, predi- zem também estruturas textuais: as hipdteses podem ser diagramadas hierarquicamente da seguinte forma: Cnidérios: Definigéo: — seres marinhos exemplos Descrigao: — seres simples — reacio quimica interessante: ataque e defesa Com essas predigdes minimas, o leitor podera ler o texto (que transcrevemos a seguir) para fazer o confronto entre aquele e suas predicdes, facilitando assim a tarefa, primeiro, porque o objetivo da leitura deixa claro que deverd ler apenas para procurar as idéias principais e nao os detalhes; segundo, porque a expectativa assim criada permitiré reconhecer itens lexicais globalmente, uma vez que ja esté alertado para sua possivel ocorréncia no texto; e terceiro, porque ao fazer o confronto, embora utilize estratégias analiticas, deveré manter em mente o objetivo dessa verificacio e assim nao perderd de vista o global, o texto em sua totalidade. Leiamos, com as expectativas apontadas acima, o texto: (6) “O grupo de animais conhecidos como cnidarios — antigamen- te denominado celenterados — inclui entre outros as 4guas-vivas, as caravelas, os corais, e possui mais de 11 mil espécies. Seus corpos tém estruturas simples: sao constituidos basicamente por duas camadas de células (epiderme e gastroderme), separadas pela mesogléia, uma lamina gelatinosa portadora de poucas cé- lulas. Ao longo de varios milhées de anos de evolucdo, esses seres aquaticos desenvolveram um grande refinamento na pro- dug&o de substéncias que entram em acao na autodefesa e na captura de presas. A acio dessas substancias venenosas, que in- teressam a farmacologia pois podem ser utilizadas com finalidade terapéutica, foi estudada pela primeira vez em animais de labo- ratério pelo francés Charles Richet. Ele fez pesquisas sobretudo 42 com caravelas (Physalia sp) e anémonas-do-mar (Anemonia sul- cata) observando pioneiramente o fendmeno a que chamou de anafilaxia, isto €é, aumento de sensibilidade do organismo a uma substancia com a qual jé estivera em contato” (Ciéncia Hoje 8, 46, 09/88). Uma vez que o leitor conseguir formular hipdteses de leitura independentemente, utilizando tanto seu conhecimento prévio como os elementos formais mais visiveis e de alto grau de informatividade, como titulo, subtitulo, datas, fontes, ilustragdes, a leitura passard a ter esse carater de verificacéo de hipdteses, para confirmagdo ou refu- tagao e revisdo, num processo menos estruturado que aquele inicial- mente modelado pelo adulto, mas que envolve, tal como o outro pro- cesso, uma atividade consciente, autocontrolada pelo leitor, bem como uma série de estratégias necessdrias 4 compreensdéo. Ao formular hi- péteses o leitor estaré predizendo temas, ¢ ao testd-las ele estard de- preendendo o tema; ele estaré também postulando uma possivel estru- tura textual, e, na testagem de hipdteses, estaré reconstruindo uma estrutura textual; na predig&o ele estaré ativando seu conhecimento prévio, e na testagem ele estaré enriquecendo, refinando, checando esse conhecimento. Sao, todas essas, estratégias proprias da leitura que levam & compreensao do texto. Existe ainda uma outra decorréncia importante da atividade de predizer e testar: no confronto, o leitor estaré exercendo controle consciente sobre o proprio processo de compreensdo: ele estaré revi- sando, auto-indagando, corrigindo, de forma nao-automatica, conscien- temente. Ele estard, portanto, utilizando estratégias metacognitivas de monitoracfo para atingir o objetivo de verificacao de hipétese. Assim, uma atividade que pode comecar como um jogo de adivinhacao diri- gido por um adulto pode ser, de fato, o ponto de partida para o desenvolvimento de estratégias metacognitivas do leitor. RESUMO Duas atividailes: relevantes para a compreensao de texto escrito, a saber, 6 estabelecimento de objetivos e a formulacdo de hipdteses, so de natureza metacognitiva, isto é, so atividades que pressupoem reflexdo e controle consciente sobre o prdéprio conhecimento, sobre o 43 proprio fazer, sobre a propria capacidade. Elas se opdem aos auto- matismos e mecanicismos tipicos do passar do olho que muitas vezes € tido como leitura na escola. Embora essas atividades de natureza metacognitiva sejam idiossincrdticas, individuais, é possivel o adulto propor atividades na quais a clareza de objetivos, a predicao, a auto- indagacéo sejam centrais, propiciando assim contextos para o desen- volvimento e aprimoramento de estratégias metacognitivas na leitura. 44

You might also like