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O norte do Chile pelas pistas de terra

junto ao Pacífico
Há troços da estrada costeira que percorre o norte do Chi-
le onde talvez não circulem mais de uma dezena de viaturas
por dia, mas quem se aventura por esses caminhos, entalados
entre o deserto do Atacama e o oceano Pacífico, é recompen-
sado com a descoberta de paisagens incríveis e cenários que
não deixam indiferente quem os contempla. O elemento fun-
damental para disfrutar desse privilégio é um veículo de todo-
o-terreno, como o Kia Sorento 4WD que nos permitiu trocar
o trânsito de uma das mais movimentadas estradas chilenas
pela tranquilidade da “costanera”.
Texto Alexandre Correia/Revista Todo Terreno Fotos Paulo Calisto

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N
o Chile, qualquer estrada traçada junto Arrancámos de Antofagasta a meio da manhã,
à costa é chamada costanera. Pode ser depois de passearmos um pouco pela baixa des-
uma enorme avenida marginal, como a ta cidade, a maior entre as diversas que se situam
que contorna toda a cidade de Antofa- na região do deserto do Atacama, que é também a
Antofagasta significa “aquele que esconde o cobre” no dialecto dos índios do Atacama
gasta, ou uma simples pista praticável apenas por quinta mais populosa do Chile, com cerca de 300
viaturas aptas a enfrentar todos os terrenos. No mil habitantes. Antofagasta deve a sua importância
norte deste comprido país que se estende ao longo à exploração dos ricos recursos minerais do Ataca-
do Pacífico, desde a ponta sul do continente ame- ma. É neste deserto que se encontram as maiores
ricano até ao Peru, as costaneras são, regra geral, reservas mundiais de cobre, bem como as maiores
estradas de terra, algumas tão antigas quanto o pró- explorações de salitre, a partir do qual se obtém o
prio Chile enquanto nação independente, que não componente mais precioso para as baterias: o lítio.
servem de atalho às vias principais em asfalto; ligam Quando o Chile foi constituído, em 1822, a frontei-
apenas pequenas comunidades piscatórias, por ve- ra norte do seu território foi vagamente definida no
zes são acesso a complexos mineiros, e nalguns ca- deserto do Atacama, mas em 1825, quando se criou a
sos chegam até pequenas cidades pitorescas. República da Bolívia, Simón Bolivar não abdicou de
Um dos passeios mais bonitos através da cos- estender o seu país até ao oceano Pacífico e recla-
ta norte chilena foi o que fizémos em meados de mou para si o sector norte do Atacama, que passou
Dezembro de 2010, quando descemos desde Antofa- a confinar com a província de Potosi, no Altiplano
gasta a Caldera, percorrendo quinhentos quilóme- andino. Todavia, foram sobretudo as companhias
tros quase sempre encostados ao oceano Pacífico. chilenas, quase sempre com os britânicos ou norte-
Boa parte desta distância foi cumprida precisamen- americanos associados, que começaram a explorar
te em pistas de terra desviadas das rotas principais, os ricos recursos minerais deste enorme deserto,
onde raramente nos cruzámos com outro veículo. que é um dos mais áridos do mundo devido às al-
Em momento algum passámos por dificuldades, tas pressões que aí se concentram impedirem que
pois salvo o primeiro sector em terra, todos os ca- as nuvens vindas de leste transponham a cordi-
minhos são bastante rolantes, com piso compac- lheira andina e façam cair chuva. Ora Antofagasta,
tado e bem mantido, condições que estão longe cujo nome significa “aquele que esconde o cobre”
de esgotar as capacidades off-road do Kia Sorento no dialecto dos índios do Atacama, nasce precisa-
4WD que utilizámos nesta aventura. mente de um desses negócios, quando em meados

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do século XIX um chileno comprou 30 hectares na
baía de Antofagasta e iniciou a exploração salitreira.
Num ápice o lugar tornou-se num importante en-
treposto, para onde confluiam as vias férreas que
traziam minério do interior do deserto e o descar-
regavam directamente para os navios de carga, que
atracavam num molhe construído na pequena baía
em redor da qual se foi desenvolvendo a cidade.
A riqueza destas terras criou inúmeras dispu-
tas territoriais entre a Bolívia, que inicialmente as
detinha, o Chile, que as explorava, e até o Perú e a
Argentina, que como vizinhos não escondiam a sua
vontade de conquistar um pedaço desses recursos.
Apesar de terem sido firmados entre a Bolívia e o
Chile diversos acordos, inclusivé tributários, e tra-
tados para desenhar a linha de fronteira, nunca os
dois lados ficaram plenamente satisfeitos e entre
avanços e recuos destes acordos, a situação chegou
a um ponto de ruptura quando o Governo boliviano
decidiu aumentar os impostos sobre a Companhia
de Salitre y Ferrocarril de Antofagasta, uma empre-
sa chilena que se recusou a pagar os novos impos-
tos, tendo sido alvo de uma penhora. Na véspera de
ser accionada a penhora, a 14 de Fevereiro de 1879,
as tropas chilenas desembarcaram de surpresa em
Antofagasta e tomaram conta da cidade. Começou
aí a Guerra do Pacífico, que inicialmente opôs o Chi-
le à Bolívia e que terminou com o isolamento des-
te último, que perdeu o acesso ao mar. Recuperar
um corredor até ao Pacífico é desde então a maior
ambição boliviana, que há mais de um século tenta
sem sucesso convencer o Chile, assim como o Perú,
das suas pretensões. O Perú também saíu a perder
na Guerra do Pacífico quando o Chile descobriu um
pacto com a Bolívia e lhe declarou guerra, conquis-
tando algum território, que permitiu estender ain-
da mais a norte as suas fronteiras. Como vingança, a
Bolívia entregou então à Argentina um vasto territó-


rio andino que estava nos domínios do Chile, a Puna

Nesta rota costeira, todos


os caminhos são bastante rolantes,
longe de esgotar as capacidades
off-road do Kia Sorento 4WD que
utilizámos nesta aventura

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de Atacama, onde se incluem os picos de Licanca-
bur, Zapareli, Socompa e Paso de San Francisco, que
somente viriam a ser recuperados em 1899, com a
intervenção negocial dos Estados Unidos da Améri-
ca. A paz com a Bolívia só foi assinada em 1904, en-
quanto que com o Perú esse acordo tardou até 1929!
Quando foi conquistada pelo Chile, Antofagasta
já tinha importância, mas a cidade desenvolveu-se
ainda mais daí em diante, crescendo a partir do ve-
lho molhe de madeira que, curiosamente, foi re-
centemente recuperado, para preservar a memória
histórica. O mesmo sucede com alguns dos edifí-
cios mais antigos, como o velho terminal da linha
de caminho de ferro, junto ao molhe, e a alfândega,
também na mesma zona, ao lado da antiga Capita-
nia Marítima, construída em 1910 num estilo neo-
clássico, como grande parte dos prédios do centro
histórico. A alfândega, onde hoje funciona o Museu
de Antofagasta, é o edifício mais antigo de todos e
tem a particularidade de ter sido construído inicial-
mente em Valparaíso, depois foi transportado de
barco até Mejillones, ainda mais a norte, até que em
1888 foi desmontado da sua localização e remontan-
do onde ainda se encontra. A dois passos deste mu-
seu, a Plaza Colón é hoje o centro social da cidade,
exibindo uma torre de relógio no centro do jardim
que é uma réplica em ponto pequeno no célebre
Big-Ben de Londres, que foi oferecido pela comuni-
dade britânica. Esta praça, onde se encontra a Cate-

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dral de San José, a mais importante igreja da cidade,
é cruzada pelas principais artérias comerciais, uma
das quais tem três quarteirões sem trânsito, só para
peões, que até as lojas fecharem, à noite, enchem
de movimento o centro desta cidade, bem agradá-
vel de visitar!
Tomando rumo a sul, percorremos os primei-
ros 60 km na bem movimentada Ruta 5, mas depois
desviamo-nos para a Ruta 1, que segue junto à costa,
em piso de terra. Desde que o asfalto termina até
avistarmos o Pacífico, na Caleta El Cobre, tardamos
quase uma hora para vencer uma distância de 43
km, mas depois, até voltarmos a encontrar o asfal-
to, em Paposo, a média de andamento baixou ainda
mais: gastámos três horas para andar 98 km. Ser-
penteando entre o mar e a parede intransponível da
montanha — que atinge 2640 metros de altitude —,
esta pista é usada por pescadores e os apanhadores


de algas e guano, que nos interceptam, curiosos de
saber o que andamos ali a fazer. Cruzamo-nos com
uma pick-up e dois pequenos camiões e não vimos
mais de meia dúzia de pessoas.
Em Paposo, tudo muda de figura. Nesta aldeia, que
até 1879 era o limite territorial entre o Chile e a Bo-
Em Taltal não há edifícios alto e muitas das casas são em madeira e pintadas lívia, retomamos o alcatrão até Taltal. Se o nome já
por si é engraçado, a cidade ainda o é mais. Com cer-
de cor garridas, que tornam a cidade ainda mais agradável a quem ca de 11 mil habitantes, Taltal é enquadrada por uma
larga baía, que a tornou num porto abrigado. Quan-
a descobre pela primeira vez. do chegamos pela “costanera”, temos uma visão pa-

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O Pão de Açúcar é um parque
natural de 43.769 hectares junto
à costa, um pouco mais a norte
de Chañaral. Trata-se de um
santuário para a avifauna, com
especial destaque para o Pinguim
de Humbolt, que aí ocorre
aos milhares durante
o Inverno Austral.
norâmica de toda a baía com a cidade por trás, como
se fosse um presépio disposto numa suave encosta
que desce até ao mar, formando uma mancha urba-
na onde não sobressaem edifícios volumosos, nem
altos. Muitas das casas são em madeira e pintadas de
cor garridas, que tornam a cidade ainda mais agradá-
vel a quem a descobre pela primeira vez.
Cinfuncho e o Parque Nacional Pan de Azúcar
foram as escalas seguintes nesta rota encostada
ao mar, num percurso de 160 km que nos levou até
Chañaral, volvidas mais três horas e meia. Entalada
entre as montanhas e o oceano Pacífico, Chañaral
é uma pequena cidade com as casas dispostas em
anfi-teatro, como se fosse para que de todas as ja-
nelas se pudesse contemplar a enorme praia e baía
em frente. O Pão de Açúcar é a grande atracção lo-
cal: um parque natural, que preenche uma área de
43.769 hectares junto à costa, um pouco mais a nor-
te da cidade, devendo este nome à semelhança en-
tre o famoso morro Pão de Açúcar do Rio de Janeiro
e uma ilha mesmo em frente. O parque, e a ilha em
particular, é um santuário para a avifauna, com es-
pecial destaque para o Pinguim de Humbolt, que aí
ocorre aos milhares durante o Inverno Austral.
O dia estava no fim quando avançámos de Chaña-
ral para Caldera, cumprindo os últimos 110 km desta
jornada na mesma estrada em que começámos o
dia: a Ruta 5, que atravessa o Chile de ponta a ponta
e que neste troço segue bem junto ao mar, onde
fomos vendo o sol desaparecer.

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