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GRANDES NOMES DO PENSAMENTO BRASILEIRO Joaquim Nabuco O Abolicionismo Sob licenga de XV. Influéncias sociais e politicas da escravidio “Nao é somente como instrumento produtivo que « eseraviddo & apreciada pelos que a sustentam. f ainda mais pelos seus resultados politicos e sociadts, como o meio de mancer uma forma de sociedade na qual os senhores de escravos sco os tinicos depositarios do prestigio social e poder politico, como a pedra angular de um edificio do qual eles sao os donos, que esse sistema é estimacdo, Aboli a escravidao ¢ introdusireis uma nova ordem de coisas.” Professor Ca Dz=P4 AGAO que vimos do regime servil, sobre 0 territério ¢ a populaedo, os seus efeitos sociais e politicos sio meras conseqiiéncias. Um governo livre, edificado sobre a eseravidao, seria virgem na histéria, Os governos antigos néo foram baseados sobre os mesmos alicerces da liberdade int dual que os modernos, e representam uma ordem social muito diversa, 86 houve um grande fato de democracia combinada com a escravidao, depois da Revolugiio Francesa — os Estados Uni- dos; mas os estados do Sul nunca foram governos livres. A liber- dade americana, tomada a Unitio como um todo, data, verdadei- ramente, da proclamagio de Lincoln que declarou livres os milhdes de escravos do Sul. Longe de serem patses livres, os estados ao sul do Potomac eram sociedades organizadas sobre a violagao de todos os direitos da humanidade. Os estadistas americanos, como Henry Clay e Calhoun, que transigiram ou se identificaram com a eseravidao, nao calcularam a forga do antagonismo que devia, mais tarde, revelar-se tio formidavel. O que acontecets — a rebelidio na qual 0 Sul foi salvo pelo brago do Norte do suicfdio que ia cometer, separando-se da Unido para formar uma poténcia escravagista, ¢ 0 modo pelo qual ela foi esmagada — prova que nos Estados Unidos a escravidiio nio afetara a constituigto social toda, como entre né: a parte superior do organismo intacta, ¢ forte ainda bastante para curvar a parte até entio dirigente A sua vontade, apesar de toda a sua cumplicidade com essa. Entre nés, ndo hé linha alguma diviséria. Nao ha uma segiio do pais que seja diversa da outra, O contato foi sinénimo de contigio. A circulagio geral, desde as grandes artérias até aos -12- vasos capilares, serve de canal As mesmas it todo — sangue, elementos constitutivos, respi isculos e nervos, Jeni o temperame’ se trata, so de uma instie mero de 2 por funcao social trabalhar para os cidadai sociedade nao s6 baseadla, como era a civilizagio antiga, sobre a esoravidio, e permeada em todas as classes por cla, mas tam- bém constitufda, na sua maior parte, de seoregdes daquele vas- to aparelho. Com a linha divis6ria da cor, assim era, por exemplo, nos estados do Sul da Unido. Os escravos e os seus descendentes niio faziam parte da sociedade. A escravidio unidades eriadas por esse proceso. A emenda constitucion: alterando tudo isso, incorporou os negros na comu mostrou como silo transitérias as divisées que impedem attificialmente ou ragas ou classes de tomar o seu nivel natural. Mas, enquanto d nemios escravos nem 0s seus descendentes livres concor .alguma, para a Geérgia viram, de repente, todas as altas entregues a esses mesmos es mente falando, maté » Por iss0, 86 po ica para instrumentos jeipios severos de educagio —, contiriua a ser o estado das lagdes entre os dois grandes elementos de populagio dos estados do Sul, ~122- No Brasil deu-se exatamente o contrério. A escravidio, ainda que fundada sobre a diferenga das duas ragas, nunca de- senvolveu a prevengao da cor, ¢ nisso foi infinitamente mais habil. Os contatos entre aquelas, desde a colonizagio primitiva dos do- natdrios até hoje, produziram uma populagéo mestiga, com ‘vimos, ¢ 08 esoravos, ao receberem a stia carta de alforria, rece- iam também a investi entre nés, castas sociais perpétuas, do fixa de classes. O esoravo, que, como tal, praticamente, néo ewiste para a so- ciedade, porque o senhor pode niio o ter matriculado e, se 0 matriculou, pode subs ca, desde que niio ha inspegio do Estado nas fazendas, nem os senhores 840 obrigados a dar contas dos seus escravos as tos politicos, eo mesmo, a de clegi ainda na penumbra do e: sabe? — algu limitada dos cruzamentos es, que fazem da maioria dos cidadiios iros, se se pode assim dizer, mestigos politicos, nos quai se combatem duas naturezas opostas: a do senhor de nascimento ea do esoravo domesticado. Acscravidio, entre n6s, manteve-se aberta e estendeu os famente: brancos ou pretos, inge- u, a0 mesmo tempo, uma forca lade incomparavelmente maior , dessa forma, adqu na clas estados do Sul. Esse sistema de igualdade absoluta abriu, por certo, um melhor futuro a raga negra, do que era o seu horizor América do Norte. Macaulay disse na Camara dos Comuns em 1845, ano do bill Aberdeen: “Eu nao julgo improvavel que a opulacao preta do Brasil seja livre e feliz dentro de oitenta ou ‘cemt anos. Nilo vejo porém perspectiva razodvel de igual mudanga nos Estados Unidos.” Essa intuigdo da felicidade relativa da raga nos dois pafses parece hoje ser tio certa quanto provou ser errada a suposigao de que os Estados Unidos tardariam mais do que nés ‘aemancipar os seus escravos. O que enganou, nesse caso, o grande ‘orador ingles foi o preconceito da cor, que se Ihe figurou ser uma forga politica e social para a escravidio, quando, pelo contrario, 12- a forea desta consiste em banir tal preconceito e em abrir a insti- tuigtio a todas as classes. Mas, por isso mesmo, entre nds, 0 caos étnico fol o mais gigantesco possivel, e a confusio reinante nas regides em que se esta elaborando, com todos esses elementos heterogéneos, a unidade nacional faz pensar na soberba desordem dos mundos incandescent Atenas, Roma, a Virginia, por exemplo, foram, tomando uma comparagio quimica, simples misturas nas quais os diversos elementos guardavam as suas propriedades particulares; o Brasil, porém, é um composto, do qual a escravidio representa a afinidade causal. O problema que nés queremos resolver & 0 de fazer desse ‘composto de senhor e escravo um cidadiio. O dos estados do Sul foi muito diverso, porque essas duas espécies nao se misturaram. Entre nés a escravidio nio exerceu toda a sua influéncia apenas abaixo da linha romana da libertas; exere ibém, dentro e acima da esfera da civitas; nivelou, excecio feita dos escravos, que vivem sempre nos subterrdneos socials, todas as classes; mas nivelou-as degradando-as. Daf a di {fluéncia, de descobrir um ponto qualquer, ou na {ndole do povo, ou na face do pais, ou mesmo nas alturas mais distantes das em- anagSes das senzalas, sobre que, de alguma forma, aquela afinidade niio atuasse, e que no deva ser inclufda na sintese nacional da escraviddo. Vejam-se as diversas classes sociais. Todas elas apresentam sintomas de desenvolvimento ou retardado ou impedido, ou, o que é ainda pior, de crescimento prematuro ai ficial. Estudem-se as diversas forgas, ou que mantém a heredita- riedade nacional ou que Ihe dirigem a evolugio, e ver-se-4 que as conhecidas se esto todas enfraquecendo, ¢ que tanto a conser- vagio, como 0 progtesso do pais sio problemas atualmente insoltiveis, dos quais a escravidio, e s6 ela, € a inc6gnita. Isso tudo, tenho apenas espaco para apontar, nfo para demonstrar. Uma classe importante, cujo desenvolvimento se acha impedido pela escravidio, é a dos lavradores que nao sfio pro- prietarios, e, em geral, dos moradores do campo ou do sertiio. ‘J4 vimos a que se acha, infelizmente, reduzida essa classe, que forma a quase totalidade da nossa populagdo. Sem independén- cla de ordem alguma, vivendo ao azar do capricho all palavras da oragao dominical: O pao nosso de cada a e real. trata de operdrios, que, expulsos de uma fabrica, achem lugar em outra; nem de familias que possam e1 Ieiros que vao 20 mercado de trabalho oferecer os seus servigos; m124- trata-se de uma populacdo sem meios, nem recurso algum, ensi- nada a considerar 0 trabalho como uma ocupagio ser onde vender os seus produtos, longe da regido do salatio — se existe esse Eldorado, em nosso pais — ¢ que por isso tem que resignar-se a viver e criar os fills, nas condigdes de dependén- cia e miséria em que se Ihe consente vegetar. Esta € a pintura que, com verdadeiro sentimento huma- no, fez de uma porgio, is feliz, dessa classe, um senhor de ‘engenho, no Congresso Agricola do Recife em 1878: plantador nao fabricante leva vida prec trabalho nio ¢ remunerado, seus bri peitados; seus interesses ficam rato escrito, que obrigue as partes interessadas; tudo tem base na vontade absoluta do fabricante. Em troca de habitagio, muitas vezes pés- sima, e de algum terreno que lhe 6 dado para planta- ‘Bes de mandioca, que devem ser limitadas, e feitas em terreno sempre o menos produtivo; em troca dis- to, parte o parceiro todo o agticar de suas canas em fabricante cachaga delas rico do agticar, todos os olhos das ca jento para o seu gado, B uma part Jeonina, tanto mais injusta quanto todas as despesas da plantaglo, trato da lavoura, corte, arranjo das canas e seu transporte a Lab ‘mente pelo plantador meeiro. A parte os sentimentos dos que so eqiiitativos ¢ fenerosos, 0 pobre plantador de canas da classe a Essa é ainda uma classe favorecida, a dos lavradores meeiros, abaixo da qual hit outras que nada tém de seu, mora- dores que nada tém para vender ao proprietério, e que levam uma existéncia ndmade e segregada de todas as obrigagdes como fora de toda a protego do Estado, ns- ‘Tomem-se outras classes, cujo desenvolvimento se acha retardado pela escravidio, as classes operdrias e industriais, ¢, em geral, 0 comércio, Acsoravidio nao consente, em parte alguma, classes ope- rérias propriamente ditas, nem € compativel com o regime do saldrio e a dignidade pessoal do artifice. Este mesmo, para niio ficar debaixo do estigma social que cla imprime nos seus traba- Ihadores, procura assinalar o intervalo que o separa do escravo, ¢ imbui-se assim de um sentimento de superioridade, que 6 apenas baixeza de alma, em quem saiu da condigio servil, ou esteve nela por seus pais. Além disso, nfo hf classes operdrias fortes, respeitadas, ¢ inteligentes, onde os que empregam traba- Iho estdo habituados a mandar escravos. Também os operdirios no exercem entre nés a minima influéncia politica? Bscravidio e inddistria sao termos que se exclufram sem- pre, como escravidao e colonizagio. O espfrito da primeira, es- palhando-se por um pafs, mata cada uma das faculdades huma- nas, de que provém a indtistria: a iniciativa, a invengio, a energia individual; e cada um dos elementos de que ela precisa: a associago de capitais, a abundancia de trabalho, a educagao técnica dos operdirios, a confianga no futuro. No Brasil, a indtis- tria agricola é a tinica que tem florescido em mios de nacio- nais, O comércio s6 tem prosperado nas de estrangeiros. Mesmo assim, veja-se qual 6 0 estado da lavoura, como adiante o des- revo. Est4, pois, singularmente retardado em nosso pais 0 pe- riodo industrial, no qual vamos apenas agora entrando. grande comércio nacional nao dispée de capitais com- Pardvels aos do comércio estrangeiro, tanto de exportagio como de importagio, ao passo que o comércio a retalho, em toda a sua porgio florescente, com vida prépria, por assim dizer consolida- da, € praticamente monopélio de estrangeiros. Esse fato provocou, por diversas vezes em nossa histéria, manifestagdes populares, com a bandeira da nacionalizagao do comércio a retalho. Mas, tal grito caracteriza o espfrito de exclusivismo e 6dio & concorréncia, por mais legitima que seja, em que a escra- vidio educot 0 nosso povo, e, em mais de um lugar, foi acom- panhado de sublevagdes do mesmo espftito atuando em outra diregao, isto 6, do fanatismo religioso. Nao sabiam os que sustentavam aquele programa do fecharaento dos portos do Brasil, e da anulagio de todo o progresso que temos feito desde 1808, que, se tirassem 0 comércio a retalho aos estrangetros, no o passariam para os nacionais, mas simplesmente o reduzi- 126 riam a uma carestia de géneros permanente — porque é a escra- vido, ¢ no a nacionalidade, que impede o comércio a retalho de ser em grande parte brasileiro, Em relagdo ao comércio, a escraviddo procede desta forma: fecha-lhe, por desconfianga ¢ rotina, o interior, isto tudo 0 que ndo é a capital da provincia; exceto em Santos ¢ Campinas, em Sao Paulo; Petrépolis e Campos, no Rio de Janeiro; Pelotas, no Rio Grande do Sul; e alguma outra cidade mais, no hh casas de negécio senio nas capitais, onde se encontre mais do que um pequeno fornecimento de artigos necessérios a vida, esses mesmos ou grosseiros ou falsificados. Assim como nada se vé que revele o progresso intelectual dos habitantes — nem li- vrarias, nem jornais — nao se encontra 0 comércio, senao na antiga forma rudimentar, indivisa ainda, da venda-bazar. Por isso, ‘0 que nao vai diretamente da Corte, como encomenda, s6 chega a0 consumidor pelo mascate, cuja hist6ria ¢ a da civilizagaio do nosso interior todo, € que, de fato, é o pioneer do comércio, ¢ representa os limites em que a escravidio é compativel com a permuta local. O comércio, entretanto, é 0 manancial da escra- vidio, e 0 set banqueiro. Na geragao passada, em toda a parte, ele a alimentou de alricanos bogais ou ladinos; muitas das pro- lades agricolas cafram em miios de fornecedlores de escravos; as fortunas realizadas pelo trafico (para o qual a moe-da falsa teve por vezes grande afinidade) foram, na parte nfo exportada, nem convertida em pedra e cal, empregadas em auxiliar a lavoura pela usura. Na atual geragio, o vinculo entre 0 comércio ¢ a escravido no é assim desonroso para aquele; mas a dependéncia muitua continua a ser a mesma. Os principais fregueses do ‘coméreio silo proprietirios de eseravos, exatamente como os leaders da classe; 0 café é sempre rei nas pragas do Rio e de Santos, e 0 comércio, faltando a inddstria ¢ o trabalho livre, nZio pode servir sendo para agente da escravidio, comprando-Ihe tudo ‘9 que ela oferece e vendendo-Ihe tudo de que ela precisa. Por isso também no Brasil ele niio se desenvolve, niio abre horizontes mas € uma forga inativa, sem estimulos, e cOnscia de que é, apenas, um prolongamento da escravidio, ou antes 0 mecanismo pelo qual a carne humana é convertida em ouro ¢ circula, dentro e fora do pais, sob a forma de letras de edmbio, Ele sabe que, se a escravidio o receia, como receia todos os con- dutores do progresso, seja este a loja do negociante, a estagao da estrada de ferro, ow a escola priméria, também precisa dele, como Por certo nao precisa, nem quer saber, desta iiltima, e trata de n127- viver com ela nos melhores termos possiveis. Mas, com a es- cravidao, o comércio sera sempre o servo de uma classe, sem a independéncia de um agente nacional; ele nunea hé de florescer num regime que nao Ihe consente entrar em relagdes diretas com os consumidores, e niio eleva a populagiio do interior a essa categoria, Das classes que esse sistema fez crescer artificialmente a mais numerosa 6 a dos empregados publicos. A estreita relagdo entre a eseravidao e a epidemia do funcionalismo nao pode ser mais contestada que a relagio entre ela e a superstigéio do Bs- tado-providéncia. Assim como, nesse regime, tudo se espera do Bstado, que, sendo a tinica associagao ativa, aspira ¢ absor- ve pelo imposto e pelo empréstimo todo o capital disponivel ¢ distribui-o, entre os seus clientes, pelo emprego ptiblico, su- gando as economias do pobre pelo curso forgado, e tornando precdria a fortuna do rico; assim também, como conseqiiéncia, 0 funcionalismo ¢ a profissio nobre e a vocagio de todos. To- mem-se, a0 acaso, vinte ou trinta brasileiros em qualquer lugar onde se retina a nossa sociedade mais culta; todos eles ou fo- ram ot so, ou ho de ser, empregados ptiblicos; se ndo eles, seus filhos. funcionalismo é, como j4 vimos, 0 asilo dos descen- dentes das antigas familias ricas ¢ fidalgas, que desbarataram as fortunas realizadas pela escravidao, fortunas a respeito das quais pode dizer-se, em regra, como se diz das fortunas feitas no jogo, que nao medram, nem dao felicidade. além disso 0 viveiro politico, porque abriga todos os pobres inteligentes, todos os que tém ambigdo e capacidade, mas nao tém meios, e que sio a grande maioria dos nossos homens de merecimento. Faga-se uma lista dos nossos estadistas pobres, de primeira e segunda ordem, que resolveram o seu problema individual pelo casamento rico, isto 6, na maior parte dos casos, tornando-se humildes clientes da esoravidao; ¢ outra dos que o resolveram pela acumulagio de cargos puiblicos, e ter-se-do, nessas duas listas, os nomes de quase todos eles. Isso significa que o pafs esté fechado em todas as diregdes; que muitas avenidas que poderiam oferecer um meio de vida a homens de talento, mas sem qualidades mercantis, como aliteratura, a ciéneia, a imprensa, o magistério, niio passam ainda de vielas, e outras, em que homens priticos, de tendéncias industriais, poderiam prosperar, sio por falta de crédito, ou pela estreiteza do coméreio, on pela estrutura rudimentar da nossa vida econdmica, outras tantas portas muradas. =125- Nessas condigdes oferecem-se a0 brasileiro que comega diversos caminhos, os quais conduzem todos ao emprego paibli- co. As profissdes chamadas independentes, mas que dependem em grande escala do favor da escravidio, como a advocacia, a medicina, a engenharia, tem pontos de contato importantes com © funcionalismo, como sejam os cargos politicos, as academias, as obras puiblicas, Além desses, que recolhem por assim dizer as, migalhas do orgamento, hé outros, negociantes, capitalistas, individuos inclassificaveis, que querem contratos, subvengdes do Estado, garantias de juro, empreitadas de obras, fornecimen- tos piiblicos. Acclasse dos que assim vivem com os olhos voltados para ‘a munificéneia do governo é extremamente numerosa, e direta- mente filha da eseravidio, porque ela no consente outra car- reira aos brasileiros, havendo abarcado a terra, degradado o tra- balho, corrompido o sentimento de altivez, pessoal em desprezo por quem trabalha em posigao inferior a outro, ou nao faz traba- Thar. Como a necessidade ¢ irresistivel, essa fome de emprego pablico determina uma progressao constante do nosso orgamen- to, que a nagio, nio podendo pagar com a sua renda, paga com © proprio capital necessfrio A sua subsisténcia, e que, mesmo assim, 86 ¢ afinal equilibrado por novas dfvidas. ‘Além de ser artificial e prematuro, o atual desenvolvi mento da classe dos remunerados pelo Tesouro, sendo, como é a cifra da despesa nacional, superior As nossas forgas, a escravidio, fechando todas as outras avenidas, como vimos, da inddstria, do coméroio, da ciéncia, das letras, criou em torno desse exército ativo uma reserva de pretendentes, cujo mimero realmente nao se pode contar, e que, com excegaio dos que estiio consumindo, ociosamente, as fortunas que herdaram e dos que esto explo- rando a escravidto com a alma do proprietirio de homens, pode calcular-se, quase exatamente, pelo recenseamento dos que sabem ler e escrever. Num tempo em que o servilismo ¢ a adula- gio so a escada pela qual se sobe, e a independéncia e o carder a escada pela qual se desce; em que a inveja 6 uma paixio dominante; em que nao ha outras regras de promogao, nem pro- vas de suficténcia, sentio 0 empenho e 0 patronato; quando ninguém, que nao se faga lembrar, é chamado para coisa alguma, € a injustica é ressentida apenas pelo préprio ofendido: os em- pregados pttblicos sto os servos da gleba do governo; vivem com suas familias em terras do Estado, sujeitos a uma evicgiio sem aviso, que equivale A fome, numa dependéncia da qual s6 para =129- 08 fortes nao resulta a quebra do cardter. Em cada um dos sintomas caracteristicos da séria hipertrofia do funcionalismo, como ela se apresenta no Brasil, quem tenha estudado a eseravidao reconhece logo um dos seus efeitos. Podemos nds, porém, ter a consolagao de que abatendo as diversas profiss6e: reduzindo a nagio ao proletariado, a escravidao todavia cons guiu fazer dos senhores, da lavoura, uma classe superior, pelo menos rica, e, mais do que isso, educada, patristica, digna de representar o pais intelectual e moralmente? Quanto a riqueza, j& vimos que a escravidio arruinou uma geragiio de agricultores, que ela mesma substituiu pelos que Ihes forneciam os escravos, De 1853 a 1857, quando se dev estar liquidando as obrigagdes do trilico, a divida hipotecdria da Corte ¢ provincia do Rio de Janeiro subia a sessenta e sete mil contos. A atual geragiio ndo tem sido mais feliz. Grande parte dos seus lucros foram convertidos em carne lnimana, a alto prego, €, se hoje uma epidemia devastasse os cafezeiros, o capital que a lavoura toda do Império poderia apurar para novas culturas havia de espantar os que a reputam florescente. Além disso, hd quinze anos que no se fala sendo em auxitios & lavoura. Tem a data de 1868 um optisculo do sr. Quintino Bocaitiva, A crise da lavoura, em que esse notavel jornalista escrevia: A lavoura nai se pode restaurar sentlo pelo efeito si- multaneo de dois socorros que nao podem ser mais demorados — 0 da instituigao do orédito agricola 0 da aquisigdo de bragos produtores. primeiro socorro era “uma vasta emissio” sobre a proprieda- de predial do Império, que assim seria convertida em moeda corrente; 0 segundo era a colonizagio chinesa. Ha quinze anos que se nos descreve de todos os lados a Javoura como estando em crise, necessitada de ausflios, agoni- zante, em bancarrota préxima. O Estado é, todos os dias, de- nunciado por nao fazer empréstimos ¢ aumentar os impostos pata habilitar 0s fazendeiros a comprar ainda mais escravos. Em 1875 uma lei, a de 6 de novembro, autorizou 0 governo a dar a garantia nacional ao banco estrangeiro— nenhum outro poderia emitir na Buropa — que emprestasse dinheiro a lavoura mais barato do que o mercado monetério interno. Para terem fabri- as centrais de agiicar, e melhorarem o seu produto, os senhores de engenho precisaram que a nagio as levantasse sob a sua responsabilidade. O mesmo tem-se pedido para o café. Assim =190- ‘como dinheiro a juro barato ¢ engenhos centrais, a chamada grande propriedade exige fretes de estrada de ferro 2 sua conveniéncia, exposigdes oficiais de café, dispensa de todo e qualquer imposto direto, imigragao asitica, ¢ uma lei de loca- ‘fio de servigos que faga do colono, alemio, ow inglés, ou ita- iano, tm escravo branco. Mesmo a populagio nacional tem que ser sujeita a um novo recrutamento agricola,” para satisfazer diversos Clubs, e, mais que tudo, 0 cfimbio, por uma faléncia econémica, tem que ser conservado tio baixo quanto possivel, para o café, que € pago em ouro, valer mais papel. ‘Também a horrivel usura de que é vitima a lavoura em diversas provincias, sobretudo no Norte, é a melhor prova do mau sistema que a eseravidio fundou, e do qual duas carac- teristicas principais — a extravagincia ¢ 0 provisdrio — sio incompatfveis com o orédito agricola que ela reclama. “A taxa dos juros dos empréstimos a lavoura pelos seus corresponden- tes" € 0 extrato oficial das informag6es prestadas pelas presi- déncias de provincia em 1874, “regula em algumas provincias de 7 a 17%; em outras sobe de 18 a 24%", e “ha exemplo de se cobrar a de 48 ¢ 72 anualmente!” Como nao se pretende que a lavoura renda mais de 10%, ¢ toda ela precisa de capitais a juro, essa taxa quer simplesmente dizer — a bancarrota. Nao 6, por certo, essa a classe que se pode descrever em estado préspero ¢ florescente, e que se pode chamar rica. Quanto as suas fungdes sociais, uma aristocracia territorial pode servir ao pais de diversos modos: melhorando ¢ desenvolvendo o bem-estar da populagdo que a cerca e 0 aspecto do pafs em que estdo encravados os seus estabe- lecimentos; tomando a diregio do progresso nacional; cul- tivando, ou protegendo, as letras ¢ as artes; servindo no exéreito ena armada, ou distinguindo-se nas diversas carreiras; encar- nando 0 que hi de bom no carter nacional, ou as qualidades superiores do pafs, o que merega ser conservado como tradigiio. Ja vimos 0 que a nossa lavoura conseguiu em cada um desses sentidos, quando notamos o que a escravidiio administrada por ela hé feito do territério e do povo, dos senhores ¢ dos escra- vos. Desde que a classe tinica, em proveito da qual ela foi criada e existe, nao € a aristocracia do dinheiro, nem a do nascimento, nem a da inteligencia, nem a do patriotismo, nem a da raga, que papel permanente desempenha no Estado uma aristocra- heterogénea ¢ que nem mesmo mantém a sua identidade por duas geragdes? 1a Se, das diversas classes, passarmos As forgas sociais, vemos quie a escravidao ou as apropriou aos seus interesses, quando transigentes, ou fez em torno delas o vécuo, quando inimigas, ou Ihes impediu a formagiio, quando incompativeis. Entre as que se identificaram, desde o principio, com cla, tornando-se um dos instrumentos das suas pretensdes, estd, por exemplo, a Igreja, No regime da escravidaio doméstica, 0 cris- tianismo cruzou-se com o fetichismo, como se cruzaram as duas rragas. Pela influéncia da ama-de-leite e dos escravos de casa sobre a educagdo da crianga, os terrores materialistas do fetichista convertido, isto é, que mudou de inferno, exercem, sobre a fortificagio do eérebro e a coragem da alma daquelas, a maior depressiio. O que resulta como fé, ¢ sistema religioso, dessa combinagio das tradigdes africanas como o ideal anti-social do missiondrio fandtico, é um composto de contradigdes, que s6 a inconsciéneia pode conciliar. Como a religido, a Igreja. Nem os bispos, nem os vigdrios, nem os confessores, es- tranham 0 mercado de entes humanos; as bulas que o condenam iio hoje obsoletas. Dois dos nossos prelados foram sentenciados prisiio com trabalho, pela guerra que moveram a Magonaria; nenhum deles, porém, aceitou ainda a responsabilidade de descontentar a escravidio. Compreende-se que os exemplos dos profetas, penetrando no palicio dos reis de Juda para exprobar- Ihes os seus crimes, ¢ os sofrimentos dos antigos médrtires pela verdade moral, paregam aos que representam a religiéo entre nés originalidades tao absurdas como a de Sio Simedo Estelita vivendo no tope de uma coluna para estar mais perto de Deus. Mas, se o regime da céngrua e dos emolumentos, mais do que isso, das honras oficiais e do bem-estar, nfio consente esses ras- gos de herofsmo religioso, hoje préprios, tio-somente, de um faquir do Himalaia, apesar desse resfriamento glacial de uma parte da alma de outrora incandescent, a escravidao e o Evan- gelho deviam mesmo hoje ter vergonha de se encontrarem na casa de Jesus ¢ de terem 0 mesmo sacerdécio. : ‘Nem quanto aos casamentos dos escravos, nem por sua educagio moral, tem a Igreja feito coisa alguma. Os monges de Sao Bento forraram os seus escravos ¢ isso produziu entre os panegiristas dos conventos uma explosio de entusiasmo. Quan- do mosteiros possuem rebanhos humanos, quem conhece a his- t6ria das fundagdes mondsticas, os votos dos novigos, o desinte- resse das suas aspiracées, a sua abnegagio pelo mundo, s6 pode admirar-se de que esperem reconhecimento ¢ gratiddo por te- =192- rem deixado de tratar homens como animais, e de explorar mulheres como méquinas de produgao. Se em relagdo as pessoas livres mesmo — oficiou em 1864 a0 governo o cura da freguesia clo Sacramento da Corte — se observa 0 abandono, a indiferenga tinge ao escdindalo em relagiio aos eseravos. Poucos senhores cuidam em proporcionar aos seus escravos em vida os socorros espirituais; raros sto aqueles que ‘cumprem com 0 caridoso dever de Ihes dar os der- radeiros sufrdgios da Igreja. * Grande niimero de padres possuem escravos, sem que 0 celibato clerical 0 profba. Esse contato, ou antes contigio, da eseraviddio deu a religiio, entre nés, 0 cardter materialista que ela tem, destruit-Ihe a face ideal, ¢ tirou-Ihe toda a possibilidade de desempenhar na vida social do pais o papel de uma forea consciente, ‘Tome-se outro elemento de conservagiio que também foi apropriado dessa forma, 0 patriotismo. O trabalho todo dos escravagistas consistiu sempre em identificar 0 Brasil com a es- cravidio. Quem a ataca 6 logo suspeito de conivéneia com o i igGes do seu proprio pais. Atacar a monarquia, sendo o pats monarquico, a religiio sendo © pais catdlico, ¢ Ifeito a todos; atacar, porém, a escravidio, € traigao nacional e felonia, Nos Estados Unidos, “a instituigio particular” por tal forma criou em sua defesa essa confusiio, entre si eo pais, que péde levantar uma bandeira sua contra a de Washington, e produzir, numa loucura transit6ria, um patriotis- mo separatista desde que se sentiu ameagada de cair deixando a patria de pé. Mas, como com todos os elementos morais que avassalou, a escravidiio ao conquistar 0 patriotismo brasileiro fe-lo degenerar. A guerra do Paraguai 6 a melhor prova do que ela fez do patriotismo das classes que a praticavam, ¢ do pa- triotismo dos senhores. Muito poucos desses deixaram os seus eseravos para atender a0 seu pais; muitos alforriaram alguns “ne- gros” para serem cles feitos titulares do Império. Foi nas camadas mais necessitadas da populagao descendente de escravos na maior parte, nessas mesmas que a escravidio condena a depen- déncia © & miséria, entre os proletirios analfabetos cuja eman- cipagio politica ela adiou indefinidamente, que se sentiu bater © coragiio de uma nova patria, Foram elas que produziram os -133- soldados dos batalhdes de voluntirios. Com a escravidao, disse José Bonifacio em 1825, “nunca o Brasil formar, como imperio- samente o deve, um exéreito brioso e uma marinha florescente”, e isso porque com a escravidio, no h4 patriotismo nacional, mas somente patriotismo de casta, ou de raga; isto é, um sent mento que serve para unir todos os membros da sociedade, é explorado para o fim de dividi-los. Para que o patriotismo se purifique, preciso que a imensa massa da populagio livre, mantida em estado de subserviéncia pela escravidiio, atravesse, pelo sentimento da independéncia pessoal, pela convicezio sua forga e do seu poder, o longo estddio que separa o simples nacional — que hipoteca tacitamente, por amor, a sua vida A defesa voluntéria da integridade material e da soberania externa da patria —do cidadao que quer ser uma unidade ativa e pensante na comunhilo a que pertence. Entre as forgas em torno de eujo centro de agiio 0 eserava- gismo fez 0 vacuo, por Ihe serem contrarias, forgas de progresso ¢ transformagdo, est notavelmente a imprensa, niio s6 o jornal, ‘mas também o livro, tudo que diz respeito a educagiio, Por honra do nosso jornalismo, a imprensa tem sido a grande arma de combate contra a escravidao e o instrumento da propagagiio das idéias novas; os esforgos tentados para a criagio de um érgdo ‘negro naufragaram sempre, Ou se insinue timidamente, ott se afirme com energia, o pensamento dominante no jornalismo todo, do Norte ao Sul, é a emancipagaio. Mas, para fazer o vacuo em toro do jornal ¢ do livro, e de tudo o que pudesse amadurecer antes do'tempo a consciéncia abolicionista, a escravidao por instinto procedeu repelindo a escola, a instrugao publica, e man- tendo 0 pais na ignorncia ¢ escuridao, que é 0 meio em que ela pode prosperar. A senzala e a escola siio pélos que se repelem. O que é a educagio nacional num regime interessado na ignorancia de todos, 0 seguinte trecho do notavel parecer do st. Rui Barbosa, relator da Comissio de Instrugtio Pablica da Ca. mara dos Deputados, o mostra bem: Avverdade — e a vossa Comissiio quer ser muito ex- plicita a seu respeito, desagrade a quem desagradar —6 que o ensino piiblico esté a orla do limite possivel ‘uma nagio que se presume livre e civilizada; é que hi decadéncia em vez de progresso; é que somos um povo de analfabetos, e que a massa deles, se decresce, ¢ numa proporgio desesperadamente lenta; é que a instrugiio académica esti infinitamente longe do nivel -134- cientffico desta idade; é que a instrugio secundaria oferece ao ensino superior uma mocidade cada vez menos preparada para o receber; é que a instrugio popular, na Corte como nas provincias, nfo passa de um desideratum. Afesté o efeito, sem aparecer a causa, como em todos os iniimeros casos em que os efeitos da escravidao sio apontados centre nés, Um lavrador fluminense, por exemplo, o st: Paes Leme, foi em 1876 aos Estados Unidos comissionado pelo nosso gover- no. Bscreveu relat6rios sobre o que vit ¢ observou na América do Norte, pronunciou discursos na Assembléia Provincial do Rio de Janeiro, que so ainda 0 resultado daquela viagem, e nunca Ihe ocorreu, nos diferentes paralelos que fez entre o Estado do Brasil e 0 da grande Republica, atribuir A escravidtio uma parte sequer do nosso atraso. O mesmo dé-se com toda a literatura politica, liberal ou republicana, em que um fator da ordem da eseravidao figura como um érgio rudimentar e inerte. Entre as forgas cuja aparigao ela impediu esté a opini“io publica, a consciéneia de um destino nacional. Nao ha, com a escravidao, essa forea poderosa chamada opiniao public ‘mesmo tempo alavanea ¢ 0 ponto de apoio das indivi dades que representam o que h4 de mais adiantado no pais. A escravidio, como é incompativel com a imigragao esponta- nea, também nao consente o influxo das idéias novas. Incapaz de invengio, ela 6, igualmente, refratdria ao progresso. Nao & dessa opinitio ptiblica que sustentou os negreiros contra os Andradas, isto é, da soma dos interesses coligados que se trata, porque essa é uma forga bruta e inconsciente como a do mimero por si s6, Duzentos piratas valem tanto quanto um pirata, e nfo ficardo valendo mais se os cerearem da populagdo toda que eles enriquecem e da que eles devastam. A opinido publica, de que falo, € propriamente a consciéncia nacional, esclarecida, moralizada, honesta, ¢ patriética; essa ¢ impossivel com a es- cravidio, e desde que apareca, esta trata de destruf-la. f por nfo haver entre nds essa forga de transformagio social que a politica ¢ a triste ¢ degradante luta por ordenados, que nés presenciamos; nenhum homem vale nada, porque ne- nhum é sustentado pelo pais. O presidente do Gonselho vive & mereé da Coroa, de quem deriva a sua forga, ¢ s6 tem aparéncia de poder quando se o julga um lugar-tenente do imperador e se acredita que ele tem no bolso 0 decreto de dissolucio, isto é, 0 n195- direito de eleger uma camara de apaniguados seus. Os ministros vivem logo abaixo, 4 mereé do presidente do Conselho, e os deputados no terceiro plano, a mercé dos ministros. O sistema representativo é, assim, um enxerto de formas parlamentares num governo patriarcal, ¢ senadores e deputados s6 tomam a sério 0 papel que Ihes cabe nessa parédia da democracia pelas vantagens que auferem. Suprima-se o subsidio, e forcem-nos a nio se servirem da sua posigio para fins pessoais ¢ de familia, © nenhum homem que tenha o que fazer se prestarii a perder 0 sett tempo em tais skiamasciai, em combates com sombras, para tomar uma comparagio de Cicero. Ministros, sem apoio na opinido, que ao serem despedi- dos caem no vacuo; presidentes do Conselho que vivem, noite e dia, a perserutar 0 pensamento esotérico do imperador; uma Camara cOnscia da sua nulidade e que s6 pede tolerancia; um Senado que se reduz a um ser pritaneu; partidos que sfio apenas sociedades cooperativas de colocagio ou de seguro contra a miséria, Todas essas aparéncias de um governo livre siio preser- vadas por orgulho nacional, como foi a dignidade consular no Império Romano; mas, no fundo, o que temos é um governo de uma simplicidade primitiva, em que as responsabilidades se di- videm ao infinito; ¢ 0 poder esta concentrado nas mios de um 86. Este € 0 chefe do Estado. Quando alguém parece ter forea pr6pria, autoridade efetiva, prestigio individual, 6 porque Ihe acontece, nesse momento, estar exposto a luz do trono: desde que der um passo, ot 2 direita ou a esquerda, ¢ sair daquela réstea, ninguém mais 0 divisard no escuro. Foi a isso que a escraviddio, como causa infalivel de cor- rupedo social, ¢ pelo seut terrivel contigio, reduziu a nossa poli- tica. O povo como que sente um prazer cruel em escolher 0 pior, isto é, em rebaixar-se a si mesmo, por ter conseiéneia de que é uma multidao heterogénea, sem disciplina a que se sujeite, sem fim que se proponha. A municipatidade da Corte, do centro da vida atual da nagao toda, foi sempre eleita por esse prinofpio. Os capangas no interior, e nas cidades os capoeiras, que também tém a sua flor, fizeram até ontem das nossus eleig6es 0 jubileu do crime. A faca de ponta e a navalha, exeeto quando a baioneta usurpava essas fungdes, tinham sempre a maioria nas as. Com a eleigdo direta, tudo isso desapareceu na pertui bagio do primeiro momento, porque houve um ministro de vontade, que disse aspirar a honra de ser derrotado nas eleigaes, O sr. Saraiva, porém, j4 fot canonizado pela sua abnegago; ja =136- tivemos bastantes ministros-martires para formar o hagiol6gio da reforma, e ficou provado que nem mesmo ¢ preciso a candidatura oficial para eleger cAmaras governistas. A méquina cleitoral é automiitica, e, por mais que mudem a lei, o resultado hé de ser 0 mesmo. O capoeira conhece o seu valor, sabe que niio passam to depressa como se acredita os dias de Olédio, e em breve a eleigio direta sera 0 que foi a indireta: a mesma orgia desenfreada a que nenhum homem decente devera, sequer, assistir. AutOnomo, 86 h um poder entre nds, 0 poder irrespon- sdvel; s6 esse tem certeza do dia seguinte; s6 esse representa a permanéncia da tradigfio nacional. Os ministros nao sio mais que as encarnagées secundirias, ¢ ds vezes grotescas, dessa en- tidade superior. Olhando em torno de si, o imperador niio encon- tra uma s6 individualidade que limite a sua, uma vontade indivi- dual ou coletiva, a que ele se deva sujeitar: nesse sentido ele absoluto como o czar ¢ 0 sultdo, ainda que se veja no centro de uum governo moderno e provido de todos os 6rgios superiores, como o parlamento, que nao tem a Réissia nem a Turquia, a supre- macia parlamentar, que nfo tem a Alemanha, a liberdade absoluta da imprensa, que muito poucos pafses conhecem. Quer isso dizer, em vez de soberano absoluto, o imperador deve antes ser cha- mado 0 primeiro-ministro permanente do Brasil. Ele nao comparece perante as Camaras, deixa grande latitude, sobretudo em matéria de finangas ¢ legislagio, ao gabinete; mas nem um 36 dia perde de vista a marcha da administragao, nem deixa de ser 0 drbitro dos seus ministros. Esse chamado governo pessoal é explicado pela teoria absurda de que 0 imperador corrompeu um povo inteiro; des- moralizou por meio de tentagdes supremas, 1 moda de Satands, a honestidade dos nossos politicos; desvirtuou, intencio- nalmente, partidos que nunca tiveram idéias e prinefpios, sendo como capital de exploragio. A verdade é que esse governo 6 0 resultado, imediato, da prética da eseravidio pelo pais. Um povo que se habitua a ela nio dé valor a liberdade, nem aprende a governar-se a si mesmo. Daf a abdicagao geral das fungdes civicas, 0 indiferentismo politico, 0 desamor pelo exercicio obscuro ¢ andnimo da responsabilidade pessoal, sem a qual nenhum povo ¢ livre, porque um povo livre é somente um agregado de unidades livres: causas que deram em resultado a supremacia do elemento permanente e perpétuo, isto é, a Monarquia. O imperador ndo tem culpa, exceto, talvez, por no ter reagido contra essa abdicagao nacional, de ser tao poderoso 13 como 6, téo poderoso que nenhuma delegagdo da sua autoridade, atualmente, conseguiria criar no pais uma forga maior que a Coroa. Mas, por isso mesmo, Dom Pedro II seré julgado pela His- t6ria como o principal responsdvel pelo seu longo reinado; tendo sido o seu proprio valido durante quarenta e trés anos, cle nun- ca admitiu presidentes do Conselho superiores a sua influéncia e, de fato, nunca deixou o leme (com relagao a certos homens que ocuparam aquela posigao, foi talvez melhor para eles mes- ‘mos e para o pais, o serem objetos desse liberum veto). Nio é assim, como soberano constitucional, que o futuro ha de consi- derar 0 imperador, mas como estadista; ele 6 um Luis Filipe, ¢ ‘no uma rainha Vitoria — e ao estadista hao de ser tomadas estreitas contas da existéncia da escravidio, ilegal e criminosa, depois de um reinado de quase meio século, O Brasil despendeu mais de seiscentos mil contos em uma guerra politicamente desastrosa, ¢ 56 tem despendido, até hoje, nove mil contos em ‘emancipar os seus escravos: tem um orgamento seis vezes ape- ‘nas menor do que a Inglaterra, e desse orgamento menos de um por cento é empregado em promover a emancipagio. Qualquer, porém, que seja, quanto a escravidao, a res- ponsabilidade pessoal do imperador, nfio ha diivida de que a soma de poder que foi acrescendo & sua prerrogativa foi uma aluvidio devida aquela causa perene, No meio da dispersio das ene1 individuais e das rivalidades dos que podiam servir a patria, Ievanta-se, dominando as tendas dos agiotas politicos ¢ os an- tros dos gladiadores eleitorais, que cercam 0 nosso Forum, a estétua do imperador, simbolo do tinico poder nacional inde- pendente e forte, ‘Mas em toda essa dissolugio social, na qual impera o mais vido materialismo, e os homens de bem e patriotas esto des- crentes de tudo e de todos, quem nio vé a forma colossal da raga maldita, sacudindo os ferros dos seus pulsos, espalhando sobre 0 pafs as gotas do seu sangue? Essa € a vinganea da raga negra. Nao importa que tantos dos seus fos esptirios tenham exercido sobre irmaos 0 mesmo jugo, ¢ se tenham associado como ctimplices aos destinos da instituigdo homicida, a escravidio na América é sempre © crime da raga branca, elemento predominante da civilizaglio nacional, ¢ esse miserdivel estado, a que se vé reduzida a sociedade brasileira, nao é send 0 cortejo da Nemeéis africana que visita, or fim, o timulo de tantas geragdes, =138- Notas 1. Congresso Agrvoola do Revie, 329-324, observagies dost. A. Vitor de 84 Barreto, rietérios, 79 professores, 143, reas profssées, como de Taubaté, por exemplo, incumbia uma servigos, ©0 resultado desse estudo foi -139- | XVI. Necessidade da aboligao j —perigo da demora “Se os seus (do Brasil] dotes morais e intelectuats crescerem em 1 harmonia com a sua admirdvel beleza e riqueza natural, ‘0 mundo ndo terd visto uma terra mais bela. Atualmente ha diversos obstdculos a este progresso; obstdculos que atuam como uma doenga moral sobré 0 seu povo. A escravidao ainda existe no meio dele,” Agassiz AS — DIR-SE-A — se a escravidiio é como acabamos de ver uma influéncia que afeta todas as classes; o molde em que se esta fundindo, hd séoulos, 4 populagdo toda: em primeiro lugar, que forga existe fora dela que possa destrut-la tio depressa como que- 1 Teis sem, ao mesmo tempo, dissolver a sociedade que ysto de elementos hetero- igar, tratando-se de um interess nportancia, de que dependem tio av de pessoas e 2 produgao nacional —a qual sustenta a ;cimento do Estado, por mais arti- serem as suas proporgdes atuais — e quando ngo contestais, nem podels contestar, que a eseravidao esteja condenada a desaparecer num perfodo que pelo progresso moral continuo do pais 1a poderd exceder de vinte anos; por que nio es que o fim de uma instituigdo, que ja durou em vosso pafs mais de trezentos anos, se consuma natu- ralmente, sem sacrificio da fortuna pablica nem das fortunas privadas, sem antagonismo de ragas ou classes, sem uma 6 das rufnas que em outros pafses acompanharam a emaneipagao forgada dos eseravos? Deixo para o seguinte capitulo a resposta A primeira ques- tdo. Af mostrarei que, apesar de toda a influéncia retardativa da escravidio, ha dentro do pafs forgas morais capazes de suprimi- las como posse de homens, assim como néo h4, por enquanto — 1a © a primeira necessidade do pats ¢ erlé-las —, forgas capazes de eliminé-la como principal elemento da nossa constituigao. Neste capitulo, respondo to-somente a objegao, politicamente falando formidavel, de impaciéneia, de cegucira para os interesses da classe dos proprietarios de escravos, tio brasileiros, pelo menos, como estes, para as dificuldades econdmicas de um problema — a saber, se a escravidio deve continuar indefinidamente — que, no ponto de vista humanitério ou patriético, o Brasil todo j4 resolveu pela mais solene e convencida alirmativa. Essas impugnagdes tém tanto mais peso, para mim, quanto — ¢ por todo este livro se ter visto — eu nao acredito que a escravidao deixe de atuar, como até hoje, sobre 0 nosso pas quando os escravos forem todos emancipados. A lista de subscrigdo, que resulta na soma necessdria para a alforria de um eseravo, da um eidaddo mais ao rol dos brasileiros; mas é préciso muito mais do que as esmolas dos compassivos, ou a generosidade do senhor, para fazer desse novo cidadio uma unidade, digna de concorrer, ainda mesmo infinitesimalmente, para a formagio de uma nacionalidade americana, Da mesma forma com o senhor. Ele pode alforriar os seus escravos, com sacrificio dos seus interesses materiais, ainda que sempre em beneficio da educagdo dos seus fillhos, quebrando assim o titi- mo vinculo aparente, ou de que tenha consciéncia, das relagoes em que se achava para com a escravidao; mas, somente por isso, 0 espirito desta ndo deixard de incapacité-lo para cidadio de um pafs livre, e para exercer as virtudes que tornam as nagées ‘mais poderosas pela liberdade individual do que pelo despotismo. Em um e outro caso, é preciso mais do que a cessagiio do sofrimento, ou da inlligao do cativeiro, para converter o escravo 0 senhor em homens animados do espfrito de tolerancia, de adestio aos prinefpios de justiga, quando mesmo sejam contra 16s, de progresso ¢ de subordinagiio individual aos interesses da patria, sem os quais nenhuma sociedade nacional existe sentio no grau de molusco, isto 6, sem vértebras nem individualizagio. Os que olham para os trés séculos e meio de escravidao que temos no passado e medem o largo periodo necessério para apagar-Ihe.os tiltimos vestigios, no consideram, pelo menos primeira vista, de cumprimento intolerdvel 0 espago de vinte ou trinta anos que ainda Ihe reste de usufruto, Abstraindo da sorte individual dos escravos ¢ tendo em vista tio-somente 0 interesse geral da comunhio — nio se deve, com efeito, exigir que atendamos ao interesse particular dos proprietérios, que -14e- so uma classe social muito menos numerosa do que os escra- vos, mais do que ao interesse dos escravos somado com o inte- esse da nagio toda — nfo sera o prazo de vinte anos curto bastante para que niio procuremos ainda abrevid-lo mais, com- prometendo o que de outra forma se salvaria? “V6s dizeis que sois politicos — acrescentarei comple- tando o argumento sério ¢ refletido de homens tao inimigos como eu da escravidiio, mas que se recusam a desmoroné-la de uma 86 vez; supondo que esse, a nio ser o papel de um Erostrato, seria o de um Sansio inconsciente — dizeis que nao encarais a eseravidao prineipalmente do ponto de vista do eseravo, ainda que tenhais feito causa comum com ele para melhor moverdes a generosidade do pais; mas, sim do ponto de vista nacional, considerando que a patria deve protegiio igual a todos os seus filhos ¢ nao pode enjeitar nenhum. Pois bem, como homens politicos, que entregais a vossa defesa ao futuro, e estais pron- tos a provar que ndo quereis destruir ou empecer o progresso do pais, nem desorganizar o trabalho, ainda mesmo por senti- mentos de justiga ¢ humanidade, nao vos parece que cumprireis melhor o vosso dever para com 0s eseravos, para com os senho- res — os quais tém pelo menos direito A vossa indulgéncia pelas relagdes que o préprio abolicionismo, de uma forma ou outra, pela hereditariedade nacional comum, tem com a escravidio, —e finalmente para com a nagao toda, se em ver de propordes medidas legislativas que irritam os senhores ¢ que nio serio adotadas, estes no querendo; em vex de quererdes proteger os escravos pela justia ptiblica e arrancé-los do poder dos seus donos; comegasseis por verificar até onde ¢ de que forma estes, pelo menos na sua porgio sensata e, politicamente falando, pensante, estiio dispostos a concorrer para a obra que hoje 6 confessaclamente nacional — da emancipagiio? Nao serfeis mais polfticos, oportunistas, ¢ praticos, e, portanto, muito mais titeis 0s préprios escravos, se em vex de vos inutilizardes como pro- pagandistas e agitadores, correndo 0 risco de despertar, o que no quereis por certo, entre escravos ¢ senhores, entre senhores e abolicionistas, sentimentos contrarios a harmonia das diversas classes — que mesmo na eseravidiio 6 um dos titulos de honra do nosso pafs — vos associdsseis, como brasileiros, a vbra pa- cffica da liquidagdo desse regime? Cada uma dessas observagées, ¢ muitas outras seme- Ihantes, eu as discuti seriamente comigo mesmo, antes de quei- mar os meus navios, e cheguei, de boa-fé e contra mim préprio, =a es; € por outr de modo sensfvel a, isto é, procu- rando-se concentrar a atengdo do pais no que tem de horrivel, injusto e fatal ao seu desenvolvimento, uma instituigiio com a qual ele se familiarizou ¢ cor aponto de nao poder mais ivamente. trés anos que o p: s esta sendo agitado, como munea de Noé em que devi Pela lei de 28 de setembro de 1871, a escravidao tem por limite a vida do escraves naseido na véspera da lei, Mas essas figuas mesmas nfo estio ainda estagnadas, porque a fonte do nascimento no foi cortada, ¢ todos os anos as mulheres escravas dio milhares de escravos por vinte e um anos ma fiogio de dircito, setembro de 1871 pode ser mile em 1911 de um desses ingénuos, iro provis6rio até 1932. Essa é a lel, € CO ilustre homem de Bstado que a fez votar, se hoje fosse vivo, seria o primeiro a reconhecer que esse horizonte de meio século aberto ainda a propriedade escrava 6 um absurdo, ¢ nun- ca foi o pensamento intimo do legislador. O visconde do Rio Branco, antes de morrer, Je seria o primeiro a reconhecer qu cagio de forgas sociais produzida ha treze anos e pela velo de ultimamente adquirida, depois do torpor de um decéni idéia abolicionista, a lei de 1871 jd deverd ser obsoleta. O que emos em 1871 foi o que a Bspanha fez em 1870; a nossa Branco de 28 de setembro daquele ano a lei Moret espanhola de 4 d imo; mas, depois disso a Espanha Jf teve outra lei —a de 13 de fevereiro de 1880 — que aboliu a escraviddo, desde logo nominalmente, convertendo os escravos em patrocinados, mas de fato depois de oito anos decorridos, 0 passo que nés estamos ainda na primeira lei, Pela agdo do nosso atual direito, o que a escravatura perde por um lado adquire por outro, Ninguém tem a loucura de supor que 0 Brasil possa guardar a escravidio por mais vinte anos, qualquer que seja a lei; portanto 0 serem os ingénuos escravos por vinte ¢ um anos, e nilo por toda a vida, nao altera o proble- ma que temos diante de nés: a necessidade de resgatar do cat veiro um milhdo e meio de pessoas. Comentando, este ano, a redugdo pela mortalidade e pela ria da populagao escrava desde 1873, escreve o Jornal do mereio: Dado que naquela data hajam sido matriculados em todo 0 Império 500.000 eseravos, algarismo muito presumivel, é Keito estimar que a populagio escrava do Brasil assim como diminuiu de uma sexta parte no Rio de Janeiro, haja diminufdo no resto do Império em proporgao pelo menos i donde a existéncia presumivel de 1.250.000 escravos. Este ndimero pode ‘causas que tém atuado em varios pontos do Império para maior proporcionalidade nas alforrias. Aesses 6 preciso somar os ingénuos, ctijo ntimero excede dle 250 mil, Admitindo-se que desse milho e meio de pessoas, que hoje existem, st ), sessenta mil saiam dela anual- mente, isto 6, 0: dobro da média! do decénio, a eseravidiio tera deserm instituigdo terse-4 liquidado em 1903, ou dentro de vinte anos. Esse céleulo é otimista, ¢ feito sem contar com a lei, mas por honra dos bons impulsos nacionais eu o aceito como exato. ‘or que ndo esperais esses vinte anos?” é a-pergunta que nos fazem., Este livro todo é uma resposta aquela pers anos mais de escravidaio, 6 a morte do pats. Esse peri efeito Vinte écom to na historia nacional, como por sua vez a histéria -14s- nacional é um momento na vida da humanidade, ¢ esta um ins- tante na da Terra, e assim por diante: mas, vinte anos de esora- vidio quer dizer a ruina de duas geragdes mais: a que ha pouco entrou na vida civil, e a que for éducada por essa. Isto 6 0 adia- mento por meio século da consciéncia livre do pai ‘Vinte anos de escravidiio quer dizer o Brasil celebrar em 1892, 0 quarto centenério do descobrimento da América, com a sua bandeira coberta de crepe! A ser assim, toda a atual mocidade estaria condenada a viver com a escravidao, a servi-la durante a melhor parte da vida, a manter um exército e uma ‘magistratura para torné-la obrigat6ria, e, pior talvez do que isso, a ver as criangas, que hio de tomar os seus lugares dentro de vinte anos, educadas na mesma escola que ela, Masima debetur ‘puero reverentia € um prinepio de que a escravidiio escarnece- ria vendo-o aplicado a simples crias; mas ele deve ter alguma in- fluéncia aplicado aos préprios fils do senhor.? ‘Vinte anos de escravidio, por outro lado, quer dizer du- rante todo esse tempo o nome do Brasil inquinado, unido com 0 da Turquia, arrastado pela lama da Europa e da América, objeto de irrisdio na Asia de tradigdes imemoriais, e na Oceania, trés séoulos mais jovem do que nés. Como ha de uma nagio, assim atada ao pelourinho do mundo, dar ao seu exército ¢ 2 sta mari- nha, que amanha podem talvez ser empregados em dominar uma insurreigdo de escravos, virtudes viris e militares, inspirar-lhes © respeito da patria? Como pode ela, igualmente, competir, 20 fim desse prazo de enervagio com as nagdes menores que esto crescendo a0 seu lado, a Reptiblica Argentina a razio de quarenta mil imigrantes espontineos ¢ trabalhadores por ano, ¢ 0 Chile homogeneamente pelo trabalho livre, com todo o seu organismo sadio e forte? Manter, por esse periodo todo, a eseravidiio como instituigo nacional equivale a dar mais vinte anos para que exer- ¢¢a toda a sua influéncia mortal a crenga de que o Brasil precisa da escravidido para existir: isso, quando o Norte, que era conside- rado a parte do territ6rio que nao poderia dispensar 0 brago ‘escravo, esté vivendo sem ele, ¢ a escravidio floresce apenas em. Sao Paulo que pode pelo seu clima atrair 0 colono europeu, € com 0 seu capital pagar o salério do trabalho que emprogue, nacional ou estrangeiro. Estude-se a agilo sobre o cardter ¢ a indole do povo de uma let do aleance e da generatidade da eseravidao; veja-se 0 que € 0 Bstado entre nés, poder coletivo que representa apenas 0s interesses de uma pequena minoria e, por isso, envolve-se © -146- intervém em tudo o que ¢ da esfera individual, como a protegiio 2 indtistria, 0 emprego da reserva particular, e por outro lado, abstém-se de tudo 0 que é da sua esfera, como a protegio a vida ¢ séguranga individual, a garantia da liberdade dos contratos: por fim, prolongue-se pela imaginaeao por um to longo prazo a situagdo atual das instituigdes minadas pela anarquia e apenas sustentadas pelo servilismo, com que a escravidflo substitui, a0 liquidar-se respectivamente, 0 espfrito de liberdade eo de ordem, ¢ diga o brasileiro que ama a sua patria se podemos continuar por mais vinte anos com esse regime corruptor e dissolvente. Se esperar vinte anos quisesse dizer preparar a transi- so por meio da educagio do escravo; desenvolver 0 espirito de cooperacio; promover indiistrias; melhorar a sorte dos servos da gleba; repartir com eles a terra que cultivam na forma dese nobre testamento da condessa do Rio Novo; suspender a venda ea compra de homens; abolir os castigos corporais ¢ a perse- guigao privada; fazer nascer a familia, respeitada, apesar da sua condigao, honrada em stia pobreza; importar colonos europeus: © adiamento seria por certo um progresso; mas, tudo isso 6 in- compattvel com a escravidao no seu deelfnio, na sua bancarro- ta, porque tudo isso significaria aumento de despesa, e ela s6 aspira a reduzir 0 custo das maquinas humanas de que se serve a dobrar-Ihes o trabalho, Dar dez, quinze, vinte anos ao agricultor para preparar- se para o trabalho livre, isto &, condené-lo a previsiio com tanta antecedéncia, encarregé-lo de elaborar uma mudanga, 6 desco- nhecer a tendéncia nacional de deixar para o dia seguinte o que se deve fazer na véspera, Nao € prolongando os dias da escravi- do que se hd de modificar essa aversao a previdéncia; mas sim destruindo-a, isto é, criando a necessidade, que é 0 verdadeiro molde do carter. ‘Tudo o mais reduz-se a sacrificar um milhiio e meio de pessoas ao interesse privado dos seus proprietérios, interesse que vimos ser moralmente ¢ fisicamente homicida, por maior que seja a inconsciéncia desses dois predicados, por parte de quem 0 explora, Em outras palavras, para que alguns milhares de indivicuios nao fiquem arruinados, para que essa ruina niio se consuma, eles precisam, nao somente de trabalho, certo é per- manente, que o saldrio Thes pode achar, mas também de que a sua propriedade humana continue a ser permutivel, isto é, a ter valor na carteira dos bancos e desconto nas pragas do comércio, Um milhiio e meio de pessoas tém que ser oferecidas ao Minotauro 47 da escravidao, ¢ nés temos que alimenté-lo durante vinte anos mais, com o sangue das nossas noyas geragdes. Pior ainda do que isso, dez milhdes de brasileiros, que, nesse decurso de tempo, talvez, cheguem a ser quatorze, cont Juizos efetivos e os lucros cessantes que a escravidao Ihes impoe, e vitimas do mesmo espftito retardatdrio que impede o desen- volvimento do pais, a elevagiio das diversas classes, e conserva a populacio livre do interior em andrajos, ¢, mais triste do que isso, indiferente a sua propria condigao moral e soci esse ou compaixdo podem inspirar ao mundo de: homens que confessam que, em faltando-lhes o traball ‘gratuito de poucas centenas de milhares de escravos agricolas, entre eles velh gas, se deixardo morrer de fome no mais bel errit6rio que até hoje nagio ‘alguma possuiu? Essa mesma atonia do instinto da conservagio pessoal ¢ da energia que ele demanda, nfo estard mostrando a imperiosa necessidade de abolir a escravidio sem perda de um momento? -14s- XVIL Receios e conseqiiéncias — Conclusio especialmente a clos Estados desta Unido, ‘most is concludente que a prosperidade puiblioa std sempre em uma proporedo quase matemética para o grau, de liberdade de que gozam todos os habitantes do Bstado.” ‘The Wheeling Intelligencer, pardgrafo citado por Olmstead — A Journey in the Back Country. A DMITIDAA URGENCIA da aboligao para todos os que néo se contentam com 0 ideal de Java da América sonhado para © Brasil, e provada a necessidade dessa operagiio, tanto quanto pode provar-se em cirurgia a necessidade de amputar a extremi- dade gangrenada para salvar o corpo, devemos considerar os re- ceios e as predigdes dos adversérios da reforma. Em primeiro lugar, porém, é preciso examinar se hd no 4 populacio do interior, que se compée de moradores proleté- rios, tolerados em terras alheias; sabemos que ela est senhora tem A sua mercé 0 comércio das cidades, , por fi Bes, advogados, mé- guramente, dessas todas as que sio re tam-na quanto podem. Por outro lado, é sabido m esse grande exéroito alistado sob a sua bandeira, no i 1; nilo est mesmo sitiada, senéio por forgas morais, isto 6, por forgas que, para atuarem, precisam ter um onto cle apoio dentro dela mesma, em sua pr6pria consciéncia. € certo que a eseravidao se opord, com a°maior tenacidade — e resolvida a néo perder um palmo de terreno por Jei —a qualquer tentativa do Estado para beneliciar os eseravos. Palayras vagas, promessas mentirosas, declaragées ino- fensivas, tudo isso ela admite: desde, porém, que se trate de fazer 149- uma lei de pequeno ou grande aleance direto para aqueles, 0 chacal ha de mostrar as presas a quem penetrar no seu ossério. Infelizmente para a escravidao, ao enervar o pats todo, ela enervou-se também; ao corromper, corrompeu-se. Esse exército ¢ uma multidao indisciplinada, heterogénea, ansiosa por voltar-Ihe as costas; essa clientela tem vergonha de viver das suas migalhas, ou de depender do seu favor; a populagto que vive némade em terras de outrem, no dia em que se Ihe abra uma perspectiva de possuir legitimamente a terra, em que se Ihe consente viver como parias, abandonaré a sua presente condigiio de servos; quanto as diversas forgas sociais, 0 servi- lismo as tornou tio fracas, timidas e irresolutas, que elas serio as primeiras a aplaudir qualquer renovagio que as destrua, para reconstru(-lis com outros elementos. Senhora de tudo ¢ de todos, a escravidio nao poderia levantar, em parte alguma do pafs, um bando de guerrilhas que um batalhao de linha nao bastasse para dispersar. Habituada a0 chicote, ela nio pensa em servir-se da espingarda, e, assim como est resolvida a em- pregar todos os seus meios de 1871 — os Clubes da Lavoura, as cartas anénimas, a difamagao pela imprensa, os insultos no Parlamento, as perseguigées individuais, — que dio a medida da sua energia potencial, esta também decidida, de antemio, a resignar-se a derrota. O que ha de mais certo, em semelhante campanha, é que dez anos depois, como aconteceu com a de 1871, os que nela, tomarem parte contra a liberdade hao de ter vergonha da distingao que adquiriram, ¢ se hao de por a mendigar 0 voto daqueles a quem quiseram fazer o maior mal que um homem pode infligir a outro: 0 de afundé-lo na escra- vidio, a ele ou aos seus filhos, quando um brago generoso luta para salvé-los. Por tudo isso, 0 poder da eseravidao, como ela propria, uma sombra, Ela, porém, conse; ais forte, resultado, como vimos, da abdicagio geral da fungio cfviea por parte do nosso povo: o governo. O que seja essa forga, nao se o pode melhor definir do que o fez, na frase j6 uma vez citada, 0 elogiiente homem de Estado que mediu pes- soalmente com o seu olhar de “guia o vasto horizonte desse pico — “o Poder é 0 Poder”. Isso diz tudo. Do alto dessa fan- tasmagoria colossal, dessa evaporagio da fraqueza e do entor- pecimento do pais, dessa miragem da prépria escravidao, no deserto que ela criou, a casa da fazenda vale tanto quanto a senzala do escravo. Sem diivida alguma, o Parlamento, no novo =150~ regime eleitoral, esta impondo a vontade dos seus pequenos corrilhos, sobre os quais a lavoura exerce a maior coagiio: mas, ainda assim, 0 governo paira acima das Camaras, e, quando seja preciso repetir o fendmeno de 1871, as Camaras hao de se sujeitar, como entio fizeram. Essa é a forga capaz de destruir a escravidio, da qual és dimana, ainda que, talvez, venham a morrer juntas. Essa forga, neste momento, est avassalada pelo poder territorial, mas todos véem que um dia entrard em Tuta com ele, ¢ que a Iuta serd desesperada, quer este pega a aboligdo imediata, quer pega medidas indiretas, quer queira suprimir a escraviddio de um jato ou, somente, fechar o mercado de escravos. A opiniao piiblica, tal qual se est formando, tem influ- eneia e ago sobre o governo. Ele representa o pais perante 0 mundo, concentra em suas mios a diregio de um vasto todo politico, que estaria pronto para receber sem abalo a noticia da emancipagio, se nao fossem os distritos de café nas provincias de Sio Paulo, Minas e Rio de Janeiro, e assim é sempre impedido pela consciéneia nacional a afastar-se cada vez mais da érbita que a escravidao Ihe tragou. Por maior que seja o poder desta, 0 seu crédito nos bancos, o valor da sua propriedade hipotecada, ela est’ como o erro dogmético para a verdade demonstrada. Uma onga de cigncia vale, por fim, mais do que uma tonelada de fé. Assim também o minimo dos sentimentos nobres da humanidade acaba por destruir o maior de todos os monopélios dirigido contra ele, ‘Sem atribuir forga alguma metafisica aos princfpios, quando no ha quem os imponha, ou quando a massa humana, a que nés queremos aplicé-los, thes ¢ refratéria, nao desconto alto demais © cardter, os impulsos, as aspiragdes da nagao brasileira dizen- do que todas as suas simpatias, desprezados os interesses, sio pela liberdade contra a escravidao. Todavia, é forgoso reconhect-o: a atitude relutante da Sinica forea capaz de destruir esta tiltima, isto é, 0 governo, a medida, insigniticante ainda, em que ele 4 acesstvel A opinifio, € © progresso lento desta, nZo nos deixam esperar que se realize to cedo 0 divércio, Se nao existisse a pressio abolictonista, todavia ele seria ainda mais demorado. O nosso esforgo consis- te, pois, em estimular a opiniaio, em apelar para a agiio que deve exercer, entre todas as classes, a crenga de que a escravidio no avilta somente 0 nosso pais: arrufna-o materialmente. O agente est af, 6 conhecido, ¢ o Poder. O meio de produzi-lo é, —1si- também, conhecido: ¢ a opinido piiblica. O que resta é inspirar esta a energia precisa, tiré-la do torpor que a inutiliza, mos- trar-Ihe como a inércia prolongada é o suictdio. ‘Vejamos, agora, os receios que a reforma inspira. Teme-se que a aboligio sejaa morte da lavoura, mas a verdade 6 que niio hd ‘outro modo de avivents-la, Hf noventa anos, Noah Webster escre- ‘yeu num optisculo acerca dos efeitos da eseravidio sobre a moral e aindiistria 0 seguinte: ‘Aum cidadao da América parece estranho e admi- ra-lhe que no séeulo XVIII [ea nés brasileiros quase ‘cem anos depois?] tal questiio seja objeto de diivida em qualquer parte da Buropa; e mais ainda assunto de discussao séria [A questi: “Se 6 mais vantajoso Para um Estado que o camponés possua terra ou ou- tros quaisquer bens, e até que limite deve ser admi- tida essa propriedade no interesse ptiblico?”] posta em concurso pela Sociedade Econémica de Silo Pe- tersburgo. Entretanto nfo somente na Raisia e gran- de parte da Polonia, mas também na Alemanha ¢ Itdlia, onde ha muito a uz da ciéneia dissipou a noite da ignorncia g6tica, os bardes se ofenderiam com a simples idéia de dar liberdade aos seus camponeses. Bsta repugniincia deve nascer da suposigtio de que, se 0s libertassem, os seus estabelecimentos sofreriam materialmente; porque o orgulho s6 niio seria obsté- culo ao interesse. Mas isto é um engano fatalfssimo, © americanos niio deverdo ser os tiltimos a conven cer-se de que 0 é; homens livres no s6 produzem mais, mas gastam menos do que escravos; niio s6 siio mais trabalhadores, so mais providos também, endo hé um proprietério de escravos na Europa e na.América, que ndo possa dobrar em poucos anos owalor do sew estabelecimento agricola, alforriando 08 seus escravos e ajudlando-os no manejo das suas culturas." As palavras finais que cu grifei silo tao exatas ¢ verdadei- ras hoje como eram quando foram escritas; tio exatas entéio como seriam, no fundo, ao tempo em que a Sicilia romana estava co- berta de ergéstulos ¢ os escravos viviam a mendigar ou a roubar. Acesse respeito, a prova mais completa possivel 6a trans- formaciio material ¢ econémica da lavoura nos estados do Sul, 152- depois da guerra: a agricultura 6 hoje ali muitas vezes mais rica, préspera e florescente, do que no tempo em que a colheita do algodio representava os salrios sonegados raga negra, © as lagrimas e misérias do regime bérbaro que se dizia necessario aquele produto. Nao é mais rica somente por produzir maior colheita e dar maior renda; é mais rica porque a estabilidade outra, porque as indtistrias esto afluindo, as maquinas multi- plicando-se, e a populagao vai crescendo, em desenvolvimento moral, intelectual ¢ social desimpedido. Em data de 1° de setembro de 1882, escrevia o corres- pondente do Times em Filadélfia: No fim da guerra — disse enfaticamente um dos re- presentantes do Sul na recente Convengdo dos Ban- ‘queiros em Saratoga —o sul ficou apenas com terra e dividas. Contudo 0 povo comecou a trabalhas para, desenvolver as primeiras e libertar-se das segundas, e depois de alguns anos de inteligente dedicagio a esses grandes deveres, ele conseguiu resultados que osurpreendem tanto, como ao resto do mundo. Assim a aboligao da escravidiio com a queda dos sistemas de agricultura que ela sustentava, foi da maior vantagem para o Sul. Nenhum pais do globo passou por uma revolucdo social mais completa — e todavi comparativamente pactfica e quase despercebida — do que os estados do Sul desde 1865. O fim da rebelizio encontrou o Sul privado de tudo menos a terra, ¢ carregado de uma imensa divida contrafda prineipal- mente pelo crédito fundado no valor da propriedade eserava. No maior estado do Sul —a Geérgia — esse valor subia a $30,000.000 [60 mil contos}. A aboli- odo destruiu a garantia, mas deixou de pé a divida, ¢ ‘quando cessaram as hostilidades o Sul estava exaus- to, meio faminto e falido, nactonalmente e individual- mente, com 0s libertos feitos senhores, ¢ induzidos a toda a sorte de excessos politicos pelos brancos sem esertipulos que se puseram a frente deles. Depois da restauragao da paz, 0 alto prego do al- godaio incitou os lavradores a cultivé-lo, quanto pos- sivel, ¢ como a nova condigao do negro impedia 0 seu antigo senhor de dispor do trabalho dele, tornou- se a prinefpio costume, quase invaridvel, dos pro- prietdrios arrendarem as plantagdes aos libertos ¢ -153- procurarem tirar delas 0 mesmo rendimento que antes da rebeliaio, ¢ isso sem trabalho pessoal, Muitos dos agricultores mudaram-se para as cidades, deixando aadministragio das suas terras aos libertos, e uma vez que thes fosse paga a renda do algodio, nfo se importavam com os métodos empregados. Os negros, ‘empregando adubo, mas deixando 0 solo descansar, ¢ seguindo do modo mais facil 0s métodos de cu aprenderam quando escravos. Desta forma, cedo as plantagées ficaram exaustas na superficie do solo, ¢ os ertos nao puderam mais conseguir colheita bastan- te, nem para pagar a renda, nem para o seu proprio sustento. Os proprietérios, que viviam na ociosidade, acharam-se assim com os seus rendimentos suspen- 08 ¢ as suas terras estragadas, ao passo que, estando © pafs cheio de estabelecimentos nas mesmas condi- (Wes, a venda era quase imposstvel a qualquer prego, Anecessidade, ent, forou-os a ‘g6es, de modo que, por administragao pessoal, elas pu- dessem ser restauradas na sua forga produtiva ante- rior; mas esses processos, negligentes ¢ atrasados, ‘mantiveram 0 Sul por diversos anos em uma condigaio extremamente precéiria. Durante a tiltima década os agricultores conven- ceram-se de que tal sistema nao devia continuar in- definidamente; que o estilo de lavoura para dirigirem os seus negécios, pelo ‘gamento a vista, eles se conservaram pobres ¢ traba- Thavam as suas plantagbes com desvantagem sempre crescente, Isso determinou mudancas que foram todas para.o bem duradouro do Sul. As pl do cortadas em pequenos sitios, gente esté cultivando menor nimero de jeiras, alter nando as safras, descansando & terra, adaptand melhor sistema de lavrar, ¢ fazendo uso em grande escala de estrumes. Bles agora conseguem, em muitos -1s4~ via transmitido algumas observagées de Jefferson Dat presidente da Confederagio, sobre os resultados da medida que emaneipou os escravos: periéncia, e da Histe casos onde este sistema adiantado esta ha anos em prética, um fardo de algodsio por geira onde antes eram precisos cinco ou seis geiras para produzir um fardo de qualida: ior. Eles esto, também, plantando mais trigo e aveia, produzindo mais carne para os tra- balhadores, e mais forragem de diversas espécies para os animais. A grande colheita é sempre o algodaio — que dé uma safra maior proporcionalmente A superficie do que anos atrés — 0 algodao no ¢ j4 to rei absolu- to como antes foi. O Sul pode, hoje, sustentar-se por si em quase toda a parte, no que concerne a alimen- tagio, Os mantimentos e o trigo no Norte e do Oeste nio encontram mais ali o mesmo mercado de antes da guerra. Trabalhando por sistemas sensatos, os plantadores estio tirando muito molhores resi condigiio Sul est tdo contente que niio s este veri, Esta éa grande revolugio pacttfica — social nesta década, todavia de modo tao quieto a surpreender a todos, quando as publicagbes do recenseamento a revelaram. O mesmo correspondente, em data de 1° de abril de 1880, fessou, mudaram inteira- ra do algodio e do agar, Bssas mercadorias princi podem ser produzidas em maior abundancia, e com mais econo- pagando-se o trabalho do que por eseravos. Isto, disse cle, est demonstrado, e serve para mostrar como foi vantajosa para os brancos a aboligao da escravi- dio. O Sul depende menos do Norte do que antes da guerra. Ao passo que elé continua a exportar os seus grandes produtos [0 algodo e 0 agticar], 0 povo est indo maior variedade de colheitas para uso pré- prio, e ha de eventualmente competir com o Norte em manufaturas ¢ nas artes meciinicas.” Amba ‘com a autoridade da ex- elaborada debaixo de nossas vistas, gran- -15s- des avisos aos nossos agricultores, assim como a maior anima- ‘edo para 0 nosso pafs. Nao hé chivida de que o trabalho livre é mais econémico, mais inteligente, mais ttil a terra, benéfico ao distrito onde ela est encravada, mais proprio para gerar induis- as, civilizar pais, e elevar 0 nivel de todo 0 povo. Para a agricultura, o trabalho livre é uma vida nova, fecunda, estavel, ¢ duradoura. Buarque de Macedo entreviu a pequena lavoura dos atuais escravos, em torno dos engenhos centrais de agiicar, ¢ deu testemunho disso para despertar a energia individual. A todos 08 respeitos, o trabalho livre é mais vantajoso que 0 escravo. Nao € a agricultura que hi de softer por ele. Sofrerao, porém, os atuais proprietirios, ¢ se sofrerem terdo 0 direito de queixar-se do Estado? Acabamos de ler que a Guerra Civil americana s6 deixou em mos dos antigos senhores terras e dividas. Mas, entre n6s, niio se dé 0 mesmo que nos Estados Unidos. Ali, a emancipagio veio depois de uma rebelidi a qual nenhuma outra pode ser comparada; depois de um bloqueio ruinoso, e muito mais cedo do que os abolicionistas mais esperangosos de Boston ou Nova York podiam esperar. No , fez-se hi doze anos, uma lei que, para os atuais possui- dores, ndo podia senao significar que a nagdo estava de: por termo A escravidio, que tinha vergonha de ser um pafs de escravos, ¢ s6 nao decretava em ver, da alforria dos nascituros a dos préprios escravos, para nao prejudicar os interesses dos senhores, O Brasil, em outras palavras, para nio ferir de leve a propriedade de uma classe de individuos, muitos deles estran- geiros, filhos de paises onde a eseraviddio nao existe, e nos quais, a proibigao de possuir escravos, qualquer que seja a latitude, ja devera ser parte do estatuto pessoal da nacionalidade, assentiu a continuar responsavel por um crime. 0 argumento dos proprietiiios de eseravos é, com efei- to, este: O meu eseravo vale um conto de réis, empregado nele de boa-fé, ou possuido, legalmente, pelo prinefpio da acessiio do fruto. Se tendes um conto de réis para dar- * me por ele, tendes o direito de liberté-lo, Mas se nao tendes essa quantia ele continuard a ser meu escravo. Bu admito este argumento o qual significa isto: desde que ‘uma geragto consentiu ou tolerou um crime qualquer, seja a pira- taria, seja a escravidao, outra geragdo niio pode suprimir esse cri- me, sem indenizar os que cessarem de ganhar por ele; isto é, 156- enquanto nfo tiver o capital que esse crime representa, niio poder, por mais que a sua consciéncia se revolte ¢ ela queira viver honestamente, desprender-se da responsabilidade de cobri-lo com asua bandeira e de prestar-Ihe o auxilio das suas tropas, em caso de necessidade. A vista dessa teoria nenhum pais pode subir um degrau na escala da civilizagiio ¢ da consciéncia moral se niio tiver com que desapropriar a sua imoralidade e o seu atraso. Adoto, entretanto, esse ponto de vista para simplificar a questio, € eoncedo 0 principio qué o Estado deva entrar em acordo para indenizar a propriedade escrava, legalmente possuida aviso a josa por liquidar esse triste passado ¢ comegar vida nova. Pode alguém, que tenha adquirido escravos depois dessa cata, queixar-se de niio ter sido informado de que a reagio do brio e do pudor comegava a tingir as faces da naga0? O prego dos esoravos suibiu depois da lei; chegou em Sao Paulo a trés contos de réis, como subira clep« acabadlo 0 tréfico, sendo o efeito de cada lei humanitéria que restringe a propriedade humana aumentarthe o valor, como 0 de outra qualquer mercadoria, cuja produgao diminui quando a procura continua a ser a mesma, Mas tem o Estado que responder pelo incremento do valor do escravo, sétira pungente de cada medida de moralidade social, e que mostra como 0 comércio da carne humana gira todo fora da agdo do patriotismo? Nao é s6 do qu protbe, que 0 eidaddo cioso do nome do seu pais deve abster-se, conscienciosamente, mas de tudo quanto ele sabe que a lei s6 nto profbe porque nao pode, ¢ que envergonha a lei, sobretudo depois ‘que a nagiio Ihe dé um aviso de que é preciso acabar, quanto antes, ccom esse abuiso, cada brasileiro ajudando o Bstado a fazé-lo, Haver, entre nés, quem desconhega que a Constituigio teve vergonha da lo, € que a lei de 28 de setembro de 1871 foi um solene aviso nacional, um apelo ao patriotismo? Durante cingiienta anos a grande maioria da proprieda- de escrava foi possuida ilegalmente. Nada seria mais dificil aos senhores, tomados coletivamente, do que justificar perante um tribunal eserupuloso a legalidade daquela propriedade, tomada também em massa. Doze anos, porém, depois da lei de 28 de setembro, como fundariam cles quaisquer acusagdes de"ma-fé, espoliagio e outras, contra o Bstado por transagdes efetuadas sobre escravos? inguém, infelizmente, espera que a escravidtio acabe de todo no Brasil antes de 1890, Nao ha poder, atualmente co- nase nhecido, que nos deixe esperar uma duragtio menor, € uma lei que hoje the marcasse esse prazo aplacaria de repente as ondas agitadas. Pois bem, nfo hi escravo que dentro de cinco anos nilo tenha pago o seu valor, sendo os seus servigos inteligentemente aproveitados. Pense entretanto a lavoura, faga cada agricultor a conta dos seus escravos: do que eles efetivamente Ihe custaram edo que Ihe renderam, das erias que produziram — descontando 08 afticanos importados depois de 1831 e seus filhos conheci- dos, pelos quais seria wm ultraje reclamarem uma indenizagio piiblica — e vejam se o pais, depois de grandes e solenes avisos para que descontinuassem essa indiistria cruel, nao tem o direito de extingui-la, de chofre, sem ser acusado de os sacrificar, Se eles no conseguem reunir as suas hipotecas, pagar as suas dfvidas, a culpa nao ¢ dos pobres eseravos, que os ajucam quanto podem, ¢ no devem responder pelo que o sistema da escraviddio tem de mau e contrario aos interesses do agricultor. Dé cada senhor hoje ma papeleta a cada um dos seus eseravos, inscrevendo na primeira pagina, no j4 0 que ele custou — so- mente esse processo eliminaria metade da escravatura legal —, mas o que cada um vale no mercado, e lance ao crédito desse esoravo cada servigo que ele preste; dentro de pouco tempo a divida estar amortizada. Se alguma coisa o escravo Ihe ficar res- tando, ele mesmo faré a honra a sua firma, servindo-o depois de livre: tudo 0 que niio for isso, é usura e a pior de todas, a de Shy- locks, levantada sobre a carne humana, ¢, pior do que ade Shylock, executada pelo proprio usurdrio. Se a agricultura, hoje, ndo da rendimento para a amorti- zagao da divida hipotecdria, e no ha probabilidade de que em tempo algum a lavoura, com o presente sistema, possa libertar 08 seus escravos sem prejuizo, nao ha vantagem alguma para 0 Estado em que a propriedade territorial continue em mios de quem nao pode fazé-Ia render, e isso mediante a conservagio por lei de um sistema desacreditado, de seqtiestro pessoal. Nes- Se caso, a emancipagio teria ainda a vantagem de introduzir sangue novo na agricultura, promovendo a liquidagio do atual regime. A lavoura, quer a do agticar, quer a do café, nada tem que temer do trabalho livre. Se hoje o trabalho é escasso; se uma populagao livre, vilida ¢ desocupada, que ja se calculou em seis provincias somente, em cerca de trés milhes de bragos, continua inativa; se o proprio liberto recusa trabalhar na fazen- dla onde cresceu; tudo isso 6 resultado da esoravidato, que faz do trabalho ao lado do eseravo um desar para o homem livre, desar =158- que no 0 € para o europeu, mas que o liberto reconhece e nao tem coragem para sobrepujar. ‘Tudo nessa transigdo, tao facil havendo boa inteligéncia entre 0 pafs ¢ a lavoura, como dificil resistindo esta ao fato con- sumado, depende dos nossos agricultores. Se a escravidaio nao houvesse, por assim dizer, esgotado os recursos clo nosso erédi- to; se a guerra do Paraguai, cujas origens distantes so tao desconhecidas ainda, no nos tivesse murado o futuro por uma geragdo toda; nada seria mais remunerador para o Estado do ‘que ajudar por meio do seu capital a répida reconstrugio da nossa agricultura. Auxitios a lavoura para outro fim, diverso da emaneipagaio — para mobilizar e fazer circular pela Europa, em letras hipotecdrias, como o pretendia a let de 6 de novembro de 1875, a propriedade eserava — seria, além de um plano injusto de socorros a classe mais favorecida A custa de todas as outras, compliear a faléncia da lavoura com a do Estado, ¢ arrasté-los & mesma rufna. Nem “auxilios 4 lavoura” pode significar, em um pais democratizado como 0 nosso ¢ que precisa do imposto territorial para abrir espaco a populagdo agricola, um subsfdio a grande propriedade, com o desprezo dos pequenos lavradores que aspiram a possuir o solo onde sio rendeiros. Mas, por outro lado, de nenhum modo poderia o Estado usar melhor do seu crédito do que para, numa contingéncia, facilitar A agricultura a transigzio do regime romano dos ergastulos ao regime moderno do salirio e do contrato livre. Nao hé em todo o movimento abolicionista, @ no futuro que ele est preparando, sendio beneficio para a agricultura, como indvistria nacional; e, como classe, para os agricultores solvaveis, ‘ou que saibam aproveitar as condigées transformadas do pats. O exemplo dos estados do Sul deve servir-lhes de farol; cada um dos escolhos em que seria possivel naufragar foram cuidadosa- mente iluminados. Nem rebelifio contra uma conseiéncia na- cional superior, nem desconfianga dos seus antigos escravos, nem abandono completo das suas terras aos libertos, nem absentets- mo, nem arotina da velha cultura, nem desdnimo; mas, reconhe- cimento do fato consumado como um progresso para o pais, a criagiio de novos lagos de gratidao ¢ amizade entre eles ¢ os que 0s serviram como cativos ¢ estiio presos as suas terras, a elévagao dessa classe pela liberdade, a methor educagao dos seus filhos, a indtistria, a perseveranga, a agronomia, Nos nfio estamos combatendo a lavoura contra o seu pro- prio interesse: nao s6 a influéncia politica dos nossos agriculto- -159- res hé de aumentar quando se abaterem esas muralhas de pre- conceitos ¢ suspeitas, que Ihes cercam as fazendas e os enge- nhos, sendo também a sua seguranga individual sera maior, ¢ os seus recursos cresceriio pari passu com o bem-estar, a dignida- de, 0 valor individual da populagio circunvizinha. O trabalho livre, dissipando os iltimos vestigios da escravidio, abrird.o nosso ia; sera o antincio de uma transforma- io virile far-nos-& entrar no caminho do crescimento organic @ portanto homogéneo. O antagonismo latente das ragas — a que a escraviddo é uma provocagio constante, e que ela nao deixa morrer, por mais que isso Ihe convenha — desaparecerd de todo. Tudo isso servird para reconstruir, sobre bases sélidas, co ascendente social da grande propriedade, para abrir-Ihe altas € patriéticas ambigées, para animé-la do espfrito de liberdade, que nunca fez a desgraga de nenhum povo e de nenhuma classe. Volte a nossa lavoutra resolutamente as costas 3 escravidio, como fex com 0 trifico, e dentro de vinte anos de trabalho livre os proprietarios territoriais brasileiros formardio uma classe a todos 6s respeitos mais rica, mais titil, mais poderosa, e mais elevada na comunhio do que hoje. Quem fala sinceramente esta linguagem s6 deve ser con- siderado inimigo da lavoura, se lavoura e escravidao sifo sindni- ‘mos. Mas, quando, pelo contririo, esta é a vitima daquela; quia do, humilhando 0 eseravo, a eseravidiio no consegue sentio arruinar o senhor, entregar depois de duas geragdes as suas ter- ras A usura, ¢ atirar os seus descendentes a0 hospfcio do Estado; quem denuncia honestamente a escravidio, nto denuncia a Iavoura, mas trata de separd-la da influéncia que a entorpece, ainda que para salvé-la soja preciso descrever com toda a verda- de 0 que a escravidio faz dela. Foi sempre a sorte de quantos se opuseram a loucura de uma classe ou de uma nagiio, e procuraram convencé-las de que se sacrificaram perseverando num erro ou num crime, serem tidos por inimigos de uma ou de outra, Cobden foi considerado inimigo da agricultura inglesa porque pediu que o pobre tivesse © direito de comprar o palo barato; e Thiers foi acusado de trai- dor a Franga porque quis deté-la no caminho de Sedan. Pensem, porém, os:nossos lavradores no futuro. Dois meninos nasceram na mesma noite, de 27 de se- tembro de 1871, nessa fazenda cujo regime se pretende conservar: um é senhor do outro, Hoje eles tém, cada um, perto de doze anos, O senhor est sendo objeto de uma educagio -160- ‘esmerada; 0 escravo esté crescendo na senzala. Quem haverd tao descrente do Brasil a ponto de supor que em 1903, quando ambos tiverem trinta e dois anos, esses dois homens estariio um. ara o outro na mesma relagio de senhor e escravo? Quem negard ‘que essas duias criangas, uma educada para grandes coisas, outra embrutecida para 0 cativeiro, representam duas correntes so- clais que {4 nilo correm paralelas — e se corressem, uma tercei- ra, a dos nascidos depois daquela noite servir-lhes-ia de canal, , mas se encaminham para um ponto dado em nossa histéria na qual devem forgosamente confundir-se? Pois bem, o aboli- cionismo 0 que pretende 6 que essas duas correntes nao se movam wma para outra mecanicamente, por causa do declive que encontram; mas espontaneamente, em virtude de uma ali- nidade nacional consciente. Queremos que se ilumine e se es- clarega toda aquela parte do espfrito do senhor, que esta na sombra: 0 sentimento de que esse, que ele chamaescravo, é um ente tao livre como ele pelo direito do nosso século; e que se evante todo o carter, edificado abaixo do nivel da dignidade humana, do que chama o outro senhor, ¢ se Ihe insufle a alma do cldadao que ele ha de ser; isto é, que um e outro sejam arranca- dos a essa fatalidade brasileira — a escravidao — que moral- mente arruina ambos. Posso dar por terminada a tarefa que empreendi a0 ‘comegar este volume de propaganda, desde que nao entra no meu propésito discutir as diversas medidas propostas para aperieigoar a lei de 28 de setembro de 1871, como 0 plano de localizar a escravidao, o de transformar os escravos e ingénuos em servos da gleba, 0 aumento do fundo de emaneipagio. Todas essas medidas sto engendradas por espfritos que no encaram a eseravidio como fator social, como um impedimento levantado no caminho do pats todo, a0 desenvolvimento e bem-estar de todas as classes, & educagaio das novas geragdes. Nenhum deles compreende a significacdo, politica, moral, e econdmica, para ‘uma nagio qualquer mergulhada na escravidao, de um testemu- nho como o seguinte, dado, em sua mensagem de 1881 a0 Con- gresso, pelo presidente James Garfield, sobre os efeitos da eman- cipagio nos Estados Unidos: A vontade da nagdo, falando com a vor da batalha por intermédio de uma Gonstituigaio emendada, cum- ~161- priu a grande promessa de 1767 ao proclamar a liberdade em todo o pats para todos seus habitantes. Aclevagio da raga negra do cativeiro a plenitude dos direitos do cidadao € a mais importante mudanca politica que nés conhecemos desde que foi adotada a Constituigiio de 1787. Nenhum homem refletido deixard de reconhecer os benéficos efeitos daquele acontecimento sobre as nossas instituigdes ¢ 0 nosso povo. Ele livrou-nos do constante perigo de guerra ¢ dissolugdo; aumentou imensamente as forgas morais ibertou tanto o senhor como 0 esoravo de uma relagio que prejudicava enfraquecia ambos; entregou 2 sua propria tutela a virilidade de mais de cinco milhées de pessoas, e abriu a cada uma delas uma carreira de liberdade e de utilidade; deu uma nova inspiragao a0 poder de sel help em ambas as ragas, tornando o trabalho mais honroso para uma e mais necessério A outra. A influéncia dessa forea ha de crescer cada vez mais, ¢ dar melhores frutos com 0 andar dos tempos. Nés, porém, que temos certeza de que essa mesma lin- ‘guagem honrosa para todos, ex-escravos ¢ ex-senhores, poderia ser usada poucos anos depois do ato que abolisse hoje a escra- nao podemos querer que se sacrifiquem esses grandes interesses do pais aos interesses de uma classe retar- dataria, que nunca se apressou em acompanhar a marcha do século e da nago, apesar dos avisos da lei e das stiplicas dos brasileiros patriotas — tanto mais quanto tal sacrificio seria em pura perda. A nossa verdadeira politica, dizia em 1854 um jornal do Sul da Unido americana, € othar para 0 Brasil como a segunda grande poténcia eseravocrata, Um tratado de comércio ¢ alianga, com o Brasil conferir-nos-4 0 dominio sobre o golfo do México ¢ os estados que ele banha, juntamente com as ilhas; ¢ a conseqtién- cia disto colocard a eseravidio africana, fora do alcance do fanatismo no interior ou no exterior. Esses dois grandes patses de escravos devem proteger ¢ fortificar os seus interesses co- muns... N6s podemos niio s6 preservar a escravidiio doméstica, mas também desafiar 0 poder do mundo...‘ Esse sonho, de uniiio e alianga escravagis nas sucessivas batalhas que impediram a formagiio de um grande 162 © poderoso Estado americano, criado para perpetuar e estender pela América toda 0 cativeiro das ragas alticanas. Mas o Brasil continua a ser, aos olhios do continente, o tipo da nagio de escravos, o representante de uma forma social rudimentar, opres- siva e antiga. Até quando serd esse 0 nosso renome, e teremos ‘em nossos portos esse sinal de peste que afasta os imigrantes para os Bstados que procuram competir conosco? © nosso pats foi visitado ¢ estudado por homens de ciéncia, O maior de todos eles, Charles Darwin (mais de uma vez tenho feito uso desse exemplo), nfio achou outras palavras com que se despedir de uma terra ouja admirdvel natureza devera ter exercido a maior atrag‘o possivel sobre o seu espirito criador, seniio estas: “No dia 19 de agosto deixamos por fim as praias do Brasil. Gragas a Deus, nunca mais hei de visitar um pats de es- eravos.” O espetéculo da escravidio na América, em pleno reinado da natureza, no meio das formas mais belas, variadas pujantes que a vida assume em nosso planeta, nfo podia, com efeito, inspirar outros sentimentos a sdbios senio os que nos expressaram Darwin, Agassiz, ¢ antes deles Humboldt e José Boni- facio. Nao é, porém, a mortificagio, desinteressada e insuspeita, dos que amam e admiram a nossa natureza, que nos causam 0 maior dano: 6, sim, a reputagilo que temos em toda a América do Sul, de pats de escravos, isto é, de sermos uma nagio endu- recida, dspera, insensfvel ao lado humano das coisas; 6, mais ainda, essa reputagio — injusta, porque 0 povo brasileiro nao pratica a escraviddo e é vitima dela — transmitida ao mundo intelro ¢ infiltrada no espirito da humanidade civilizada, Brasil e esoraviddo tornaram-se assim sindnimos. Dai a ironia com que foi geralmente acolhida a legenda de que famos fundar a liberdade no Paraguai; daf, o desvio das correntes de imigragiio para o rio da Prata, que, se devesse ter uma politica maquiavélica, invejosa e egoista, deveria desejar ao Brasil os trinta anos mais de eseravidio que os advogados desse interesse reclamam. 86 pudesse viver pela escravidao, seria me- Thor que ele nao existisse; mas essa dtivida nfo é mais possivel: ao lado de uma populacdo, que, entre escravos e ingériuos, nao passa de um milhao ¢ quinhentos mil habitantes temos uma populagio livre seis vezes maior. Se o resultado da emanicipagao Fosse — 0 que nao seria — destruir a grande cultura atual de generos de exportacii, ¢ se o pals atravessasse uma crise quanto a0 rendimento nacional, mesmo isso nao seria um mal relativa- mente ao estado presente, que se ndo é j4 a insolvabilidade -169- encoberta ou adiada pelo crédito, estd muito perto de o ser, o— se durar a eseravidio — hd de sé-lo, A escravidio tirou-nos 0 habito de trabalhar para alimentar-nos; mas, no nos tirou 0 instinto nem a necessidade da conservagio, ¢ esta ha de criar, novamente, a energia atrofiada. Se, por outro lado, a escravidto devesse forgosamente ser prolongada por todo o seu prazo atual, os brasileiros educados nos prinefpios liberais do século deveriam logo resignar-se a mudar de pitria. Mas, ¢ esta 6 a firme crenga de todos nés que a com- batemos, a escraviciio em vez de impelir-nos, retém-nos: em vez de ser uma causa de progresso e expansio impede o crescimento natural do pafs. Deixé-la dissolver-se, ¢ desaparecer, insensi- velmente, como ela pretende, é manter um foco de infecgdo moral permanente no meio da sociedade durante duas geragdes m: tornando, por longo tempo, endémico o servilismo, ¢ a exploragiio do homem pelo homem, em todo o nosso territério, O que esse regime representa, ja 0 sabemos. Moralmen- te € a destruigao de todos os principios ¢ fundamentos da moralidade religiosa ou positiva — a familia, a propriedade, a solidariedade social, a aspiragao humanitéria: politicamente, oservilismo, a degradagio do povo, a doenga do funcionalismo, © enfraquecimento do amor da patria, a divisto do interior em feudos, cada um com o seu regime penal, o sew sistema de provas, a sua inviolabilidade perante a policia e a justica; econdmica ¢ socialmente, é 0 bem-estar transitério de uma classe tinica, € essa decadente ¢ sempre renovada; a eliminagdo do capital pro- duzido, pela compra de escravos; a paralisagiio de cada energia individual para o trabatho na populagao nacional; o fechamento dos nossos portos aos imigrantes que buscam a América do Sul; a importincia social do dinheiro, seja como for adquirido; 0 desprezo por todos os que por escrtipulos se inutilizam ou atra- sam numa luta de ambigdes materiais; a venda dos titulos de nobreza; a desmoralizacao da autoridade desde a mais alta até & mais baixa; a impossibilidade de surgirem individualidades dignas de dirigir o pais para melhores destinos, porque 0 povo niio sus- tenta os que o defendem, nao é eal aos que se sacrificam por ele, ¢ 0 pais, no meio de todo esse rebaixamento do carter, do trabalho honrado, das virtudes obscuras, da pobreza que procura elevar-se honestamente, esta, como se disse dos Estados do Sul, “apaixonado pela sua prOpria vergonha".* ‘Tudo, por certo, neste triste negécio da escravidao, nao 6 assim desanimador, Nés vemos hoje, felizmente, por toda a ~164- parte sinais de que a manumissio de escravos se entranhou no Patriotismo brasileiro, e forma a solenidade principal das festas de familia e pablicas. Desde 1873 até hoje foram inscritas em nossos registros oficiais 87.005 manumissdes, e apesar de ser impossivel calcular o capital que esse ntimero representa, néio se conhecem as idades, nem as condigbes individuais dos alfor- riados, aqueles algarismos so um elevado expoente da genero- sidade de cardter dos brasileiros. Tanto mais, assim, quanto so as eidades, onde a propriedade escrava se acha muito subdividi- da entre numerosas familias pobres, que se destacam proemi- nentemente na lista, e no o campo onde has grandes fabricas das fazendas. Na corte, por exemplo, com uma populagio escra- va neste decénio de 54.167 individuos, a0 passo que a morte eliminow 8 mil, a liberalidade ptiblica e particular manumititt 10 snquanto na provincia do Rio de Janeiro, com uma populagio escrava no mesmo periodo de 332,949 individuos, a morte det baixa na matricula a 51.269 eseravos ¢ foram alforriados 12.849. Em outros termos, na capital do pais a generosidade nacional segue as pisadas da morte; na provincia esta ceifa quatro vezes mais depressa. Por mais que nos desvanegamos de ter registrado em dez ‘anos 87.005 manumissdes, devemos nao esquecer que no mes- mo perfodo, 36 na provincia do Rio de Janeiro, houve um movi- mento de importagio e exportagio entre os seus diversos muni- cipios de 124 mil eseravos. Isto quer dizer que o mereado de esoravos, as transagdes de compra ¢ venda sobre a propriedade humana, deixam na sombra o valor das alforrins concedidas. ‘Também, em todo o pais, ao passo que foram alforriados, de 1873, a 1882, 70.183 escravos, morreram em cativeiro 132.777, ou cerca do dobro. Mas, quando a morte, que é uma forga inerte e inconsciente, elimina dois, ¢ a nago elimina um, esta faz dez ou vinte vezes menos do que aquela, que niio tem interesse, nem dever de honra, no problema que esta fatidicamente resolvendo. Pensem os brasileiros, antes de tudo, nessa imensa po- pulagiio escrava que excede de 1.200.000, e nos senhores desses homens; pensem nos que morrem, nos que nascem, ou para serem criados como escravos ou para serem educados como senhores; ¢ vejam se esses dois milhdes de unidades navionais devem ser ainda entregues a escravidio, para que ela torture umas até A morte, corrompa as outras desde. infancia,.e, se outros milhdes de brasileiros restantes devem continuar a ser 03 clientes ou servos de um interesse que Ihes repugna ¢ a ~165- sob 0 regime universal ¢ obrigat6rio da escravidio tornada um Imperium in Imperio, Assim foi em toda parte, ‘Como os rios briham com cores diferentes, mas a cloaca é sempre a mesma — escreve Mommsen es- tudando a invaridvel pintura da escravidlo antiga — assim a Itélia, da época ciceroniana, parece-nos es- sencialmente com a Hélade de Polibio e, mais ainda, com a Cartago do tempo de Antbal, onde, exatamen- te do mesmo modo, o regime onipotente do capital arruinou a classe média, elevou o negécio e a cultura da terra ao maior grau de florescimento, e por fim produziu a corrupeao moral e politica da nagio. E essa mesmissima instituigio, carregada com as culpas da Hist6ria toda, que, eliminada da Asia e da Europa, esmagada na América, proscrita pela consciéneia humana e em vésperas de ser tratada por ela como pirataria, se refugia no Brasil e nos suplica que a deixemos morrer naturalmente, isto 6, devorando, para alimentar-se, o diltimo milhao e meio de vitimas humanas que Ihe restam no mundo civilizado. Que devemos fazer? Que aconselham ao pais — que até hoje tem sido a criatura daquele espirito infernal, mas que ja comega a repudiar essa desonrosa tutela — os que adquiriram o direito de dar-lhes conselhos? Que lhe aconselha a Igreja, cujos Dispos esttio mudos vendo os mereados de escravos abertos; a imprensa; as academias, os homens de letras, os professores de direito, 0s educadores da mocidade, todos os depositarios da diregdo moral do nosso povo? Que lhe dizem os poetas, a quem. Castro Alves mostrou bem que num pais de escravos a missiio dos poetas é combater a escravidiio? A mocidade, a quem Ferreira de Meneses e Manuel Pedro — para s6 falar dos mortos — podem ser apontados como exemplos do que é a frutificagao do talento quando € a liberdade que fecunda? Que Ihe aconselham, por fim, dois homens, que tém cada um a responsabilidade de guias do povo? Um, o sr. Saraiva, escreveu em 1868: “Coma escravidio do homem e do voto, continuaremos a ser como somos hoje, menosprezacos pelo mundo civilizado que nao pode compreender se progrida tio pouco com uma natureza tio rica”, e disse em 1873: “A grande injustiga da lel € ndo ter cnidado das geragdes atuais.” O outro é o herdeiro do nome e do sangue de José Boni- fécio, a cujos ouvidos devem ecoar as tiltimas palavras da -166- Representagdo A Constituinte, como um apelo irresistivel de além- tuimulo, ¢ cuja carreira politica serd julgada pela Histéria como a de um sofista eloqitente, se ele nao colocar ainda os sentimentos de justiga, liberdade e igualdade, que tratou de despertar em nds, acima dos interesses dos proprietdrios de homens de Sao Paulo. ‘A minha firme convicgdo € que, se nfo fizermos todos os, dias novos e maiores esforcgos para tornar o nosso solo perfeita- mente livre, e néio tivermos sempre presente a idéia de que a escravidio é a causa principal de todos os nossos vicios, defei- tos, perigos e fraquezas nacionais, o prazo que ainda ela tem de duragao legal — calculadas as influéncias que Ihe estio precipitando 0 desiecho — serd assinalado por sintomas cres- centes de dissolugdo social. Quem sabe mesmo se o historiador do futuro nio tera que nos aplicar uma destas duas frases — ou ade Ewald sobre Judé — “A destruigdio total do antigo reino era necesséria antes que se pudesse por termo a escraviddo que ninguém se aventurava a dar mais um passo sequer para banir”” ou, pior ainda esta de Goldwin Smith* sobre a unidio americana: Os estados cristdos da América do Norte associaram- se com a escravidio por causa do Império e por or- gulho de serem uma grande confederagao; ¢ sofreram apenalidade disso, primeiro no veneno que o dominio do senhor de escravos espalhou por todo o seu sistema politico e social, e, segundo, com esta guerra terrfvel e desastrosa? Uma guerra em que o Brasil entrasse contra um povo livre, com a sua bandeira ainda tisnada pela escravidio, poria instintivamente as simpatias liberais do mundo do lado contrério ao nosso; ¢ uma nagao de grande inteligéncia nativa, livre da praga do militarismo politico e das guerras sul-americanas, branda e suave de coraeio, pacffica e generosa, seria por causa desse mercado de escravos, que ninguém tem a coragem de fe- char, considerada mais retrégrada e atrasada do que outros patses que nao gozam das mesmas liberdades individuais, no tém a mesma cultura intelectual, 0 mesmo desinteresse, nem o mes- mo espitito de democracia e igualdade que ela, Escrevi este volume pensando no Brasil, e someiite no Brasil, sem 6dio nem ressentimento, e sem descobrir em mim ‘mesmo, contra quem quer fosse, um tomo consciente dessa inveja que Ant6nio Carlos disse ser “o ingrediente prineipal de que siio amassadas nossas almas”. Ataquei abusos, vicios e priticas; denun- n167- ciei um regime todo, e por isso terei ofendido os que se ider com ele; nio se pode, porém, combater e da ordem da es lo, porque esta arruinando, cada vez mais, 0 pats, ¢ eles querem que essa instituigio cont Jegalmente respeitada, Acaba-se com a escravidao, ten! coragem de fazé-lo, e ver-se-4 como os abolicio no interesse mesmo da agricultura, e de todos os agi porém, o atual sistema roximando-o da decomposi- nobremente, com o apoio de grande ntim recidos, ¢ que ousem ren reconhecendo os direitos da nat sar 0 desespero, o medo patridtico, ea dor que 0 adiamento da aboligiio no: 8 a gente, o conseg jar a nacional. Den todo, Por uma euriosa teor somos responsfveis pela escravidio, milos do sangue dos escravos. Nao bi consentem. a repel que as degrada para nao reagirem, podem ser culpadas da paralisia moral que as tocou, Os napolitanos foram assim responséveis pelo bourbonismo, o3 romanos pelo poder temporal, os polacos pelo cezardo, ¢ 08 0 ‘Mas, fundada ou nao, essa 6 a crenga de muitos. I a esor: racada nos mais me- Jindrosos recantos onde se r =168~ tudo o que a pat dizer, nos bragos di “Nao sei o que possa um esc do que mostrar aos , € ser considerado ‘como as nossas florestas virgens precisam de lade; mas, nenhum eseritor de consciéncia que deseje servis , despertando os seus melhores instintos, tomar ess: milhante estrada da adulagdo. A superstigo de que 0 povo nao pode errar, a que a Hist6ria toda é um desmentido, nfo é necessiria para fundar a lei da demoeracia, a qual vem r por ele ¢ de impor. gulmano a religito; pa igdes préprias, O Brasil io de hoje, nem ela pode querer deificar-se, ¢ ser a de haver renegado o seu pai que eobrisse de navios as nossas aguas para bloquear os ninhos dos piratas do Rio e da Bal ele, segundo a sua propri quanto ha de vicioso, fraco, da escraviddo, parece que dessa forma quis converter a ins segregada, que tudo absorveu, em bode emissario de Israel, car- regé-lo com todas as faltas do povo, e fazé-lo desaparecer com elas no deserto. O orgulho nacional procura sempre ter A milo vitimas expiatérias dessas. 1 a peniténcia afigura-se m classes, ou um regime todo. jubileu hebraico, libertando todos os servos. A escravidio é um. ~169- ‘mal que nilo precisa mais ter as suas fontes renovadas para atuar ‘em nossa circulagao, e que, hoje, dispensa a relagdo de senhor e escravo, porque ja se diluiu no sangue. Nao é portanto a simples emancipacio dos escravos e ingénuios que hi de destruir esses germens, para 0s quis 0 organismo adquiriu tal afinidade. A meu ver, a emancipagao dos escravos e dos ingénuos, posso repeti-lo porque esta é a idéia fundamental deste livro, é 0 ‘comego apenas da nossa obra. Quando nao houver mais esera- vos, a escravidio poder ser combatida por todos os que hoje nos achamos separados em dois campos, s6 porque hé um inte- esse material de permeio. Somente depois de libertados os escravos e os senhiores do jugo que os inutiliza, igualmente, para a vida livre, poderemos empreender esse programa sério de reformas — das quais as que podem ser votadas por lei, apesar da sua imensa importan- cia, sito, todavia, insignificantes ao lado das que devem ser rea- lizadas por nés mesmos, por meio da educagio, da associacio, da imprensa, da imigragdo espontanea, da religiao purificada, de um novo ideal de Estado: reformas que nao poderio ser realizadas de um jato, aos aplausos da multidio, na praga ptibli- ca, mas que tero de ser executadas, para que delas resulte um povo forte, inteligente, patriota e livre, dia por dia e noite por noite, obscuramente, anonimamente, no segredo das nossas vi- das, na penumbra da familia, sem outro aplauso, nem outra Tecompensa, sendo os da consciéneia avigorada, moralizada e disciplinada, ao mesmo tempo viril e humana. Essa reforma individual, de nés mesmios, do nosso cardter, do nosso patriotismo, no nosso sentimento de responsabilidade civica, 6 0 tinico meio de suprimir efetivamente a escravidio da constituigto social. A emancipagao dos esoravos é portanto apenas 0 comego de um Rinnovamento, do qual o Brasil est carecendo de encontrar 0 Gioberti e depois dele, o Cavour, Compare-se com 0 Brasil atual da escravidao o ideal de patria que nés, abolicionistas, sustentamos: um pais onde todos sejam livres; onde, atraida pela franqueza das nossas instit (Ges e pela liberdade do nosso regime, a imigeagdo européia traga, sem cessar, pata os trépicos uma corrente de sangue caucésio vvivaz, enérgico e sadio, que possamos absorver sem perigo, em vez dessa onda chinesa, com que a grande propriedade aspira a viciar e corromper ainda mais a nossa raga; um pafs que de alguma forma trabalhe originalmente para a obra da humanidade e para o adiantamento da América do Sul. -170- Essa ¢ a justificago do movimento abolicionista. Entre 08 que tém contribufdo para ele é cedo ainda para distribuir meng®es honrosas, e 0 desejo de todos deve ser que o nimero dos operdirios da undécima hora seja tal que se torne impossivel, mais tarde, fazer distingdes pessoais. Os nossos adversérios precisam, para combater a idéia nova, de encarné-la em indivi- duos, oujas qualidades nada tém que ver com o problema que eles discutem. Por isso mesmo, nés devemos combater em toda a parte tendo prinofpios, ¢ no nomes, inscritos em nossa ban- deira. Nenhum de nés pode aspirar a gl6ria pessoal, porque nao hd gloria no fim do séoulo XIX em homens educaclos nas idéias € nna cultura intelectual de uma época to adiantada como a nossa, pedirem a emancipagdo de escravas. Se alguns dentre nés tiverem © poder de tocar a imaginaedo e o sentimento do povo de forma a desperté-lo da sua letargia, esses devem lembrar-se de que nao subiram a posigao not6ria que ocupam sentio pela escada de sim- patias da mocidade, dos operarios, dos escravos mesmos, ¢ que foram impelidos pela vergonha nacional, a destacarem-se, ou como oradores, ou como jornalistas, ou como libertadores, sobre © fundo negro do seu proprio pafs mergulhado na escravidio. Por isso eles devem desejar que essa distingilo cesse de sé-lo quanto antes. © que nos torna hoje salientes 6 téo-somente a uta da patria: por mais talento, dedicagio, entusiasmo, e sacri- ffeios quie os abolicionistas estejam atualmente consumindo, 0 nosso mais ardente desejo deve ser que nao fique sinal de tudo isso, ¢ que a anistia do passado elimine até mesmo a reeordagao da luta em que estamos empenhados. Aanistia, 0 esquecimento da escravidiio; a reconciliagio de todas as classes; a moralizagio de todos os interesses; a ga- rantia da liberdade dos contratos; a ordem nascendo da coope- ragdo voluntéria de todos os membros da sociedade brasileira: 6 a base necesséria para reformas que alteiam o terr politico em que esta existiu até hoje. O povo brasileiro necessita de outro ambiente, de desenvolver-se e crescer em meio inteira- mente diverso, Nenhuma das grandes causas nacionais que produziram, ‘como seus advogados, os maiores espiritos da humanidade, teve nunca melhores fundamentos do que a nossa. Torne-se"cada brasileiro de corago um instrumento dela; aceitem os mogos, desde que entrarem na vida civil, o compromisso de niio nego- ciar em carne humana; prefiram uma carreira obscura de traba- Iho honesto a acumular riqueza fazendo ouro dos sofrimentos nari- inexprimiveis de outros homens; eduquem os seus fillos, edu- quem-se a si mesmos, no amor da liberdade alheia, tinico meio de nao ser a sua propria liberdade uma doagio gratuita do desti- no, e de adquirirem a consciéncia do que ela vale, e coragem para defendé-la. As posigdes entre nds desceram abaixo do nivel do cardter; a maior utilidade que pode ter hoje o brasileiro, de valor intelectual e moral, é eduicar a opiniio (feliz do que chega a poder guid-la), dando um exemplo de indiferenca diante de honras, distingSes ¢ titulos rebaixados, de cargos sem poder efetivo. Abandonem assim os que se sentem com forga, inteli- géncia e honradez bastante para servir & pétria do modo mais ‘itil, essa mesquinha vereda da ambigao politica; entreguem-se de corpo ¢ alma a tarefa de vulgarizar, por meio do jornal, do livro, da associagao, da palavra, da escola, os principios que tornam as nagdes modernas fortes, felizes e respeitadas; espa- Them as sementes novas da liberdade por todo 0 territ6rio o* berto das sementes do dragao;" e logo esse passado, a cu ‘esboroamento assistimos, abrird espago a uma ordem de coisas fundada sobre uma concepgio completamente diversa dos de- veres, quanto a vida, a propriedade, & pessoa, & famifia, 2 honra, aos direitos, dos seus semelhantes, do individuo para com a nagio, quanto a liberdade individual, civilizagio, a igual pro- tegiio a todos, ao adiantamento social realizado, para com a humanidade que Ihe da o interesse e participagdio —e de fato 0 entrega tacitamente a guarda de cada uma — em todo esse patriménio da nossa espécie. Abolicionistas so todos os que confiam num Brasil sem. escravos; os que predizem os milagres do trabalho livre, os que sofrem a escraviddo como uma vassalagem odiosa imposta por alguns, ¢ no interesse de alguns, nagio toda; os que ja sufocam nesse ar mefitico, que escravos e senhores respiram livremente; ‘0s que nfo acreditam que o brasileiro, perdida a escravidiio, se dite para morrer, como o romano do tempo dos césares, porque perdera a liberdade. Isso quer dizer que nds vamos ao encontro dos supremos interesses da nossa patria, da sua civilizagao, do futuro a que ela tem direito, da missio a que a chama o seu lugar na América; ‘mas, entre nés ¢ os que se acham atravessados no seu caminho, quem hi de vencer? If esse o prépriv enigma do destino nacional do Brasil. A escravidio infiltrou-Ihe o fanatismo nas veias, e, por isso, ele nada faz para arrancar a diregaio daquele destino as foreas cegas ¢ indiferentes que o esto, silenciosamente, encaminhando. i Notas ralisadoras do gow 0 sepuinte efle -173- 6. Times de 7 de janeiro de 1861, 7. Antiguidade 9. Viotor Sehocleler, 10, Cartas do solr, carta XI, LL. Mommsen. -174- Guia de leitura Joaquim NaBuco E A CONSTRUGAO DO Brasit por Jean M. Carvalho Franga M INTELECTUAL NO BRASIL OFTOGENTISTA — Tudo para o Brasil e pelo Brasil. Tal palavra de ordem, que em 1836 serviu de epigrafe para a famosa Revista Niteroi — publicagao responsavel pela introdugio do idesrio romantico no Brasil —, poderia constar, de certo modo, na capa de pratica- mente todas as publicagdes nacionais que vieram a piblico durante o século XIX. Bravata nacionalista de um povo que acabava de conquistar a sua independéncia? Ha, sem duivida, esse aspecto, mas nao s6. Interpretado a luz dos acontecimentos que tiveram lugar no pafs na primeira metade do séoulo XIX—a transferéncia da corte de D. Joao VI (1808), a Independéncia (1822) ¢, sobretudo, a Revolugio de 7 de abril (1831), quando o Teme da jovem nagao passou definitivamente para as maos de uma elite local —, 0 slogan ganha um sentido profundo ¢ ilustra com maestria o espirito que tomou conta dos homens de letras oitocentistas. Os antecedentes desse espirito remontam ao desembar- que joanino, remontam aos tempos de José Bonificio, Janusrio da Cunha Barbosa e Monte Alverne, antecessores da geragiio que ‘encabegava a Niter6i. Desde entiio, e num crescendo, espalhou- se e consolidou-se entre a diminuta intelectualidade nacional a idéia de que aos homens de letras cabia uma espécie de missio civilizatéria, missio cujo objetivo maior era langar as bases de uma cultura e de um povo que pudessem verdadeiramente ser chamados de brasileiros. Daf o viés nacionalista e pedagégico que caracterizou a produgio cultural do perfodo, dai igualmente a prdtica comum entre os poucos homens de letras do pats de se desdobrarem em mil atividades, da politica ao jornalismo, do ensino a pritica literdria Joaquim Aurélio Nabuco de Araiijo é um expoente tipico, etalvez dos mais expressivos, dessa cepa de intelectuais ansiosos por construir as bases da jovem nagio que emergiu em 1822 -175- Nabuco nasceu no Recife, em 19 de agosto de 1850, no seio de ‘uma familia cujos destinos estavam intimamente ligados aos do pais. O pai, José Tomas Nabuco de Araiijo — futuro senador, conselheiro de Estado e ministro do Império —, provinha de uma linhagem que, desde o primeiro Reinado, tinha poderosa {influéneia na politica nacional, A mie, Ana Benigna de S4 Barreto, Provinha dos Paes Barreto, estirpe que ha mais de dois séculos gozava de grande prestigio em Pernambuco. ‘Nao foi, porém, na companhia dos pais, obrigados a se deslocarem para a Corte, que Nabuco viveu a sua primeira infancia. Poucos meses apés seu nascimento, ele vai morar com 0s padrinhos, Joaquim Aurélio Pereira de Carvalho ¢ Ana Rosa Falefio de Carvalho, no Engenho Massangana, onde passow os oito primeiros anos de sua vida. A estadia marcou-o profunda~ mente, a ponto de, mais tarde, nas suas memérias intelectuais, comentar: Os primeiros oito anos de minha vida foram assim, em certo sentido, os de minha formagéo, instintiva ou moral, definitiva... Esses anos de meninice em um engenho teriam fambém, revela o pernambucano, langado em seu esptrito 0 ger- me da revolta contra uma das mais solidas instituigées brasileiras da época: a escravidi Amorte da madrinha, Ana Rosa, que tinha grande ascen- déncia sobre o afilhado, levou o garoto, em 1857, 20 encontro dos pais no Rio de Janeiro, onde iniciou os seus estudos, Os Preparatérios, cursou-os num colégio em Friburgo, coordenado pelo famoso barao Tautphoeus. Daf por diante, seguiu a mesma {trajetoria de uma pareela significativa dos jovens bem-nascidos do Brasil oitocentista— os nio tio bem-nascidos, mas talentosos, como Machado dle Assis, Gongalves Dias, Teixeira ¢ Sousa e mu tos outros, seguiram a trilha do autodidatismo e do emprego Piiblico, Os estudos secundirios, Nabuco fé-los, assim como Alva. res de Azevedo, José Verissimo, Silvio Romero, Alfredo d'bscra. Snolle Taunay, e uma infinidade de outros nomes sonantes do oitocentos brasileiro, no famoso Colégio Pedro Il, instituigao de ensino modelar do perfodo, responsdvel pela formagio de bon Parte dos homens que estiveram a frente dos destinos politicos e culturais do pais durante o Império. ‘Terminados os estudos secundarios, em 1866, o pernam- bucano teve de optar por uma das quatro ingtituig6es de ensino ‘superior que o pais dispunha para formar os seus jovens. A escolha recalu sobre a Faculdade de Direito de Sio Paulo. Af freqiientou 0s trés primeiros anos do curso, destacando-se como orador entre -176- rr os colegas. Em 1869, transfere-se para a Faculdade de Direito do Reeife, concluindo os estudos em 1870. Um ano antes de diplo- mar-se, Nabuco escandaliza a elite pernambucana, atuando como advogado de defesa de um escravo acusado de duplo homie! Data dessa época a redagiio do opiisculo A eseraviddo, obra em que o doutor recém-formado, com uma consisténcia e estilo que 4 faziam antever o grande pensador que viria a ser, procurava conveneer os seus contempordineos de que o cativeiro dos negros causava enormes males ao pats, sendo o maior deles, talvez, a degradaedo moral que impingia a todos, negros e brancos. O optis- culo, que permaneceu incompleto, s6 veio a ptblico em 1924, nas paginas da Revista do Instituto Historica e Geogrdfico Brasileiro. Nos oito anos seguintes, Nabuco preparou-se para trilhar © caminho mais ambicionado pelos jovens médicos e bacharéis do Império, a politica. Em 1870, logo apés formar-se, muda-se para o Rio de Janeiro e, no jornal A Reforma, inicia a'sua longa ¢ proficua atividade jornalistica. Em 1872, depois de ripidas ¢ timidas incursGes pelo ensaio, drama e poesia, publica o seu pri- meiro trabalho ensaistico de folego, Cambes e Os lusiadas. No ino seguinte, desfaz-se de uma propriedade que herdara de sua madrinha ¢ parte para a Europa, com o intuito de aprimorar-se intelectualmente. As viagens A Europa, das quais essa seria so- mente a primeira, deixaram impressées profundas no cardter de Nabuco e langaram-no num dilema tipico de muitos dos intele- tuais brasileiros do oitocentos: 0 amor desmedido pela cultura ¢ pelo modus vivendi do Velho Mundo — diante do qual o Brasil Parecia uma terra de gente grosseira e pouco civilizada — ¢ a incapacidade de deixar 0 pais atrasado, mas querido. A esse respeito, diria mais tarde o proprio Nabuco: De um lado clo mam, sente-se a auséneia do mundo; do outro, a auséncia do pats. Em 1878, depois da curta estada na Europa (1873/74) ¢ de passar pelos Estados Unidos na qualidade de adido (1876), Nabuco inicia a ambicionada carreira politica, disputando a si primeira eleieio para deputado geral por Pernambuco, da qual sai vitorioso. No Parlamento, poe em marcha uma aguerrida uta contra a escravidio, Iuta que culmina, dois anos mais tarde, na ndagio da Sociedade Brasileira contra a Escravidao. As po- sigées ousadas de Nabuco criam um profundo mal-estar no seu Partido (Liberal) ¢ inviabilizam a sua reeleigaio no ano seguinte. Desiludido com a politica — em carta a um amigo, desabaiava, decididamente nao fui feito para o que entre nés se chama 177 politica —, deixa a Corte e segue para um exflio voluntario em Londres, onde escreve O abolicionismo — publicado apés o sett retorno ao pais em 1884. Nabuco voltaria a Camara dos Deputados por mais trés vezes: em 1885, em 1887 e, por fim, em 1889. Durante a segunda legislatura, o combativo deputado assistiu & realizagao de seu grande sonho, a libertagdio dos escravos, mas durante a tiltima teve 0 infortiinio de acompanhar a agonia e derrocada do Império, que Ihe era tio caro. De stia atuagiio no Parlamento nese periodo, para além da luta em prol da aboligfo (que implicava nao somente allibertacdo dos cativos, mas também a reforma das instituigdes, impregnadas por 300 anos de escravismo), Nabutco defendeu ain. da a transformagio do pafs numa federagio. Tal mudanga, acreditava 0 legislador, poderia talvez evitar a iminente queda do Império. A queda, todavia, nao tardou, e Nabuco, depois do 15 de novembro, retirou-se da vida piiblica, recusando-se a estabelecer qualquer vinculo com a Repiiblica. Convidado a postular uma cadeira na Assembléia Constituinte de 1891, declina o convite e fica sua posigfio num optisculo intitulado Por que sou monar- quista, Dez anos duraria esse afastamento do pernambucano dos negécios de Estado, Ganhou com tal divéreio a cultura brasileira, pois datam do perfodo duas magistrais obras suas: Minha formagao (1900) e Um estadista no Império: Nabuco de Araitjo (1896). A primeira retine uma série de artigos avulsos, publicados nas paginas do Comércio dle Sao Paulo (jornal monar. quista) e da Revista Brasileira, em 1895, e constitui uma espécie de autobiografia intelectual. O outro é a histéria da vida de seu pai, o conselh Abem da verdade, o liv tomando a vida do velho Nabuco como guia, é uma histéria pol tica do Segundo Império, na qual nfo deixa de estar presente um certo tom nostiilgico, expresso sobretudo na simpatica cons- trugiio da figura de Pedro II, referido na introdugao do livro como © ponto de convergencia da Grande Era Brasileira. Ambos os trabalhos sio indispenséveis para se conhecer a vida cultural e politica do oitocentos brasileiro, pois, em conjunto, constituem ‘© mais amplo e bem-apresentado panorama do periodo que um contemporaneo nos legou. Os desamores com 0 novo regime duraram até 1900, quando Nabuco, que se encontrava na Europa, resolveu aceitar © cargo de chefe de legagtio em Londres, tornando-se finalmente funciondrio da Republica. Na carreira diplomatica, lidera, entre ~178- 1900 © 1904, as negociagdes com a Inglaterra acerea de uma questo fronteiriga com a Guiana Inglesa e ocupa, em 1905, 0 Posto de embaixador do Brasil em Washington, cidade onde velo. a falecer cinco anos mais tarde. Durante os dex tiltimos anos de sua vida, duas questdes ocuparam lugar de destaque nas suas reflexdes: a viabilizacao da inevitavel Repiiblica e o pan-america. nismo, Esta tiltima foi, depois da escravidao e do federalismo, a derradeira grande causa de sua movimentada vida piblica, © BRASIL ESGRAVOCRATA — A primeira parte da vida adulta de Nabuco (1870-1888), como pudemos ver, esteve quase que inteiramente vinculada a0 combate a escravidio, O aboli. cionismo, livro escrito em 1883, no curto auto-exilio londrino, ¢ Publicado no ano seguinte, € como que 0 produto e a sintese desses anos de combate apaixonado. Em decorréncia disso, ha quem veja a obra somente como uma bem-articulada pega de Propaganda em prol da aboligao da escravatura. Carolina Nabuco, Por exemplo, na biografia que escreveu do pai, diz. que essa seria uma de suas obras-mestras, se ndo tivesse perdido toda a suat atualidade. Outro bidgrafo de Nabuco, Luis Viana Filho, vai ainda mais longe. Para ele, o livro, embora tenha sido festejado pelos companheiros abolicionistas de Nabueo, équase mediocre e, na €poca de sua publicagdo, nao causou grande comogiio na opiniao publica, Oabolicionismo, todavia, como bem destacou o historia- dor Bvaldo Cabral de Mello, esta longe de ser somente um libelo contra a escravidio. E isso, sobretudo, em virtude de uma in- versio de perspectiva que 0 autor anuneia logo na abertura do livro. Bsclarece-nos Nabuco que a eseravidao nao ¢ apenas mais um dos problemas estruturais do Brasil, mas o problema por exeeléncia, pois sobre ela construimos politica, econdmica, social € moralmente o pais. Operando tal inversio, o intelectual per- nambucano redefine os termos da problemética escravista © abolicionismo ganha os contornos de um movimento pela completa reconstrugio das instituigdes nacionais, e 0 aboli- cionista, a forga de um reformador que tem urgéncia em alterar © modo de conduzir o pais, estagnado e corrompido pela pratica esoravista. Amaneira de interpretar a hist6ria do cativeiro de negros no Brasil ¢ os seus impactos sobre a sociedade brasileira é também substantivamente alterada. Nabuco, em O Abolicio. ‘nismo, mostra-se um eritico feroz do modelo de colonizagio -179- portuguesa, argumentando que a africanizagao do Brasil pela escraviddo teve custos elevadissimos, custos que aos br: coube pagar. O cativeiro, argumenta o pernambucat que a mae-pétria imprimiu na prépria face, amesqi crescimento econdmico do pais, corrompeu moralmente brancos € negros, impediu a coesfo social, acostumou os brasileiros 20 servilismo e & adulagdo nas relagées politicas, enfim, legou-nos uma base podre sobre a qual insistentemente e com resultados mediocres tentamos eriar uma nag, Nabuco, todavia, malgrado 0 quadro inquietante que des- reve, aponta 20 longo do livro saidas para o impasse. A libertago dos escravos é, sem diivida, o ponto de partida, mas ndo mais do que isso. Rompidos os grilhdes que prendem os cativos, 0 pats deveria urgentemente promover um programa sério de reformas, de modo a suprimir a escravidao da constituigdo social brasi- leira. Reduzidas sao, no entanto, adverte Nabuco, as reformas que poderiam ser feitas por forga de lei. A maior e mais importan- te parte delas caberia a propria sociedade, por meio da educagao, da associagao, da imprensa, da imigragdo espontanea, da religiao purificada e de um novo ideal de Bstado. O abolicionismo, em sintese, ainda que escrito no calor da luta, no visa somente alertar para a desumanidade do o: veiro de negros e descrever os males que tal prética, na época, causava ao pais. Nabuco, ao longo de duas centenas de paginas escritas com ele- gincia, consisténcia e clareza, quer dar a conhecer o pafs que os brasileiros construfram sobre o alicerce escravista deixado pelo colonizador. Trata-se, sem dtivida, como salientou Baldo Cabral de Mello, de um dos textos fundadores da sociologia brasilei Jean M. Canvautio Franga é doutor em Literattira Comparada pela UFMG e autor de Literatura e sociedade no Rio de Janeiro oito- centista, Lisboa, Imprensa Nacional — Casa da Moeda, 1999, -160- CRoNOoLoGIA 1849 — Nasce, em Recife, Joaquim Aurélio Barreto Nabueo de + Aratijo. 1857 — Nabuco muda-se do Engenho Massangana para o Rio de Janeiro. 1866 — Inicia os estudos Direito de Sao Ps 1869 — ‘Transfere os estudos para a Faculdade de Direito do Recile e atua como advogado de defesa de um escravo acusado de duplo homicfdio. 1870 — Redige A escraviddo, trabalho que viri somente apés a sua morte. 1872 — Publica Camées e Os lustadas. niversitérios na Faculdade de a piblico 1873 — Em busca de formagao intelectual, faz a primeira de muitas viagens a Europa. 1878 — Ii eleito deputado pela Provincia de Pernambuco. 1880 — Organiza em sua residéncia a Sociedade Brasil contra a Bscravidao 1882/83 — Derrot parte para a Europa, onde redige O abolicionismo. 1885 — Retorna ao Parlamento e publica Campanha abolicionista no Recife: elei 1887/88 — Assume o s Deputados ¢ ve eseravos, 1889 — Desiludido com a queda do Império, periodo de afastamento dos negécios pt 1891 — Publica Por que sou monarquista. 1895/96 — Publica O dever dos monarquistas, Balmaceda, A intervengdo estrangeira na Revolta de 1893 ¢ Um estadista no Império: Nabuco de Arattjo. Indo de Machado de Assis, da criagio da terceiro mandato na Camara dos alibertagiio dos um longo 08. 1899 — Accita defender o Brasil na questiio de limites com a entiio Guiana Inglesa. 1900 — Publica Minha. formagao. 1905 — if nomeado embaixador do Brasil em Washingtor 1906 — Organiza, no Rio de Janeiro, a III Conferéncia P: Americana. 1910 — Morre em Washington, apés prol (cr) ada doenca. ~181~ BIBLIOGRAFIA Do autor NABUGO, Joaqui \- Balmaceda, Sto Paulo: Instituto Progresso Bdltor 1949. * Camées ¢ Os Lustadas, Rio de Janelro: Tipografla do Imperial Instituto Artistico, 1872, + Campanha abolicionista no Recife: eleigGes de 1884, Recife: Fundagio Joaquim Nabueo, Baitor: 1988. + dever dos monarqust io: Tipogralia Leuzinger, 1895, * O direito do Brasil, 8 Progresso + Disoursos e conferénoias nos Bstados Unidos. Tradugl ‘Arthur Bomuleat. Rio de Janeiro: B, Aguila, 1911 + Discursos parlamentares. Sio Paulo: Instituto Progresso Rditori 1949. + A csoravidéo. Recife Jonquim Nabuco, Bditora Massangana, 1988. + Bscritos e discursos literérios, Sto Paulo: Instituto Progresso Balt 1949. + A intervengio estrangeira durante a revolta de 1893. Rio de Janeiro: Freitas Bastos & Ci, 1932, + Minhas formagdo. Rio de Saiselro: Topbooks, 1999. + Pensamentos soltos. Camées e assuntos americanos. Tradugio de Carolina Nabueo. So Paulo: lnstieuto Progresso Editorial, 1949. + Um estadista no Inipério: Nabuco de Araijo, Rio de Janeiro: Toph 1997,2. SOBRE 0 AUTOR de §.Paulo, 27/2/2000, p. 18. ina, A vida de Joaquim Nabueo. ~182- VIANA FIL, Lats, vida de Joaquim Nabuco. 2 ed. 1973. —_____. Bs estadtistas: Rui, Nabu Janeiro: Livraria José Olympio Editora, em cor Nacional do Livro, 10 Paulo: Mactins, FUNDAGAO JOAQUIM NABUCO. www.fundaj gov.be (mar) -183-

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