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eS SONS n: ene: NOS GOVERNOS DO PT Este livro, resultado de pes- quisa original desenvolvida ao longo dos Ultimos anos, examina 0 proceso politico brosileiro no periodo dos go- vernos liderados pelo PT e da crise politica do impeachment. autor sustenta que os con- flites partidérios, ideoldgicos ¢ institucionais estao vincula- dos aos conflitos distributivos de classe presentes na socie- dade brasileira. O livro mos- tra que a politica neodesen- volvimentista dos governos do PT priorizou os interesses da burguesia interna brasileira e se apoiou numa frente ampla e heterogénea que abarcou a baixa classe média, a classe operdria, © campesinato e os trabalhadores da massa mar- ginal. A oposigéo, encabega- da pelo PSDB e orientada por uma plataforma neoliberal extremada, € caracterizada coro representante do capi- tal financeiro e produtivo in- ternacional e da fragéo da burguesia brasileira integra- da a esse capital. A base de apoio desses segmentos bur- gueses foi, acima de tudo, a carada superior da classe média. Quando esse campo neoliberal iniciou uma ofensi- va politica restauradora, teve © seu sucesso facilitado pelas contradigbes e defeccoes da frente politica que apoiava governo. Os conflitos de clas- se intensificaram-se, origi- rondo embates insfitucionais € ideolégicos que polariza- ram, de modo inusual, a so- ciedode brasileira, abalando a democracie consagrada na Constituigéo de 1988 Armando Boito Jr. é profes- sor titular de Ciéncia Politica de Unicamp, editor da revista Critica Marxista ¢ autor de va~ rios livros e artigos publicados no Brasil e no exterior. A pes- quisa que originou este livro resutiou de um projeto temé- tico coordenado pelo autor e patrocinado pela Fundagéo de Amparo & Pesquisa do Es- tado de Séo Paulo (Fapesp). Para entender a crise politica que redun- dou no impeachment de Dilma Rousseff é Pee enthchican une eeceltac re Proce eerie treucuer Poe ren ine crer Coen ce lises disponiveis. As facetas mais visiveis da Cee ro rarceccr cnr te Easton tp ole inclol sl PA ec raotol CoB so Veter tO ae ent niece neoliberalismo, as grandes mobilizagoes de ier oe echt uae Nae eked sic Caen Creme ecto ram ou que ainda marcam c¢ cena politica Reco eee eee a nGo s6 aos valores e 4 organizacéo desses Mace ai cet mete eget RCICCoe incon eric bree et Cook elke Me CCLICCN cero een se l(c ert ee solu ATUL elt cele [oMe (cd Ciscoe ecu en Pema eletrate Ure liele mone leh relate Maree Cone ae mcm er cieeaia tic Cer aur een a ollie eB i olrssssalspra6t ‘wumedtoraunes.cam br Hi Bes 26th \winvectorasnicamo.com be & [Univensipape ESTADUAL DE CAMPINAS Resor Mancrio Kops. (Coordenadars Gerda Unive ‘Tunssa Dip Zannon ATvaRs Cen 1 Eaicsial Presidente MAncia Anan Bucirpss nk Mssqurta Nsv0 = Tara Lis Fano SCHTAVINATTO ‘Maina Rocita Macttabo ~ Mania ists Pernvcct Ror Osvatbo Novats DE Outvinea Ja. ~ RINATO HvUDA DE LUNA PEDROSA ‘RODRIGO LANNGA FRANCO DA HLVETRA ~ VERA NISAKA SOLFERINL editors ness Funpagto Eprrona pa UNESP Presidente do Conztho Curador Minto Sincro Vascoxcatos Dineror Presidente Jeo Hismeant Bonen Gurtenne ‘Supetinendente Administrative ¢ Rnancleo ‘Winirai pr Souza AcosrvKo Conse Editorial Acadévico Dantto Rornaxs ~ Joxo Luis Cannoso Taras Cxccanrins ‘Lor FERNANDO AYERBE ~ MARCELO TARESHT YAMASHTA Masta Cristina Penarna Lina ~ Miro Traustrsy Socant Newrow La Seaza JUmion ~ Prono Anosto Pacrt ixatA JUNQUEERA DESOUZA ~ ROSA MARIA FRITRIRO CAVALARI Bairores Adjntes AxpensonNOsARa Lanono Ronmowrs ARMANDO Bolro Jr. Reforma e crise politica no Brasil Os conflitos de classe nos governos do PT Grafs stualzad segundo o Acordo Ortogfco da Lingua Portuguesa de 196. Bi igor no Braap de 209, CHA CATALOGRAPICA FLABORADA P5LO. DIRETORIA DE-TRATAMENTO DA INFORAIAGAO ‘Biblioteca: Mara Lica Nery Datra de Castro = CRD-€*/ 1724 G7 Boot, Attando, Reform ecrse politica no Eras os conltos de case nos governs do Pr Armando Bit je ~ Campinas, SP Editor da Uniamp/Sko Paulo, SP: ators Unesp, 2018. 1. Chases soca ~ Brasil 2. Movimentos sons ~ Bes. 3, Partido dos veabthedere Bras, 4 Bras Pola egoerno 1. Til con 2055096 03480981 rent 978-85-266-1486-1 Batra da Unio C4981 tani 97845:95-0741 Bao Usp 88981 Copyright© by Armando Boito Je Copyright © 201sby Balora da Uneamp Copyighs © 2018 by tora Usp Direliosresevadoscprotegidos pela i 8 10 de 192.198, Epeibia a reprodagi totaly pascal sem atorzaco, por esto, dos detentoes dos diretos reine, 2018 Painted in ral Foifetoo depési legal Dinos eservadas¢ Boca da Ualeamp Pundagi Bator da Unesp (FEC) ‘Rua Caio Graco Prado, 50 Campus Uaicamp Praga da 108 ‘CEP 1382-49 —Campinse~sP—Brasil (CBP 0191-900 = So Palo - 5 “TJFar (19) 3521-77817 ‘aks (10) 200-710 Foe (11) 324-7072 womeeditorsunicampcombr swviediteraunespco.be ‘endudedtorausicamp.br vewwlinariaunes.com. = euedtoraanespr Para Paula Marcelino, Em membria de Rimiza Sedch Boito, minha mae. SUMARIO APRESENTAGAO. PARTE I REFORMA E CLASSES SOCIAIS NOS GOVERNOS DO PT 1, ESTADO, BURGUESIA E NEOLIBERALISMO NO GOVERNO LULA, 2. GOVERNOS LULA: 4 NOVA "BURGUESIA NACIONAL” NO PODER 3. AS BASES POLITICAS DO NEODESENVOLVIMENTISMO. 4.0 LULISMO, 0 POPULISMO E 0 BONAPARTISMO. 5. NEODESEN VOLVIMENTISMO, CLASSES SOCIAIS POLITICA EXTERNA NOS GOVERNOS DO PT. 6, © NEODESENVOLVIMENTISMO E A RECUPERAGAO DO MOVIMENTO SINDICAL BRASILEIRO PARTE I NATUREZA E DINAMICA DA CEISE POLITICA DO IMPEACHMENT 7. A CRISE POLITICA DO NEODESENVOLVIMENTISMO £ A INSTABILIDADE DA DEMOCRACIA. 35 99 283 ‘8, ESTADO, INSTITUIGOES ESTATAIS E PODER POLITICO NO BRASIL 9. LAVA JATO, CLASSE MEDIA F BUROCRACIA DE ESTADO. 20. A CRISE DO NEODESENVOLVIMENTISMO E DO ‘GOVERNO DILMA ROUSSEFF. 11, POR QUE FOI FRACA A RESISTENCIA AO GOLPE DE 20162 APENDICE ~ EXISTE UMA BURGUESIA INTERNA NO BRASIL? RESPOSTA A UM CRITICO.....~ 265 289 303 APRESENTAGAO Este livro esté dividido em duas partes. Na primeira, analisamos 105 governos do PT, as forgas politicas que apoiaram eas que combe. teram esses governos, suas ideologias e seus programas, as institui- <6es€0s contflitos institucionais que marcaram 0 periodo, bem como a insergdo dos movimentos socials nas sucessivas conjunturas. Na sua segunda parte, o livro trata da natureza e da dinamica da crise politica que redundou na deposicao de Dilma Rousseff em 2016. A espeito de os artigos tomarem por objeto “emas ou subtemas varia- dos e especificos, o conjunto forma uma unidade e oferece 20 leitor ‘um quadtro analitico geral, evidentemente sujeito A critica, da poli- tica brasileira dos anos recentes. Isso porque so as teses que desen- volvemos sobre a organizacto do poder politico no Brasil, isto & sobre o bloco no poder, que é 0 tema central dos trés primeiros arti- .g08 do livro, que servem de base para a andlise dos demais temas: os, confltos de classes que abalaram a politica brasileira contempora- nea, as relagdes de tais conflitos com as instituigdes do Estado, as rafzes sociais da luta entre o neoliberalismo ¢ o neodesenvolvimen- tismo, a crise politica do impeackment ~ ¢ também de temas mais especificos como o movimento sindical ¢ a politica externa durante 108 governos do PT. Os artigos que compdem o livto sto o resultado da pesquisa que desenvolvi, juntamente com outros colegas, no pro- jeto coletivo de pesquisa “Politica e classes sociais no capitalismo neo- liberal’, Esse projeto, por mim coordenada, obteve o financiamento ARMANDO BOITO IR da Fundagao de Apoio & Pesquisa do Estado de Séo Paulo (Fapesp) na rubrica Projeto Temitico e desenvolveu-se entre 200 € 2015." O enfoque tedrico adotado por nds vincula 0 processo politico ‘40s conflitos de classe, ou seja, vinculla a politica & economia e @ so- ciedade, Uso a palavra conflitos ¢ nfo luta de classes para designar a diferenca que existe entre, de um lado, a disputa pela redistribuicgdo da riqueza produzida, que nao coloca em questio a organizacao ca- pitalista da sociedade brasileira, ¢ que € 0 que temos presenciado em grande escala no Brasil, ¢, de outro lado, a disputa em torno do modo, capitalista ou socialista, de organizaco social, ou seja, a luta de classes propriamente dita, confronto que nao se desenvolven no Brasil atual, Avaliamos que sio os conflitos de classes, assim com- preendidos, queestio no centro da prolongada crise politica iniciada em 2015. Nao julgamos que sejam apenas esses 0s conflitos atives no Brasil. As lutas das mulheres, dos negros e dos movimentos LGBT tiveram presenga significativa nas disputas politicas durante os go- vernos do PT e na dinamica da crise politica aberta em 2015. O que entendemos é que os conflitos de classe foram 0 conflito principal de todo esse periodo, O lleitor pode se dar conta de que tafs conceitos e teses inserem 0 nosso trabalho na tradicao da teoria politica marxista ¢ o afastam do institucionalismo, que é em suas variadas tendéncias, a orientacéo dominante na ciéncia politica contemporanea. As correntes institu- Bese tipo de pesquisa nunca desapareceu completamente. Recordo, aesse titulo, ‘o trabalho de Perissinotto, 1994, €0 de Farias, 207. ARMANDO BOITO JR talistas brasileiros. So exemplos disso os trabalhos de Ary Minella, para 0 caso dos banqueiros, e de Bli Diniz e Renato Boschi, para 0 caso dos empresiirios industriais, e de Adriano Nervo Codato para citar apenas alguns dos mais conhecidos ¢ que sio, pela sua quali- dade, referéncias incontorndveis no estudo da burguesia brasileira.* (0 nosso trabalho de pesquisa sobre a burguesia brasileira pro- ‘cura retomar a tradi¢ao marxista que hoje esta quase esquecida nes- «sa rea de estudo, sem a pretensao de equiparar ~ convém dizé-lo ~a ‘qualidade do nosso trabalho a qualidade daqueles que citamos mais atrés. Concebemos 0 conjunto do empresariado ~ banqueires, in- dustriais, fazendeiros, comerciantes - como integrantes da classe capitalista, eo Estado brasileiro como uma entidade moldada, pelas suas instituigdes e pelo pessoal que as ocupa, para servir aos interes- ses fundamentais dessa classe social. Ademais, no campo da teoria ‘marxista das classes e do Estado, trabalhamos com 0 conceito espe- cifico de bioco no podes, desenvolvido por Nicos Poulantzas, para pensar a classe burguesa como a unidade (classe social) do diverso (eacies de classe) nas suas relagdes com o Estado e com o restante da sociedade (© emprego do conceito de bloco no poder exige, em primeiro lugar, que o pesquisador detecte as fragdes da classe dominante que agem como forga social distinta numa dada conjuntura, isto é os in- teresses econémicos setoriais burgueses que ensejam, diante da po- Iitica de Estado, a formagio de grupos diferenciados que perseguem, ‘no processo politico, objetivos préprios. Em segundo lugar, exige que 7 Relir-me aos inimetostrabalhos de Ei Diniz e Renato Boseht sobre o empre- sariado industrial eaos dversostabalhos de Ary Minellascbre os empresérios do setor bancésio. Penso também em trabalhos como os de Codeto, 997; € Costa, 198. 5 poulantzas, 371. Ver volume Il, Parte Il, Capitulo 4 ("Lat capitalist ot les classes dominantes’ pp. 2-78) e Parte IV, Capitulo 4 (LEtat capitaliste et Jes clatses dominantes’ pp. 125-137). Aviso o leitor que nfo hé engano sa cit ‘elora numeracio eo titulo dos dos captulos coincidem de fato. o pesquisador procure esclarecer quais interesses de fragio sto prio- rizados pela politica econdmica do Estade ¢ quais s4o relegados a ‘um plano secundétio. A localizagdo dos interesses efetivamente prio- rizados pela politica do Estado indica qual ¢a fragio hegeménica no interior do bloco no poder. Poulantzas segere que, regra geral, 0 bloco no poder no Bstado capitalista apresenta uma hierarquia mais ‘ou menos estével, configurando a existéncia de uma fragao hege- ménica no seu interior. Contudo, esse autor também contempla ¢ possibilidade de uma crise de hegemonia, que ¢ a situagdo de um loco no poder no qual nenhuma fragao burguesa logra impor seus interesses especificos como prioritarios para a politica de Estado. O conceito de bloco no poder, que recobre o cerreno das classes ¢ fra- bes de classe, permite também a Poulantzas realizar um enfoque novo e sofisticado dos regimes politicos nes Estados democréticos, remetendo as formas de governo (presidencialismo ou patlamen- tarismo), as disputas entre os ramos do aperelho de Estado (Execu- tivo e Legislativo), o jogo partidério (os variados tipos de pluripar: tidarismo ¢ bipartidarismo) as disputas por hegemonia no interior do bloco no poder’ A ideia é que a organizacto do Estado ¢ 0 sis- tema partidério encontram parte importante da sua explicagao nos conflitos entre as fragbes da classe dominante ¢ dessa dltima com. as classes trabalhadoras. H4 um forte preconceito contra a corrente marxista althusse- riana nos meios marxistas brasileitos. Porém, recorrendo a Poulant- 7a8, nao nos colocamos distantes, a0 contrério do que poderia pare- cer primeira vista, da tradicdo brasileira a qual fizemos referencia, Os estudiosos brasileiros operavam com nogies ¢ teses que aproxi- ‘mavam suas andlises daquelas que poderfamos obtet utilizando, ex- plicita e conscientemente, 0 conceito poulantziano de bloco no po- 5 dem. Volume I, Parte 1V, Capitulo 5 ("Le probltme dans les formes ePtat et ans les formes de regime: Le légisatf et Fexécut, pp. 138-25). 3 ARMANDO BOITO JR der eo tratamento que esse conceito sugere para o regime politico. A polémica de Boris Fausto com Nelson Werneck Sodré sobre a Re- volucio de 1930 nao dizia respeito 20 conflito entre diferentes fra- .96es no interior da classe capitalista? Sodré, numa breve passagem, talver exageradamente realgada por Fausto, apresentou a Revolugéo de 1930 como um golpe da burguesia ascendente contra a classe de- cadente dos proprietérios de terra, enquanto Fausto, para refuté-lo, tratou de apresentar 1930 como fruto de uma crise oligarquica, en- tendida essa como uma crise provocada pelas disputas entre as fra- ‘goes regionais da classe dominante, Ha um amplo terreno comum a cesses dois trabalhos, terreno comum que era, aids, o que permitia o tipo de discussdo que eles ensefaram. © processo politico expressa, em ambos, a aco e os interesses de classe; em ambos, 0 Estado é antes de 1930 € depois, o Estado da classe dominante. Qual é, entio, 1 diferenga? No trabalho de Sodré, muda a classe ou a fragio da classe dominante cujosiinteresses predominam no Estado ~ decadén- cia dos grandes proprietarios de terra, ascensao politica da burgue- sias no trabalho de Fausto, os conflitos entre os setores regionais {a classe dominante, as chamadas dissidéncias oligirquicas, teriam aberto um perfodo de crise de hegemonia, nogio expressamente utilizada por esse autor e que jé fora utilizada antes por Francisco Wefort nos seus estudos sobre 0 populismo nascido no pés-so. Quando Antonio Carlos Meirelles, em excelente e pouco conhecido texto, interveio no debate para fazer 2 critica da critica de Fausto, fot avinculagdo entre o regime politicg eo bloco no poder que serviu de referéncia.” Meirelles argumentou que, embora Fausto tivesse de- monstrado a auséncia da burguesia industrial no movimento que depés Washington Luis e a importancia da crise oligénquica para o desencadeamento do movimento politico-militar, permanecia o fato de que a centralizagao do regime politico alterara a relagao de forgas 7 Meirlles, 1973. 4 [REFORMA E CRISE POLFTICA N9 BRASIL no interior do bloco no poder, abrindo camninho para a politica de industrializag4o que se tornaria clara no final da década de 1930, Por isso, Meirelles ird utilizar a nogo gramsciana de revolugao (bur- _guesa) passiva para caracterizar 0 movimento de 1930. Algo semelhante se passa com as discusses sobre a burguesia nacional. Como € sabido de todos, Fernando Henrique Cardoso, nos seus estudos sobre o empresariado e sobrea dependéncia, esforgou- -se para refatar a tese, que ele atribuia genericamente aos intelectuais comunistas e ao PCB, segundo a qual haveria uma burguesia nacio- nal passivel de assumin, no Brasil, uma postura anti-imperialista’ Nos debates sobre o significado dos golpesde Estado de 1954 ¢ 1964, a questéo da existéncia ou nao de um prejeto de desenvolvimento capitalista autonomo e de uma burguesia racional marcow a ciéncia politica brasileira? 0 dectinio do prestigio da teoria marxista na universidade bra- sileira, 0 abandono das pesquisas sobre a burguesia como classe so- ial e tiltima onda de internacionalizacao da economia capitalista ~ ‘0 denominado processo de mundializacac ~ poderiam sugerir que esse enfoque e os debates que ele enseja estariam superados. Nos acreditamas que nao. Além de trabalharmos com 0 conceito de loco no poder, langamos mao de um outro conceito especifico, também produzido por Nicos Poulantzas, 0 conceito de burguesia interna, para entender boa parte do que ocorre com a burguesia bra- sileira hoje nas suas relagbes com 0 Estado e com 0 capitalismo in- ternacional.!" Nés entendemos que o denominado processo de mun- dializagéo nao logrou absorver, integralmente, a burguesia de um & Cardoso, 966. ® Jaoni 2972 © conceito de burguesia interna indica a fragic da burguesia que ocupa uma “posi intermediria’ entre a burguesia compradora, que € uma mera exten slo dos interesses imperalistas no interior dos paises colonais e dependentes, a burguesia nacional, que em alguns movimentos de ibertagdo nacional do stculo XX chegou a assumir posses anti-impeilistas. Ver Poulantzas, 1976. as ARMANDO BOFTO Tn. pais dependente da semiperiferia como o Brasil, o que significa que ‘0s conflitos entre ume burguesia compradora ou associada, que é 0 brago local da atual forme de dependéncia, e uma burguesia interna, ‘com base de acumulacéo e interesses especificos, explicam parte im- ortante do processo politico nacional, Com tais conceitos, elabora- mos duas hipéteses principais de trabalho, A primeira é que vigora- tia, no periodo neoliberal, iniciado sob o governo Collor e que se estende até 0 presente, a hegemonia do grande capital financeiro in. ternacional, junto ao qual os grandes bancos brasileiros funcionam, como burguesia compradora. A segunda hipdtese & que 0 governo Lula representa uma novidade: sem romper, até aqui, com a hege- monia do grande capital financeiro internacional, Lula promoveu a ascensdo politica da grande burguesia interna brasileira no interior do bloco no poder. Isto é, 0 governo Lula, pelo menos no tema que nos ocupa, que é 0 tema do empresariado ¢ de sua relagao com 0 Estado, nao seria, a despeito de manter 0 modelo capitalista neolibe- ral, uma mera continuidade do governo FHC. © BLOCO NO PODER NO PERIODO NEOLIBERAL A politica econdmica e social do Estado brasileiro a0 longo da década de 1990 e da primeira metade da década de 2000 conferiu 20 capitalismo brasileiro certas caracteristicas minimamente estaveis que permitem que falerios em um novo modelo de desenvolvimento capitalista. Esse modelo, que tem sido chamado neoliberal, pode ser definido por contraste com o madelo que o antecedeu, o desenvolvi- ‘mentista ~ tanto na sua fase nacional reformista (1930-1964), quanto 1na pré-monopolista da ditadura militar (1964-1985). Muitos elemen- tos evidenciam esse contraste entre modelo desenvolvimentista € modelo neoliberal: 0 ritmo do crescimento econdmico cai, 0 papel do Estado como empresitio e provedor de servigos declina, a prio- 26 | j | [REFORMA f CRISE POLITICA NO BRASIL ridade ao crescimento ¢ a0 desenvolvimento industrial desaparece, a desnacionalizagio da economia nacional amplia-se, os direitos so- . 2 REFORMA E CRISE POLITICA NO BRASIL ‘moedas sem sobressaltos ou prejuizo; ¢) pagamento da divida pa- blica externa e interna com taxa basica de juro real elevada para as- segurar uma alta remunera¢ao para os titulos pliblicos detidos, ma- joritatiamente, pelas empresas que tém mais liquide, isto é, pelo proprio capital financeiro, Os balangos dos grandes bancos privados brasileiros mostram que, ao longo dos iltimos anos, a receita oriunda, do recebimento de juros dos titulos da divida piblica representa cerca de 40% da receita total dessas instituigbes; d) liberdade para o capital financeiro cobrar o méximo possivel pelo capital que cede emprestado a capitalistas e consumidores ~ spread liberados e) ajuste fiscal que garanta o pagamento dos juros dos titulos da divida pi- blica ~ nos paises europeus, déficit piblico limitado; nos latino-ame- ricanos, superévits primérios. Sabemos que todos esses cinco ele- ‘mentos foram mantidos ou aprofundados durante o governo Lula. A desregulamentacio financeira esté vinculada ao avanco re- cente da desnacionalizagio das economias dependentes como o Bra- sil e também & abertura comercial que foi promovida nesses paises. ‘De um lado, a compra e venda de ages ou mesmo a aquisicéo de ‘empresas piblicas e privadas & um dos terenos para a valorizagio do capital financeiro internacional, e, de outro lado, os grandes gr pos industrial-financeiros dos pai s dom:nantes exigiram a aber- tura comercial da América Latina para aumentarem as suas expor- tagdes para essa regio."* Como ¢ sabido, a politica neoliberal supri- miu o protecionismo dos mercados internos latino-americanos, protecionismo que fora a marca do modelo Jesenvolvimentista. Essa abertura, além de atender aos interesses do capital internacional, tem o objetivo de inibir, ao acuar a burguesia interna com a concor- réncia de produtos importados a prego meror, a remarcago de pre- 08 dos produtos industriais, contendo a inflaco interna e contri- buindo, assim, para a estabilidade interna da moeda e para a relativa "8 Chesnats, 997 p- 30. 33 ‘ARMANDO BOITO FR estabilidade do cambio, Essa politica provocou, no primeiro governo FHC, sucessivos déficits na balanga comercial, 0 que era “compen- sado” da maneira que melhor convinha aos interesses do capital fi- nanceiro: taxa basica de juros elevadissima para atrair capital finan- ceiro estrangeiro volétil em busca de valorizacio répida ¢ elevada, compensando com 0 ingresso desse capital de risco de curto prazo 0 desequilfbrio da balanga comercial ¢ des contas externas ~ claro que tal politica poderia produzir mais & frente, como de fato produziu, ‘uma divida publica e um desequilibrio externo cada vez maiores. ‘A abertura comercial ¢ a desregulamentagéo financeira aten- dem, portanto, aos interesses do grande capital financeiro, nacional internacional, em detrimento mesmo da grande indistria interna, Esta perdeu 0 mercado cativo para seus produtos, passou a pager muito mais caro pelo capital que toma emprestado para investi- _mentos e sofreu a redugio da parte da receita do Estado destinada a infraestrutura e a0 fomento da producéo. Alguns autores enfatizam queos grandes grupos industriais também separam parte do seu ca~ pital para investir no mercado financeiro. Nosso entendimento, contudo, é que esse fato no anula as perdas que a politica monetaria ede abertura comercial acarreta para a industria, ou, pelo menos, nfo faz, com que os grupos industriais deixem de pressionar contra essas perdas. Concluindo, podemos afirmar que o grande capital financeiro nacional e internacional é fracdo burguesa hegemonica no modelo neoliberal porque todos os aspectos da politica neoliberal ~ 0 des- ‘monte do direito do trabalho e social, a privatizacio, a abertura co- mercial ¢ a destegulamentagZo financeira — atendem integralmente ‘0s interesses dessa fragao da burguesia. Com excecéo do primeiro aspecto, todos os demais contrariam, em maior ou menor medida, ‘os interesses das demais fragées integrantes do bloco no poder ~ mé- dio capital, burguesia de Estado, grande capital industrial. O resul tado pritico da correspondéncia objetiva entre modelo capitalista 34 i REFORMA B CRISE POLITICA NO BRASIL neoliberal ¢ 0s interesses financeiros é a taxa de lucro superior que o sistema financeiro tem obtido ao longo des tiltimos anos diante da taxa do setor produtivo. Entre 1994 e 2003, segundo levantamento da ABM Consulting, o lucro dos dez:maiores bancos brasileiros cres- cou nada menos que 1.039%." Durante o primeiro ano do governo Lala, os bancos voltaram a bater recordes de lucratividade. Alguns Jevantamentos feitos pela Economatica e pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributério (IBPT) mostraram que o investimento em fundos rendeu, no mesmo periodo, quatro vezes mais que o investi- ‘mento nos setores proditivos, ¢ sobre esses investimentos incidem ‘menos impostos.®” No decorrer do primeiro trimestre de 2005, 0 lu- cro dos bancos manteve a trajetoria de alta - cresceu 52% em relacéo a0 mesmo perfodo de 2004. Acrescentemos que, além da correspondéncia objetiva entre os interesses do grande capital financeiro e 0 modelo neoliberal, veri fica-se, também, a identificagio politica e ideolbgica das entidades nacionais ¢ internacionais do capital finarceiro com os sucessivos governos neoliberais no Brasil. A politica desses governos, de Fer- nando Henrique Cardoso a Luiz Indcio Lala da Silva, vem sendo aprovada pelo FMI, pelo Banco Mundial e peta Federacio Brasileira de Bancos (Febraban) .Indicador significativo dessa situagao € sim- Diose que se verifica entre o pessoal dirigente dos sucessivos gover- nos do perfodo, principalmente o pessoal do Ministério da Fazenda €0do Banco Central, eo pessoal dirigente ¢o setor financeiro nacio- nal e internacional. Iniciar a carreira como diretor do Banco Central e prossegui-la como executivo de banco privado ou fazer 0 caminho ' “Lucros dos bancos sobem mals de 1.000%; Folka de S.Paulo, 1 de junho de 2004, p.B-. “Fundos rendem 4 veves mais que produsao' Folhe de S.Pawo, 11 de junho e204, Caderno Dinhelto, p.B-,B-3.¢ B “Lucro dos bancos cresce 52% no # trimestte’, Fuha de S Paulo, 4 de janho de 2005,p.B-9. 35 ARBIANDO BOITO TR. inverso é, hé anos, um fato corriqueiro no cenaxio politico brasileiro. (Como veremos adiante, 0 governo Lula apresenta algumas mudan- «gas secundarias nessa matéria. ‘A ASCENSAO POL{TICA DA BURGUESIA INDUSTRIAL E DO AGRONEGOCIO SOB O GOVERNO LULA ‘A hegemonia politica do grande capital financeiro nacional e in- ternacional néo se exerce sem resisténcia e nas mesmas condigbes a0 longo de todo o periodo neoliberal. Alguns intelectuats crticos, tal- ver devido ao grande desajuste entre a imagem puiblica do PT € 0 curso real do governo Lula, foram levados a enfatizar, de modo uni- lateral e erréneo no nosso entendimento, o elemento continuidade entre FHC ¢ Lula. Nossa anilise ¢ diferente. Como dissemos, a no- ‘vidade do governo Lula é que ele promoveu uma operacao politica ica da grande complexa que consistiu em possibilitar a ascensio pol urguesia interna industrial e do agronegécio, principalmente dos setores voltados para 0 comércio de exportacio, embora, é verdade, nfo tenha quebrado a hegemonia das finangas e tampouco alterado a posiglo subordinada do médio capital no bloco no podes.* Durante o seu primeiro mandato, Fernando Henrique Cardoso ampliow a abertura comercial, promovendo mais uma rodada de sus- pensio de barreiras alfandegétias e nao alfandegérias as importa- ges, ampliou a desregulamentacio do ingresso e da saida de capi- {ais, manteve o cimbio valorizado, aumentou a taxa de juros e a vida péblica, Acumulou déficits crescentes na balanca comercial ¢ {ex um ajuste fiscal duro ~ embore esse ajuste possa parecer, nos dias 3 Perso em trabathos de cftios de esquerda co governo Lula como Francisco de Olivet ¢ Leda Paulan. Ver Paulan, 2007. 2 Rotomo pesta parte ideia que desenvolvi no artigo “A barguesia no govern Lula Ver Bot J, 2095. 36 eos de hoje, um ajuste brando, tendo em viste 0 nivel elevadissimo de superavit primario imposto pelo governo Lula ao pais, Segundo os dados do Banco Central do Brasil, FHC obteve, em porcentagem do PIB nacional, 0,27%, 0,08% € 0,018 de superavit primério, respecti- ‘vamente, em 1995, 1996 e 1998; no ano de 1997, ocorreu um pequeno défcit primario de 0,95% do PIB. Dois aspectos dessa politica foram particularmente criticados pela grande burguesia industrial interne: a abertura comercial ¢ 0 nivel da taxa de jaros. Durante o primeiro governo FHC, a Federagao das Industrias do Estado de Sao Paulo (Piesp), secundada pela Confederagao Nacional da Indtistria (CND, vocalizou a insatisfacao desse setor. Nesse ponto da nossa anilise, é obrigatério considerar a pre- senga politica das classes trabalhadoras. Podemos distinguir, meto- dologicamente, os empresdrios do restante da sociedade para elegé- -los como objeto de estudo, Porém, 0 que se passa no interior da lasse capitalista relaciona-se com o restante do mundo politico & social. Dependendo das caracteristicas do setor empresarial consi- derado e da sua insergao no conjunto das relagdes politica, ele pode lograr estabelecer aliancas ou frentes com setores das classes popula- es, que estdo excluidas do bloco no poder. No caso em exame, € importante lembrar que os grandes industriais contaram, nesse pro- testo contra a politica de abertura e de juros, com o apoio da Central Unica dos Trabalhadores (CUT) ¢ da corrente majoritéria do Par- tido dos ‘Trabalhadores, principalmente de sua secéo paulista. A CUT, dirigida por uma nova aristocracia do trabalho representada, por trabalhadores qualificados da indistrie automotiva, do setor pe- troleito e dos bancos, aspirava, apesar dos protestos da minoria de esquerda da central, & ressurteigio do veo desenvolvimentismo, que, acreditavam os sindicalistas, seria obtido com a redugio da taxa de juros ¢ outras medidas de incentivo ao -nvestimento. A proposta de catmaras setoriais apresentada pela CUT no inicio da década de 1990 era concebida como 0 espago privilegiado dessa alianga, onde 37 | ARMANDO BOITO Th. empresirios ¢ trabalhadores de cada setor discutiriam, juntamente com o governo, aqueles que seriam os pontos de estrangulamento da produgéo e do emprego financiamento, impostos, politica de con- tratagdo etc. Essas cémaras eram pensadas, basicamente, para o setor industrial, ea vinica que vingou foi a Cémata do Setor Automotivo, posteriormente fechada pelo governo FHC. Além das cimaras seto- riais, em imiimeras ocasiOes a Fiesp ¢ a CUT trabalharam conjunta- ‘mente na elaboracao de propostas € de projetos de politica econd- mica como na proposta de reforma tributéria, elaborada pela Fiesp e pela CUT com a participacao da Fipe-USP, proposta que visava “desonerar 0 capital produtivo” Houve um momento alto dessa alianga quando, em junho de 1996, a diretoria da Fiesp declarou publicamente, inclusive através de texto assinado pelo seu presidente e publicado na grande imprensa, apoio a uma greve nacional de protesto contra o desemprego que estava sendo organizada pela CUT e pela Forga Sindical. A Fiesp, durante os meses de maio e junho daquele ano, estava organizando, com a colaborago da CNI, uma manifestagio em Brasilia de indus- triais de todo o pats contra “o ritmo acelerado” da abertura comer- cial, contra o “ritmo lento” das privatizagbes, ¢ contra a politica de juros. O governo FHC sentiu a pressdo e, sem alterar a sua politica geral, efetuou um recuo: apoiou-se nas normas da OMC ~ salva- ‘guarda, direitos compensatérios ¢ proibigéo a0 dumping - para criar barreiras a importacdo de tecidos da China, da Coreia do Sul e de Formosa e & importagio de brinquedos. Na campanha eleitoral de 2002, 0 PT ¢ 0 candidato Luiz Indcio Lula da Silva esforgaram-se para atrair o apoio da Fiesp, proferindo um discurso segundo 0 qual fariam 0 governo da producdo contra a especilagio, Pareciam reedi- (Os ntimeros da revista da Fiesp publicados entre abril julho de 1996 dao armpla cobertura a esses acontecimentos e realgam &agio e 0s objetivos dos industria = no més de juno, « publicaco da Flesp trocou o titulo sdbrio Noticias pelo afiemativo Revisia da Insta 38 Fei pereccrre neon te REFORMA E CRISE POLIFICA NO BRASIL tar as tradicionais ilusdes da esquerda brasileira no suposto papel politico da “burguesia nacional” Além dessa pressio politica, & preciso considerar um fator eco- némico, Os déficits crescentes na balanca comercial do pais, se aten- diam aos interesses do capital internacional. poderiam, a médio elon- {g0 prazo, gerar problemas para o proprio capital financeiro nacional ¢ internacional. © desequilfbrio das contas externas ~ provocado pelo pagamento da divida, pela crescente remessa de lucros oriunda do avango da internacionalizagao da economia e pela propria aber- ‘ura comercial ~ poderia comprometer a capacidade de pagamento do Estado brasileiro, ¢, no limite, se se ckegasse @ um nivel muito baixo de reservas internacionais, poderia, inclusive, inviabilizar, por escasser de reservas, a liberdade basica do capital financeiro inter- nacional de entrar e sair livremente do pais. A economia brasileira aproximou-se dessa situagio critica com a crise cambial de 1999 no ‘momento de transiglo do primeiro para o segundo mandato de FHC. © fantasma daquilo que os desenvolvimentistas da Cepal denomina- ‘vam “estrangulamento externo” rondava as contas brasileiras com 0 exterior. A situago exigia alguma corregiode rumo. Fernando Hen- rique Cardoso percebeu isso, Demitiu Gustavo Franco, 0 idedlogo da valorizagao cambial, da presidéncia do Banco Central, desvalorizou o real, abandonou a politica de déficit na balanca comercial e adotou ‘uma politica de balanca comercial superavttiria. O saldo positivo na balanca comercial e um acordo de emergéncia obtido com o FMI passaram a ser os trunfos de que dispunhao segundo governo FHC. (1999-2002) para restaurar a confianca do capital financeiro interna- ional na economia brasileira, Esse foi o embrido da politica de ex portagio que seria implementada em seguida pelo governo Lula. ‘Or setores industriis voltados para exportagio sumentaram a influéncia no interior da Fiesp ao longo da década de 1990, 0 que torna compreensivel a po- ‘siglo atual da entidade diante do governo. Sobre esse ponto, ver Bianchi, 2004 2” ARMANDO BOITO FR Diversos sio, portanto, os fatores responséveis pela nova politica de comércio internacional e pela cotrespondente ascensio politica da grande burguesia interna industrial ¢ do agronegécio. Dado 0 eco- nomicismo que domina as andlises da politica econdmica brasileira, € importante destacar os fatores politicos que induziram essa mu- danca ~a pressao da grande burguesia industrial a0 longo da déceda de 1990, a pressao convergente dos sindicatos e a propria vitéria Wa candidatura Lula na eleicao presidencial de 2002. Contaram tam- bbém fatores econdmicos nacionais ¢ internacionais - a ameaca de estrangulamento externo que se evidenciou na crise cambial de 1999, o ctescimento do comércio internacional de matérias-primas e de re- cursos naturais, a melhora nas cotagdes desses produtos, o declinio, nna década de 2000, do fluxo de délares dirigido aos paises dependen- tes pelos fundos de aplicagao dos paises dominantes, e, finalmente, a _gtande desvalorizagao cambial provocada, involuntariamente, pelo temor do capital internacional diante da iminente vitéria de Lula em 2002. Uma vez no governo, Lula decidit radicalizar na dizegio da cortesdo iniciada no segundo governo FHC, Iniciou a sua politica 2 © prosseguimento de nossa pésquisa deverd levantar um perfil mais preciso da grande burguesiaintema, prinipelmente do seu amo exportador.O lucro dos diferentes segmentos da grande burguesia interna €afetado de maneiras distin~ tas pela taxa de cimbio de acordo com duas varidves, pelo menos: s a fxagio do prego da mercadoria da empresa ou do segmento é feita em moeda forte (como produtos agrcoles) ou em moeda nacional (como produtos industrinis) cese-3 empresa ou segmento tem alto ou baixo indice de abertura. As empresas 08 segmentos que apresentam um baixo indice de abertura importam pouca smatérie-prim, ingumos ¢ equipamentos) e tém os pregos de suas mercadorias fixados em reais sio as mais prejudicadas com a valorizagio cambials no outro ‘extremo, as empresas ou 0¢ segmentos que tm os precos de suas mercadorias fixados em moedas fortes e que apresentam um alto indice de abertura sio 0s ‘menos prejdicados pela valorizagio cambial. Boa parte do agronegécio ocupa ‘uma posigio intermediria entre essa duas posigbes extremas. Hi alguns da~ dos sistematizados sobre esse assunto por Fernando Pimentel Puga no texto “Cimbio afeta exportadores de forma diferenciada’ Ver Torres Filhos Pimentel uga & Rocha Ferrera, 2006, pp. 65-7. 40 , | enue [REFORMA E CRISE POLFTICA NO BRASIL agressiva de exportagéo, centrada no agronegécio, nos recursos natu- rais ¢ nos produtos industriais de baixa dersidade tecnoldgica, e im- plementou as medidas cambiais, crediticias ¢ outras necessdrias para ‘manter essa politica. O proprio perfil da industria brasileira mudou, com declinio dos setores mais sofisticados ¢ ascenséo dos setores in- ustriais que processam recursos naturais ~ minérios, papel e celu- lose, produtos alimenticios etc.” O carro-chefe das exportacies ¢ agronegécio, setor responsével por cerca de 40% de todas as vendas do pais no exterior ~ destaca-se o complexo da soja, que lidera as exportacées, seguido por carnes, madeiras, agiicar e élcool, papel e celulose, couros, café, algodao e fibras, fumo e suco de frutas. Tratou-se de uma vitéria, ainda que parcial, da grande burguesia interna industrial e do agronegécio, Essa fiago burguesa permane eu como forca secundaria no bloco no pocer, uma vez que o Estado continuou priorizando os interesses do capital financeiro, mas o go- vverno Lala ofereceu a ela uma posigdo bem mais confortével na economia nacional. © resultado disso pod: ser visto no comporta- ‘mento da Fiesp. Essa entidade, que fot critica dos aspectos mais fi- nancistas da politica econémica e da abertura comercial dos anos 1990, é presidida hoje por um homem de confianga do Palicio do Planalto, que se elegeu para a Fiesp com 0 apoio do governo fede- ral. O governo Lula multiplicou os canais institucionais de consulta aos industriais ¢ aos exportadores, o que reoresenta um grande con- traste, segundo depoimentos dos préprios empresérios, com 0 que se passava no governo FHC.” ® Fazendo o balango do perioda 1992-2000, Ricardo Carneiro afirma: "O que se pode concluir de conjunto des dados & que a extratura do comércio exterior brasileiro refit fielmente as mudangas ocorrdés na estrutura produtiva, com exportagies concentradas em setores de menor conteldo tecnolégic, ecor- endo 0 inverso com as importagdes’ Ver Carneiro, 2002 “Exportagdo do agronegocio chega & marca dos USS 39 bi Folke de $.Paulo, 7 de janeiro de 2005, p. Bes Ver Dinkz, 2006. a ARMANDO BOIFO JR. Quanto ao tamanho das empresas exportadoras, predomina am- plamente o grande capital. Segundo os dados da Associagao Brasi- leita de Comércio Exterior, o Brasil tinha, em fevereito de 2005, 19 ‘mil empresas exportadoras. Desse total, apenas 800 empresas eram. responsiveis por 85% do total das exportagdes do pais, Quanto ori- gem do capital, das 40 maiores empresas exportadoras brasileiras, responsiveis por 43% do total das exportagées, 22 delas sio estran- igeiras.° O governo diz estimular a participacio da pequena e média ‘empresa nacional nesse novo negécio da China, mas, segundo os dados do Sebrae, no ramo industrial, 0s milhares de micro e peque- nas empresas exportadoras respondem por apenas 2% das exporta ‘g0es do setor.* A politica de “caga aos délares” representa, portanto, tuma politica que atende aos interesses do grande capital nacional ¢ estrangeiro vinculado & agroindiistria,& extracio mineral e aos pro- dutos industriais de baixa densidade tecnol6gica. Novamente, 0 mé- dio capital ocupa uma posigdo subordinada, ASCENSAO POLITICA SEM CONQUISTA DA HEGEMONIA Por que entio, apesar do estimulo governamental 20 setor expor- tador ¢ da alta lucratividade que esse setor est4 apresentando, enten- demos que o grande capital financeiro nacional e internacional per- manece hegeménico no interior do bloco no poder sob 0 governo Lulat A resposta éa seguinte: porque esse governo estimula a produ- 50 “sti usem pals como base exportador',Falha de S Paulo, 7 de ontubro de 2004, p-B. 51 Real valorizadojé reduz bate exportadors,Fotha de S. Paulo, a7 de maio de 2005, p-B | eeeneeeennee REFORMA E CRISE POLITICA ND BRASIL «40, mas no interior dos limites permitides pelos interesses funda- ‘mentais do grande capital financeiro. Em primeiro lugar, le estimula, prioritariamente, a produgio voltada para a exportasio. Do ponto de vista das finangas, nao inte- essa priorizar a produgio voltada para o mercado interno. O grande capital financeiro necessita reduzir 0 desequlibrio das contas exter- nas, sem 0 que sua livre circulagdo e sua dlevada remuneragio po- derao ficar comprometidas. O objetivo principal do estimulo a pro- ducio deve ser, entio, a exportacdo, isto ¢, a caga aos délares e as demais moedas fortes — no é no consumo popular interno que essas moedas poderio ser obtidas. Por isso, estimnula-se especificamente a produglo para exportacio e nao a producio em geral. Em segundo ugar, mesmo na politica de estimulo & exportagao, tudo deve ser feito de modo a nao ultrapassar a medida daquilo que interessa as fnangas. Corrida aos délares, sim: mas desde que os délares obtidos sejam direcionados para o pagemento dos juros da divida, Assim sendo, 0 superivit prinmério e os juros devem permanecer elevados ‘mesmo que isso limite 0 proprio crescimento das exportagbes. De fato, faltam infraestrutura e recursos humanos - estradas, silos, por- tos, funcionérios para a vigilancia sanitaric ete. para que o capita- lismo brasileiro possa crescer pelo menos dentro da taxa média das principais economias latino-americanas e ainda que como mera pla- taforma de exportagio. Porém, do ponto de vista do capital finan- ceiro, nao interessa desviar para a infraestrutura o dinheiro que deve ser encaminhado para remunerar os bancos. Os pontos de estrangu- lamento poderio, quem sabe, ser superados pelas Parcerias Piblico- -Privadas, as PPPs, concebidas pelo govemo Lula justamente para -contornar os problemas de infraestrutura sem ameacar # politica de clevados superivits primérios. O mesmo raciocinio aplica-se & po- Iitica de juros bisicos elevados, que fortalece o perfil usurério do capital financeiro, desvia-o do financiamento da produgio e enca- rece 08 investimentos, limitando 0 crescirrento da exportagio. Pelo “a ARMANDO BOITO JR. que podemos ver entio, o superivit primario elevado e a alta taxa de juros no sio, no governo Lula, um desvio financista incrustado ‘numa politica globalmente desenvolvimentista. Sio, na verdade, con- sistentes com esse novo € modesto crescimento econdmico voltado para exportacdo, © aumento das exportagées fol acompanhado do aumento do supersvit primério. Este saltou de uma média de 1% do PIB no primeiro mandato de FHC para 3.5% no segundo man- dato e, agora sob o governo Lutla est na casa de 4.5%. A politica externa do governo Lula também expressa a nova si- tuagdo do bloco no poder. Ou sefa, ela nao esti desconectada da po- Iitica interna, como sugerem aqueles que a consideram a “parte si” desse governo, O presidente Lula diz estar Iutando por uma nova “geografia comercial” e é aqui que reside o segredo da vinculagio da sua politica externa com a sua politica econémica, A politica externa 6,a0 mesmo tempo, dependente (diante do imperialismo) e conquis- tadora (diante das pequenas e médias economias da periferia). De tum lado, reafirma-se a posigao subalterna do capitalismo brasileiro na diviséo internacional do trabalho com a politica de especializacio regressiva no comércio exterior, mas, de outro lado, 0 governo quer ‘ocupar de fato 0 lugar que cabe ao capitalismo brasileiro nos merca- dos agricola, de recursos naturais e produtes industriais de baixa tecnologia, mesmo que para tanto o capitalismo brasileiro deva ex- pandir-se & custa das demais burguesias latino-americanas e mesmo ‘que gere tenses comerciais localizadas com alguns paises dominan- tes, A Inta contra o protecionismo agricola da Europa e dos Estados Unidos e2 deterioragao das relagies com a Argentina ilustram o que estamos afirmando. © empenho do Estado brasileiro em construit uma alianga de Estados da periferia, consagrada no denominado G-20, na reunite de Cancun da OMCem outubro de 2003, visa exatamente suspender 0 protecionismo agricola dos paises dominantes. © discurso que 0 governo Lula aciona pera legitimar a reivindicagio do G-20 € um 44 | ——— REFORMA E CRISE POL{TICA NO BRASIL discurso neoliberal que pleiteia a “verdadeira abertura” dos merca- dos e concentra a luta no comércio de procutos agricolas, Nao esto exclufdas, como se tem verificado, novas concessées na politica de abertura comercial para produtos industriais e servigos em troca de recuo dos paises dominantes no protecionismo agricola. Ao proce: der assim, o governo abdica de lutar por normas que regulem 0 co- meércio internacional visendo favorecer os paises dependentes. Jé 2 face hegemonista dessa politica estd abalando o Mercosul. A grande burguesia interna brasileira, como aliada subalterna do grande capi- tal financeiro, aspira a ter acesso a porgdes crescentes do mercado latino-americano e essa aspiracdo estd abalando a alianca com 0 ca- pitalismo argentino no Mercosul. © REGIME POLITICO E A HEGEMONIA DO CAPITAL FINANCEIRO Digamos, agora, uma palavra sobre o regime politico que corres ponde a esse bloco no poder. Como ja indicamos, da perspectiva tedrica que ¢ a nossa, a preponderancia de um ramo do Estado sobre outro, 0 contlito entre Executivo ¢ Legislative, o sistema partidario € 05 conflitos variados no préprio interior do Estado e do governo devem, ponderados demais fatores intervenientes, ser remetidos aos conflitos entre as fragdes burguesas que compéem o bloco no poder. ‘Ohiperpresidencialismo brasileiro — que consiste, fandamentalmen- te, na apropriagio da fangio legislativa pelo Executivo Federal - ser- ve aos interesses da fracio hegeménica no interior do bloco no po- der, Tudo que se relaciona a esse arranjo politico e institucional re- mete, obrigatoriamente, & disputa de interesses entre as fragbes bur- guesas. Um eventual fortalecimento do Congresso Nacional e dos Executivos estaduais e municipais poderia :epresentar uma ameaca hegemonta do capital financeiro. O hiperpresidencialismo acarreta 6 ARMANDO BOTTO JR ainda, dada a sua condicdo de regime politico centrado na capaci- dade deciséria da burocracia e na legitimidade de tipo burocritico em detrimento da legitimidade de tipo representativo, o declinio das, fungoes governativa e representativa dos partidos politicos. Nao estamos afirmando que a cipula da burocracia do Estado ¢ a ciipula dos governos ajam em unissono na defesa dos interesses do grande capital financeiro, Sao 0 Ministério da Fazenda ¢ 0 Banco Central que se constitwem nos locais privilegiados nesse esquema de concentragio do poder em beneficio da fracio hegeménica. Eles S40, ‘por isso, os principais centros de poder na definicio da politica eco- n6mica ~ 0 Ministério da Fazenda ¢ responsivel pelo controle das varidveis macroeconémicas e determina a dotagio orgamentéria de todos os outros ministérios. Porém, em outros setores da cipula bu- roctitica e em outros centros de decisio do governo, tanto no pe- riodo FHC quanto, mais ainda, no periodo Lula, 0 grande capital industrial ¢ 0 agronegécio também detém posiges importantes @ partir das quais procuram resist 4s medidas de politica econdmica adversas a seus interesses. Durante os dois mandatos de Lala, esses atritos tém-se renovado: o antigo conflito entre José Dirceu (Casa Civil) e Antonio Palocci (Fazenda), entre Carlos Lessa (BNDES) © Henrique Meirelles (Banco Central), entre Dilma Roussef (Casa Ci- vil) e, novamente, Henrique Meirelles etc. No periodo FHC, a proe- minéncia de quadros politicos neoliberais extremados ~ Pedro Ma- Jan, Gustavo Franco, Arminio Fraga ~ sobre os neoliberais modera- dos ~ José Serra, Dorothea Werneck ¢ outros ~ era mais clara, Sob o governo Lula, a dinamica desses conflitos no interior do governo & ‘um dos indicadores do crescente fortalecimento da grande burgue- sia industrial interna e do agronegécio. No inicio do seu segundo ‘mandato, em janeiro de 2007, Lula langou o Plano de Aceleragao do Crescimento, 0 PAC, que parece todo ele voltado para os interesses da grande burguesia interna, principalmente industrial. © Ministé- rio da Fazenda passou a ser ocupado por um economista de for- 46 Raa REFORMA E CRISE POLITICA ND BRASIL macio heterodoxa, Guido Mantega, ficando 0 Ministério do Desen- volvimento nas méos de um economista monetarista. Trata-se de ‘uma inversio em relagdo ao conjunto do perfodo FHC ~ quando o ‘ministério mais importante permaneceu seb controle de um econo- mista ortodoxo, restando aos neodesenvolrimentistas o secundario Ministério do Desenvolvimento. As fragdes subordinadas do bloco no poder, ¢ desigualmente contempladas pela politica de Estado, tém maior acesso ao Con gresso Nacional e aos ramos subordinados do Estado - governos estaduais e municipais ~ no regime politico vigente. A experiéncia da historia politica recente mostra que, caso dependessem de deci- io do Congresso Nacional, muitas das caracteristicas do atual mo- delo econémico e muitas das decisbes de politica econémica encon- trariam dificuldades, devido a publicidade que ganhariam e ao card ter heterogéneo da representacio parlamertar ~ o grande capital f nanceito nao tem condigdes de homogeneizar o Congresso Nacional no mesmo nivel que logra fazé-lo no niicleo do Executivo Federal Sempre que as reformas neoliberais exigiram reforma constitucional ¢, portanto, tiveram de passar pelo Congresso Nacional, as dificulda- des foram grandes ¢ muitas das reformas almejadas ou efetivamente tentadas nao chegaram a sait do papel. sistema partidério é consistente com o papel preponderante do Executivo, a comecar pelo Executivo Federal, No neoliberalismo brasileiro, no existe governo de partido, mas partido do governo. (Os deputados do partido de onde saiu o presidente da Repiblica fun- cionam como mera base de apoio do governo no Congreso, tendo de se enquadrar « decisGes politicas para cuja elaboragio nio foram sequer consultados, Fot assim com o PSDB nos dois governos FHCe estd sendo assim, ao contrério do que muites podiam esperar, com 0 PT durante os dois governos Lula, O resultado extremado do rebai- xamento do Legislativo e da fungdo governativa dos partidos politi- cos é que o regime politico brasileiro produziu um conjunto de par- a ARMANDO BOITO I. tidos, alguns de tamanho médio ou grande como o PTB, cuja tinica fangao € esta: servir de base parlamentar ao governo do momento em troca de favores. Os demais partidos dividem-se entre os interes- ses do grande capital financeiro e da burguesia interna, A ala majo- ritéria do PSDB, vanguarda eleitoral do neoliberalismo no Brasil, representa o grande capital financeiro internacional ¢ os interesses dos empresirrios e banqueiros brasileiros estreitamente ligados a esse capital. © PT, nascido como um partido social-democrata de es- querda e vinculado a0 movimento sindical, desde meados da década de 1990, quando o ento chamado Campo Majoritirio inicion o pro- cesso de reformulagéo programatica e organizacional do partido, ‘vem realizando um movimento em direcio 4 grande burguesia in- terna, Em sintonia com essa fragio burguesa, 0 PT procura conter cou reverter apenas as medidas de politica econémica que a prejudi- ‘cam, como 0s juros elevados ¢ @ abertura comercial, mantendo aque las que a favorecem mesmo que em detrimento do bem-estar dos trabalhadores ~ reforma da previdéncia, flexibilizacio do contrato de trabalho no setor puiblico, reforma trabalhista etc. © antigo PFL, atval Democratas, também representa os interesses financeiros in- ternacionais, mas parece, dentre todos os grandes partidos, 0 mais vvinculado aos interesses da nova burguesia de servigos. O PMDB ppossui basicamente trés alas: uma governista, outra mais proxima dos interesses financeiros internacionais e uma terceira ainda ligada média burguesia e & antiga burguesia de Estado. Mas, convém re- petit, como o regime politico reduziu muito a fungdo governativa dos partidos, correspondentemente, a sua fungao representative tam- }ém ficou minada, Os diferentes setores sociais percebem que 0 par- tido nao é um instramento importante de poder e dirigem sua luta e sua pressio diretamente para a burocracia de Estado. O resultado disso é que o vinculo representativo entre 0 partido e a sociedade fica debilitado, REFORMA E CRISE POLITICA NO BRASIL Esse enfoque pode abrir perspectivas novas para a anélise das Jutas partidérias durante os dois governos Lula, Como pensar, nesse contexto, # agdo do PSDB na sua postura deoposi¢io a0 governo, em episédios como a “Crise do Mensalao” ou o movimento “Cansei”? Seria uma aco do partido do capital financeiro contra um governo que promove os interesses da grande burguesia interna industrial ¢ do agronegécio? Inicialmente, durante a “Crise do Mensaléo’, che- gueia pensar que nao, Parecia-me que 0 PSDB estava se deslocando de sua propria base a0 se voltar contra 0 governo, posto que, naquela casio, as principais entidades do patronato fizeram questio de pprestar apoio piiblico ao governo Lula no pior momento da crise. A persistincia dessa agio, contudo, parece incicar um fendmeno orgi- nico. A disputa pela hegemonia no bloco no poder parece ter extra- ‘vasado para o plano politico-partidario.” © PSDB age como repre: sentante do capital financeiro e angaria apoio na alta classe média. Essa fragdio da classe média parece incomodada com a ampliagio das politicas compensat6rias durante 0 govern Lula, aquilo que pode: riamos denominar o social-liberalismo desse governo. Devido a sua situagdo de classe, a alta classe média é atraida pelo discurso mora- lista contra a corrupsao, isto é, 0 discurso que atribui a corrupgéo indole malévola dos governantes e que acredita ser possivel instaurar ou restaurar uma suposta natureza neutra e impessoal da qual te- riam se desviado as instituigdes do Estado capitalist. Voltemos & concentragéo do poder no Executivo Federal. Ha toda uma ideologia politica que legitima essa concentracéo, ideolo- ‘gia sistematizada e difundida pelos representantes, conscientes ou inconscientes, do grande capital financeico, Sto elementos dessa ideologia: a ideia segundo a qual a politica monetéria teria um card- ter técnico;a defesa da medida provis6ria como consequéncia, tam- bém técnica, da necessidade de rapider na agdo de governar; a acusa- 5 Nucct Jinior, 2007 ARMANDO BOITO JR. <éo unilateral do carster fisiol6gico, paroquial e clientelista do Coi= gresso Nacional, das emendas orcamentérias de deputados e senado- res etc. Todas essas ideias legitimam a concentracio do poder deci- sério no Executivo e a marginalizagao politica do Legislativo, Alga- ‘mas delas, como o cardter supostamente técnico da politica moneta- ria, ideia defendida, invariavelmente, desde o infcio dos anos 1990, por todos os presidentes e diretores que passaram pelo Banco Cen- tral, sio pura mistificaglo; outras, como as acusagses de fisiolo- gismo, clientelismo e paroquialismo ao Congreso Nacional, aludem a dimensoes verdadeiras da instituigo, mas o fazem de manera a, também, produzie mistificagdes. A detragio do Congreso sugere ‘uma suposta efici¢ncia e grandeza politica do Executivos 0 discurso sobre o paroquialismo das emendas de deputados e senadores oculta que, na pardquia, estao as pequenas e médias empresas, justamente aquelas que a politica econbmica pretende marginalizar. A proposta de orcamento do Executivo Federal que destina um terco das recei- ‘tas da Unitio para pagamento dos juros da divida piblica, isto & para cerca de apenas 20 mil familias segundo os célculos dos economis- tas, supée-se técnica e racional, enquanto uma emenda de deputado ou senador visendo asfaltar as ruas de uma pequena cidade ou finan ciar pequenas empresas € dita paroquial¢ fisiol6gica. Todo esse dis- curso esconde, ainda, que é a fungao que faz 0 politica: claro que «um Congresso rebaixado atrai quadros politicos dispostos a servir, em troca de favores, como base passiva dos sucessivos governos ~ no limite, temos, cada vez em mtimero maior, 0s fugitivos da Justiga que se candidatam para obter a imunidade parlamentar, Ou seja, 0 dis curso em defesa do Executivo do capital financeiro inverte os ter- ‘mos do problema: o efeito do rebaixamento politico do Legislativo & apresentado como se fosse a sua causa. A porgdo de verdade que esse discurso ideolégico contém é, portanto, apenas a quantidade neces- séria a sua eficdcie como discurso mistificador. 50 a REFORMA E CRISE POLITICA NO BRASIL CONSIDERAGOES FINAIS Talver seja possivel detectar a logica que esté subjacente & hie- rarquia do bloco no poder no capitalismo neoliberal brasileiro, Bssa ligica é sintetizada pela politica econémica do Estado e resulta da insereio do capitalismo brasileiro nas mudangas ocorridas na divi sio internacional do trabalho e da correlagao politica de forgas no interior do pais. ‘A politica econdmica define uma hiererquizasao das fragbes da classe capitalista privilegiando certas dimensbes do capital em detri- mento de outras: quanto a funcio do capital, privilegia a fungao fi- nnanceira; quanto ao porte, privilegia o grande capitals quanto ao des- tino da produgao, 0 mercado externo e a fetia de alta renda do mer- cado interno. A essas pr idades correspondem, uma a uma, as di- mensbes que sio preteridas: quanto & funcio do capital, a producio, {sto & 0 capital ativo; quanto ao porte do capital, o pequeno e 0 mé- dio; e quanto ao destino da produgio, © mercado interno de bens de consumo populares. Poderiamos estender a lista, lembrando que, entre as grandes empresas estatais e a grande empresa privada, @ po- Iitica econOmica privilegiou, principalmenre na década de 1990 com 0s leilbes de privatizacdo, as grandes empresas privadas, Tais prioridades consagram uma hierarquia do poder burgues que comporta duas posigdes extremas. No topo, temos 0 grande ca- pital financeiro internacional e os grandes bancos nacionais, en- quanto, na base da piramide, temos o méd‘o capital, aplicado no se- tor produtivo e voltado para 0 mercado interno de bens de consumo populares. © primeiro setor indicado concentra todas as vantagens cumulativas diante da politica econémica eé um setor que age como fracio distinta de classe; o segundo carrege todas as desvantagens cumulativas diante da politica econdmica # néo chegou a se consti- tuir em fragdo autnoma da classe burguesa, Ainda falando das po- sigbes na hierarquia de poder, cabe indicar que a grande burguesia st ARMANDO BOITO JR. industrial e 0 agronegécio, principalmente as grandes empresas vol- tadas para a exportacéo, ocupariam uma posigéo intermediéria en- tre aquelas duas posigdes extremas. Ficamos, entio, com trés posi- goes: a fragdo hegeménica, cujos interesses tém sido priorizados pela politica econémica tanto na décade de 1990 quanto na década de 2000; a fracio intermedisria, que iniciou uma trajetbria politica as- cendente sob o governo Lula ¢ cuja conversio em fragao hegembnica € uma possibilidade real - como ja indicamos, a “globalizagéo” nio absorveu a totalidade da burguesia brasileiras e, por ultimo, a fracio marginalizada pela politica de Estado, as pequenas e médias empre- sas do setor produtivo voltadas para 0 mercado interno de bens po- pulares, cujos interesses sempre sao ignorados quando colidem com os interesses do grande capital, seja ele financeiro ou produtivo, seja voltado para a exportagio ou para o mercado interno. Esse & um. ‘quadro geral que considera as situagbes tipicas. Hé situagbes mais complexas, de setores que retinem, a0 mesmo tempo, dimensdes pri- vilegiadas e preteridas pela politica econdmica de Estado, como 0 caso dos bancos de tamanho médio e das pequenas empresas volta- das para a exportacdo, Ao longo dos diltimos anos, muitos bancos de tamanho pequeno ou médio foram levados & faléncia e muita pe- quena empresa voltada para exportagdo prosperou, Este artigo restringiu-se ao tema do bloco no poder no periodo neoliberal, particularmente ao exame das relacdes da burguesia com © governo Lula. Nao tratamos das relacdes dessa burguesia e do go- verno com as classes trabalhadoras, embora seja impossivel separar completamente essas duas faces da politica brasileira ~ como se viu, recorremos a presence politica dos trebalhadores para poder anali- sar a ascensio politica da grande burguesia interna. Hé outras ques tes relacionadas & populacio trabalhadora ¢ que poderiam ser mo- tivo de exame. Por exemplo, o crescimento das politicas compensa- t6rias, como o programa “Bolsa Familia pode repercutir significati- vamente na politica econémica ¢ nas posigdes relativas das fragdes ~ REFORNA B CRISE POLFFICA ND BRASIL burguesas no interior do bloco no poder? Poderia chegar a promo- ver consideravelmente os negécios das médias empresas voltadas para o mercado de bens de consumo populares? As politicas de in- centivo A produgao industrial e ao agronegécio, voltadas principal- mente para. exportacio, representam, em contraste com as politicas estritamente financistas, alguma melhoria para os assalariados e os camponeses brasileiros? Nossa andlise sugeriu que tais politicas sio ‘uma mudanga muito limitada. Poderfamos acrescentar que descu ram o desenvolvimento do mercado interro — posto que, num mo- delo que privilegia a exportagao, 0 saldrio entra, primeiro, como custo e como desvantagem na competitivicade internacional - ¢ in- viabilizam - devido ao papel estratégico at-ibufdo ao agronegécio - a reforma agréria, Mas uma discussio como essa demandaria muito ais reflexao. Indicamos esses temas apenés para evidenciar que, a0 tratar os empresirios como classe dominante, ¢ no como um setor social qualquer, 0 nosso texto sugere, necessariamente, questies po- Iiticas e sociais mais amplas do Brasil contemporaneo, REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS. BIANCHI, Alvaro. O ministério dos industria ~ A Federagao das Indis- tras do Estado de Sao Paulo na crise das éécadas de 1980 ¢ 1990. Tese de doutorado, Campinas, IFCH-Unicamp 2004, BOITO Jr, Armando, Politica neoliberal e sindzalismo no Brasil. 2 ed. 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Contrariando essa expectativa, assistimos, no Brasil da década de 2000, & ascensio politica de uma nova burguesia nacional no interior do bloco no poder vigente no Estado brasileito. ‘Nao se trata da velha burguesia nacional, aquela que, na andlise de autores marxistas e de partidos comunis.as do sécuilo XX, poderia formar uma frente anti-imperialista com a classe operéria. Trata-se, nna verdade, de uma nova burguesia nacional, uma fragao da classe burguesa a qual se aplica, sob medida, 0 conceito de burguesia in terna elaborado por Nicos Poulantzas” Escrevendo no primeiro lus- tro da década de 1970, esse autor nos alertava, no momento mesmo em que a nocio de globalizacéo nascia da pena dos autores anglo- ~saxbes, para a ideie de que subsistia, no plano nacional, uma bur- guesia interna, que nao se encontrava em vias de desaparecimento ‘Antigo publicado na coletines organizada por Armando Boito Jr. ¢ Andréia Galvao, Politica e classes sociais no Brasil dos aros 2000. Séo Paulo, Alameda, 2012.0 artigo fol redigido no ano de 2010. Eo que sustentam Miglioli 998, e Pi, 1998. Bste iltimo defende a tese da formaco de uma burguesia nica em nivel mundial, Powlanteas, 1974 ARMANDO BOITO FR. com a nova onda de internacionalizagao da economia capitalista Nos paises dependentes, essa burguesis ocuparia, na andlise de Pou- lantzas, uma posigdo intermediéria entre a antiga burguesia nacio- nal, passivel de adotar préticas anti-imperialistas, ea velha burguesia compradora, mera extensio do imperialismo no interior desses pai ses. A burguesia interna ocuparia, entéo, uma posigdo intermediéria entre dois extremos ~ entre a burguesia nacional e a burguesia com- pradora -, teria base de acumulagao propria e poderla buscar, a0 ‘mesmo tempo, associar-se 20 capital imperialista¢ limitar @ sua ex- pansio no interior do pais. Pois bem, no Brasil de hoje, foi o governo Lula que promoveu a ascensio politica dessa fragio da burguesia brasileira." Fagamos, de passagem, uma adverténcia. Nao desejamos que a expressio sinté- tica do titulo deste artigo ~ @ nova burguesia nacional no poder ~ in- duza o leitor a erro. A grande burguesia interna brasileira nunca es- teve fora do poder. Como fragio da classe burguesa, ela tem compar- tihado 0 poder de Estado com as demais fragbes de sua classe social, {sto é, ela tem integrado 0 bloco no poder.* © que ocorreu & que ela ‘melhorou sua posigao no interior desse bloco. Teria se convertido na fragdo hegeménica no interior desse condominio politico? Ou seja, (8 seus interesses especificos de fragio teriam se convertido, sob 0 governo Lula, no objetivo prioritirio da politica econémica? Nessa etapa da nossa pesquisa, preferimos deixar essa questo em aberto. ‘Queremos apenas afirmar que a trajetsria recente da politica econd- mica do Estado brasileiro é tal que os interesses da grande burguesia interna tém um peso cada ver maior nas iniciativas e medidas do Estado brasileiro. O marco inaugural desse processo foi a passagem, em 2002, da “era FHC” para a “era Lula’ Mais tarde, em 2006, na ‘passagem do primeiro para o segundo governo Lula, a ascenséo po- + Boito fr, 2008. § Poulanteas, 1968, 36 or [REFORMA H CRISE POLITICA NO BRASIL litica da grande burguesia interna no interior do bioco no poder tornou-se mais evidente. O projeto econémico que expressa essa re- lacéo de representagao politica entre os governos Lula e a grande burguesia interna poderia ser denominado neodesenvolvimentista. Antes de apresentar uma répida caracterizacao do neodesenvol vimentismo como uma proposta de politica econdmica que repre- senta os interesses de classe da grande burguesia interna, fagamos ‘uma observagdo metodolégica. A caracterizacéo de projetos e de ‘modelos de desenvolvimento capitalista ¢ uma tarefa complexa, A primeira dificuldade ¢ de ordem tedrica e se apresenta no momento de definir os critérios pertinentes para dividir as etapas do desenvol- vimento capitaliste e para caracterizar os respectivos modelos; a se- gunda dificuldade é de orclem empfrica e se apresenta no momento de detectar, na realidade histérica que é serapre arredia & pureza dos modelos, o que cabe e 0 que nao cabe num modelo capitalista pre- viamente definido, Esse & um problema geral do trabalho cientifico. ‘Tal problema se torna mais dificil ainda — ¢ esse é um terceito tipo de Aificuldade ~ em situagdes em que os modelos jé caracterizados ¢ ‘conhecidos comegam a se modificar, como o caso de que agora nos ‘ocupamos ~ 0 neoliberalismo da década de1990 nao é 0 mesmo que © da década de 2000, Tais situacdes ensejem a questo de saber se estamos diante de uma mudanca de modelo ou, simplesmente, de uma mudanca rto modelo, Apesar dessas trés ordens de dificuldades, acreditamos ser possivel definir, ainda que provisoriamente, 0 neo- desenvolvimentismo: trata-se do desenvolvimentismo possivel dentro do modelo capitalista neoliberal periférico. Na década de 2000, 0 capitalismo brasileiro cresceu, em média, ‘9 dobro que na década de 1990. Porém, se insistimos no prefixo “neo” é para indicar a existéncia de diferenzas importantes em rela- so a0 desenvolvimentismo do periodo 1930-1980. Trés diferencas ‘merecem particular destaque. Todas elas so adequadas aos interes- ses da grande burguesia interna brasileira erepresentam, também, 0 37 ARMANDO BOITO JR I financeiro internacio- compromisso dessa burguesia com 0 capi nal. A primeira caracteristica é que o novo desenvolvimentismo pro- duz indices mais modestos de crescimento econémico porque est limitado pela acumulagéo financeira ainda em vigor, aspecto funda- ‘mental do modelo capitalista neoliberal. O peso da rolagem da di- vida piblica e do juro elevado sobre a receita do Estado e sobre 0 lucto das empresas do setor produtivo inibe 0 investimento e 0 cres- cimento econdmico. ‘Uma segunda caracteristica diferencial do novo desenvolvimen- tismo & que ele aceita a especializagio regressiva, recuo que o mo- elo capitalista neoliberal impés aos paises dependentes que tinham ogrado desenvolver um parque industrial mais complexo, como foi © caso do Brasil. Assim, 0 novo desenvolvimentismo concentra-se nos setores de processamento de produtos agricolas, pecusrios ou de recursos naturais ¢, no caso da indiistria de transformacio, esté fo- cado nos segmentos de baixa densidade tecnolégica. O velho desen- volvimentismo, diferentemente, forgava a abertura de brechas na divisio internacional capitalista do trabalho ~ em primeiro lugar, a prépria politica de industrializagao e, em seguida, as sucessivas ten- tativas, mais ou menos bem-sucedidas, de internalizar setores pro- dutivos mais sofisticados como indastria de base, bens de consumo durdveis, bens de capital, indistria eerondutica, informatica, induis- tria bélica e outros. No modelo neodesenvolvimentista, as grandes empresas nacionais, classificadas entre as empresas mais fortes dos ‘seus respectivos segmentos em escala mundial, sio ~ feita a excecio de praxe representada pela Embraer ~ a Friboi, a Brazil Foods, a ‘Yale, a Gerdau, a Votorantim Celulose e outras que processam pro- datos de baixo valor agregado. Finalmente, estamos, na década de 2000, diante de um desenvol- vimentismo voltado, muito mais que o seu antecessor, para 0 mer- cado externo, isto é para a exportacdo. Também essa caracteristica resulta da manutengo do modelo capitalista neoliberal. O processo 8 { — de reconcentragio da renda ocorrido nas décadas neoliberais € a abertura da economia brasileira estimulam 0 foco nas exportacbes. ‘Ademais, tendo os demais paises dependentes também passado por processos de abertura, uma economia capitalista dependente, porém mais forte, como € a do Brasil, pode se valer dessa superioridade para ocupar mercados até entio inacesstveis devido a0 protecio- nismo mais ou menos generalizado, Nesse particular, o comporta mento politico da grande burguesia interne foi exemplar. Na década de 1990, a industria voltada para o mercado interno teve uma pos- tura preponderantemente defensiva, € também timida, diante da abertura comercial: 05 industriais reclamavam do ritmo acelerado da abertura ¢ da falta de uma politica de Estado que preparasse a industria brasileira para a concorréncia aberta. Na década de 2000, a burguesia interna abandonou aquela posicio defensiva e, acomo- dando-se ao modelo neoliberal, abriu mao do protecionismo her- dado do velho desenvolvimentismo e partiu para a conquista dos mercados vizinhos que também tinham sido abertos. O Estado bra- sileito no periodo Lula adotou, em consonncia com essa postura da grande burguesia i erna, uma politica externa focada nos paises do Hemisfério Sul e uma agressiva politica de financiamento, através do BNDES, ambas voltadas para promover as empresas ¢ os investi- mentos brasifeiros no exterior. (Nao abriremos aqui a questo de saber se 0 capitalismo ¢ o Estado brasileiros estabeleceram, ou nao, ‘uma relagio imperialista com os demais pafses da América Latina, Apontaremos a complexidade da situacdo. as grandes empresas bra- sileiras que tém investido fortemente na Verezuela dao apoio a0 go- verno Chavez, Marcelo Odebrecht, presidente da construtora que leva o seu sobrenome e que assumiu consirugdes pesadas naquele pafs, tem defendido o governo Chaver e criticado a grande imprensa brasileira por ela divulgar, segundo seu entendimento, uma imagem negativa e deformada do presidente venezuslano,) se ARMANDO BOITO Pois bem, se 0s governos Lula representam a grande burguesia interna, devemos considerar um erro afirmar, como faz grande parte dos analistas e dos criticos desse governo, que a burguesia brasileira © apoia, fundamentalmente, porque ele seria 0 governo mais bem situado para manter 0 movimento operério e popular dentro dos li- mites da moderagio. Um dos problemas dessa tese é que grande parte da burguesia nio apoia o governo. Vemos isso na aco politica eparlamentar do PSDB, do DEM e de outros partidos menores ¢ tam- ‘bém na agitagao politica de cunho oposicionista conservador pro- movida por érgios da grande imprensa. A questio se coloce: por que 6 que temos uma burguesia oposicionistat Para entendermos isso, € preciso considerar que, além da grande burguesia interna, temos também, no Brasil, uma grande burguesia perfeitamente integrada e subordinada ao capital estrangeiro. Ora, essa fracdo burguesa, que pleiteia uma politica econémica neoliberal extremada, teve os seus interesses, em diversas medidas, preteridos pelo governo Lula. B por isso que essa burguesia compradora, aliada subalterna do grande ca- pital nanceito internacional, pleteia, hoje, o retorno do PSDB a0 poder governamental. A parte da burguesia que apoia 0 governo Lula o faz, fundamentalmente, devido a essa disputa no interior do bloco no poder, e nao devido a uma avaliagdo de que Lula seria 0 melhor governo para segurar 0 movimento operério e popular. Para levar de vencida a grande burguesia compradora € 0 capital financeiro internacional, que so as forgas burguesas mais poderosas economicamente e mais influentes nas agéncias privadas de hege- monia (Gramsci), a grande burguesia interna teve de aceitar integrar uma frente com 0 movimento sindical e popular:® Essa frente, con- Tente eallanga no séo a mesma coise A alianga rene classes ou fragoes de classe que agem oxganizadas, cada qual, de modo independente, com base em ‘um programs politico prépria, «que estabelecerm um programa minimo €o- ‘mum. A frente rene, de maneira mais informal, classes efragbes de clase, nto rnecetsariamente orgenizadas de modo independente, em torno de objetives 60 [REFORMA E CRIS POLITICA NO BRASIL tudo, padece de um pecado original: ela nao resultou, no fundamen- tal, da iniciativa da sua forca hegem@nica, que é a grande burguesia interna, Ela foi, antes de tudo, o resultado, ndireto e até certo ponto inesperado, da luta do movimento sindicale popular. Por que pode- mos afirmar isso? Porque @ luta sindical e popular foi o principal fa tor, ao longo das décadas de 1980 ¢ 1990, para a construgao e a afir- magao do Partido dos Trabalhadores ¢ de um campo reformista elei- toralmente vivel dirigido pelo PT. A grande burguesia néo pode cteditar fundamentalmente para si a vitéria da candidatura Lula na eleicéo presidencial de 2002. A capacidade de pressdo e, a0 mesmo tempo, as limitagdes politicas do movimento operario e popular em- purraram, entao,a grande burguesia interna para uma frente politica que 0 préprio movimento operdtio e popular nao tinha condigies de Girigir. A frente esta unificada, ainda que de maneira precéria, em torno do neodesenvolvimentismo da grance burguesia interna, mas depende, para o seu sucesso, ¢ em grande medida, do movimento ‘operirio e popular ~ que, no entanto, demonstra insatisfagdo com os ites desse projeto de desenvolvimento. Vale dizer, 0 movimento operdio e popular nao é a forea hegeménica da frente, isto é, aquela que define os objetives da luta, mas é a sua forga principal, isto 6 aquela da qual mais depende o sucesso da luta. Esse desajuste entre a forca hegem6nica (burguesa) ea forea principal (opersria e popular) gera conflitos e instabilidades no interior da frente politica neodesenvolvimentista. E essa frente que o governo Lula, manobrando em meio a difi- culdades, procura manter e consolidar. O presidente tem um trunfo politico préprio: pode se apoiar, gracas aos programas de transferén- ‘convergentes, mas cuja convergéncia nem sempre est clara para as forgas s0- ciais envolvidas na frente. A forca social que estdenvolvida na frente sem o sa ber ndo pode diigi-la. Mesmo que radicalize a sua agi, poders, a0 faxé-lo, funcionar como instrarenta da fora dirigente 6 ARMANDO BOITO Ta cia de renda, nos trabalhadores pauperizados e desorganizados, com ‘0s quais logrou estabclecer uma relagao politica de tipo populista. A politica econémica do governo propiciou também algum ganho 20 sindicalismo - aumento do emprego no setor piiblico ¢ privado, me- Ihor lério minimo -, além de oferecer uma isca 40 movimento sindical: a salarial do funcionalismo péblico, pequena recuperagio do sa- oficializagao das centrais sindicais. Como resultado, ganhou apoio da maior parte do movimento sindical? O governo implementou, ‘também, politicas piblicas dirigidas a reivindicagbes populares or- «ganizadas, O maior exemplo é o programa de construcao e financia- ‘mento da casa prépria denominado “Minha casa, minha vida’, pro- igrama que atende, ainda que de maneira limitada, as retvindicacoes dos atuantes movimentos de sem-teto espalhados por todo o Brasil” Essas concess6es a algumas reivindicagées populares sdo motivo de insatisfagdo da burguesia, inclusive da grande burguesia interna que ‘0 governo representa. As publicagées da Fiesp, por exemplo, criti cam 0 que os industriais consideram ser 0 excesso de gasto do Es: tado com pessoal. Mas governo preserva os interesses estratégicos da burguesia interna: nao desencadeou nenhum processo amplo de regulamentagio do mercado de trabalho ou de recuperacio dos ser- vigos piiblicos e dos direitos sociais. O que ele faz ¢ impor sacrificios _menores a grande burguesia interna de modo a Ihe propiciar, através da formagao de uma frente politica, uma posicio no interior do bloco no poder que, por si s6, essa fragio burguesa nao teria forca para obter. E 0 fato de parte significativa da equipe governamental ser oriunda do movimento sindical desinibe a necessiria agio disci plinadora do governo diante da classe que ele proprio representa. Estamos em presenga, portanto, de algo semelhante aquilo que 0s comunistas da década de 1950 imaginaram como solugéo para os 7 Vero artigo de Andvéia Galvio, 200. © Veroantigo de Hirata & Olvera, 20m. oe [REFORMA E GRISE POLETICA NO DRASTL problemas politicos e sociais do Brasil: uma frente ou alianca que uunisse parte da burguesia brasileira ao movimento operério organi- zado, Mas, além das semelhangas indicadas, as diferencas existentes entre aquilo que ambicionavam os comunistas ¢ a situa¢o politica atual sio igualmente importantes. Nos proximos itens deste artigo, tentavei apresentar alguns ele- ‘mentos analiticos e empiricos para sustentar essas ideias, PHC, LULA E AS DISPUTAS NO INTERIOR DA BURGUESIA Uma analise rigorosa do bloco no poder vigente no capitalismo neoliberal brasileiro exigiria, de um lado, estabelecer com preciso residente da Republica (1 foram em comitiva a0 Planalto. O grupo de 24 empresérios apresentou uma pauta de reivindicagées singelas{..J. Os empresérios querem, agora, uma agenda minima que garanta a governabilidade.[..)? ‘No mesmo dia em Brasilia, o presidente daFiesp ditetores também se encontraram com @ ministra Dilma Rousseff, para tratar de projetos que aguardam o encaminhamento da Casa Civil ao Congresso Nacional. [.)” “O momento é importante para o despertar. O Brasil ndo pode ficar somente por conta de apuracio de dentincias de desvios ou privilégios’ re- forgou Skal* © mimero seguinte da Revista da Indistria, de setembro de 2005, trata novamente da crise politica." Agora, a mensagem mudou uum pouco. A mensagem enfatizada é: “Vamos resolver a crise com uma reforma politica’ Ou seja, 0 PSDB nio poderia contar com 0 apoio do grande empresariado brasileiro para promover um pro- cesso de impeachment contra Lula. © probiema residiria no sistema politico, ndo neste ou naquele governo. A revista em momento al- BY Revista da Dudisria,n. n0, agosto de 2005, p43 % Idem, p42, % Edens a 2 denn 44 2 Revista da Insta, 10, sternbro de 2005 2% Ver a matira,assnada pela jornalsta Erica Junot, intitulada “Ninguém pode ser contra’ Revista da Insti, v.10, pp. 43-49. a ARMANDO BorTO J8. gum manifesta animosidade contra o governo Lula, Pelo contrério, embora reconhera, ao falar em reforma politica, a legitimidade do debate em tomo da corrupgao, a matéria retorna, ainda que com énfase menor, ao “chega de falar em crise, vamos trabalhar’, ideia que desautoriza e desqualifica as criticas 4 corrupeao. Paralelamente a esse debate [sobre a ceforma politica, ABY] que, junta- ‘mente com as irias CPIs ern andamento, parece estar sugando tods energie dos parlamentares e do govern, a sociedade tente manter um outro, que antes da crise estava mais bem colocado na lista de prioridades. Este inclui, por exemplo, a reforma jridca,«cambialeoutras medidas para assegurar a continuidade da expansio econémica, uma agenda minima, enfim, como defende a Fiesp e seu presidente Paulo Skaf.” No s6 retoma a tese do “chega de falar em crise, vamos traba- Thar’, como di, de passagem, um paxao de orelhas nos partidos bur- gueses de oposigao ao governo Lula, Afinal, quem é 0 responsavel pelo fato de esse “debate menor” estar sugando as energias do Con- sgresso e do governo? A Fiesp tinha fortes motivos para apoiar Lula, Seu canal de co- municagéo com 0 governo estava azeitado, No mesmo namero de se- tembro de 2005 da Revista da Indistria, 2 matéria intitulada “Rumo & modernidade’, assinada pela jornalista Fernanda Cunha, revela como foi o processo pelo qual a Fiesp tomou 2 iniciativa de claborar © projeto de lei que conferia aos exportadores o direito de reter parte das divisas que obtivessem com as exportacées.* Essa medida foi ‘muito importante para compensar as petdas do setor exportador de- vido a valorizagio cambial, sem a necessidade de mexer na politica de cambio, que é uma peca importante e delicada do projeto mais Idem, pp. 48-39. 38 “amo & modernidade" idem, pp.38:39. a AEFORMA E CRISE POLITICA NOBRASIL global de desenvolvimento, © projeto de lei foi desenvolvido pela Fiesp e pela Fundagao Centro de Estudos de Comércio Exterior (Buncex) ¢ submetido, para uma avaliagao inicial, a0 ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e a0 presidente dv Banco Central, Henri que Meirelles. © projeto foi encaminhado em setembro 20 Con- gresso Nacional, onde foi aprovado e, posteriormente, sancionado pelo presidente Lula. A reportagem da revista da Biesp descrevia 0 projeto nos seguintes termos: {..] a proposta endossa o regime de cmbio futeante(..Je prevé a possibi- lidade de qualquer empresa brasileira registrads no Sistema Integrado de Comércio Extetior (Siscomex) ou no Sistema ie Informagées do Banco Cental (Sisbacen) abrir conta nomninada em meeda estrangeira no sistema financeiro nacional. [..J Pagamentos no exterior de importacdes, frees, se- guros, inanciamentosexternos e royalties, por exemplo, poderao ser feitos diretamente das contas em moeda estrangelra.®[.] sso eliminaria despe- sas de spread entre taxa de compra. venda, ¢dupla incidéncia de CPMF na entrada e sfda de divisas, a dupla cobranca de corretagem de cambio, alémn de custos bancérios e buroeriticos.® [..} acabaria também com a obrigatoriedade de conversio de receitas de exportagdo para reis no prazo méximo de 210 dia, lberando as emprests pata trocarem a moeda somente em fungio do custo-oportunidade de apli- cago dos ativosfinanceiros ¢ de sua necessidade de ftuxo de caixa. Assim, nas palavras de Roberto Gianneti da Fonseca, diretor do Departamento de Relagbes Internacionais ¢ Comércio Exterior da Fiesp (Derex), 0 operador ii ficariatefém da cotagio difria da moeda ¢faria conversio quando a taxa Ihe fosse conveniente.* Voltemos ao apoio dispensado pela Fiesp a0 governo Lula no importante episédio da Crise do Mensalic, E preciso destacar que dem, p38 © dem p39 bide 83 ARMANDO HOITO TR, ‘esse apoio foi de fundamental importancia para definir 0 desenlace daquela crise, Lula estava muito desgastado com os trabalhadores, organizados. O esquema de compra de votos dos partidos e deputa- dos fisiolégicos, que, trazido & tona, serviu de detonador da crise politica, tinha sido utilizado para aprovar, dentre outros projetos do .governo, a reforma da previdéncia que retirara direitos do funciona- lismo piblico. O movimento sindical eo MST vinham numa trajet6- ria de afastamento em relagdo ao governo, No auge da crise, a mani- {estacdo de trabalhadores em defesa do governo, convocada pelo que havia de mais representativo no movimento sindical, reuniu um néi- mero irrisério de manifestantes e menor que o ntimero dos presen- tes no ato publico, também realizado em Brasilia poucos dias antes, para protestar contra o governo e apoiar a apuracio consequente das deniincias de corrupcio. Esse iltimo ato tinha sido convocado por pequenas organizagbes de esquerda, como 0 PSTU. Lula, quando perceben que tinha de “apelar para as massas’, nfo recorreu 4 base social tradicional do PT. Evadin-se para a regio Nordeste, onde foi, por ocasiio de alguns atos oficiais, fazer comicios para os trabalha: dores desorganizados, dos quais 0 lulismo vinha se aproximando gracas 20 programa “Bolsa Familia’: Nessas circunstancias, 0 apoio {da Fiesp e ~ pelo que se pode constatar lendo a imprensa da época ~ de toda a grande burguesia interna foi um trunfo decisivo para 0 governo. O desenlace da crise foi o oposto do que esperavam a grande burguesia compradora, a alta classe média, o capital finan- ceiro internacional e o PSDB: a Crise do Mensalio fortaleceu a rela- cao do governo com a grande burguesia interna. A substituigao de Antonio Palocci por Guido Mantega no Ministério da Fazenda prova © que estamos afirmando. Essa mudanga ministerial deu-se em abril de 2006, menos de ‘um ano apés o inicio da crise. A Revista da Indiistria publicou, enti, uma grande matéria sobre o tema. Foi a reportagem de capa da re- vista, e trazia, como chamada, a frase “Um desenvolvimentista na 84 REFORMA B GRISE POLITICA NC BRASIL Fazenda’, No interior da revista, 0 titulo da reportagem era “Novo comando, novas mudangas possiveis’, matésia assinada pelas jorna- listas Célia Demarchi e Maria Candida Vieira.® Fica muito claro na matéria que a Fiesp reconhece duas tendéacies no governo, Uma, que denomina monetarista, representada por Palocci, ¢ outra, coma qual a Fiesp se identifica, que denomina desenvolvimentista, repre- sentada por Guido Mantega. Isso tem importancia: significa que a burguesia interna se reconhece politicamente na linha neodesenvol- -vimentista do governo Lula. Vale a pena anotar alguns pontos que aparecem na reportagem. ‘A reportagem mostra que 0 empresriado paulista recebeu muito bem a troca de ministros, Aplaude o desenvolvimentismo de ‘Mantega, Traz depoimentos de mais de dez dirigentes de associagdes de setores especificos da indiistria e de alguns diretores da Flesp € todos batem na mesma tecla: Mantega valoriza 0 desenvolvimento ¢ deve reduzir a taxa de juros. As ideias que esses diretores de associa- ‘gdes destacam sio: desenvolvimentista, reduugao dos juros, homem. da produgéo, merece apoio, merece confianga, aberto 20 didlogo. Ademais, a reportagem aplaude o fato de Mantega, ao tomar posse, ter declarado que nao faria nova rodada de redugdo das tarifas de importagéo. Tal proposta de reducio, quaificada de “insana” por Paulo Francini,diretor da Fiesp, vinha sendo planejada por Palocci ¢ Paulo Bernardes, 0 ministro do Planejamerto. ‘A reportagem trata Palocci, pejorativamente, como ortodoxo ¢ monetarista. Reconhece que ele “livrou o Erasil de uma inflagdo de 12,5% a0 ano’, aumentou as reservas cambiais de 16 para 59 bilhoes de délares e 0 saldo comercial de 13.3 para 44,8bilhdes de délares. Con- tudo, o que a reportagem enfatiza é que ele sacrificou 0 desenvolvi- mento, Apresenta dados: 0.59% de crescimerto do PIB em 2003, 4.3% ‘® Novo comando, novas mudansas possivels Revista da Indstria, ms, abril -maio de 2006, pp. 20°25 8s ARMANDO BOITO J em 2004 € 2,3% em 2005. A reportagem reserva certa ironia para Palocci ~ 0 “ex-trotskista” que “virou monetarista: Suas idelas “nao coincidiam com o setor produtivo’, nos dizeres de Paulo Francini. Os industriais dividiam-se entre 0 grupo otimista eo grupo pes- simista. O primeiro apostava que Mantega faria uma verdadeira “i versio de caminho’, expressio otimista utilizada por Boris Tabacof, presidente do Conselho Deliberative da Associagéo Brasileira de Celulose ¢ Papel (Bracelpa). © grupo dos pessimistas, majoritétio, achava que nao seria possivel mudar muita coisa, até porque Lula tinha apenas oito meses de mandato para cumprir. © empresétio Mario Cesar Martins de Camargo, pot exemplo, presidente da Asso- ciagio Brasileira de Indhistrias Gréficas (Abigraf), era cético. Afir- ava: “Qualquer um que sentar na cadeira da Fazenda iré softer da sindrome de Pedro Malan’? Ou seja, escreve a reportagem, “adotard uma politica de contengio de inflagio por meio dos juros:* Pelas citagBes de nomes de autoridades e ex-autoridades governamentais, pode-se ver quais sio as figuras positivas e as figuras negativas para os industriais, Embora nio tenhamos feito uma pesquisa sistemética em outras associagdes que representam setores da grande burguesia interna, consideramos pertinente citar uma demonstracio ostensiva de pre- {eréncia pelo governo Lula e de hostilidade velada ao PSDB vinda de uum representante histérico do setor sucroalcooleiro do estado de Sao Paulo, Trata-se do empresério Luiz Guilherme Zancaner, que é proprietario do grupo Unialco, com trés usinas de élcool e agiicar, € também diretor da Unidade dos Produtores de Bioenergia (Udop), entidade de usineiros da regio oeste de Sao Pauilo, onde esti con- centrado 0 rico e produtivo agronegécio da cana no pais. Em en- trevista a0 jornal Valor Econémico, Zancaner declarou apoio 20 go- © dem, pa “ Thidem. 86 REPORNA H CRISH POLITICA NO BRASIL verno Lula, 0 seu reconhecimento de que a politica desse governo favoreceu o seu setor econdmico mais que cs governos que o antece- deram ¢, ainda, apresentou uma avaliagic negativa de José Serra, entéo governador do estado de Sio Paulo’* Um aspecto da entre- vista de Zancaner & especialmente interessente para a nossa andlise: esse usineiro e representante corporativo éos seus pares insistiu na reivindicagéo de que a Petrobras se associasse aos usineitos brasilei- ros na produgio de etanol, para evitar que ées fossem engolidos pelo capital estrangeiro que tem crescido no setor. De maneira similar & industria, 05 usineiros querem protedo do Estado ~ no caso, de uma poderosa empresa estatal ~ para se defender da concorréncia, que consideram desigual, que thes move o capital estrangeiro. Trans- revo abaixo dois trechos da entrevista, 2. Apoio ao governo Lala, critica ao candidsto Serra Valor: Come o senbor avalia a atuagio do governo Lula no setor? Zancaner: Na crise, 0 governo fez a parte dele. Deu crédito, apeser de toda s burocracia para liberar. O governo Lula foi excepeional para o nosso negécio, fico até emocionado, O setor fez mute pelo Brasil, mas o governo esti fazendo muito pelo setor. Nunca houve ants politica tio boa para nbs. (© presidente Lula nfo perde nenhuma oportunidade de ser gentil. Outras pessoas nao perdem a oportunidade de serem desagradaveis,arrogantes Valor: B sobre o pré-candidato do PSDB a Presidéncia, José Serra, que ‘senor esté falando? Ele tem sido restritivo a plantacdo da cana? Zancaner: $6 posso afirmar que o Serra é wm excelente edministredor, _mas considero que o Serra ndo vé 0 setor como o Lula ve, [..] Noto que 0 Lala fez um governo melhor. O Fernando Henrique Cardoso fez as bases, ‘mas Lula e Dilma construiram os canais conosco, Valor: Eo senhor ache que a Dilma vai darcontinuidade? Zancaner: A Dilma foi muito clara quando esteve aqui, em Aragatuba Alinha é de continuar a politica de Lule © Valor Econdmico,s de abil de 2010. 8 ARMANDO BOITO JR Vator: © senhor esteve com ela Zancaner: Sim, conversei com ela, Sinto que 2 maioria do setor, mesmo com os problemas com 0 MST, tem afinidade com a ministra e um didlogo ‘muito bom. © governador Serra ¢ mais fechado, nao temos didlogo com le. [u] 2. Reivindicagéo de protegio frente ao capital estrangeiro Zancaner: governo, por exemplo, se preocupa com a desnacionaliza- «0 do setor, 0 que ¢ importante para nés. Nessa questi & importante ter quill, & interessante 0 capital estangeiro vir porque melhora 0 prego dos nossos ativos.E nds precisamos desse capital. Mas precisa ter equilibrio. © custo de capital dels & muito menor por causa dos juros que eles encon- tram fora Valor: A ministra Dilma defende o fortalecimento dos grupos nacio- nais do setor de etanol. Qual seria a maneira de fazer isso aléim de aumnentar a oferta de financiamento? Zancaner: Por que a Petrobras nio pode participar dos grupos nacio- naist © governo devers fortalecere tem condigdo de dar sustentagSo 20s grupos nacionais para dar equlibrio so capital nacional, Hoje, 0 capital es- ‘angeiro ji tem 25% de tode a produgio de cana do Brasil. Valor: Como poderia ser essa participagdo de Petrobrast Zancaner: A Petrobras tem mais chance de entrar na producao de eta- rola usina, A empresa jé fez contratos de exportegdo com o Japéo,jé tem catrutura de disteibuigio, Essa entrevista é significativa porque ¢ clara, toca em diversos pontos importantes, traz uma avaliagdo geral (¢ positiva) do governo Lula e por explicitar que esse setor da grande burguesia interna man- tém distancia do PSDB. Mas nfo se trata de declaragéo excepcional. 0s usineiros do agiicar do Alcool do interior do estado de Séo Paulo, que sto responséveis pela maior parte da produgio do pais, e © governo Lula foram prédigos em demonstragdes de reconheci- mento politico reciproco que apareceram iniimeras vezes na im- prensa didtia. 88 REFORMA E GRISE POLITICA NO BRASIL Entre a grande burguesia interna e 0 governo Lula ha reconhe- cimento politico reeiproco e canais de comunicagio eficientes. O governo atendeu a interesses importantes da grande inchistria, do agronegécio e de toda a burguesia interna, justamente por isso, pode contar com ela quando se viu em dificuldades. AS CONTRADIGOES NO SEIO DA BURGUESIA INTERNA E NA FRENTE NEODESENVOLVIMENTISTA A ideia segundo a qual o agronegécio apoia o governo Lula pode no ter convencido o leitor. Os proprietérios de terra temem a agéo do MST ¢ 0 governo Lula é no entendimento deles, complacente com esse movimento social; os grandes proprietérios desejam rever ‘0 Cédigo Florestal, a fim de aumentar a érea agricultivel do pais, mas 0 governo Lula, no entendimento deles, cria dificuldades tam- ‘bém nessa dea; os grandes proprietérios ainda hostilizam o governo Lala pela sua politica de concessao de terras aos povos indigenas eas opulagées remanescentes de quilombos; Katia Abreu, senadora do Democratas ¢ presidente da Confederacéo Nacional da Agricultura (CNA), fax oposicéo cerrada a0 governo no Congresso Nacional. O «que ocorre & que nem todos os setores que compéem 0 agronegécio, apoiam 0 governo Lula. Se, apesar disso, afirmamos, genericamente, que 0 agronegécio apoia o governo & porque o segmento superior € mais poderoso do setor tem os seus interesses contemplados pela, politica governamental. © agronegécio ¢ um setor amplo, heterogéneo e composto por segmentos que possuem poder econdmico elucratividade muito de- sigual. As fungSes ativas no agronegécio sao a propriedade da terra, a produgio agricola ou pecuéria, a comercializacdo do produto, @ intermediacdo financeira e a prépria indistria de processamento ~ ‘um dos departamentos importantes da iesp cuida do agronegécio. 89 ARMANDO BOITO JR. (Os representantes das imimeras associagdes vinculadas aos diversos segmentos ¢ culturas do agronegécio costumam dizer que este til- timo esté segmentado a montante ¢ a jusante da fazenda, situa-se “antes da porteira’, “da porteira pra dentro” ¢ “depois da porteira Nessa corrente, a propriedade da terra, que tanto peso tem na estru- tura econémica e social brasileira, é, no plano politico, o elo mais fraco. Hi os grandes grupos econémicos multifuncionais, que inves- tem em todas as etapas desse ciclo de valorizagao do capital, ¢ hd, também, empresas ou grupos familiares que se especializam em cada uma dessas fungdes. A grande maioria de proprietirios de terra 6 composta por fornecedores de cana, de laranja, de soja, de carne ‘ovina, de pescado, de café ou de algodio paraa agroindistria e para 0s frigorificos. Esses tiltimos tém condigdes de impor pregos, exti- sgéncias para financiamento e para 0 plantio, © apoio econdmico do governo Lula para que a brasileira Friboi se tornasse, em poucos anos, a maior empresa mundial na produgao ena comercializagao de carne bovina nao foi um negécio muito vantajoso para os criadores de gado da regio Centro-Oeste do pais. A grande imprensa tem pu- Dlicado reportagens nas quais as associades de criadores lamentam © monopsonio que a Friboi passou a exercer no mercado de boi gordo na regtio. Periodicamente, os proprietérios de terra mobili- zam-se pata obter a rolagem das dividas que tém com o sistema ban- chrio, Os poucos e grandes frigorificos, as processadoras de suco, as ‘usinas e os bancos esto nas maos de grupos economicamente muito mais poderosos que os proprietarios de terra, ¢ 0s scus interesses no coincidem, exatamente, com os interesses desses tltimos.” S40 os © Bruno, 2009. © Yer o interessante trabalho de Denise Blias sobre o agronegécio na regiéo de Ribeitdo Preto (Eliss, 2003). Bssa divisdo do capital fundirio, industrial, co- mercial ¢ bancério na produgio agropecuéria nio € novidade no Brasil. Bla atvavessa toda a histéria da Replica, Vera esse respeitoo trabalho de Sérgio Silva sobre economia caeeia (Siva, 1976). 90 [REFORMA B CRISE POLITICA NO BRASIL segmentos mais poderosos do agronegécio que apoiam o governo € {que nés estamos incluindo na grande burguesia interna, A grande burguesia interna e, mais ainda, a frente neodesenvol- vvimentista apresentam intimeras contradigbes. Trata-se de forgas ¢ de segmentos que se uniram, mas néo se fundiram. A dificuldade ‘que o analista enfrenta aqui éa de distinguis, de um lado, os contflitos entre as partes integrantes da frente ¢ as cciticas que uma ou outra dessas partes pode dirigir 20 governo, mas que séo confltos e criti- cas que se mantém, apesar de tudo, nos limites da frente neodesen- volvimentista, ¢, de outro lado, os conflitose as criticas que extrapo lam os limites dessa frente e que podem levar a uma mudanga de posicionamento deste ou daquele segmento ou forga no processo politico nacional. Vamos apresentar alguns elementos pata refletir sobre essa matéria ‘Comecemos pelas contradigdes existentes no proprio interior da grande burguesia interna, [A primeira contradigao que salta aos clhos € aquela que opbe @ grande indiistria ao sistema bancatio nacional. Trata-se de dois seto- res que exigem protecio do Estado diante Co capital estrangeiro ~ os bancos querem o controle administrativo co Estado sobre a entrada de capital estrangeiro no setor ¢ a grande industria quer protegio para 0s seus produtos no mercado interno, preferéncia nas compras piiblicas para as empresas nacionais, crédito barato do BNDES ¢ po- litica externa a servigo das suas exportagdes, Sao dois setores unidos em torno do objetivo de preservar a participacdo dos grupos brasi- Ieiros na economia do pais. Porém, se ha um tema que mobiliza com frequéncia as criticas da Revista da Indiistria a0 governo Lula, esse tema é a politica de juros do Banco Central, A grande indiistria cri- tica a taxa bisica de juros elevada, que aumrenta 0 gasto piblico dif cultando a expansio € a melhoria dos servigos de infraestrutura, Critica também a liberdade dos bancos para fixar 0 spread bancério, es ARMANDO BOITO TR. aumentando 0s custos do tomador de empréstimo.® A solucéo en- contrada pelo governo Lula para tratar essa contradicio foi a expan- sio do orsamento do BNDES, que quase quadruplicou sob a sua gestio, ea multiplicagio dos programas de crédito subsidiado para a grande indiistria e para 0 agronegécio. Ontra contradigdo op6e a grande indistria ¢ 0 agronegécio. Ela aparece na politica de comércio exterior, Na chamada Rodada Doha, ‘0 agronegécio privilegiava seu objetivo maior: ter seu acesso aos :mercados dos Estados Unidos e da Europa faclitado. Para tanto,eao contrério do que pretendia a grande indistria, apoiaria concessbes pesadas do governo brasileiro no que respeita a uma nova rodada de abertura do mercado interno para os manufaturados estrangeiros. Por ultimo, temos a contradigao entre o capital estatal e 0 capital privado. Essa contradico nfo exclui uma relagéo, simultines, de unidade, As grandes empresas privadas nacionais tém as empresas estatals como s6cias, compradoras, fornecedoras e financiadoras de seus empreendimentos. Porém, a delimitacao da parte da produgéo edo mercado que cabe a cada segmento, o privado e o estatal, émo- tivo de disputa no interior da burguesia interna, Dentro do governo Ila, refletindo essa contradigao, temos uma ala mais estatizante que dispata espaco politico com outra mais privatista. A demissio de Carlos Lessa da presidéncia do BNDES no primeiro governo Lula foi ‘uma vitéria da ala privatista sobre a ala estatizante desse govern. Mais recentemente, foi a ala privatista que formulou a politica de “Uma das multas reportagens da Revista da Indsriaespectalmente dedicadas a ‘ees matéria observa que o gasto do governo com pagamento dos juros da di- vida public atingre no ano de 2006 a cast dos 160 bilhoes de resis, ou seja, 76% do PIB daqusle ano, enquanto 0 gasto com investimento teria aleangado apenas 0,6% do PIB. Muitos estudiosos observam que a grande indstris tam- bém iaveste em tiulos da dlvida pblica. Porém, a julgar pelos balangos finan- cziros que os bancos publicam na grande imprensa, so eles, endo os indus- {rlals os principais detentores desses titulos. ” REFORMA E CRISE POLITICA NO BRASIL consolidacio e de cria¢do de grandes empresas privadas brasileiras ~ 08 “campedes nacionais” ~ nos mais diferentes segmentos da eco- nomia para disputar posi¢o no mercado mundial. Ihustrativo foi proceso de formulacao da politica de universalizagéo da banda larga. O resultado, nesse caso, parece ter sido um compromisso, re- presentado por uma divisio de trabalho entre a Eletrobras, que est sendo recuperada e reativada pelo governo, e a empresa privada Oi. Contradigdes opdem, também, o conjunto da grande burguesia interna e 0 movimento operirio ¢ popular. Dois elementos impor: tantes aqui sdo 0 gasto puilico com a populagio trabalhadora e ‘questo agraria, A edigao da Revista da Indistria que comemorou a queda de Antonio Palocci ea ascensio de Guido Martega chegou a apresentar ‘uma critica ao novo ministro. A reportagem da revista referiu-se @ certo mal-estar que Mantega provocara “[..J no dia de sua posse, em 29 de marco, 20 descartar a adogio de um plano fiscal de longo pra- 20, como defendiam Palocci e Paulo Bernatdes, ministro do Plane- jamento® Paulo Skaf, presidente da Fiesp, afirmava que Mantega “nao relaxard a politica fiscal de forma ircesponsdvel’® o que era ‘uma maneira de, ao mesmo tempo, apoiar 6 ministro e fazer pressio sobre ele. Transcrevo os dois tiltimos parégcafos da reportagem. Empresdrios e economistas temem a deterioragao das contas piblicas, ‘uma ver que 0 superévitjécaiu de 5.15% em outubro de 2005 para 438% em fevereito [de 2006]. E medidas como o aumento real de 15% para os apo- sentados a partir de abril ajudam a reforcar a percepgio de que os gastos piiblicos podem estar fugindo do controle. “© ‘Revista da Insta, w 17, abril-mato de 2006, p23. & der, . 34 ® “Novo comando, novas madancas possives dem, p25. ey ARMANDO BOTO JR No que diz respeito aos gastos publicos, estamos diante de um. problema complexo na anilise da frente neodesenvolvimentista, A grande burguesia interna reluta em aceitar as pequenas concessdes que 0 governo Lula exige dela para que seja possivel manter a pré- pria frente, Os grandes empresérios querem: juros mais baixos, in- vvestimento estatal em infraestrutura, protego alfandegiria, BNDES 4 seu servigo, diplomacia empresarial ¢ outras benesses, mas rejei- tam a contratagdo de novos funcionérios, reajustes para o funciona- lismo, reajuste do saldrio minimo, o gasto da previdéncia etc. Eo que ja sabemos: querem um Estado enxuto para os trabalhadores e da- divoso para os empresirios. O governo Lula procura manter alguns ganhos marginais para os trabalhadores, mas nio € f ‘0 ponto de equilibrio que evita defeccdes na frente politica que ele representa. Instrutiva a esse respeito é a anteriormente citada matéria “O governo na contraméc’ assinada pela jornalista Laicia Kassai.* B a matéria de capa da revista. Ela traz como ilustragdo uma foto que fala por sis6, A foto mostra quatro pilhas de notas de cem reais dis postas uma ao lado da outra. Trés dessas pilhas so muito grandes. A primeira traz a inscrigao “funcionalismo’, a segunda, “previdencia’,¢ a terceira, “juros’. A quarta pilha é baixinha e mirrada e nela se ve a inscrigo “investimento” Ou seja, 0 governo Lula gastaria muito com 0 saldrio de funcionarios, com a previdéncia e com pagamento de juros, e pouco com investimento, que é 0 que interessaria para a in- distria e pata a produgo, Segundo 2 reportagem, em 2006, a folha salarial do fancionalismo federal teria “levado” Rs 16,3 bilhdes de reais. Na média, um trabalhador do setor pliblico receberia um salé- rio quatro vezes maior que o do trabathador que desempenba fun- «40 equivalente no setor privado. A reportagem critica, inclusive, a 50 governo na contraméo’ Revista da Indistria, n. 130, julho de 2007 p.8-23, 94 REFORMA E ORISE POLETICA NO BRASIL aposentadoria rural ea aposentadoria para idosos carentes, estabele- cidas pela Constituigao de 1988. verdade que denuncia, também, a expansio dos cargos de confianga, preenchidos sem concuts0, 08 s2- lirios de deputados e senadores ea criagao de novos municipios com o ito de prover cargos piiblicos para as chefas politicas locais. Mas a nfase é posta no funcionalismo. Para a Fiesp, até 0 problema dos ju- 108 elevados seria resolvido caso 0 governo cortasse 0 gasto piiblico (voltado para a populagio trabalhadora). O raciocinio é simples. Seo governo cortasse despesas ereduzisse acarga tributéria, as texas de juros cairiam naturalmente ¢ 0 délar se valorizati. Na China, a carga tribu- tira é bem menor que a brasileira, eos investinentos do Bstado, malores. [Newton de Mello, presidente da Associago Brasileira da Indtistria de Ma uinas e Equipamentos (Abimaq).] Em resumo, a Fiesp insiste muito na necessidade de implantar tum arrocho no salério do funcionalismo piiblico e de fazer uma nova e mais radical reforma da previdéncia Outra fonte de instabilidade da frente neodesenvolvimentista sto as contradigdes entre a grande burguesia, particularmente 0 agronegécio, e 0 movimento camponés. Na entrevista citada do ust- neiro Luiz Guilherme Zancaner, podemos ker a seguinte passagem: Valor: © senhor tem diferencas ideolégicascom o atual governo e com a ministra Dilma? Zancaner: Pui fundador da UDR de Aracatuba, em 1988, Sou muito amigo do Ronaldo Caiado, Tenho divergénclas ideolégicas tanto com Lula quanto com a ministra, Tenko divergéncia em rlagéo ao MST, nessa ques tho dos direitos humanos, do ministro Vannuchi, a quem sou muito critic. ‘Acho que nessa questo da anistia, o que passou, passou. Mas se quer revi- 5 bide, 9s ARMANDO BOITO JR. sar a anistia, quem sequestrou, assaltou banco, quem matou também tem {que ser julgado. Tem que ter equidade, Valor: Quer dizer que ese apoio ao governo Lula e& Dilma é uma ques- to pragmatica? Zancaner: Eruma questio pragmatica, do nosso negécio. © governo Lula nao pode, ao mesmo tempo, preservar sua rela- ‘cao politica com o agronegécio e fazer uma reforma agrétia. O go- vverno concebeu uma estratégia para contornar essa contradigao. ‘Aumenton muito o crédito para a agricultara familiar, contemplando 0s interesses dos camponeses com terra e, portanto, os interesses de ‘uma das bases sociais do MST e de outros movimentos camponeses, ‘que € 0 camponés assentado, Porém, a outra base social desses mo- ‘vimentos, que é 0 camponts pobre, sem-terra, essa, 0 governo Lula abandonou ¢, tendo em conta a classe social que tal governo repre- senta, $6 poderia mesmo abandonat. A pergunta que surge aqui, en- tio, € a seguinte: até quando o campesinato pobre permanecerd na frente neodesenvolvimentista? ‘A grande burguesia interna quer, sim, intervencio do Estado na economia, Quer que o Estado intervenha, tanto como investidor, {quanto como facilitador dos investimentos privados (melhoria da infraestrutura, ciéncia e tecnologia, crédito subsidiado etc.). © que grande burguesia tem dificuldade em aceitar so as concessdes ‘que se fazem necesséries para manter a frente com os assalatiados & com o campesinato, frente sem a qual o Estado nfio pode vencer ou contornar as resisténcias politicas que se antepdem 40 neodesen- volvimentismo. Examinando a situagdo, vemos que a possibilidade de uma das, partes abandonar a frente neodesenvolvimentista € real. © PSDB procura atrair a grande burguesia interna sugerindo - ha coisas que no se devem dizer abertamente... ~ que faré uma reducio dréstica dos gastos sociais do Estado e que cortara as asas do movimento 96 camponts; as organizagoes de extrema exquerda procuram fazer ‘com que os sindicatos e o campesinato retirem 0 apoio que dispen- sam 20 governo Lule, Até 0 momento, a uridade da frente prevale- cceu, Porém, nao faltam motivos e argumentos para aqueles que ten~ tam solapé-la REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BOITO jz, Armando. Polities neoliberal e smdicalismo no Brasil. Sto Paulo, Xama, 1999. _—.. “A burguesia no governo Lula’: Critica Marxista, n. 23, Rio de Ja- neiro, Revan, 2005. BRUNO, Regina. Um Brasil ambivalente. Agronegdcio, ruralismo e relacées de poder. Rio de Janeiro, Edit, 2008. 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