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SIDNEY W. MINTZ ¢ RICHARD PRICE Uma perspectiva antropolégica \ersdade Candido Mendes oan Heiner evo de Tresor SUMARIO PREFACIO / 7 AGRADECIMENTOS / 17 INTRODUCAO / 19 1. © MODELO DO ENCONTRO / 25 2. CONTATO FE FLUXO SOCIOCULTURAIS NAS SOCIEDADES ESCRAVOCRATAS / 43 3. OSETOR ESCRAVO / 59 4, PRIMORDIOS DAS SOCTEDADES F CULTURAS ‘APRO-AMERICANAS /65 5. © QUE FOI MANTIDO E SOBREVIVEU / 77 6. PARENTESCO & PAPEIS SEXUAIS / 87 7. CONCLUSAO BIBLIOGRAFIA PREFACIO O texto que se segue foi redigido em 1972-1978, imtediatamente aps a luta pelos direitos civis ea ripida criagdo de curriculos de Estu- dos sfto-americanos e Negros nas universidades dos Estados Unidos, como parte da verdadeira explosio de interesse geral (¢ de publica- oes) na esfera da Historia Negra.’ Ble pretendeu ser uma profissio de f€ e wm manual. Estavamos inquietos com algumas polarizagdes que vinham despontando nos estucos afro-americanos. As preocupagées ideologicas pareciam em vias de distorcer a busca erudita que fora cartografada por pioneiros como W. E. B. DuBois ¢ Carter G. Woodson, nos Estados Unidos; Fernando Ortiz, em Cuba; Nina Rodrigues Arthur Ramos, no Brasil; ¢ Jean Price-Mars, no Haiti; ¢ levada adiante pela geracdo de Melville J. Herskovits, E. Franklin Frazier, Zora Neale Hurston, Gonzalo Aguitre Beltrin, Roger Bastide, Romulo Lachatafieré © outtos, Assim, concentramo-nos nas estratégias ou abordagens do estudlo do passado afro-americano, em vez de apresentar os resultados atualizados desses estudos, na esperanca de incentivar historiadores ¢ outros pesquisadores que estivessem ingressando nesse campo a em- pregarem modelos conceituais que ficassem plenamente a altura da complexidade de seu tema, Nossa tese pretendia basear~se nas percepcdes de Herskovits seus pares, Mas foi recebida, em algumas areas, pelo que foi — para 1. Farnum arlene ses bilge dene pera, 1, Wood, “the estou 8 0 nasiment utara amine nds — uma hostilidade surpreendente, acompanhada pela acusagiio de que negava a existéncia de uma heranca africana nas Américas. Muitas dessas reagdes pareceram originar-se em umn desejo de polari- zar 03 estudos afto-americanistas em uma posigio puramente “pré ‘ou “contra”, com respeito preservagao de formas cu Por exemplo, Mervyn Alleyne chamou-nos de “tedricos d sicusan-do-nos de uma atengio exagerada para com a ‘tural dos africanos escravizados no Novo Mundo; no entanto, seu pri- prio livro chega a conclusdes préximas das nossas? Daniel Crowley ctiticou duramente o livro de Sally ¢ Richard Price, Afro-American Arls of the Suriname Rain Forest (Artes afro-americanas da Hloresta tropical do Surinamel, que desenvolve a abordegem conceitual em um contexto histévico especitico, ¢ 0 acusou de “exagerar extravagante~ Embora esse disputa continua, Joseph 0 leoldgico seja menos comum hoje em way, depois de afirmar que a eficd 70“ atributvel a sen arcabouco tesrico, sua metodologia aplicadae suit andlise dos africanismos do Novo Mundo”, conclu que “sua i taco est na incapacidade de examinar a aculturagio ¢ os residuos Airicanos fora do Caribe” 5 Uma recente controvérsia entre o folclorista Charles Joyner € 0 historiador C, Vann Woodward sugere que a linha de combate ainda ¢ tragada mais ou menos no mesmo tugar, Em wm verbete da Encyclopedia of Southern Culture, Joyner afirmou, com espirito semethante a0 nosso: pracicio a O processo de mudanga lingitistion fornece urn modelo para explicar outros aspectos da transtormacto da ‘ura africana em afrovamericana, O que se podetia cha sar de “crioulizagio da cult negra” envolve asprin ciples “gramaticais” inconscientes da cultura, a “estra- ‘ura profunda” que gers padrées culturais especiticos ais principios gramaticas sobreviveram a rota negra da travessia do Adldntico ¢ regeram a adaptaco selet- va de elementos das culturas africana e earopsia Arrebanhados ao ado de outros com quem partithe- vam a situaeo comum de servidto e um certo grat de superposicdo cultural, os africanos escravizados foram obrigados « criar uma nova lingua, uma nova religito 2, 4 rigor, ume nova cultura Toi a esta tltima frase, em particular, muito proxima de wm tre- cho de nosso proprio livro, que Woodward, com tipica “condescen- déncin fidalg tou no The New York Review of Books! mente “afvicano” continuam a atormentar os estudlos afro-ameri- anos, as vezes com um toque bastante bizarro, Hé uma foto par- Hicularmente evocadora do priprio Herskovits, que aparece em £ eat, 10 © natant elt ato aeroaa uum livro sobre a historia da antropolagia com a legenda: “Me Herskovits segurando um artefaio religicso da Africa Ocidental na Noxthwestern University, ¢. 1985 (Cortesia dos Northwestern University Archives).” A rigox, no entanto, o objeto sagrado que Herskovits segura (assim como o banco, o abana, os utensilios de de sua jombolas madeira na mesa a su frente ¢ o tamborete bem cabeca) ndo foram feitos na Africa Ocidental, mas por a saramacanos (Saramaka Marrcons) do Suriname (onde ele os havia coletado com Frances Herskovits em 1928 € 1929), mais de dois sécuilos depois de os ancestrais dos saramacanos tere sido trans- portados @ forca de sta terra natal, nas regides ocidental e central da Africa. Herskovits, que passou boa parte da vida procurando sondar as relagSes culturais entre a Africa e as Américas, prova- velmente aprovaria que este esclarecimento sobre o Velho Mundo € 0 Novo Mundo fosse registrado aqui.!® Nao obstante, nas duas titimas décadas, a importancia de enfocar © processo no desenvolvimento das culturas afto-america- nas, de examinar o$ diferentes tipos de mesclas ¢ misturas, foi aos poucos reconthecida ¢ adiitida, como se pode ver em livros tao di- versos quanto Black Culture and Black Consciousness, de Lawrence Levine; The Signifying Monkey, de Henry Louis Gates, Africa's Ogun, de Sandra Barnes; ou os ensaios de Holloway em Africanisms iin American Culture." Kté alguns dos estudiosos cujos métodos havia- ‘mos criticado mais cabalmente, no ensaio original, hoje incorporam wsxkc10 u (uma metafora ct 4 mistura) do que sobre os residuos africanos puros nas Américas."* Um de seus altos, David Brown, iniciou sua dissertagio de doutorado escrevendo sobre a re~ ligio afro-cubana: AS escolhas criativas dos lideres conscientes de si e de seus dedicados seguidores possibilitaram 0 surgimenta, Ocrescimento ea resiliéncia das religives atro-cubanes em Cuba ¢ nos Estados Unidos, a despeito dos persisten- {es estorpos aficiais de cooptd-las, controlé-las e destrui- Jas, As religises atro-cubanas de hoje devem sua exis- Héncia nio a “remanescentes” passives, mas a uma his- ‘t6ria de vitérias em batalhas arduamente vencidas, nas quais sua capacidade de recuperacao devew-se tanto as transformacdes inovadoras fosjadas nas terras do Nove Mundo quanto 4 manutengao ou 4 preservagdo de tra- dipées africanas “puras”! Mirabile dicta, O epitome dessa mudanga geral é a obra do historiador caribenho Edward Kamau Brathwaite, que acrescentou 0 seguinte trecho a edigéo de 1981 de urn livo originalmiente publicado dez anos antes: E por isso que, para os habitants des indies Ocidentais que estiod procura de sua idenidade, estado do perio doescravagist,epartcularmente da cultura popular des escraves é muito importante. E durante esse periodo que pextemos ver como. africana importado da irea de ua “grande tradigdo”, procurou estabelecer-se em um novo 2 nescence afer americene ambiente, usando as instrumentos disponivets e as lema- brancas de sua heranca tradicional para deslanchar algo nove, algo caribenho, mas, ainds assim, algo reconheci- velmente afticano (4). A tese deste estudo é (..) que én natureea da cultura popular do ex-escravo atticano, que persiste até hoje na vida do “povo” contemponinea, que podernos discernirquea “rota do Atfantico” no fei, como se presume popularmente, (uma simples} experiéncia destrutiva traumética que separou os negros da Attica, rompendo seu sentimento de histéria e de tradicio, mas uma via ou um canal entre essa tradigdo ¢ 0 que se vem desenvolvendo no novo sole, no Caribe.* Por insisténcia de colegas ¢ alunos, optamos por reeditar nosso censaio original basicamente sem modificagSes, Atualizamos um punha- do de referéncias, sobretudo a nossa pripria obra; em alguns casos, dificamos a ferminotogia, para ficar em dia com as normas ataais ( exemplo, “negro da mata” transformou-se ert “airo-americano” converteu-se em se refere a pessoas de ascendéncia africans nas Améric as, $e reescrevéssemos aquele en- texto paralelo —, nfo hd diiviela de ‘ano-american wero de avangos expressivos na antropologia, na historia e na, - seriam incorporados. Ambos, no entanto, cont nna mensagem programatica central do ensaio. Visto qt ‘guarda uma ceria integridade h pesshc1o 18 consideravelmente adiante alguns aspectos particulares de sua tese em obras posteriores, optamos por deixci-lo ficar como estava, Nosso preficio ori por uma epigrafe extraida do nesta nova edi¢do, comecava rskovits: Desconcertantemente, sf0 os que sustentam opinises extremadas a respeito dos negros que pressentem a ‘oportunidade de reforgar suas feses especitices, fazen- do referéncia a0 fato de se haverem preservado afticanismos no Nove Mundo. A esquerds, 0 ponto de vista adotado concebe as negros dos Estados Unidos como ums “neeio” subjgads, cuja verdadeira liber- dade e cidadlania plena talvez sé possam ser alcangadas depois que a criapio de ums Republica Negra auténo- ‘hit, no sul, hover permitido a realizagéo do talento intrinseoo desse povo. Que melhor base tedrica se po- devia encontrar para esse projeto do que 0 material (que parece mostear que as negros norte-americanos, ‘Par baixo da pele, no so mais do que afticanos cujes tendéncias raciais reprimidas, uma yee libertas, ihes fornecerio o impulso necessario para realizar seu des- fino? Ao mesmo tempo, os que se situam na extrema direita,insistindo na segresacio sovial e econdmica do znegro norte-americana, também corroborarn sia pos- ‘tra considerando os africanismos preservados na vida ‘negra norte-amerioana. Nao & essa uma prova, dizem cles, da incapacidade de o negro assimilar a cultura brinca em grau vidvel 6, sendo assin, ndo devem os negros ser incentivados a desenvolver seus dotes “na us” peculiares ~ sempre, bem entendica, dentro dos limites do “ugar” dos negros? i] Hewiow ley tor ox, ep 1957) 9p. 808-294, “4 (© niente de ealtara fro-amercat Essas palavras, eseritas hi mais de meio século, ainda so uma poderosa adverténcia. Conctuimos aquele prefaicio com algumas idéias correlatas prd- prias, idéias estas que continuamos a endossar que aqui queremos Uma vez que este ensaio versa sobre a crolucdo de for- _mas sociaise culturais entre os afo-americanas, tt con- digses sociais que eram e sao fandamentalmente racis- \. tas edesiguais, tudo o que aqui abordantos pode ser vis- fo como tendo urn claro coeficiente politico. Em tese, vpode-se analisar a organizacio doméstica des campo- rneses jamaicanos, ou as técnicas de entalhamento dos quilombolas saramacanos, ow a festa de Sio Tiago Apos- tolo ent Loiza, Porto Rico, sem nocessidade de fer em mente, a todo momenta, a importincia politica do que se descobre, Em tese. Na pritica, assim como a pesquisa antropoldgica em geral vai-se tornando mais significa. tira a cada dia que passe, em suas implicagses humanas politicas, também a pesquisa antropoldgica que toca nas experiéncias e percepedes cotidianas das afeicano- americanos deve tornar-se, inevitavelmente, parte infe- igrante do clima ideolégico da vide contemporinea. Nes- ‘sas circunstincias, € vital que antropélogos como nés exponham com a mdxima clareza possivel 0 que estilo tentando fazer, Neste ensaio, pleiteamos “maior sutileza analitica e mais pes- quisas sociohistoricas” e expomos algumas idéias para ilustrar por que as consideramos necessidades primordiais, neste momento, 19 campo da antropologia afro-americana. Nas palavras de um de nos- sos criticos mais sinceros, amiveis ¢ valiosos, entretanto, “a necessi- dade da interpretagio sutil nfo deve ser usada para minimizar a opres- sdo e a exploragdo flagrantes”. Concordamos enfaticamente. & tam- matrkcio 18 bém uma profunda convicgdo nossa que a natureza da opresséo, apesar de dbvia em suas formas mais conhecidas, envolve igualmen- te sutilezas, uma das quais é sua maneira de dividir e confundir os estudiosos honestos, perpetuando a desconfianga ¢ o medo. O teste de nossas idéias e descobertas, como sugerimos na conclusio, “deve competir mais as tarefas da pesquisa histérica e antropolégic: muito menos a seu carter persuasivo nos planos légico, ide ou sentimental (..). A verdade inescapavel no estudo da Afro-Amé- rica é a humanidade dos oprimidos ¢ a desumanidade dos sistemas que 05 oprimiram”. Que essa opressio néo terminou, de maneira alguma, deve ficar tio claro para todos quanto & para nds AGRADECIMENTOS A primeira versio deste livro teve a forma de um ensaio, apre- 1posiuum sobre “As sociedades crioulas sor Jack P, Greene e seus colegas do Departamento de Historia da Uni- versidade Johns Hopkins ofereceram-nos a oportanidade de partici- par desse simpésio. Roger Abrahams, Roy 8, Byce-Laport, Stanley Engerman, Jerome Handler, Pew Raymond sgencrosidade de nos oferecer critcas itis aos manuscritos inicisis. (© trabalho de Price foi respaldaclo, em parte, por uma verba fornecida pela Comissio Conjunta sobre Estudos Latino-Americanos, do Consetho de Pesquisas em Ciéncias Sociais e do Conselho Norte~ Americano de Sociedades Eruditas. O trabalho de Mintz foi concluido durante seu periodo de residéncia no Instituto de Estudos Avanados, em Princeton, Na preparucdo deste texto, os autores receberam o aux mivel de Margaret Collignon e da equipe editorial da Beacon Press. Também desejamos agradecer a Andrew Roy pela compilagao do indi- ce remissivo. INTRODUGAO Este ensaio oferece uma abordagem antropolégica geral do es- tudo da historia da cultura afro-americana, Nele discutimos a instala- especie de “linha basal”, com as formas que as comunidades aricano- americanas viriam a adquivir posteriormente Nenhum grupo, por mais bem equipado que esteja, ou por maior que scja sua liberdade de escolha, é capaz de transferir de um local para outro, intactos, o seu estilo de vida e as crencas e valores que the so concomtitantes. As condigdes dessa transposigdo, bem como as caracte- ‘isticas do meio amano e material que a acolhe, restringem, inevitavel- mente, a vatiedade e a forga das transposigdes eficazes. No processo de povoatento do Novo Mundo, é quase desnecessirio dizer que europeus do que dos africans, afirmamos que uma abordagem mi do teor desses materiais de transposicao nilo respaldaria es simplista. As vantagens da liberdade, das quais desirutavam os euro- ‘pels, no tinhiam como garantie um sucesso maior na transmissao cul- tural, ainda que a liberdade tenha facilitado em muito a manutengio de certas formas culturais. Apesar disso, cremos que o carter das transpo- sigBes e suas transformagées posteriores podiem, em certos momentos, afierar uma continuidade maior no caso da Afro-América do que no da Euro-América, considerando-se as stuagées extremas€oscontextoshostis cem que se deram essas transposigdes. 20 0 narcinente ds cular aboamcicene Existem algumas dife africanos e europeus participaram do povoamento do Novo Mun- do. © povoamento europeu, em sua maior parte, foi feito por gru- pos de colonos que representavam.tradigdes culturais nacionais especificas — inglesas, holandesas, francesas ete, Admite-se que, muitas vezes, esses grupos eram ogi cias ou regides, o que conferia um carater proviteiano particular & sua instalagdo. Assim, em muitos casos, pode-se demonstrar que a Normandia ou a Guyenne [Aquitinial, € nfo a Franga, deram um ngas Sbvias entre as maneiras como cardter singular a esta ou aquela nova colonia, Os afticanos escravi- zados, contudo, foram retirados de partes diferentes do continente mos que por boas razdes — que eles compartithavam um certo mero de entendimentos ¢ pressupostos cultursis subjacentes, dida que suas sociedadies aparentavam-se umas com as cutras, tanto historicamente quanto em virtude do conto intenso. Outras unida- identificadas, discutiremos algumas delas. Néo cremios, porém, que se possa dizer que os africanos escravizados ¢ transportados para 0 Novo Mundo compurtilhavam uma cultura, no sentido em que é pos sivel afirmar que 0 faziam os cofonos curopeus de uma dada colénia. As diferencas da escaia de orgar regional tarnbém devem ser analisadas, ao se tracar essa di Embora nossa tese aqui scja provi pomo-nos a enuncié-la, reconhecendo os riscos pertinentes, Um contraste primordial, por- tanto, que elaboraremos e restringiremos mais adiante, da-se entre a ina velativamente homogénea dos europeus, no de qualquer colonia do Novo Mundo, € as herancas relativamente variadas dos africanos nesse mesmo contexto. ‘Um segundo grande contraste, também Sbvio, mas es respeito ao status dos imigrantes no contexto do Novo Mundo. Nent todos os africanos que a ele chegaram entre 1492 e a década de 1860 wwrmonueto 21 ‘ram escravos, e nem fodos os europeus que chegaram so Novo Mun- do no mesmo periodo eram livres, Entretanto, a maioria dos europeus veio na condigdo de homens ¢ mulheres livres, ou entio conguistou ‘ssa liberdade, ao paso que maioria dos afvicanos chegou na condi- io de cativos escravizados seus descendentes permaneceram como escravos, em alguns casos por muitas geragses sucessivas. Dito de maneita um pouco diferente, a colonizagio do Novo Mundo, dentro dos moldes institucionais, foi uma empreitada européias a escravidio foi um recurso primordial para garantir a mio-de-obra necesséria Para consolidar essa colonizacao. Essas diferencas de status e poder significaram que muitos problemas de continuidade ow reondenagao al, os quais eram superficialmente semelhantes, assusmiram sen- los muito diversificados, A principio, por exemplo, em muitas col6- nias do Novo Mundo, tanto os grupos europeus quanto os africanos eram predominantemente masculinos. Mas a diferenga esse: 8 colonos europeus podiam exereer wm imigragdo de mulheres, tanfo da Europa guanto da propria Africa, além de estarem aptos a exerver um controle considevvel sobre a maneira como fanfo as européias quanto as afticanas exam social mente distribuicas. Assim, a escassez cronica de mulheres afetou o desenvolvimento da sociedade colonial de maneiras um tanto diferen- tes para os homens livres e os escraves, assim como para os nascidos Ro exterior € os nativos do Novo Mundo, fossem estes escravos om Hbertos. Dado que 05 colonos europens g Polio do poder policial e do poder m eles é que conseguiram fundar novas i cardter original — isto é, europeu. Embora nao consideremos justificada essa inferéncia, sem uma boa quantidade de ressalvas, ¢ bora acreditemos (como ja foi insinuado) que a fidelidade a tradi- ges mais antigas talvez tena sido mais fécil, em algumas ocesiGes, para os negros escravizados do que para os brancos livres, & verdade aque 0s sistemas les 8 sistemas econdmicos, os sistemas de ensino, 2 0 resciment de cutee aho-ameicens iigdes religiosas e muitas outras coisas puderam ser lecidas ¢ desenvolvidas pelos europeus através de meios que nao estavam ao alcance dos escravos. Nesse contexto, dois pontos merecem ser mencionados. Antes de ais nada, muitos dos servos de alguns noves povoamentos (como no caso de Barbados e Martinica no inicio do século XVID eram europeus, ou, como também ocorreu em Barbados, amerindios.' No caso dos ser- vos europeus contratados, & claro, eles ¢ seus patrées compartithavart bboa parte de um pasado comum, em termos da lingua e de certas crencas e valores, com 0 que, até certo ponto, reduziam 0 abismo do statasentre os que detinham e os que nao detinhamo poder. Entretan- to, quando os senhores eram europeus e seus trabalhadores eram afti- canos, as diferencas de status e poder eram reforgadas nao somente plas diferencas fisicas, mas também — sobretudo a principio — pelas diferengas culturais, Em segundo lugar, a maior diversidade que im- ‘putamos aos imigrantes africanos ndo significava, necessariamente, que as culturas dos detentores do poder pudessem inevitavelmente sobre- vviver de maneira mais intacta que as dos africaos escravizados que eles controlavamn Mas as duas situagSes impficavam diferengas muito substanciais no modo como as novas formas culturais poderiam de- senvolver-se no contexto do Novo Mundo. © povoamento, crescimento ¢ consolidacio das colénias européi- as, cada vex. mais servidas por afticanos escravizados ¢ transportados, resultaram na criagio de sociedades profundamente divididas, em ter- mos da cultura, dos tipos fisicos percebidos, do poder do status. Em sgeral, tais sociedades consistiam em pequenas minorias de europeus € seus descendentes, exercendo o poder sobre grandes maiorias de aftica- rose descendentes destes. Nao estamos implicando, com essa afirmacao, i mntaovucho 28 tum modclo de separagdo total entre os setores livre ¢ escravo (ou euro- americano ¢ afro-aineticano). Na verdade, a interpenetragio desses se- {ores evanta uma das quest5es mais interessantes e enigméticas a serem ® ponderadas no exame do crescimento e do carter das chartadas “soci- edades crioulas”? Mas 0 ideal institucional dos serihores europeus era uma sociedade colonial em que tal interpenetrado niio ocorresse, jd que & fusdo ou qualquer tipo de cruzamento de fronteiras poderiaa acabar desgastando os principios coercitivos em que se assentava toda a em- preitada colonial, Embora isso raramente fosse verbalizado com deta~ Ihes explicitos, € claro que os colons europeus tinham a esperanga de que as populagSes escravizadas se “aculturassem” numa completa acei- taco do status de escravos — e, certamente, muitos deles acreditavan que 0s métodos adequacos, a disciplina inflexivel e um tempo suficiente acartetariam esse resultado, Dai se depreencle que a criagao de instituigdes européias mio visou a facilitar a assiilagdo dos escravos num stafuscivil semelhante a0 dos europeus, mas a aiender as necessidades dos préprios colonics europeus. Embora a obrigagdo de “civilizar” os escravos fosse comumente percebida conto real —e até, vez por ours, como aim jo moral —, exa realmente raro uma poténcia colonial prest- der, simultaneamente, ao: fvicanos escravizados e aos europens li- ves. Ocorreram excegdes importantes, mas a regra era outra, A separagdo imposta entre os setores europeu livre e africano escravizado levou, quase que desde 0 inicio, a criagdo de sistemas soci- ais marcados por diferentes patamares de status, diferentes cédigos de conduta e diferentes representacdes sim em cada setor. O surgimento de selores intermedisrios de escravos foros entre os ho- “mens livres europeus ¢ 08 escravos africanos parece ter sido inevitavel; le constitui uma das areas problematicas mais crticas no estudo his- 24 CO mnciment de etn aoamericnne trico das sociedades afro-americanas. Idealmente, nao haveria nenhuma superposicio entre libertos € escravos, nem tampouco entre o stafus mais baixo dos homens li- Dizemos “id res e 0 status mais mente” porque, na pi ma sociedade colonial. Contudo, visto que nosso numa ceria medida, para os moxios particulares como a escravocracia ‘dealizada frncassou — para as contradigSes reais e implicitas dessa ‘concepeo —; procuraremos manter 0 ideal e 0 real separados na ex- posigiio de nossas teses. cAPITULO I O MODELO DO ENCONTRO plicito ou explicito, das modos como ocorreram os encontros entre africanos € europeus e das conseqiténcias deles. Em geral, esse modelo postula a existéncia de duas “culturas”, uma africana e uma européia, ppostas em contato no Novo Mundo por colonos brancos e escravos ne- ‘em contato com uma cultura europé a postular a existincia de uma “heran: cultural gencralizada da Africa ocidental, levada para uma dada col nin por africanos de origens diversas; ou (2) a afirmar que 0 grosso dos africanos da referida colonia proveio de uma “tribo” ou grupo ci ral particular Pretendemos sugerir que, numa ou noutra versio, esse modelo precisa ser consideravelmente repensado. © conc dificuldades que ele cria para o afro-americanisia de mentalidace his- térica. Do mesic modo, investigaremos a base factual para se uma relativa homogeneidade étnica aos airicanos introduzidos em qualquer colénia do Novo Mundo. 14 sugerimos um contraste fundamental entre os europeus € os, africanos que chegavam a uma dada colénia, afirmando que os pri- rmeiros eram relativamente homogéneos ems termos culturais, enquan- 26 O naciben de ule atoameicene to os tltimos provinkam de culturas ¢ sociedades diversas ¢ falavam. linguas diferentes, amitide reciprocamente inintetigiveis. Os colonos ceuropeus de determinados povoamentos — a Jamaica inglesa, a So Dorningos francesa, a Cuba espanhola ete. — comumente vinham da mesma patria nacional, ainda que sua origem regional e seu status social freqiientemente variassem. Além disso, nas coldnias em que se encontravam europeus de varios paises diferentes, era comum eles manterem entre si uma separagdo étnica.' Em contraste, era incomurm, ‘que grupos de africanos de culturas especificas pudessern viajar jun- {0s ou se instalar juritos no Novo Mundo, em numero substancial. Essa ¢ uma das razdes porque achanmos impossivel dizer que os afri- canos levados para qualquer colénia especifica do Novo Mundo te- nham tido uma tmica cultura coletiva a transportar. Se definirmos “cultura” como um corpo de crengas ¢ valores socialmente adquiri- dos e padronizados, que servem de guias de ¢ para a conduta mum grupo organizado (numa “sociedade”), 0 termo nao poderd ser apli- ado, sem uma certa distor¢do, aos nmiltiplos dons das massas de in- dividuos escravizados, separados de seus respectivos contextos poli- ticos e nacionais, que eram transportados em carregamentes mais ou. menos heterogéneos para o Novo Mundo.* Muitas vezes se assinalou que as cultaras e sociedades da area escravocrata da Africa eram (¢ sio), em muitos aspectos, semelhantes ¢/ourelacionadas umas com as outras, em virtude de origens que era comuns, em tltima instancia e em muitos casos, ou de séculos ow até milénios de contato intermitente, porém amitide intenso, ¢ de infiuén- ca. Diz-se que elas formavam, sob certos aspectos, uma “area quando contrastada com outras partes do continente afri- | ‘oatopHL0 0 excowrRO ar cano. O falecido Melville J. Herskovits foi o mais oélebre proponente do modelo que estamos discutind, e podemos tomar sua formtlagio como exemplar, Embora a concepeao herskovitsiana da unidade cul- tural da Africa ocidental nao fosse altamentesistemtica, a maior par~ te dos elementos comuns em cuijos termos ele a descrevia era de um linico tipo — formas sociais e culturais franeas ou explicitas, como a “patilocaidade”, a “agricultura de enxada”, a “posse comtn da ter. 18” e assim por diante.? O corhecimento erescente da complexidade cultural do cesteafricano sugere que muitos desses “elementos”, “ira- 5908” ou “complexos” culturais, pretentsamente difundidos ou univer- sais na Africa ocidental, néo eram, de modo algum, tio disseminados quanto supunha Herskovits. De fato, parece licto dizer que muitos afticanistas se inclinariam mais a enfatizar a yariagao intercult nesse nivel de forma cultural, ea afirmar que a heranga gener do tipo postulado por Herskovits para os afto-americanos provi mente nao existe.* No entanto, cremos que o que nossa critica questio- nna é menos a unidade da Africa ocidental (e central) como irea cultit~ ral ampla do que os niveisem que seria preciso buscar a confirmagao dessa unidade postulada, ‘Uma heranga cultural africana, largamente compartilhada pe- Jas pessoas importadas por uma nova col6nia, terd que ser definida em termos menos concretos, concentrando-se mais nos valores e 28 © nasineni duu ato menos nas formas socioculturais, ¢ até tentando identificar pri imaticais” inconscientes que pucessem estar subjacentes & |. resposta comportamental e fossem capazes de moldé-la. Part co- -ariamos um exame do que Foster chamou de “orienta- vas”,® por um lado, como pressupostos basicos sobre as, relagdes sociais (que valores motivavam os individuos, como lidar com 08 outros nas situagdes sociais, ainda as questoes do estilo interpessoal), ¢, por outro, os pressupostos e expectativas bisicos sobre 0 modo de funcionamento fenomenolégico do mundo (por exemplo, as crencas referentes A causalicinde e 0 modo como as sas particulares so reveladas). Diriamos que certas orientagoes comuns para a realidade talver tendessem a concentrar a atengio de individuos de culturas africanas ocidentais € centrais em tipos semelhantes de eventos, muito embora as maneiras esses eventos pudessem afigurar-se formais, Por exemplo, os iorubanos is gemeos, extvol- vendo a vida e morte deles num ritual complexo,!’ enquanto seus bos destroem sumariamente os gémeos no nascimento.” cipios subjacentes, muito difundidos, capdo sobrenatural dos nascimentos incomuns. Similarmente, 0 estudo comparativo das atitudes e expectativas das pessoas com referéncia &: mudanga sociocultural (por exemplo, as orientagdes para a “agregatividade” em relagio aos elementos estran- geiros, ou as expectativas quanto ao grade dinamismo interno de sta propria cultura) pode revelar coeréncias subjacentesinteressantes. Pm 3s mais gerais, é provavel que, em relagio a quase qualquer as- pecto da cultura, eja possivel identificar principios abstratos dissemi (0 MoDtta Do avcowmno 29 nados pela regio. Por exemplo, embora a “feiticaria” pudesse figurar com destaque na vida social de um grupo ¢ estar ausente da de seu vizinho, os dois povos poderiam continuar a ratificar o principio afri- amente diftmdido de que o conflito social era capaz de pro- ‘tinio (por meio de mecanismos que os ocien- brenaturais”, ¢ dos quais a uma variagiio), Estamos i aria € apenas s de que, em muitas aspect estudiosos comecaram afenta seriamente define as semethangs per cebidas no estilo musical, nas artes grétficas, nos habitos motores ete, dos ro-americanos).S Com base nessas pesquisas, parece sensato presumit que, serdo teais as semelhancas percebidas, deveriam existir prineipios subjacentes (que, muitas vezes, scriam inconscientes) passiveis de ides descrigio ¢ confirmagaa. Ao considerar as co americanas, centes dos afticiinos recém-escravizados e transplantados do que fize- ram seus pressupostos fundamentais comuns sobre as relacdes sociais ou 0 funcionamento do universo. Pelo menos em tese, o proprio Herskovits aprovava essa aborda- gem, Vez por outra, sugeria explicitamente wma anal laridades da gram HOV Ath the Mgr Po it pt 30 nascent de ue aloameicn tet utd as esti ao americans de pss, le ob servou qué “boa parte dos comportamentos socialmente sancions Ae 1¢ num plano psicolégico que fica abaixo do nivel da consciéit- sendo assim, sugeriu que se prestasse mais tos motores”, dos “padrées estéticos”, dos * Noentanio, ape- discipulos con- 's promunciamentos, nem Herskovits nem seus: meunume formas manifestas ou das crengas suiram ir muito além do nivel capi undo de ao tentaram amen as ceases comm pelos pavos da Attica. Comentando a situagio do Novo Mundo, Dally escrevet Eeenidente que as norte-americanos negros foram im- pedidos de manter, na América do Norte, o grande mi- mero de instituiges culturis ¢ costumes trdicionais africans que sobreviveram no Caribe e na América do Sul, E menos patente para os observadores de fora, en fretanto, que 08 norte-americanos negros conseguiram reservar um alto grade seu “canter” aficano no nivel -miuito mais profiando e mais fundamental das relagces nterpessoais e do comportamento expressivo.* ‘Vemo-nos, pois, diante da consciéncia crescente da necessidade de definir e descrever esses aspectos de nivel mais profundo da herari- snerican eligi and religous”, Cabbean Studs 21) jcaneleentin American Erle, ink Rockman org), Rapp’ and © novH0 vo excowrs0 st @ africana, mesmo que continuemos ainda muito distantes desse ob- » O recente trabalho einegrifico realizado na Africa traz a pro Sst de uma eventual compreensto dos tipos de principios em gue ‘movie lend que se alicersas, embora precisemos exercer grande ‘auteld 29 projetar no tempo, retroativamente, as descoberias atuais Uma diffculdade ébvia de nossa proposta & que os antropslagos {em dedicado relativamente pouca atengio a questbes como as orienta. Ses cognitivas ou 0 estilo interpessoale, quando o fazem, raramente > fazem bem feito. Mas acreditamos que essa neglgéncia tenha menos « ver com a importincia que tais conceitos devern ter na descrigao culta zal (ctnegrafia) do que com a pobreza de nosso instrumentos conceituais Nossa falta do conthecimento intimo de uma sociedace que se faz neces. sétlo pata descrever os conceitos de determinism ou de estétca de uma Povo, por exeraplo, contrastanitidamente com nossa capacidade de ana ‘serum tema mais convenciorsl do ponto de vista antropolégico como Sus padres de moradia, Portanto, se tem havido uma tendéncia n defi. rings semelhancas entre as culturas ¢ sociecades da Aftica ocidental em {ermos de elementos menos abstratos cremas que isso te ocorvido muito em virtude da natureza dos interesses antropolégicos tradic Nao nos propontos discorrer sobre a his Hrepologia norte-amtericana, mas talvez seja licito assinalar que Herskovits, o lustre antropélogo pioneito da Afro-América nos Esta. dos Unidos, era formado em antropologia histér fsstesools depositava uma énfase maciga —e justiticdvel —no resga. te do passade, particularmente entre os povos indigenas norte-ameci, canios. Esse tipo de erudicdo subscrevia entusiasticamente o desenvol. vimento de técnicas de classficacao de aspectos culturai, bem como a esericdo geogrifica das semelhancas¢ dferencas entre “reas call. rais"!* Os primeitos estudlos dos povos indigenas da América do Nor. intelectual da. an- 1 Keoshen Chur andar Areas of Mate Nev America, ons in Americas Arceoky an Ehnoegy 38 Barely Laren 82 0 naicnnt elt atormeine te, por exemplo, prestaram muita atengio is técnicas de obtengio de alimento e aos alimentos principais,¢ dividiram 0 cor . Os estos es alimentares ¢ ambient Africa dedicaram-se a d particular a chamada “pea pposteriores, ele prestou uma atencio criteriosa A utilidade de classifi- cara cultura em termos de elementos, complexos reas etc.'* Tampouco jengdo descomhecer a importancia dessas pesquisas, ou afir~ vel que esse trabalho levasse a uma visio meio mecanicista da cultura eretirasse a énfase dos processes de mudanga ¢ diversificagdo. O pro- a tarefa de combinar ume teoria da mudanga com rami Eee nda estd por num sistema de classificagio cultural da Afro-América ser executada, Como quer que se opte por definir uma “heranga” africana ge- neralizada, compartilhada pelos escravos transportados para qualquer indicamos massas reservas quanto a trata "Concebemos a cultura como intimamente fi- 1m, Em contraste, @ idéia de uma heranga africana comum so ganha. rative, quando se pergunta que tra .soonte Do Bvcowa20 83 pelos africanos de qualquer colénia do Novo Murdo — em geral, um aglomeracdo etnicamente heterogéneo de individues—,teriam sido um recurso limitado, apesar de crucial. E que eles podem ter servido de catalisadores nos processos pelos quais os individiuos de diversas soci- edlades forjaram novas instituigées, ¢ podem ter fomecido alguns arcabougos dentro dos quais foi possivel desenvolver novas formas Entretanto, mais adiante, argumentaremos que, a despeito da provével iincia desses prit ios generalizados, os africanos de qualquer dee comecaram a compartilhar uma cuftura na medida ena velocida- de que eles mesmos as criaram, Ja sugerimos que existe uma segunda manciva abreviada de lidar com a heterogeneidade étnica dos africanos, dentro do mesmo modelo bipartido do contato cultural. Ela postula uma ligagdo entre determina~ do povo africano e determinada colonia ou sociedade do Novo Munclo, afirmando que 0 grosso do teor atticano da cultura em questio no Novo “Mundo seria atribuivel a essa sociedade africana especifica: o Suriname ou a Jamaica 20s achantis, o Haiti aos daomeanos, ¢ assim por diante, [Nilo rare, contucio, as ligagdes histévicas sio simplesmente inferidas a \ partir de um pequeno niimero de semethangas formats, 08 dados do léxico, por exemplo, desempenham um grande papel na “comprova- 0” das supostas relagdes. Os perigos de comparar as culturas da J contempordinea e dos achantis contemporineos devem ser bastante 6h vios; também o sid as dificuldades de comparar 0 que se sabe sobre’ culnara dos escravos na Jamaica colonial com o que se pode resgatar, histoticamente, a respeito dos poves achantis do século XVII Parece evidente que tais estuos comparativos jé no podem des- conhever a necessidade de demonstrar a ligagio histrica (no sentido em que 0s historiadores ¢ os etnélogos de orientagio histérica empre- nascent de ctu ato-mercna 34 gariam esse termo), Certamente, a presenga de um certo dado comportamental entre os jamaicanos e ganenses contemporiineos no pode ser tomada como prova de tal ligagdo. Nesse aspecio, nfo surpre- ende que os estudos recentes que comecam pela proveniéncia ¢ demografia dos escravos (¢ nao pelas ligagses historicas inferidas a par- tir de semelhangas culturais) tendam a sugerir que os escravos trans- pportados para qualquer colonia em exame cram mais a termos étnicas, do que se acts - plo, existem hoje indicagées a indos da regio central da Africa podem, na verdade, ter superado o ntimero dos provenientes do Daomeé." Em The Atlantic Slave Trade: A Census, apoian- do-se macigamente em Debien, Curtin conclui que quase metade do ‘vod, também apoiando-se em Debien, chegou as seguintes no periodo de 1756 a 1767, um tergo dos escravos comer- Cializados com Sao Domingos compunha-se de “congos”, um quarto, de aradas”, um quinto, de “bamibarase senegaleses”,¢ um sexto,de “nagés eibos”, Entre 1780 1792, prossegui Girod, um sexto era de “congos”, enquanto outra sexta parte compunha-se de escravos da Costa dos Es- cravos, da Nigéria e do Daomé.® Fouchard questionou da seguinte ma- neira a lendéncia a estabelecer uma ligacio retrospectiva com o Daomé a partir de uma andlise do vodu: 20, Frangis ito, De ie vist cre: Suint Domingue an 18 ice at Hache 1972), — © movso vo excowino 35 Trate-se de uma hipdtese atraente, mas que nlo se sus- fonts, Bla écontraditads, entre outras coisas, pelos deta ‘hes pois os inventérios das colénias agricolas atestam, por umn lado, a predomindncte numérica de congoleses entre 0s escravos fugidos, ¢, por outro, néo fornecem enhiuma prova, no poyoamento de Sio Domingos — em qualquer periodo —, de importagces substanciais de dacmeanos ¢ sin de atades em geral,ficando longe dese restringir a0 Daomé, que, ali era muito hostil ao comércio negreiro.?" No Surinam similarmente, as pesquisas das duas titimas dé las duas dltimas dé- cadas revelaram que houve multo mais heterogeneidade éinica o nos estudos sobre a heranga africana no ar a proveniéncia da Costa da Guiné (sobretudo a Costa do Ouro), quase exctuindo a regio de lingua banta, Nos, So daclos quantitativos, no entarto, sugerem que os escravos pro- venientes de Luanda/Angola predominaram sobre os que vinham Gs Costa do Ouro em quase todos os periccios do trfico negreiro, No caso do Suriname, assim como no do Haiti, essas descobertay limitam certas erengas histiricas hi muito acalentadas, que se he. seavam, ert grande parte, em inferéricias calcadas n: , , cias calcadas nas semeth culturais percebidas.2* shanses 36 0 nascent de no problema do modelo que Gostariamos de assinalar unt 10 fonte de uma dada tradigao ppostula uma tinica cultura africana com lo Novo Mundo, O conceito holista de cultura que esti implicito nele fo de mascarar os processes implicados nas continuidades dealgum mente com- temoe descontinuidades entre a Africa e as Américas, Presura modo, os escravos de uma dada coldnia estavam cul pprometidos cont tal ox qual via de desenvolvimento esquiva-se i inda- sgagio empiriea sobre o que realmente aconteceu, além de mascarar & ica central de como as culturas se modificam, Por exert plo, ateibuir a forma dos vitos de iniciagio do vodu ao Daomé tlvez seja justificdvel, num nivel provisério, Entretanto, mum outro nb amos a enfentar a questo de quais dos ele ‘quais se perderam, quais sorte que o rite haitiano mais interessante, co rentos do ritual foram fielmente transmitidos, foram modifieadose por quais provess0s, de afual pode ser entendido pelo que é: uma inovaglo verdadeiramente ‘ana, construida de maneiras partcularese emt circunstancias par- ticalares por determinados africanos escravizados, e perpetuada por ima forma sempre mutkével sgeragbes sucessivus — sem diivida, com 1 — durante mais de dois séculos. Atendéncia a presumir uma homogeneidade cult ie 0s escravos de uma dada col6nia persis, no ent : cxemplos. G, Hall escreve: “O africano acidental trouxe consign idéias omplexas sobte a propriedade, No Daomé, gue exercets sua maior linfluéncia cultural em Séo Domingos, tudo, em tese, pertencis ao rei” * Hurbon vai mais longe: (Mas a Aftica ainda é tio evidente na América, qite po- dderfamos falar na existéncia de trés Américas: uma bran- a, uma india e, por fim, a América negra, Na América ido Norte, por exemplo, no arquipélago de Gullah @ na en 0. Fis alguns sae gotsestn en ellen (ero in Stave antation Soi Hopkins moni vo excowrso 37 Vinginia, pode-se constatar a predomindncia das cul turas fanti-achantis; em Nova Orleans, da cultura daomeana ¢ banta; na América Central, da cultura Jorubana; no Haiti e no norte do Brasil, da cultura daomeana ((on);na Jamaies e nas ithas Barbadianas (sc] ede Sta, Licia, a dos kromontis da Costa do Ouro; e nas Guianas Francesa e Holandesa, a dos fanti-achantis® (Os mapas que fragam pretensas linhas de influéncia cultural de determinadas regides africanas em determinadas colénias do Novo Mundo ainda sfo populares entre os afro-americanistas;* embora parec cada vez mais claro que eles envolvem supersimplificages arriscadas. Sugerimos que grande parte do problema do modelo tradicional da hist6ria da cultura afro-americana prin iva reside em sua visio da cultura como uma espécie de todo indiferenciado. Considerando-se 0 contexto social das primeiras coldnias do Novo Mundo, os encontros de africanos de vinte ou mais sociedades diferentes uns com os outros € com seus dominadores enropeus néo podem ser interpretados em termos de dois (ou até de mui valores, cada um deles coerente, funcional chegaram ao Novo Mundo nfo compuseram gruposlogo de saida. Na verdade, na maioria dos casos, talver.fosse até mais exato vé-Ios como -multiddes, aliés multidées muito heterogéness. Sem diminuir a im- portdneia provavel de um miicleo de valores comuns e da ocorrénci de situagdes em que alguns escravos de origem comum podem, vamente, haver-se agregado, a verdade é que estas néo foram, a prin- cpio, comunidades de pessoas, ¢ 96 puderam transformar-se er CO- runidades através de processes de mudanca cultural. O que os es- crayos compartilhavam no comego, inegavelmente, era sua eseravizago; todo — ou quase todo— o resto teve que ser crizdo por 38 (0 sascinte deel sr-etrctn eles, Para que as comuniciades de escravos ganthassem forma, tiveram que ser criados padres normativos de conduta, etais padres s6 podi- am ser criados com base em determinaclas formas de interagdo social. Embora imensas quantidades de conhecimento, informagdes € crengas devam ter sido transportadas na mente dos escravos, estes iio puderam transpor o complemento humano de suas instituigdes tradi- cionais para 0 Novo Mundo, Membros de grupos étnicos de status di- ferente, sim, mas sistemas de stafus diferentes, ndo, Sacerdotes ¢ sacer- dotisas, sim, mas o corpo sacerdotal eos templos, no. Principes e prin- cesas, sim, mas cortes € monarquias, nio. Em suima, 0 pessoal respon- sivel pela perpeluacio ondeira das instituicdes especificas das socie~ dades africanas ndo se transferiu intacto (em nenhum caso que tena cchegado ao nosso conhecimento) para o novo meio. (Repetimos que o mesmo problema também foi enfrentado, embora em grau diferente nna maioria dos casos, pelos imigrantes europeus) Fortanto, a tarefia corganizacional dos africanos escravizados no Novo Mundo foi a de : tuigdes que se mostrassem receptivas as ne~ cessidades da vida cotidiana, dentro das condigées limitantes que a escraviddo Ihes impunia, £ a0 delinear a diferenga entre essas instituigées e os materiais culturais de origem africana que se torna relevante a distingao entre © que é “social” €0 que é “cultural”. Ja faz alguns anos que a importén- jo para o estudo da historia da cultura afro-ameticana tem sido esporadicamente salientada em nivel programitico. Herskovits, por exemplo, observon qui, nos estudos sobre a aculturagao, “ sem- pre preciso ter em mente que os proprios portadores [da cultural so os elementos cruciais”. M. G. Smith discute mais plenamente o fato de “a estrutura social estar encarnada no processo culhur: centando que “o estudo da heranga africana [no Novo -mos puramente culturais, néo ¢ adequadamente cebido € ndo pode, por si s6, revelar os processes ¢ condi aculturacao, Assim, se 0 objetivo desse estudo for a aculturacao, € nao © mon810 Do eNcoNTRO 39 4 simples identificagao de elementos como africanos ou seja ld o que ‘fx, deveremos estudar, igual ¢ simultaneamente, as condigdes sociais pertintentes”. Nao cremos, entretanto, que um niimero suficiente de Fesquisadores tenha-se bencficiado plenamente dessas constatagées emt seus estudos substantivos” com um exempio a diferenga entre esses ter~ importados pelo Novo Mundo vieram de grupos que falavam muitas linguas diferentes e nao dispunam de nenhuma lin- 8:4 isolada coma pata cmpregar uns com os outros. f possivel que alguns ou muitos deles fossem bilingies ou até trilingiies, ¢ alguns decerto encontraram no novo ambiente outros com quem podiam con versar numa lingua conhecida. Todavia, podemos presumirem confian- ‘98 que os primiciros aglomerados de esoraves, em deferminadas em preitadas do Novo Mundo, em geral nfo constituiram comunidades de fala, Muitas vezes, a linguas em que escravos e serthores se comunica- vam eram pidgins ou jargdes comerciais, isto é, linguas com gramati- as ¢ léxicos reduzidos, usadias em atividades especializadas (como 0 comércio) que envol existe consenso quanto criadas na Novo Mundo ou terem-se baseado, em iiltima instancia, em pidgins falados na Africa ocidental.** Nao obstante, fica claro que a primeira linguagem de comunicagdo entre senhores ¢ esctavos deve ter sido um jargto especializado desse tipo, Comumente, essa mesma lingua ter- se-ia transformacio na que os escravos falavam entre si no mesmo am- biente, quer alguns deles houvessem ou nao falado esse mesmo pidgin, ouum outro diferente, na Aftica, e quer este tivesse ou no sido apren- dido antes ou durante a escravatra, 40 © nascent dct at-aeiana Pouco depois de os povoamentas de escravas comecarem a cres~ cer no Novo Mundo, as diversas linguas africanas faladas por seus habitantes, me falta de uma comunidacde de fala continua, devem ter comegaclo a cair em desuso (exceto em contextos ritualisticos especi- is) ¢ a ser suplantadas por um pidgin, As criancas nascidas de mes gem que jé nfo era estritamente especializada, Nesse estégio, quando a lingua se transforma no idioma natal de um geupo de falantes, ela deixa de ser um “pidgin” e passa a ser um “crioulo A distingdo que empregamos aqui baseia-se num critério embora também seja possi clarecer essa diferenea, Julgamos importante enfatizar essa distinedo entre as dimensbes “sociais” (ou sociorrelacionais) ¢ ci a. Everdade que estas slo, simplesmente, maneiras diferentes de examinar um mes- mo fendmeno. Mas essas perspectivas diferentes poem em discussio problemas diferentes. O conteiido ¢ a estrutura de uma lingua ctioula, sua sintaxe, fonologia, léxico ¢ morfologia, bem como a historia de seus varios aspectos, constituem o objeto de um conjunto de indaga- ees de pesquisa. As maneiras como a lingua é usada, por quem e em que circunstincias, levantam um conjunto bem diferente de indaga- @6es. Nao supomos, em absoluto, que tovios os problemas tigados 20 ingua desse tipo possam ser claramente agrupados numa 1” ou “sociorrelacional”. Mas a ndo utilizagao dessas perspectivas diferentes pode ocultar diversas questies, que s6 se pres- tam & andlise quando a distingao é levada em conta, Queremos saber em, na condigio de lingua, assii~ rurais” de uma. nflo apenas como uma dada ling: lingiistico, mas também por que processos sociais ela se padros foi ensinada a escravos recé-importados, pode ser enriquet ape © MopEt0 Do aNconrko a nnovas experiéncias, investida de novos sentidos simbélicos ¢ ligada a iferencas de status. Na verdade, suge to de indagagdes nao pode, a rigo feiramente resotviddo sem re feréncia ao segundo, porque @ lingua como tal nfo assume sua forma caracteristica sem referéncia a aspecios sociol6gicos, tais como o ri- mero de falantes vidos, 0 contexto em que ccarre (ou no ocorre) * A comunicacdo, as finalidades a que serve essa comunicagao e coisas res" Tratar a cultura coma um rol de tragos, objetos ou palaveas perder de vista a maneira como as relacdes sociais so conduzidas através dela — e portanto, é ignorar a maneira mais importante pela qual ela pode modificar ou ser modificada. CAPITULO 2 CONTATO E FLUXO SOCIOCULTURAIS NAS SOCIEDADES ESCRAVOCRATAS A distingdo entre as perspectivas cultural ¢ social remete-nos de volta as dificuldades criadas por uma visio excessivamente holistica, da cultura, Enfatizamos até que ponto acreditamos que os escravos se confrontaram com a necessidade de criar novas insttuigdes para aten- der a seus objetivos cotidianos. Definimos “instituigio” como qual- - quer interagao social regular ou ordeira que adquira um cardter normative e, por conseguinte, possa ser empregada para atender a necessidades reiteradas, Dentro dessa definigao arupla, uttia dada for- ‘ma de casamento, umn dado culto religioso, um dado padrao de estabe- lecimento de arnizades, uma dada telagto econdmica que seja normativa € recorrente, todos esses seriam claro que, assim definidas, as instituigdes que sustentam ¢ articulam uma sociedade diferem imensamente em sua extenséo e natureza, Na sociedade norte-americana contempordnea, por exemplo, podemos des- crever com certa justica a fa a i bancério nacional com ‘emt comum, @ nosso ver, expressa-se de maneira rudimentar em nossa definigdo, Mas 0 que as tora vastamente diferentes tern a ver com questdes de escala ow alcance, entre outras coisas, "Nocontexto especial dos primeires tempos da escravidio do Novo ‘Mando, apenas alguns tipos de instituigdes puderam ser desenvolvidos pelos escravos: aquelas cujo ambito se restringia ao grupo escravizado, ou aquelas que serviam como vitios tipos de vinculos ou pontes entre os escravos e os homens livres, Para nossos fins, podemos conceber as 44 °, instituigdes criadlas pelos escravos como tendo assumido a forma de uma série de cixculos concéntricos — uma imagem que, a rigor, nao é particularmente oportuna — que s6 incidiam na sociedacle dos ho~ ‘mens livres em pontos especificos ¢ de modos especificos. Cremos que 0 monopélio do poder exercido pelos europeus nas coldnias escravagistas teve uma forte influéncia nas maneiras como foram mantidas as continuidades culturais e sociais da Africa, bem ‘como nas maneiras pelas quais foi possivel a ocorréncia de inovacbes Mas devemos também enfatizar os problemas enfrentados pelas clas- ses serthoriais no controle dos escravos e na consecucio dos objetivos a ‘que se destinavam as economins das colonias agricolas de base escrava. ‘Tratava-se de problemas de mui ferentes colonias de légios da metrépole, da necessidade recorrent dir ou manter as operagSes da plantation, da “ ‘mio-de-obra cecrava e das lutas entre as classes metropolitanas ¢ col0- Nao podemos discorrer sobre essa ampla variedade de proble- mas ¢, a rigor, tentar fazé-lo nos desviaria de nosso objetivo, Também devemos deixar de lado qualquer consideragio séria da escravidio nos contextios urbanos que acreditamos suscitar todo um conjunto de pro~ bblemas um pouco diferentes, Alguns dos problemas enfrentados pelo sistema colonii ‘tanto, foram experimentados em nivel muito local —nas col6nias agri- colas, em particular —e podem ser visios como brotando de contradi- Ges centrais no préprio sistema das plantations Tais problemas deci- Gidamente nos interessam, porque tém muito a ver com os modos como 6s novos sistemas sociais ¢ cultura se estabeleceram e crescera nas coldnias,¢ também com as oportinidades que tiveram os escravos para sar e manter seus estilos de vida. entre- CContare & ruuxo socimcuLreRas. 45 Dentre elas, a contradigio central surgiu na interagtio das m orias escravas afro-americanas com as minos nas de cada colénia. Osescravos erat entretanto, sendo humanos, eram sol sencientes, articuladas ¢ humanas: os escravos nao eram animai da que as barbaridades praticadas contra eles fossem desumanas. parte dos senlhores, a aceitagio — amitide no questionada — de seu direito de tratar os escravos como se estes niio fossem humanos racio- nalizava o sistema de controle, Na prética, porém, é muito claro que os senhores reconheciam estar lidando com semelhantes humanos, ainda ssem a admiti-lo, Os animais nfo conseguem apren- cempreger ferramentas e miquinas na produgio do agiicar, a dirigir equipes de companheiras na execugio de tarefas, a cuidar dos engermos, preparar jantares sofisticados, com- or dangas e poemas — ow, jt que estamos no assuunto, a se tornarem peritos em ridicularizar com impunidade as asneiras daqueles que os destratavam. Os animais tampouco organizam formas de resi envenenam seus opressores, lideram revolugdes ou cometem suicidio para escapar de suas agonias. Uma literatura produzica ao longo de euro-america-»i senhores, mesmo nos casos em que os autores parecem mais inclinados a provar o inverso. 46 0 nascent elt ato americana Essa € a contradigo central da escravatura no Novo Mundo, € parece ter sido patente em infindiveis encontros entre os escravizados € 05 livres, Sem levar criteriosamente em conta essa contradic, nao podemos analisar a contento as maneiras como as niovas culturas © sociedades foram ganhando forma no regime escravagista, nemo fato realmente ébvio de que a escravido, como instituigao social bisica da Afro-Améria, tanto influenciou os homens livres quanto 0s ni Quando ela é levada era conta, entretanto, as formas sociais que liga- ram 05 escravos entre si e que foram desenvotvidas para regular os cencontros entre pessoas livres ¢ escravizadas sio imbuidas de um sen- ‘ido inteiramente diverso. A concepcao de uma sociedade dividida em dis stores hermeticamente fechados passa a poder ser vista pelo que realmente é: 0 ideal munca alcancado dos senhores. Ea concep dos escravos como autématosirrefletidos, simultaneamente treinados para negar sua propria humanidade e continuamente sdlicitados a reagir de maneiras humanas as exigéncias que o sistema Ihes fazia, fica de- nunciada em todo o seu carater mitico.* A variedade e a natureza dos encontros entre os escravos € 0s cidadios livres cram miiltiplas. Simplesmente para que 0 trabalho fos- se executado, era preciso dar aos escravos responsabilidades diferen- tema surpreendentemente cor da no sexo, idade, inteligén produzir scu proprio estoque de alimentos, pescavam e cacavam igua- vias para a mesa dos senhorese a deles mesmas, construfam stas Casts ¢ faziam os méveis e utensiios nelas utilizacos, Bram Conravo € Fuvxo sociocuLTuRAs 47 cozinheitos ¢ cocheiros das colOnias. Muitas dessas tarefas podiam ser cxecutadas apenas com um minimo de contato com os senhores euro- ous, mas outras exigiam uma interacdo social freqtiente, as vezes rei- fernda ou até ininterrupta com os detentores do poder. A principal via de contato, portant, foi criada pela comunicaga e pela delegagaio do comand, Embora 0 poder’ se originasse no topo do sistema, ele nao poulia ser empregado sem levar em conta a natureza da reagao. pre~ ciso termes cuidado ao discutir esse aspecto do problema. Ao longo do tempo, é claro, ¢ de um caso para outro, o carter dessas reagdes foi ‘varldvel, Eimpossivel fazermos mais do que assinalar aqui a complexi- dade dessa questio ¢ frisar que nossas afirmagdes provisérias preci sam ser aperfeigoadas, confirmadas ou refutadas por pesquisas parti- cularizadas, £ fundamental para nossa visio a idéia de que o sistema em si, por se enraizar na desigualdade hereditaria, produzia conflitos Como umn trago integrante da continuagio do controle, qualquer que fosse a natureza da adaptagio ou da conciliagéo entre escravos € se mhores. _Areagio vinha dos escravos ¢ era modificada pela incompreensio autentica, pela ignordincia fingida, pela doenca real e pela fuga do trae balho a pretexto de doencas, ow por varias formas de resisténcia ativa € passiva, Parece perfeitamente provavel que, por toda parte, ela im- plicasse tm dar ¢ tomar e que os senhores (assimn como os escravos) estivessem cientes disso. Com efeito, o monopélio do poder pelos se- nhoresera restringido nfo sontente por sua necessidade de atinsircertos resultados, em termos da produgie e do Incro, mas também pelo claro conhecimento que os escravos tinham da dependéncia dos senthores em relagiio a eles. Essa cependéncia era profundamente afetada, écla-» 0, pela capacidade (e presteza) dos senhores pata torturar e matar, separat parentes a forga, privar os individuos de varios bens e servicos necessatrios e, acima de tudo, empreger ameacas ea técnica dos “exem- plos” para impor obediéncia. Mas essas realidades néo nos devem ce~ Sar para a necessidade absoluta que tinham os proprietiios, supervisores, contadores ¢ guarda-livros de atingir ¢ manter certos 43 0 ecient da catueato-americene niveis minimos de desempenho, O agoite talvez tenha sido a principal técnica para esse fim, mas pode ndo ter sido —e nunca foi —a tinica dessas téonicas, ‘Tampouco © desempenho cotidiano da méo-de-obra técnica € agricola era o i passaram, “naturalmente”, a ser da responsabilidade convencional dos ‘escravos, desde cnidar dos bebés das familias senhoriais até preparar sna comida, Essas tarefas extras puseram escravos individuais em con- tato mais regular e intimo com o grupo dos homens livres; mais uma ver, tratou-se de relagdes em que 0 poder dos cidacidos livres sobre os escravizados foi complicado pela dependéncia dos detentores do po- der. Na verdade, a economia das fazendas era célebre pelo grau dessa dependéncia, pela multiplicidade de ocupagées servis, pelo emprego excessivo do trabalho escravo ¢ pela indolencia e desamparo da classe senhorial, Qualquer lettre cuidadosa da historia de uma colonia clds- sica de plantations — como # Jamaica, Sio Domingos ow 0 Suriname no século XVII — revela que os escravos deviam saber muito mais sobre os assuntos intimos cotidianos dos senhores do que estes tinham comhecimento dos que diziam respeito aos escraves. As relagdes entre cos membros das familias senhoriais eram cor por toda sorte de escravos domésticos, e mt ‘plantations devern tex passado uma parte muito maior de seus anos de formacdo na companhia de suas amas negras do que na das mies, ‘Mas um terceiro tipo de contalo eram as relagées sexuais en individuos livres e escravizados. Como seria de se esperar, tis relagSes costumavam envolyer escravas e homens livres O iiverso também ocor- ria, no entanto, ¢ um estudo criterioso dos registros judiciais de quase tocias as colonias escravagistas revelaria, provavelmente, alguns casos de relagbes entre mulheres lives ¢ homens escravizados. Van Lier, por exemplo, baseando-se em documentos d £m 1711 foram registrados dois casos de contato sexual entre um negro e uma branes, o que levou 0 governa- contro £ ruuxo sociocuruRas, 48 dor Johan de Hoyer a promulgar um edito, estipulando que a mulher branca soiteira que mantivesse relagdes sexuais cam wm negro ficaria sujeita 20 agoitamentoe & expulsto da colénia, enquantoa branca casada seria ain- da marcada a ferro, Os negros passararn a ficar sujeitos 4 pena de morte por esse crime, A causa imediata da introduedo dessa legislagto foto pe- ido de divércio de um homem chamado Barend Roelof, que dectarou “que sua espose, Maria Ketiser, tendo {tido) Jntimidade carnal com um negroe engravidado dele, dera 4 luz uma menina mutate alguns meses antes”. Durante 0 julgemento desse processo, entrou igualmente em dis- cuussio 0 caso de Judith de Castre, que também tivera are {filho de um negro, mas depois se havia casado com um certo Jean Milton. A Hof {corte} resolve notiticar esse Jadith de Castre de que nem els nem sua még, nera qual- «er outra pessoa, fosse quem fosse, jamais poderia lente ‘ow mandar evar seu fitho mulato a Paramaribo [a capi- ‘all, sob pena de uma punicio arbieri Para 0s colonos, era crucial negar que tais relagdes pudessem ccorer. # interessante, ao especilarmos sobre a freqiiéncia dessas unis ilicitas, notar que os dois casos acima relatados implicaram a gravidez e 0 nascimento de filhos. £improvitvel que, em outras cir cunstiincias, eles houvessem jamais vindo a ptiblico* Pp 188-101 Tamaia, 1770-1820 Oxtor, Clarendon Pes 10 50 © nascent eer to-amercaa Embora muitos relacionamentos que envolviam o sexo entre individuos livres e escravos fossem de exploragao ¢, nao raro, de uma crueldade indizivel, outros eram marcados pela ternura ¢ afei- «io ¢, em alguns casos, mantidos pelos participantes durante a vida ‘entre pessoas livres ¢ escravos levanta uma dificeis ¢ complexas com que pode deparar 0 ra afro-americana, For um lado, tais contatos po- diam constituir a mais grave ameaga de todas — excetuada a revo- Iuigdo — ao ideal das colonias. Eles eram perigosos para o sistema, néo s6 por transporem, de maneira potencialmente compromecte- dora, 0 abismo entre os setores escravo ¢ livre, mas também por resultarem em filltos cuja situacdo era cronicamente ambigua, da que eles fossem escravos em termios legais, Por outro lado, a pa~ ternidade e a realidade afetiva das relagées humanas entre escravos € serthores, em muitos casos, complicavam profundamente as ma- neitas como se estreitava 0 abismo entre poderosos e sem poder. Muitas vezes, 0 pai europeu out crioulo de filhos nascidos de escra- vas protegiam essas criancas, muito embora nio as reconhecessem (ou nao pudessem reconhecé-ias legalmente). Num periodo rela~ tivamente curto, a classe dos affranchi{alforriados) de Sio Domin- 805, por exemplo, que era predominantemente composta de de senhores franceses com escravas, tormot-se econémica ¢ politi- camente forte na colénia.” Bmbora o quadro tenha sido bem dife- rente, em suas conseqiiénciastltimas, numa colonia como a Jamaica, também ali a mesma ponte sexual sobre o abismo entre escravos ¢ iu um grande ponto de contato entre os dois principais setores da sociedade. © comércio era outta drea de contato importante. £ tum poxco dificll concebé-lo como uma base essencil de cantato numa sociedade em que a maioria da populagio era escrava, no possula tervas e era roy boundels an the perception frase", Compara tudes pp AST -48, 7 Sidney Wein" in Society an istry ConAro € FLUXO SociocULTURAS, 3 quase toda desprovida de poder. Mas a verdade é que, numa colonia aapés outra, o8 escravos foram cbrigados a cultivar terras para produzir parte de sua prépria subsis fi Repetidamente, eles se tornaram produtores de uma parcela substan- ial do total de alimentos consumidos pela colonia, inclusive por suas, classes livres, Jamaica © So Domingos fornecem-nos, mais uta vez, uma profusio de detalhes; a participacio dos escravos nessas duias co- {onias foi responsivel pelo crescimento de mercados ou feiras livres _grandes e importantes nos vilarejos e cidades. Além disso, esse cresci- mento também implicou a conquista do poder de compra individ ppelos préprios escravos, bem como a ampliagdo de suas preferéncias, de consumo, Numerosos grupos comerciais cresceram nos grandes cexi- fros de todas as colénias escravagistas, dependendo do comércio des excravos e atendendo a essa clientela, £ facil ampliar essa lista das oportunidades de contato: o papel dos escravos como miisicos nos bailes e festivais dos europeus; como fornecedores de artigos especiais para o deleite das familias senhori- ais (como peixes © carne de caca); e seu papel como damas de com- panhia, acompanhantes, cicerones ¢ camareiros.* 0 importante, con- tudo, € que muitas vezes 08 escravos se viam desempenhando um papel essencialmente educativo junto aqueles que, no sistema como tal, detinham poder sobre eles. Que a classe senhorial tarito funcio- hava como mestra — e inttimidadora — dos escravos quanto como reguladora de sta conduta sempre foi aceito como um dado banal, ¢ leurs Stine, Rede So Hale ire 9) pp. 79-81 82 0 natiment uli ata sem divida costumava ser verdade. Mas 0 papel que tinham os des- provides de poder, afelando e até controlando partes importantes da fundamente divididas pelo status —e, em consonancia com isso, pelo 10 € muitas outras coisas —, mas complicadas pela interagao continua dos membros de ambos os grupos, em muitos niveis e de rmuitas maneiras diferentes, Podemas ver esse esquema, primeiramen- te, como consistindo no alinhiamento das posigdes sociais e seus papéis concomitantes: a divisdo das tarefas e responsabilidades, dos direitos ¢ deveres, em termas do poder e da autoridade. Mas também devemos considerd-lo em termos das maneiras como 0 conteitdo cultural — os estilos de comportamento e de fala, as crencas ¢ valores, a etiqueta, a culinaria e o restante da esséncia da conduta cotidiana — foi moldado, transmitido e perpetuado. Bssa mudanga de foco permite-nos ver que (05 pontos de contato entre pessoas de status diferente, ou de insergio grupal diferente, niio determinava de maneira automitica a diregao 1x0 do material cultural conforme o status dos participantes, mas de acordo com outras variaveis, Por certo, o status do fillto do senhor perante sua babé escrava afetava sua aprendizagem de um estilo de comando ao lidar com os escravos. Mas sua fala, suas preferéncias culi- narias, suas imagens, suas primeiras idéias sobre os homens ¢ mi rese muitas outras coisas, naquilo que um dia se tornaria caracteristi- to inferior ao seu, mas que, noutros aspectos, exere: - le sobre ele, Embors este exemplo possa parecer extremado, ele s6 0 por empregarmos a imagem de uma crianga e um adulto. Nao temos razio para supor que a situacao teva sido diferente nas outras areas de contato entre escravos ¢ homens livres, dada essa ressalva. Embora coptemos por nio levar adiante aqui esta parte da argumentagio, qual- quer reflexfo sobre a musica, a cozinha, o folclore, a danga ou a fala do sul dos Estados Unidos deve deixar claro que isso é tudo menos wm contro & FLuxo sociocuLrURAs. 58 exemplo perfeita de europeus que tenham “americanizado” com si- cesso seus escravos, pelo simples fato de deterem 0 monopélio do po- der sobre cles. Agora podemos especificar alguns dos pontos nodais mais 6b- vios de contato ¢ de fluxo, reconhecendo que nossa lista ¢ apenas uma sugestio, Para esse fim, evitamos a tendénc cultura em termos de grandes “t6picos” (econdmicos, p: tecnolbgicos, folcloricos etc), que introduzem uma certa rigiden no asstmnto, e preferimos, em vez disso, pens4-la em termos das relacSes interpessoais que faziam a medi ico Sbvia dava-se entre os homens livres e suas amantes. U aspecto importante dessas relagdes serie a institucionalizagio das a tudes sexuais entre escravos € cidadaos livres, no tocante A sexual dade do grupo oposto. Uma segunda relagzo — ou conjunto de rela- Ses — dava-se entre os escravos que faziam o trabalho dom« aqueles a quem eles serviam: governantas, cozinhe! 05 membros da familia que residiam na chamada “ fazendas. De importancia comparivelseriam as relagoes de trabalho entre os dirigentes europeus eos , téonicos e eapatazes que haviam entre os escravos. E provavel que todas essas interagdes fos- sem de longa duragdo € marcadas por pelo menos um certo recor cimento da interdependéncia, Para citar apenas um exemplo, os al zmentos preparados pelas cozinheiras das familias envolveriam, ne~ cessariamente, um certo intercambio das preferéncias, moldadas por ‘radigdes ancestrais e pela disponibilidade dos géneros i Assim como seria um erro presumir que as preferéncias dos escravos eram automaticamente predeterminadas pelo prestigio € poder dos sentiores, seria igualmente erroneo supor que apenas as preferéncias européias determinaram a culindria que, no correr do tempo, tornou-se convencional, seleta e “cricula”. Os relatos joviais de Lady Nugent, simultane: marcados pelo racismo ridicule ista de Nova Jersey, casada com um govemnador da Jamaica, ¢ por interminaveis afirmacées de seu proprio 84 O nascinento de eltara tro america humanitarismo, fornecem muitos exemplos do grau em que a socie~ dade da classe senhorial jamaicana era impregnada pela cultura de seus escravos, mesmo que isso nem sempre fosse reconhecido, A culi- néria é apenas um dos aspectos da vida em que isso fica patentemen- te claro? Muitos outros exemplos da narrativa de Lady Nugent reforgam nossa visio do fluxo das informacées e atitudes.Por exemplo, ela des- ereve ama menina escrava que “sabia rezar perfeitamente o Padre 'Nosso, mas era incapaz. de dizer como o havia aprendide, posto que pai e a mie sio negros lavradores" e nenhum dos dois sabe rezar”. Mais adiante, ela escreve: “b extraordindrio observar o efeito imediato do clima e do estilo de vida deste pais na mente e nas manciras dos ‘europeus, particularmente os de extragao inferior. Nas camadas supe- riores, eles se tornam indolentes ¢ inativos, negligentes com tudo o que no seja comer, beber e se regalar, ¢ ficam quase inteiramente domi- nados por suas favoritas neulatas. Nas camadas inferiores da-se a mes- rma coisa, com o acréscimo da presungo ¢ da tirania.” E, por iltimo: jar crioulo no se restringe aos negros. Muitas das senhoras fas na Inglaterra falam uma espécie de inglés rudimentar, ‘com um arraslar indolente das palavras que € muito cansativo, se no repugnante. Eu estava perto de uma senhora, certa noite, junto a uma janela, e, para puxar conversa, comentei que o tempo estava muito mais fresco do que de habito, ao que ela retrucou: ‘Sim, senhora, ti muunuito fresquinho meeesmo?” Diversas auforidades tern discorti- do sobre varias dessas questoes, dentre elas, com extrema eloqiigncia, Edward Kamau Brathwaite. 2 Bruthwste, Developmen’ of Creole Sec, obit pp 800-05, COnraTO & FLUKO SocIOCULTURAS, 35 ‘Temios afirmado que as chamadas culturas crioulas das colonias agricolas comecaram a ser forjadas durante as primeiras interagSes de europeus com africanos € de africanos de origens diferentes, em con- digdes em que os pardimteitos externos de variagdo foram ditados pelas citcunstancias ambientaise ecoldgicas tipicas das colonias subtropicais, pelos objetivos giobais do sistema das plantations pelo monopélio do poder detido pelas classes senhoriais européias, Mas enfatizamios,igual- mente, nossa visio de que os processos de formagio cultural nio fo- ram unilaterais — uma imposigao de formas européias a receptores africanos passivos — nem homogéncos. Julgamos, antes, que uma in- terpretacio adequada desses processos deve comegar por um exame critetioso do que se conhece sobre os pontos de contato entre pessoas escravizadas ¢ livres, € sobre os tipos de instituiges (domésticas, eco- nnémicas, religiosas e politicas) desenvolvidas por cada grupo para fa~ vorecer seus interesses. Neste capitulo do ensaio, enfatizamos as interagdes entre individuos provenientes de cada grupo, os tipos de ‘material que podem ter fluido dos representantes de um grupo para os de outro ¢ os pontos convencionais de coniato, ou “nés”, que surgiram ¢€ se cristalizaram no sistema social existente. Talvez. uma tiltima ques- to merega ser mencionada. £ lugar-comum nas ciéncias sociais que, em qualquer sistema social, a interacdo humana assume seu cariter ordeiro a partir das cexpectativas formais implicacias no desempenho dos papéis ligacios a qualquer status particular. Numa sociedade escravagista, é claro, uma distingdo central provém das diferenas juridicas entre as pessoas li- res © os escravos, Mas essas diferenigas so reduzidas, ampliadas roduladas de maneiras diversas, de acordo com as posigdes sociais cespecificas dentro de cada setor ¢ de acordo com as interagées especi- ficas entre o individuo livre e o escravo. Em outras palavras, o sistema de status ndo expressa nem controla plenamente a gama de interagSes especificas possiveis dos indivicuos. Esse aspecto Sbvio, mas crucial da realidade social expressa-se em qualquer instituigio que examinemos, pelomenos em dois tragos significativamente diferentes, Primeiro, exis- © natiment de ule ao-ameiann tem 03 casos de “transgressbes” pervebidas qu criam perturbagio & medida que se tomam poi crueldade com as criangas, 0 desrurpriente de acordos verbais, os vvirios tipos de “insubord existe 0 reconhecimento, im tuagdo efetiva de contato, Cremos que essa formulagdo deve ter sido tio vilida com respei- to.interagio nas sociedades escravagistas quanto 0 na vida social em eral, Entretanto, a interagdo deve ter sido complicada pela diferenga fundamental de status entre os detentores do poder e aqueles « quem cles controlavam, mas de quem, ainda assim, eram profundamente dependentes, 6 de se esperar que um sistema desse tipo seja mais rigi- do do que outro em que nio haja essa cisio explicita e central entre dois setores. Mas isso nao significaria, necessariamente, uma gama mais estreita de variagbes comportamentais, si ‘ada para com as regras formais — 0 cédigo —geradns por um siste~ rma que foi concebido para o controle inflexivel de um grupo por on tro, Quer leiamos o relato de um observador setecentiste da Jamaica, quer um romance de Faulloer, a énfase na forma, em contraste com o detalhe do contetido, € inequivoca, Tssa énfase expressa o que temos em mente ao falar do cuidado necessério para o desempenho eficiente de paptis nos sistemas que so profundamente clivados por um vinico cxitério primordial de starus, uma atengao mail Nas sociedades escravagistas do Novo Mundo, as normas clara- 1ente padronizadas de interagio de brancos (livres) com negros (es- cravos) devem ter estado entre os primeiros tipos de formas sociais ase insttucionalizar £ provavel que tais normas tenham-se consolidado de mancira exagerada, em virtude da protegdo que ofereciam contra CCONTATO € FlUxO saciocULTURAS, oT as violngSes explicitas, e também considerando os riscos que estariam implicados na situagéo de um membro de qualquer dos dois grupos revelar a membros do outro grupo seu reconhecimento da humanida- dee da individualidade deles. Lady Nugent fornece-nos mais um exem- plo convincente: Tio logo terminow a ceriménia, abri o baile com wm negro idoso. Cada cavalheiro escolhen um par, de acordo com a condicio social, a idade ou o trabatho, ¢ todos dangamos. Entretanto, ndo me apercebi do quanto havia chocado as senhoritas Murphy com isso, pois fiz exatamente 0 que teria feito num aniversério na sala dos criados na Inglaterra. Elas me disseram, posteriormente, que estiveram prestes a desfalecer ¢ ‘mal puderam conter-se, para ndo derramar uma for~ rente de ldgrimas diante daguela visio to inusiteda © extraordinaria, porque, neste pais e em meio 20s escraves, era preciso manter um respeito muito mais distantel Talvez tenham razdo. Nao tive nenhuma in tenpio de ofendes ¢ fodes aguclas pobres criaturas pareciam tio encantadas ¢ tio satisfeitas, que se dificil ew me arrepender: Ndo obstante, lamentei mi shaver ferido a susceptibilidade das jovens, particn- Jarmente, além disso, por elas parecerem considerar perigoso esse exemplo, fd que, segundo disseram, dar excessiva importancis aos negros ou colocd-los todos em pé de jgualdade com os brancos poderia produzir uma grave mudanca na condufa deles,¢ até gerar uma sebelido na Tha.’ O-que procuramos enfatizar neste capitulo, enfim, é que a pre- senga desse c8cligo comportamental critexiosamente definido nao sig- nifica, enfaticamente, que todos esses exemplos de interagio tenkam 1% Nugent, fovenaoh chp 208 58 nation de extee atomic sido desprovidos de tumanidade ou de variacdo individual —~ a rigor, muito pelo contrario.* 1 Nest discus, fo Ramos nenuinatntatva de tocar na importante contovésa que CAPITULO 3 © SETOR ESCRAVO Para a movin das relagdes soiais de que os eseravos participa vam, a sociedade das pesso: sob muitos aspectos, a vida dos escravos permaneceu desvinculada dos interesses dos senhores. Esta talvez se afigure uma afirmagio parado- xal ou contraditéria, em vista da discussio precedente. Mas devemos tragar com cuidado nossas distingSes entre os grupos escravo ¢ livre. Que eles costumavam estar aprisionados numa interdependéncia inti- ma €, @ nosso ver, incontestavel. Mas vimos procurando frisar a incompreenséo, muitas vezes impressionante, da verdadeira natureza dessa interdependéncia por parte dos senhores, bem com sua irtcons- ciéncia do grau em que sua vida ¢ suas atitudes eram moldadas pela economia escravagista ¢ pelos comportamentos dos proprios escravos. ‘Nao temos tanta certeza — na verdade, duvidamos muito— de que os escravos fossem similarmente incapazes de compreender: Seja como for, grande parte da interagdo dos membros desses dois setores deve ter ocorrido de acordo com expectativas transformadas em convert- 80s, que ocultavam tanto quanto revelavam sobre cada grupo. No to- cante a0 estilo de vida dos escravos, descontiamos que, em muitas ére~ 45,0 controle dos senhores era o que mais importava, por impor lii- les externos a uma adaptagio inovadora. James Phillippo contou uma historia de um escravo jamaicano que foi apanhado furtando aguicar e negou repetidamente t8-10 feito, insistindo que apenas o havia “tirado”: “Se dono do agticar é sinhd ¢ dono de mim é sinks, di tudo na mesma, dai mim dizé pra sinks que ndo é ladrdo; mim s6 tira!” ‘Mas, entio, que ¢ que voc’ chama de 60 © nasiment te cute a roubar?” — ‘Quando mim entra na casa e no qui coisa dele, af mim lacro, sinhd.””" Mais impressionante ainda é a hiistéria que Phillippo conta sobre a mae escrava que baten no filha por ele ter dito a um capataz para onde havia corrido um escravo lo: — “Da proxima vez que buckra® te pregunta pra que indo negro correu, tu diz a ele: mim num sabe, sinhd.” Como disse Phillippo, com certa exasperacio: no linguajar dos negeos, a verdade era designada como ‘contar mentiras ao Duckra’”* E outros materiais narratives documentam profusamente as maneiras como livre eram, ao mesmo tempo, profundamente entrelagados, mas claramente separados. Assim, diriamos que as instituigées criadas pelos escravos para lidar com 0 que constituia, ao mesmo tempo, cs aspectos mais comuns cemais importantes da vida assumiram sua forma caracteristicn demtro dos pardmetros do monopslio de poder dos senhores, mas semaradas das instituigdes semhorais* Temos em mente, por exemplo, a mancira como 0s escravos remendavam suas roupas, mobiliavart as casas, pre~ paravam as refeigées, enamoravam-se, faziam a corte, casavant-se, cti- zavam os filios, cultuavam suas divindades, organiza outras formas de recreagiio e sepultavam 0 seroR Esceavo 61 seus mortos. Se nossas afirmagSes a esse respeito forem interpretadas de mancira demasiadamente literal, & claro, seré fac estamos errados; em tese, os senhores evam capazes de det sanizariam todas esses atividades, dado 0 seu pode passaram a aceitar a padronizagdo das instituigSes dos escravos como parte da realidade cotidiana, uma realidade a que também eles tinham que se adaptar: Nao é part cravidio implicow tanto senhiores quanto escravos em condutas pa- dronizadas. A essa assertiva acrescentariamos apenas que as institui- 402s dos eseravos ¢ a vida destes precisam ser anslisadas a fato, tanto quanto possivel As instituigdes nodais ou nucleares em torno das quais os esera- vos ordenaram sua vida devert ter-se voltada para certos problemas fundamentais, como o estabelecimento de amizades, o desenvolvimen- rupos de parentesco, a constituicdo de unidades domésti Yo de solugées para as crises da vida (a padroni lar Com onascimento, a doenga ea morte), a formagio de grupos religiosos ¢ a solugdo dos problemas da servidao (através da dissimulagao, do fingir-se doente ete). Enfrentamos aqui o problema de saber como esses aglomerados heterogéneos de homens mulheres puderam compor para si uma ordem social, dentro das margens de manobra definidas pelo monopélio de poder senhorial, Na tent fazer nossa énfase recair nos problemas sociorelacionais enfres 5 Rprortvel gue nao 62 © aeiciment da uae aboareicene pelos escravos, nao tencionamos ignorar ou desenfatizar os materiais culturais que impregnariam suas instituigées nascentes. Mas a melhor maneira de ver esses materiais culturais, propomos, é como um aspec- to do crescimento das instituigdes, das pessoas envolvidas ¢ dos tipos de coeréncia que clas devem ter passado a proporcionar a comunidade eserava como um todo, © desenvolvimento de in contingente escravo de uma coléni nidade escrava, porém uma coerénci avelmente complicada pelas divisdes ou diferencas esperaveis. Os nascimentos e mortes, os problemas ligados ao amor ¢ 80 édio, a introdugo de novos lotes de escravos em comunidades jé em funcionamento, a venda de mem- wuigdes pactronizadas para todo 0 la dava coeréncia a brose a fragmentacdo forcada de familias ou grupos de conterraneos, estas € muitas outras influéncias deviam afetar 0 tipo e 0 grau de coesio atingiveis por uma comunidade escrava, Havendo as institui- _pdes eficazes dos escravos passado a funcionar num aglomerado mis- to, esse aglomerado, por sua vez, comecava a se transformar numa comunidade, A partir dai, os aspectos da vida que mais geravam de- savenga ou perturbagio podiam comegar a ser postos em pritica con- tra uma estrutura existente de padrdes comporiamentais, como acon- tece em qualquer sistema social. As instituigdes surgidas em qualquer populagao escrava nos pri- reiros tempos da escraviddo do Novo Mundo podem ser vistas como uma espécie de arcabouco em que era possivel empregar, padronizar ¢ transformar materiais culturais em novas tradigdes. Assim, quer ‘modo como os escravos se apaixonavam e cri- res, quer 0 miodo como se reuniam em grupos tenhamos em mé avam grupos fat regulares para praticar o culto religioso, o contetido desses compor- tamentos pode ser visto como um aspecto das relagdes sociais. Essa visio coloca sob um prisma muito diferente, a nosso ver, qualquer . Néo mais parece suficiente afirmar a adoragdo de Xangé em Trinidad reflexio sobre os “africanism que 0 culto dos gémeos no Hi 0 SETOR escravo 63 ou na Bahia, ou 0 uso de oraculos no Suriname sao simples exem- plos de uma transposigio da Africa, ou mesmo de continuidades cul- turais étnicas especificas. Nossa tarefa deve, antes, consistir em deli- near os processos pelos quis 0 material cultural que foi preservado péde contribuir para a criagdo de instituigdes a que os escravos se dedicaram, a fim de introduzir coeréncia, sentido e um certo gratt de sxutonomia em sua condigao CAPITULO 4 PRIMORDIOS DAS SOCIEDADES E CULTURAS AFRO-AMERICANAS Para que pudesse comegar a criar ins is, qualquer aglomerado de escravos des plantations teria primeiro que lidar com os ‘rqumas da caphura, da escravizacio e do transporte. Assim, os primdrdios, do que mais tarde viria a formar as “culturas afro-americanas” deve datar das primed interagées dos homens e mulleres reoém-es- cravizados no préprio continente africano, Eles eram acorrentados uns sos outros em comboias, amontoados nos calaboucos timidos das feitorias, espremidos entre os conveses de navios fétidos,freqtientemente separa- dos de seus grupos de parentesco ou suas tribos, ou até de falantes da mesma lingua, entregues & perplexidade acerca de seu presente e seu futuro, despojados de todas as prerrogativas de status ou classe social (pelo menos no que concernia aos senhores) € homogeneizados por um sistema desumanizante, que os via como seres sem rosto eessencialmen- ias completamente abjetns, essas pessoas nA cram simples Neste contexio; penstmos mertos nos muitos atos individuais de heroismo e resistencia ocorridos durante esse periodo do que em alguns ras significativos, de cogperacio, que, trospectiva, podent ser tomados como.os verdadeiros prin tra e da scciedade africano-americanas. Varios fragmentos de provas sugerem que alguns dos primei- ros lagos sociais a se desenvolverem nos comboios, nas lurante a longa travessia da rota negreira 46 nasiment de cult ahosmerican talvez, por causa da politica geral de manter homens ¢ mulheres separados, tais [agos costumavam estabelecer-se entre pessoas do culo criado entre companheiros de viagem — agueles que partilhavam a travessia no mesmo navio negreiro — ¢ 0 exemplo mais marcante, Em areas amplamente dlispersas da Afro- América, a relagio do “parceiro de bordo” tornou-se um principio da organizagdo social ¢, durante décadas ou até sécu- 1u a moldar as relagdes sociais correntes. NaJamaica, por exemplo, sabemos que o termo “shipmate” [par ceiro ow companteiro | era, “na visio deles {os escravos sinénimo de ‘rm’ ow Era “a palavea eo lago de sotidarieda- de afetiosa que os africancs mais prezavam”, e “tio fortes eram os lagos entre os parceitos de bord que, na visio de um observador, a relagdo sexual entre eles era considerada incestuosa”* Sabemos tam- bbém que esse vinculo podia estender-se para além dos proprios com- panheires de viagem originais e sofrer uma interpenetragdo com os ‘vinculos biologicos de parentesco; dizia-se que os parceiros de bordo “cuidavarn dos filhos uns dos outros como se fossern seus” € que “era costumeizo as eriangas chamarem de ‘tio’ ¢ ‘ta’ 0s compankiros de ‘viagem de seus pais”? No Suriname, para citar um exemplo diferente, 0 termo equiva- lente, “sipp?’, foi usado, a principio, entre pessoas que de fato haviam compartithado a experiéncia do transporte num mesmo navio; mais tarde, comegou a ser empregado entre escravos pertencentes a uma mesma plantation, conservando a idéia essencial de companiheiros de inforhinio que compartilham um vineulo especial! Hoje em dia, no ‘Sunn New Haven, Yale University ess, 1970), p55 PRIMORDIOS DAS SOCIEDADES € CULTURAS AFRO-AMERCANAS 67 interior do Suriname, entre os saramacanos, “sipp?” (agora transfor- mado em “sib/’) continua a designar uma relagio diddica nao biolégi- ca especial, dé contetido simbolico muito semethante; quando duas pessoas se descobrem vitimas de um infortiiio paralelo (por exemplo, duas mulheres abandonadas pelos maridos mais ou menos na mesma época), elas podem, a partir dai, tratar uma & outra por “sib” ¢ adotar uma relagao especial ja preceituada. Outros exemplos da relagao do “parceiro de bordo” na Afro-Amé- rica podem ser citaclos—desdeo de Trinidad? até 0 “mati” do Suriname’ co “batiment” haitiano.’ Mas jé dissemos o suliciente para respaldar as afirmagdes que se seguem Nao de admirar que os lacos diddicos entre pessoas do mesmo sexo tenhar -ganhado vulto no conttexto primitivo da escravizagio e do transporte afro-americanos (daco que tais vinculos parecem desenvolver-se com freqiiéncia quando individuos reunidos a0 acaso sio jogados nium con- texto institucional despersonalizaclo — como os campos de trenamento rilitar eos presidios). O que talvez.seja inusitado nesse caso éo gran em. que esses lagos inicais puderam evoluir para principios bésicos os quais, pprovavelmente, ajudaram a moldar as instituigdes dessas sociedades e, em muitas areas, até hoje parecem preservar sew contetido simibslico inicial. Cremos que o desenvolvimento desses vinculos sociais, antes mesmo de os afticanos pisarem no Novo Mundo, jé anunciava 0 nasci- ‘mento de novas sociedades, baseadas em novos tipos de principios. Nossa argumentagao prossegue, aqui, a luz de nossas discus- ses anteriores acerca do conceito de uma “heranga” africana ge~ ry, Description el parte ans de ise de Sent Domingue Pp.38. 68 2 natcinants ds culty stone neralizada ¢ da distingao entre as perspectivas cultural e sociorrelacional na pesquisa afro-americanista, Assim como 0 de- senvolvimento ce novos vinculos socisis marcout a experienc’ al de escravizacio, novos sistemas culturais também comecaram a ganhar forma, Pretendemos especular sobre alguns dos processos que event ter estado implicados nos primérdios das religides afro-ame- ricanas, bascando-nos em nosso entendimenta de que, tanto na reli- gio quanto em muitos outros subsistemas da Attica of dental ¢ central, « aparente diversidade de forma combina com al~ guns prinefpios bisicos amplamente compartilhados. Como em nos- s2 discussio anterior, procuraremos cance referencia a manifestagses observitveis espe: plo, a maforia das religises da Africa ocid tido em comum certos pressupostos fundamentais sobre a natureza da causalidade ¢ a capacidade de a adivinhacdo revelar causas espe~ relagdo entre 0 conilito social e a doenga ou a desgraca, e muitos outros? Além disso, o saber ritualistico dessas sociedades ten- dia a se especializar e a ser “de propriedade” de individuos ou gru- PRIMBRDIOS DAS SOCIEDADES€ CULTURAS AFRO.AMERIANAS 69 expressiva da religifo da Africa ocidental e central servia de meio de orientagio (ou, pelo menos, concentrava-se em acontecimentos ¢s- ficos, desde as doencas. coroagées), era considerdvel a 10 substantivo nas maos dos espec listas, Sugeririamos, ainda, que essa orientacio instrumental dos ri- tos incentivava a experimentagao com novas tenicas e priticas de povos vizinhos, assim como a adogio delas; suspeitames que a mai: ria das religides da Afica ocidental e central era relativamente per- redvel as influéncias estrangeiras ¢ tendia a ser “ageegativa”, ¢ nfo “excludente”, em sua ico para as outras culturas. Esses aspectos gerais talvez. nos ajudem a imaginar um pouco da situago cultural inicial de um aglomerado de africanos recém- escravizados. Provavelmente, podemos datar os primérdios de qual- ‘momento em que uma pesson a de outra que pertencia a um ural diferente, Depois de tais pessoas “trocarem” dessa i ritualistica, jé existiria uma microcomunidade com uma religifo nascente, a qual, num se propria. Podemos imaginar, por exemplo, uma situagho én das primeiras escravas de uma dads fazenda, numa nova col esse a luz filhos gémeos (ou entouquecesse, cometesse s tivesse qualquer de diversas experigncias que exigissem algum de atengio vzada, em quase q) soviedade da Afri ‘Todos perceberiam com clareza a necessidade de fazer alguma coisa, mas nossa hipotética mie de gémeos nao teria nenhum conhecime: tampouco o teria ftenhuma pessoa com antecede: 8 iguais fs seus nessa fazenda. Entretanto, uma ontra mulher, parenta de sacerdotisa de um culto de gémecs em outro gru- sando os ritos da melhor manei- quer nova religido afro-america 70 0 netiment a ulus sho-mericens alisticamente dos pais deles, praticando os ritos especiais ne- ‘caso eles adoecessem ou morressem, e assim por diante, ela, acabaria por transmitir seu saber especializado (que bem poderia ser uma selegao ¢ elaboracao bastante radical do que tivesse sido 0 culto de stia parenta) a outros escravos, os quais, a partir de entiio, levari- am adiante, no correr do tempo, esse saber eos tipos de status © pa- péis ligados a ele. Esse exercicio especulativo exige que assinalemos a provivel receptividade de tais situagSes a introdugdo de novos materiais cul turais, bem como a maneira pela qual as novas fornmulagdes ritua- listicas se ligam a uma estrutura institucional, sob a forma do pessoal especializndo, Mesmo durante um breve periodo de tempo, as trocas, de informagées ritualisticas entre aqueles que partilhavam de certos pressupostos subjacentes devem ter feito uma contribuicdo impor- tante para a formagio de subsistemas culturais integrados. A hetero- _geneidade cultural inicial dos escravos teve, sem diivida, 0 efeito de ral e soci al primério do Velho Mundo para o Novo, mum proceso que, mt obrigi-los, lego de saida, a deslocar seu compromisso cul vvezes, seus senhores europeus levaram séculos para realizar, reorientagio cultural bastante radical que deve ter tipificado a adap- PRIMRDIOS DAS SOCIEDADES E CULTURA AFHO.AMERICANAS n tagio dos africanos escravizados ao Novo Mundo foi, certamente, mais extrema do que a experimentada pelos colonos europeus — ‘com suas instituigSes mais intactas, seus contatos permanentes com a terra natal ¢ seus grupos familiares mais coesos. Mesmo nas situa 98es especiais em que alguns memibros de determinado grupo étnico ou lingitistico pucieram manter-se em estreito contato, essa orienta ‘lo deve ter sido um foro secundiirio de compromisso, enquanto a nova cultura afro-amtericana e seus lagos sociais concomitantes cons- tituiu 0 foco primario, Todos os escravos devem ter-se descoberto accitanddo, ainda que por necessidade, iniimeras praticas c seus préprios modos tradicionais de fazer muitas coisas. Para muitos individuos, o compromisso com um novo mundo social e cultural eo engajamento nele devem ter assumido precedéncia, com muita rapi- ez, sobre o que néo tardaria a se transformar, predominantemente, fem saudade da terra natal. Lembramos a nés mesmos e a noss0s Ieitores que, de modo geral, as pessoas no sentem saudade de uma “heranga cultural” perdida, no sentido abstrato, mas das relagdes pessoais experimentadas no convivio imediato, desenvolvidas num contexto cultural ¢ institucional especifico ¢ passiveis de ser destruidas por tum trauma qualquer, como a guerra ou a escravidéo, Uma “cul- ttura”, nesses fermos, fica intimamente ligada aos contextos sociais fem que sto vivenciados ¢ percebidos os lagos afetivos. Com a des- Iruigéo desses lagos, a “bagage uma transformagdo fenomenolégica, até que a criagio de novas e3- truturas institucionais permita a refabricagao do contetido, baseado no passado — e muito distante dele. Vimos sugerindo que, provavel africano-americanas “maduras” e di fc, as culturas e sociedacles as se desenivolveram mais depressa do que se costuma presumir. O estabelecimento priznitivo de lagos como os dos “parceiros de bordo”, ou de complexos ritualisticos, como os denominamios, pretende ser um exemple axbi- 2 naciment de xan afsamerionnt trério (embora central) de processos muito mais gerais, Mesmo no campo das artes, para escolher um exemplo menos provavel, seria possivel demonstrar que os novos subsistemas cul rados através da interagiio de escravos que ainda néo tinham nas Américas, Nao 36 0 bater dos tambores, a danga ¢ 0 c: eram Stedman nos informa que, terminado o pesadelo da rota negreira de travesia do Atléntico, na costa do Suriname, “todos os escravos sio Ievaclos para o convés (..) € seu cabelo ¢ raspado em diferentes ima~ gens de estrelas, meias-Iuas etc., 0 que eles geralmente fazem uns com os outros (sem dispor de lminas), com & ajuda de uma garrafe Quebrada ¢ sem sabio”.” & dificil imaginar um exemplo mais im- pressionante de vitalidade cultural irteprimivel do que essa imagem dos escravos decorando 0 cabelo uns dos outros, em meio a uma das experiéncias mais desumanizantes de toda a histori Comprovar nossas assertivas de que culturas afticano-america- nas plenamente formadas desenvolveram-se nos primeiros anos de povoamento de muitas colonias do Novo Mundo envolve dificuldades auténticas. Estas pravém da escassez geral de materiais descritivos so- bre a vida dos escravos durante 0 periodo inicial, hem como da falta de pesquisas a respeito desse problema, Entretanto, em pelo menos uma colénia — o Suriname —, alguns eventos histéricos fortuitos nos per m assinalar no fempo o desenvolvimento de varios grandes subsistemas culturais, ¢ conseguimos encontrar respaldo para nossa tese A lingua fornece um exemplo pertinente, Nos primeiros vinte anos de povoamento, quase todos os fazendeiros ingleses que haviam fundado a colonia do Suriname partiram para outras regides do Caribe, MRDI0S DAS SOCIEDADES E CULTUMAS AFRO.AMERICANAS 73 levando eonsigo seus escravos, Durante os vitrios anos em que os es- cravos de propriedade dos holandeses, recém-importados, superpusera-se aos escravos dos ingleses, que Logo - gua desenvolvida por estes iltimos escravos deve fos recém-chegados. Essa, pelo menos, ¢ nossa conclusio, uma vez ae, desde essa 6poca, trezentos anos alrés, uma lingua crioula de base que essa estabelecida” durante as primeiras duas décadas da colon A rapidez com que s¢ desenvolven no Suriname um sistema, precoce, é no menos surpreendente, Nossas provas, também mi indiretas, mas muito sugestivas. Quando os ancestrais dos cam das fazendas dos rios Pari Baixo para fundar uma sociedade independ da mata (durante o séeulo X é evade consigo uim sistema rel plantations, Existem hoje semelhangas notiveis entre os sistemas re ia regido do Par, seme~ ligiosos dos saramacanos ¢ dos “crioul Thangas estas que vao desde intimeros complexos especificos de cren- {gas ¢ ritos, como as que cercam a matanga das antas, até principios de base arnpla, como os que relacionam grupos corporativos com seus deuses ancestrais; essas semelhancas ndo podem ser adequada- mente explicadas com base nos contatos posteriores."' Além disso, Imente — agora que existe liberdade de movimento para 0 saramacanos que se deslocam para écomum um deter minado grupo dessas pessoas visitar, praticar o culto ¢ trocar infor- 4 © rarcinent da extue ato-americene mages ritualisticas especializadas com os “crioulos” que descendem, precisamente, de escravos que viverar nias mesmias plantations de «que fugiram os ancestrais desse grupo particular de saramacanos, hé mais de dois séculos e meio. Assim, podemos afitmar com certa confiatica que, durante as primeiras décadas da presenca africana no Suriname, desenvolveu-se © miicleo de uma nova lingua e uma nova religido; ao que parece, os séculos subseqiientes de novas importagdes macigas da Africa tiveram pouco mais do que o efeito de levar a elaboragées secundirias. Sugeri- riamos, a titulo provisorio, ser possivel que situagdes semelhantes fe- mham ocorrido em muitas outras partes da Afro-América e também em relagio a outros subsistemas culturais, Handler e Frisbie, por exem- plo, parecem defender uma tese similar ao discorrerem sobre a raisica entre os escravos de Barbados. Entretanto, ndo pretendemios implicar que, em algumas situa- bes especiais, os africanos que chegaram depois ndo tenham con- seguido exercer uma influéncia consideravel nas instituigdes afro- americanas locais (ver adiante). Os dados sobre o Suriname sim- plesmente nos sugerem, mais do que isso, a necessidade de pesqui- sas bem mais detalhadas sobre esses problemas. Quando pudermos mapear o crescimento dos sistemas sociais ¢ culturais afro-ameri- canos numa perspectiva temporal bastante precisa, estaremos ap- tos, por exemplo, a considerar a relagdo entre a proveniéncia da massa dos africanos e as formas culturais desenvolvidas numa dada col6nia em determinada época, ¢ teremos dado um grande paso rumio a compreensiio de como de fato se forjaram as culturas afro- americanas. ‘Jd enfatizamos alguns modos pelos quais os estigios iniciais da histéria afro-americana fomentaram 0 répido desenvolvimento de culturas locais dos escravos. Mas cremos que esse contexto singular Jerome Harder eC ie hapets ae raloonle, Cneun Studies 11) 1979, 8-40. rbador miso araits cutie PRIMERDIOS BAS SOCIEDADES € CULTURAS AFRO-AMERICANS 15 também impriniu nessas culturas a marca de alguns aspectos gerais que exerceran: forte influéncia em seu desenvolvimento posterior, ¢ que continuam a Thes conferir, hoje em dia, grande parte de sua for- ‘exe da propria morte, o concomitante psicoldgico desse trauma foi o ataque implacavel sofrido pela identidade pessoal dos escravos, sua perda de prestigio © posigio social ¢ o fato de eles serem tratados como cifras anénimas, No entanto, por uma ironia peculiar, esse que foi o mais degradante de todos os aspecios da escravidio parece ter surtido 0 efeito de incentivar os escravos a cultivarem, justamente, uma apreciagio maior pelas caracteristicas mais pessoais ¢ mais hu- mans que diferenciam um individuo do outro, 0 que talvez consti- tuisse as principais qualidades de que os senhores nao podiam privé- los. Desde cedo, portanto, os escravos aperfeigoaram as mancitas pe- las quais podiam ser individuos — um senso de humor particular, ‘uma certa habilidade ou tipo de conhecimento, até ui modo carac- teristico de andar ou falar, ox ainda algum detathe do vestuitio, como aba do chapén ou o uso da bengala, a heterogeneidade cultural ini- cial dos escravos produziu entre eles uma receptividade geral as idéias e costumes de outras tradigdes culturais, uma tolerancia es- pecial (dentro do contexto da Africa ocidental) as diferencas cultu- rais, Diriamos que essa aceitagio das diferencas culturais combi- nnou-se com a pressio exercida sobre o estilo pessoal, produzindo inas umn dinamiismo fundamen- Ao mesmo tempo, como giioe a cri sempre havia espago para a moda ¢ ‘0s modismos; a “novidade” (dentro de certos limites estéticos, & cla- ro) torniou-se algo a ser celebrado, copiado ¢ aprimorado, ¢ cada inovagdo estilistica trazida pelos africanos recém-importados po- 76 0 racine dia ser prontamente assimilada. Desde 0 comego, portanto, 0 com- promisso dos afro-americanos com uma nova cultura, em determi- nado lugar; incluiu a expectativa de um dinamismo continuo, de mudanea, elaboragio e criatividade,"® CAPITULO S O QUE FO! MANTIDO E SOBREVIVEU Se de fato as culturas afro-americanas tiveram em comum esse dinamismo intrinseco, e se, como pretendemos argumentar, seus sis- temas sociais foram sumamente receptivos a condigdes sociais mages de que muitas formas s representam continuidades diretas das patrias africanas, Nas iltimas décadas, a pesquisa historica reduzit o nitmero de exemplos convin- is ou culturais contemporaneas porim sugeriu novos niveis de con muidade — niveis que poderdo vir a nos dizer muito mais sobre o desenvolvimento efetivo das cultaras afro-americanas. Os estudiosos da heranca afro-americana tém assistido a uma passagem gradativa da andlise de elementos culturais isolados, predominantemente vis- tos de fora, para a anailise de sistemas ou padrdes contexio social. Os estudiosos das linguas criou! ais situado os aspectos singulares dessas linguuas no (ou do discurso), ¢ néo simplesmente no nivel Iéxico, ¢ foram pro- postos argumentos andlogos com res} quanto as formas artisticas e onoméstices.” Tssas mudqngas de perspectiva so bem ilustradas pela hi 78 O nasil de altar ahoamerices da “arte africana nas Américas”; um historiador da arte, discutindo essa manifestagdo artistica entre os saramacanos, observou que os “arabescos do trabalho ornamental vazado (..), as faixas planas de Jados iguaise (..) 0s tachées de latio para aumentar a curvilinearidade” Jembram impressionantemente 0 trabalho setecentista dos acts. No entanto, as recentes pesquisas etno-histéricas de campo trazem uma forte sugestio de que essa forma artistica distintiva foi criada nas Guianas e é, basicamente, uma criagio do século XIX, Tais pesquisas também demonstraram que muitas das semelhangas formais mais marcantes com a arte da Africa ocidental sio inovagSes tecentissimas. Em termos mais gerais, as pesquisas nos impoem uma reorientagio de nosso foco, pasando da tentativa de explicar as semelhangas de forma, consideradas isoladamente, para a comparagio de idéias estéticas ge- rais — dos principios “gramaticais” implicitos que geram essas for- ‘mas. As semelhanigas formiais entre a arte dos quilombolas e a de al- guns povos da Africa ocidental, que sto muito reais, no constituem, portanto, um mero indicio do que foi mantido e sobreviveu estitico, mas sio produtos de um desenvolvimento e inovagio independentes, dentro de conjuntos historicamente correlatos e superpostos de idéias estéticas gerais, Os entalhes dos quilombolas, assim como seus sistemas de denominagao, cicatrizacio e outros sistemas estéticos, parecem ser altamenic eviativos, portanto, e mais “afticanos” em termos de normas ou prinelpios culturais profundos do que de continidades formais: em resume, sio um subsistema sumamente acaptativo, receptivo aos rmeios sociais mutiveis dos artistas e eriticos que continuam a levé-lo adiante. 2 Philip. Dat, Bus Negro ce Am Atcan Aetin the Americas onde, Arsjob-cit (© Que Fo! auTIOG & sosREVVEL 79 ‘Temos em mente que, tanto na arte quanto em muitas outras direas, as relagbes entre os artistas individuais ¢ os grupos teridem a ser complexase sutis. Até que ponto a arte é produzida ¢ modificada mum contexto de liberdade de expresslo, assim como até que pontoo grupo ¢ 0 criador individual sio unidos por valores conservadores, constit- emdados a ser separadamente especificadosem cada sociedade e, muitas vezes, em cada veiculo ou género artisticos, Podemos presumir que a ‘expresso artistica da Africa ocidental tena variado, em certa medi- da, de uma sociedade para outra, a0 passo que a oportunidade de criatividade ou inovagao individual tera vatiado, provavelmente, con- forme a fungao social da forma de arte em questio. Fresumivelmente, © mesmo se deu com a atte afto-americana. Dadas as circunstancias sociais de seus primérdios, contudo, preferinos supor que um de liberdade na variagao se possa ter institucionalizado loge em muitas formas de arte, Pata compreender da melhor maneira pos- ‘om evoluiram essas formas nas sociedades afro-americanas, sera cessdtio aprendermos tudo 0 que for possivel sobre essas situacdes is ¢ conduzirmos nosso estudo da arte ¢ de outras manifestagdes cculturais afro-americanas em seus contextos sociais,’¢ nao puramente como esbogos de formas mutiveis ou conservadoras As pesquisas historicas recentes sobre a Afro-Ameérica também nos ensinaram alguns dos perigos da extrapolagio retroativa para a Africa zno campo das formas sociais. Basta, apenas, mencionarmos um exemplo Sbvio,extraldo de nosso proprio trabalho, Os homens saramacanos, cada uum dos quais costama ter hoje duas esposas, revelam-se, mediante uma investigagdo criteriosa, muito mais “poliginos” (ou de “aparéncia afti- cana”, diriamos, usando os termos de Herskovits) na atualidade do que foram seus antepassados de dois séculos atras, em virtude da mudanca das instituig6es na sociedace mais ampla, com padrées recém-surgidos de trabalho assalariado e coma distoryo das razSes de sexo locais criada 80 (© nascent elt hein por esses padres Parece provavel que os sistemas de relagées sociais sejam, em geral, ainda mais altamente receptivos a mudanca das condi- Ges ambientais do que os sistemas culturais. Tal como no campo cultu- ral, todavia, sugeritiamos que investigar abaixo da superficie das formas sociais,a fim de chegar aos sistemas de valores ¢ as orientagées cognitivas que Ihes sto subjacentes ¢ concomitantes, pode revelar outro tipo de continuidades a longo prazo. Ao pleitearmos pesquisas mais sutise profundas, nfo pretende~ ‘mos negar a existéncia do que foi mantido e sobreviveu na Afro-Amé- rica, nem que a inwestigagio cuidadosa das razdes espectficas de sua persisténcia continua nos ajudara a compreender melhor os anos formativos da histori afro-americana, Podemos citar dois breves exem- ‘provaciio” méxima, que equivale a suprema corte da Saramsca encontra-se nas miios de um pequeno geupo de culto numa fini- ca aldeia; suas téenicas, que incluem enfiar uma pena medicinalmente fratada na lingua do acusado, a fim de determinar sua culpa ow ino- céncia, parecem remontar diretamente ao reino setecentista de Benim.” Nesse caso, parece provivel que um conjunto especifico de conheci- mentos ritualisticos tena sido levado para o S: primeiras anos da escravatura, por ut tradigdo (que ¢ atestada na Saramaca do século XVII) tentha sido per- ppettada exatamente da mesma maneira descrita em nosso ritual hipo- tético do “nascimento de gémeos”, Em contraste, a adivinhago com 0 caixtio— a interrogacio do espirito do morto (na qual os movimentos dos carregadores do cadaver so “controlados” pelo espirito, ansioso por revelar a causa da morte) — fornece um tipo diferente de exem- es (0 QUE Fo! MANTIOO E soBREMVED 81 ica muito difundida na Africa ocidental plo, Tratava-se de uma p Ia ¢ central, como parte dos ritos fimebres, e tomamos a encont om reas ampiamente separadas da colonial, desde « Jamaica até Dominica e 0 Suriname.’ Ao contririo da provagio saramacana, que impliea tum corpo de conhecimentos altamente especializados de uma determinada sociedade, o qual, do obstante, cumprin uma fungi reeonhecida como crucial em muitas socieda- des da Africa coidental e central, é provavel que a adivinhagio com cadaveres fosse conhecida da maioria dos pri ros escravos trans- portados. Véuse que essas duis continuidades pa examinadas desta maneira sumaria, podem ilustrar processos unt pouco diferentes no desenvolvimento das culturas afro-americanss FE quase certo que a consideragio criteriosa de outras dessas conli- nuidades histéricas renis nos ajade a compreender algumas das esco- thas ao alsance dos primeiros afro-americanes, bem como 0 riz%0 posterior que suas culturas tomar. sulares, mesmo Queremos examinay, de maneira igualmente sucinta, outros dois casos de continuidade, em parte para enfatizar a relagio entre & con finuidade da cultura ¢ a continuidade dos corpos de pessoal especi- alizado, em parte para arpliar a gama de casos dessas continuidades ¢ or a complexidade envolvida em seu estudo, Apés a abolicfo! nas {ndias Ocidentais Britinicas (1834-1838), afticanos libertos foram int portados por diversas coldnias britanicas, inclusive Trinidad, na espe~ ranga de expandir o povoamento agricola ¢ de fornecer méo-de-obra adicional aos fazendeiros. Num periodo de vinte anos (1841-1861), ‘Trinidad recebeu 6.581 africanos livres" entre 1884 ¢ 1867, a ilha Tew Hong of mais (Lov Th Wood Finials 280. 82 © natinento culture to-merouie recebeu um total de 8.854 africanos liberfos, retirados por cruzadores britanicos de navios negreiros destinados a Cuba ou ao Brasil."* Ura grande nimero de diferentes grupos culturais africanos foi represen- tado por essas migragées, dentre eles membros dos povos ibo, temne, uolofe, ioruba, achanti, peil ¢ mandinga.”® ‘Numa exposigio tantalizantemente curia, mas intrigante, Carr descreveu uma comunidade fora de Fort of Spain, fundada por um certo Robert Antoine (Aboyevi Zaltwenu) uns quinze «anos depois de sua chegada a Trinidad, Antoine comprou uma peque- nna propriedade em 1868, onde se instalow com sua companteirae set filho." Por ocasido de sua morte, em 1899, sua casa e o complexo de construgdes que a cercava haviam se transformado mum centro para daomeanos migrantes, jo anterior- mente nas imediagdes, “Nas ocasises cerimoniais daqueles primeiros tempos, dizem que as aglomeragses eram tio grandes no complexo, que mal havia espago para acomodar as peso Antoine iniciou ¢ manteve nesse conjunto de construgdes uma parcela substancial do calendério cerimonial daomeano. & significat esse observar que os deuses celebrados por esse grupo tém, freqtien- femente, nomes de santos, tipicos de grupos religiosos afro-america- © QUE Fo! muNTIDD € soBREMVEU 83 nos de outros paises catélicos, como o Brasil, Cuba ¢ 0 Haiti, Carr perguntou a seus informantes como os deuses africanos haviam ad- quiriddo nomes cristdos e recebew a resposta de que eles “sempre” os tinham tido, Aidéia de que tais nomes ter-se-iam ligados as divindades afticanas depois do contato com missionarios na Africa foi rejeitads pelo membro mais velho do complexo de construgdes que Carr entre- vistou. Assim, ndo temos informagées sobre como ou quando esses no- zmes foram realmente adquiridos. Nao é nossa intenclo examinar, pormenorizadamente,n saio, as corresponcléncias e divergéncias entre as expressbes sas desse grupo ¢ as que eram tipicas do Daomé no século XIX. Mas devemos assinalar que esse caso tanto revela uma continuidade subs- tancial — na distribuigéo das cerimOnias no calendario, nos nomes dos deuses, nos papéis sacerdotais, no sactificio, na possessdo ete. — quanto uma modificagio substancial, quer pelo sincretismo (por exemplo, a associagdo de nomes de santos, que acreditaos haver ccorrido na propria Trinidad), quer em termos da sociologia do novo contexto. Ndo surgi nenhum vodunsi do sexo masculino desde gute haviam acompanhado Antoine na vin- nia dos mortos, Kututo, que é realizada em novembro, esta hoje ligada a uma missa catolica para as almas do Purgatério, Cinco divindades, que antes possuiam migrantes aftica~ nos nativos, nfo ressurgiram desde a morte desses homens. Alguns santuatios desapareceram., Até em pequentos detalhes a mudanga se revela, O santudrio de Sekpate, que ainda se mantém no complexo arquitetonico, tinha antes, em seu topo, uma euférbia, supostamente de acordo com a tradigdo africana, Mas, alguns anos ats, a visio de uma crianga foi prejudicada pela seiva leitosa da planta, ¢ esta foi substituida por uma dracena. ‘Meso sem urn exame comparativo rigotoso, deve estar claro que o sistema religioso sociocultural da terra natal niéo sobreviveu, intacto © inalterado, no novo contexto—e, é claro, seria realmente extmordindrio 84 0 natcimento de eter ato amriana que houvesse sobrevivido. Mais significatva, sem divida,¢ 0 fato de que Antoine pode contar com os servigos de tes especialistasreligiososforma- os, a0 dar inicio ao calendirio cerimonial, um século ates, Embora no postamos aquilatar a importincia do desaparecimento dos voxtunsis do sexomasculina, cremos ser defensével presumir que ele tenha afetado as formas ¢ fmgSes do calendirio cerimonial de hoje Podemos extrair um iltimo exemplo da bibliogratia sobre a reli- ido afro-cubana, Embora, em muitos aspectos, ele difira do que foi dlescrito acima, tera em comum com o caso de Trinidad « relativa recenticidade da implantagio de um costume africano no ambiente do Novo Mundo. 0 trifico negreito para Cuba terminou por votia de 1865, embora parega certo que outros escravos foram importados durante os varios anos imediatamente seguintes a essa data, Curtin fez uma est rmativa de que doze mil escravos teriam sido inmportados em 1865, mas chamou esse céloulo de “palpite” e sugeriu haver escolhido um ntime~ ro relativamente alto por supor que o trifico teria continuado por um breve period, « partir de entio.)* O material referente a origem étnica dos escravos cubanos nos iiltimos estigios do trfico negreiro nao & satisfatorio; 0 trifico era i negreiros, tampouco outras informagses do tipo das que dispomos, di- -gamos, em relagdo a S¥o Domingos, num periodo anterior. Apesar dis- 59, 6 certo que se importou um nimero substancial de iorubas, 0 que & stigerido pelo material religioso € linglistico afro-cubano, Depois de realizarem pesquisas de campo entre os iorubas de If, na Nigeria, e 0s Iuciimis de Matanzas, em Cuba, Bascom ¢ Montero de Bascom cor sam documentar certos tipos de continuidades nas pr inatérias, inclusive as 256 permutagées resultantes do langamento de um colar divinatério de dezesseis unidades e duas partes, Embora tenham ocorrido mudangas importantes nos materiais empregados, na terminologia explicativa e na promincia dos termos, “Os nomes ¢ a ordem das figuras duplas(..) coincidem exatamente com os registrados TRO, anton ade oR ey 40,43. (© QUE Fo! MaNmICO E sonsewvEU 35 por Fpega, Aderoju, Frobenius, Monteil e Dennett com respeito aos iorubas, por Bertho & Maupoil com relacdo a0 Daomé e por Spieth no focante aos eves”.!” Os dads afro-cubanos sio particularmente con- vincentes, porque os diversos elementos das praticas divinatorias so claramente separaveis, mas ocorrem na Nigéria ¢ em Cuba numa rela- «0 t2o intima, que nao se pode questionar seriamente essa difusfo da Africa para o Novo Mundo, Esses dois casos revelam continuidade mudanga. O exemplo -cubano deixa claro que uma parcela relativamente complexe da sura pode ser levada, substancialmente infacta, de um local para outro, Embora ocorram e sejam bastante ébvias algumas substituigdes do material (por exemplo, rodelas de coco em vez de sementes de cole), bastava acs adivinhos migrantes terem ao seu redor pessoas da mesma sociedade, ou de uma sociedade correlata em que esse adivinhacio fosse praticada, para poderem usar stias habil divinatérias afro-cubanas, todavia, exibem continuidades com mais de uma cultura da Africa ocidental e sugerem que outros grupos, além dos iorubas, contribuiram para as formas assumidas pelo material mais antigo no contexto cubano. O caso de Trinidad nfo demonstra nenhu- rma mescla evidente de formas africanas originals, embora tena havi- do mudancas consideraveis no novo contexto a0 longo do temp. © caso cubano sugere que os materiais africanos difundidos de além- rar originaram-se em pessoas que eram membros de grupos diferen- tes, ainda que seja possivel demonstrar continuidades muito com a pritica do passado. Dois aspectos dbvios desses casos slo dignos de nota, Primeiro, ambas as emigragSes em questio, comparadas a algumas ram em data bastante recente. Segundo, num dos caso exam negros livres ou forros, enquanto, no outro, a escravidio havia 36 0 etiment de uta ato-ameicra terminacio apenas cerca de 25 anos depois da iltima migragio. Nesses dois aspectos, os exemplos de Trinidad e de Cuba diferem substancial- mente da maioria dos outros exemplos de continuidades africanas. De ‘modo geral, pode-se afirmar que a forga das continuidades e sua rela- tiva falta de modificagio relacionam-se, provavelmente, com a recenticidade da migragao e com a presenga (em Trinidad) ou a proxi- midade (em Cuba) da liberdade. Estas assertivas néo explicam os mui- tos outros casos de tais continuidades, muitas vezes preservadas en- frentando uma grande opressdo e uma desordem imposta, tampouco podemos discorrer adequadamente neste ensaio sobre toda a questo do comiéreio ifegal de escravos, que deve ter influenciado todo o pano- rama das continuidades no Novo Mundo. Grosso modo, entretanto, as continuidades formiais diretas da Africa constituem mais a excegao do que a regra em qualquer cultura afro-americana, mesmo nas do tipo da dos saramacanos, que foram das mais isoladas."* CAPITULO 6 PARENTESCO E PAPEIS SEXUAIS ‘Vimos sugerindo que um sélido embasamento no que se corhe- ce sobre 0 passado dos povos afto-americanos pode favorecer nossa compreensio de seu presente, assim como o estudo do presente forne- ce indicios que podem ser levados de maneira fecunda para a pesquisa documental, Faz-se necesséria uma énfase adicional nos costumes do pasado, certamente niio a exclusiio da etnografia, mas como um corolario essencial, particularmente no caso das culturas afro-ameri- canas. Dadas as tenses situagSes iniciais em que se encontravam os africanos escravizados, cremos que uma estratégia promissora —em- bora de modo algum a tinica — para mapear a ascensio das culturas afro-americanas consistiria em nos concentrarmos nos primérdios, de onde € possivel trabalharmos em diregao ao presente, em vez de fazer- ros simples extrapolades retrospectivas com base nas semelhancas percebidas com as culturas do Velho Mundo, ‘Se nos obrigarmos a considerar, em toda a sua complexidade, a provivel que poucas das explicagdes “histéricas”, oferecidas pelos es- tudiosos sobre as formas culturais ou sociais afro-americanas de hoje, se revelem plenamente satisfatérias. Na exploragio das escolhas que as pessoas efetivamente enfrentaram durante os anos de formagao dessas culturas, deve-se levar em conta uma ampla gama de variaveis, desde a composigao étnica das massas de escravos, ou das condigées sociais especificas ¢ sumamente diferenciadas de uma determinada colonia rum dado momento, até a distrbigéo geogritica de erencas e prati- cas particulares na Africa, Em termos de nesses conhecimentos atuais, 88 O nascent ds etre atoaneiens parece razoiivel esperar que qualquer subsistema de uma cultura afro- americana — quer de miisica, de fala ou de religitio — seja altamente sincretista em fermos de suas diversas origens africanas, bem como em ‘termos das contribuigdes provenientes das fontes européias (e, com freqiiéncia, de outras); e devemos esperar que ele possua também um dinamismo interno e uma acentuada capacidade de adaptacdo a con- digdes sociais mutaveis, Isso implica que a tarefa de reconsti ia de qualquer desses sistemas ou complexes i samente desafiadora, mas repleta de armadilhas, tucionais é imen- Com tudo isso em mente, gostariamos, nao obstante, de tragar ‘um esbogo parcial dessa empreitada, Talvez seja til dar vida a algu- ‘mas de nossas generalidades programdticas e até, quem sabe, apontar algumas finhas promissoras de investigaco ftura, Durante muitos anos, a controvérsia acerea das teorias € méto~ dos apropriados para utilizagdo no estudo da historia da cultura afro americana centrou-se na * negra”, © & provavel qu parte desse debate seja conhecida concentrarmos nesse complexo inst tacar os conceitos capazes de distinguir nossa abordagem geval das conceituagGes mais tradicionais. Melville J. Herskovits ¢ E, Franklin Tri correndo a histéria no esforgo de explicar as formas sociais atuais, porém com idéias muito diferentes sobre a natureza da experi hhistorica afro-americana.' Herskovits, que tendia a tratar a estr social como um aspecto da “cultura”, enfatizou a origem africana til- ‘ima das formas familiares do Novo Mundo, Ao discutir 0 Haiti, por exemplo, cle afirmou que “a instituigio do casamento pl obviamente africana”; nas formas de casamento de Trinidad, Hers 1. Vee, por xem American Silage! Review T ahi eae a probe rarenresco € raeds exuns 89 saropeu, de formas bisicas da Africa oci- aie fureionsam dentro de uma estrutira poligina”* Seria pos- sivel citar numerosas afirmagées similares. Frazier, em contraste, via 0 passado afro-americano, em terms de sua importincia para a compreensio das instituigdes conternpor’- reas, como havendo comegado apenas com o proceso de escravizagdo e transporte dos negros, Numa de suas declaragbes mais vigorosas so- bbre essa questi, ele escreven que, “provavelmente, em nenhuma 6po- caanterior da zm povo foi tito despojado de sua heranga social quanto foram os negros trazidos para @ América”; ¢ defen: que as imagens do passado afro cram meras “Lembrang das”. Para Frazier, os afro-americanos eram norte trados ¢ culturalmente privados; e outro sociélogo, de Frazier ao escravo jamaicano, concuiu que suas lias, suas atin des, sua moral e suas maneiras eram mais ou menos as de seus senho- res”.4 Quer nos Estados Unidos, quer na Jamaica, se as instituigées dos anos nfo eram idénticas as da corrente principal norte- ss0 se devia, segundo essa visdo, unicamente a uma longa de opressio? Embora este esboco diminuto das posigdes de Herskovits e Frazier talvex exagere o contraste entre essas concepgdes dos afro-americanos, rem por iss0 0 contraste é menos real, Numa das visdes, 08 afro-ame- :nos cujo compromisso com sett 90 0 nesinento cece stoners passado ancestral os tomava culturalmente diferentes dos outros nor- te-americanos; na outra visio, eles eram meros norte-americanos que no se haviam conseguido aculturar plenamente, em decorréncia de sua opressio. £ claro que essa controvérsia esté longe de haver mortido e que continua a haver muita discussdo emt forno de.os afto-america- ‘nos terem uma cultura diferente ou culturas diferentes, ou serem sim- ples vitimas da privagio, Mas a natureza polémica desses argumentos, bbem como seu rango fortemente politico, levou muitos caribeanistas a rejeitar prontamente as consideragées histSricas, a0 analisarem as ins- tituigdes familiares. Uma dessas autoridades afirmaa que “as teorias his , culturais, estruturais e psicologi ito cuidadosamente ela- wradas para ‘explicar’ o peculiar sistema familiar caribenho, sio vali- sas, primordialmente, como elementos da historia do pensamento so- Embora pudéssemos tentar explicar 0 que levou esses antropo- logos a uma postura aistorica, nio € esse 0 nosso objetivo aqui. Antes, na discussdo que se segue, miais uma vez tencionamos defender a ne- cessidade muito real de pesquisas histéricas para a compreensio da familia, ou, a rigor, de qualquer outra instituigao afro-americana, Um de ntossos postulados principais tem sido que nem o contexio social nem as tradigSes culturais, por si mesmos, sao capazes de explicar uma forma institucional afro-americana,’ e que o desenvolvimento das s deve ser visto em seu pleno contexto histsrico. Em termos da familia, nos vem & mente um grande mimero de ilustragdes simples. Numa aldeia de pescadores da Martinica, por exeraplo, os contrastes atuais das formas familiares (por exemplo, as freqiéncias diferenciadas dias familias chefiacas por mulheres ou da estabilidade conjugal) tem umma relagio diteta com experiéncias histéricas diversas, Os moradores de um dos extremos da aldeia descendem de pessoas que abandonaram DARENTESCO E PaPéS SEXUAS 91 a vida das plantations ha apenas quatro geragdes, ¢ 0 complexo institucional relativamente “frowxo” (bem como seus valores associa dos) relacionado com “a familia” nas plazvations continua a influencia- los até hoje. Em contraste, os habitantes do outro extremo da aldeia tem uma longa heranga como pescadores independentes do lugar, a qual remonta a épocas anteriores a aboligo, ¢ suas formas familiares mais estaveis podem estar diretamente relacionadas com esse fato.* Esta argu- mentagio, ¢ claro, nio se restringe aos afro-americanios? Para explicar as formas familiares dos trabalhadores rurais vindos das indias Orien- tais na Guiana, por exempla, dificilmente se poxteria trabalhar sem levar em conta as tradigdes culturis e as condigdes sociais. Como assinalow um estudioso dessas populagdes, suas familias, de miodo geral, sfo muito ‘menos “matricéntricas” do que se poderia esperar, dada a sua situagao socioeconémica (e guardando em mente 0s padtées afto-americanos locais), porém o sio muito mais do que se poderia prever com base ert ‘suas atitudes ou valores, Jayawardena mostrou que as variagSes da for~ rma familiar entre as aldeias locais das Indias Orientais s6 podem ser plenamente entendidas em se examinando as maneiras peculiares pelas {quais as pessoas investiram scus rectarsos culturais na tarefa de se adap- tarem a novos e variados meios sociais." ‘Um dos problemas de muitos estudos tradicionais sobre a fami- lia negra — e isso se aplica tanto aos de Herskovits quanto aos de Frazier — foi a tendéncia a reificar o proprio conceito de “familia”. Embora os antropélegos, pagando um prego consideravel, tenham Finalmente aprendido que nfo é bem assim, muitos historiadores tal- 10. Chandra Jew, "my organza in planllonsin Bish Guna ntratins! Journal Comparatire Socikegy 8 (1982), p. 68-6 92 © masciment da cae atrmamericons algum, corresponder & “familia”, como quer que este soja definida, & comum, por exemplo, que grupos domésticos (aqueles que ji seus recursos econdmicos, dividem a respons vvém tragar varias distingdes entre as idéias e prflicas relacionadas como parentesco, as relacionadas com a unifo sexual cu o casamen- cionacles com a residéncia ¢ o lar, ¢ as relacionadas com a igdo das responsabilidades domésticas.* O desenvolvimento dio parentesco e dos paps sexuais entre os afto-americanos send usado to, as rel istei Comecemos, mais ume vez, por um agiomerado hipotético de afvicanos recém-escravizados numa nova plantation das Américas. O que poder, afinal, ev constituido um conjunto de idéias largamente comparilhadas e trazidas da Attica no campo do parentesco? Em ct- riter experimental e provisério, sageririamos que pode ter havido al- ums idéias e pressupostos fundamentais sobre o parentesco que evar rutito difundidos na Africa ocidental e central, Dentre eles, poderia- sos destacar a imporidncia cabal do parentesco na estrutaragio das relagdes interpessoais e na definigio do lugar de um dado individ ai sociedade;aénfase na descendéncia unilineare a import cada individuo, das linhagens de parentes vivos ¢ mortos dai res tes, estendendo-se no tempo para tris € para frente; ou, num nivel mais absirato, o wto da terra como recurso pars definir 0 tempo © a sendlo os ancestras venerades Jocalmente sendo a his- [PARENTESCO € anes SEXURIS 93 teria ¢ a genealogia particularizadas em pedacos de solo especificos. O agregado de escravos recém-chegados, ainda que eles tivessem sido arrancades de stias préprias redes de parentesco ‘ado a ver o parentesco como a Linguagem normal das relag Diante da auséncia de parentes verdadeiros, mesmo assim eles mode~ Inram seuts novos lagos sociais nos do parentesco, muitas vezes toman- (os os termos de parentesco de seus senhores para rotular 's contemporineas com pessoas mais velhas — 12”, “vove” ete. Contudo, para que essas primeiras it as relagdes sociais do simbolismo do parentesco gliinidade, o requisito primério e essenci fo tempo € no espago, ou, pelo menos, para permitira socializagio da prole no interior desse mesmo E nesse ponto que as diferencas sumamente reais entre as plaztationse os sistemas de plantations seriam rele Estamos supondo, convérn lembrar, inicial entre os escravos ¢ seus proprictirios no Novo Mando, os 9 imeiros tiveram que desenvolver seus estilos de vida diante de rest cies terviveis ¢, em geral, inescapaveis. A construgio de instituigies dheve ter envolvido a consciéneia continua da desigualdade de oportu- nridades, do poder optessivo dos senhores e da necessidade de gerar ' que fossem adaptativas, mesmo nessas condigdes immen- samente dificeis, Ao expor esta argumtentagio, nfo pretendemos minimizara importancia dos antecedentes africanos dos eseravos, nem tampouco implicar que estes potio sabiam ou pouco recordavans de snas herangas. Mas cremos ser razoivel supor que a maneira precisa como se podia recorrer a esse passado para gerar novas instituigdes dependeria, em parte,

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