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Letras — Angel Rama 0 ne Literatura Medieval — Katharina = Paula Beiguelman = Teoria da Po eta — Augusto de Campos/Haroldo ‘de Campos /Décio Pignatari ‘Colegio Primeiros Passos + O que é LingUistica — Eni P, Orlandi x Roland Barthes DEDALUS - Acervo - FFLCH-FIL 301 Rumor da lingua J 2850p O RUMOR DA LINGUA Tradugto Mario Laranjeira Profitcio Leyla Perrone-Moisés Tombo: 00638 | SBD-FFLCH-USP editora brasiliense 1988- O rumor da lingua A palavrasé irreversivel, tal é a sua fatalidade. Nao se pode retomar lar; tudo que posso fazer é dizer ‘‘anulo, apago, retifico””, ou se mais. Essa singularissima anulac3o por acréscimo, eu a chi Obs : compreende-se mal; mas, por outra, com esforgo, chega-se a com preender apesar de tudo; no esta verdadeiramente nem na lingua nem fora dela: ¢ um ruido de linguagem comparivel a sequéncia de barulhos pelos quais um motor da a entender que esta mal regulado; tal é preci- samente o sentido da rateaedo, sinal sonoro de uma falha que se Ibucio (do motor ou do suj suma, um medo: tenho medo de que a marcha venha a parar. ‘A morte da méquina: ela pode ser dolorosa para o homem se este a descreve como a de um bicho (ver 0 romance de Zola). Afinal, por me- ‘nos simpitica que seja maquina (porque constitui, sob a figura do rob6, a mais grave das ameacas: a perda do corpo), hd entretanto nela a possi- bilidade de um tema euférico: 0 seu bom funcionamento; tememos a ‘maquina por ela funcionar sozinha, desfrutamos dela por funcionar bein. ,, Ora, da mesma maneira que as distungies da linguagem slo de“certo (© RUMOR DA LINGUA % modo resumidas num signo sonoro, o balbucio, assim também 0 bom fancionamento da maquina se estampa mum ser musical: 0 rumor. (© rumor ¢ o barulho daquilo que esté funcionando bem. Segue-se oparadoxo: 0 rumor denota um barulho limite, um barulho impossivel, © barulho daquilo que, funcionando com p rumorejar ¢ fazer ouvir a propria evaporacio do barulho: o ténue, © camuflado, 0 fremente sio recebidos como sinais de uma anulagio so- nora, Sto entio as méquinas feizes que rumorejam. Quando a maquina , mil vezes imaginada e descrita por Sade, aglomerado ““pensa- jas regibes amorosas estéo cuidadosamente ajustadas ‘umas as outras, quando essa mAquina pde-se a funcionar, pelos movi- ‘mentos convulsivos dos participantes, ela treme ¢ rumoreja levemente; cenfim, ela estd funcionando, e fancionando bem. Quando os japoneses de hoje se entregam em massa ao jogo das méquinas caca-niqueis (cha- madas lé de Pachinko), em grandes halls, estes se enchem de um enorme rumor de bolinhas, e este rumor significa que alguma coisa, coletiva- mente, funciona: o prazer (enigmético por outras razdes) de jogar, de operar 0 corpo com exatidio. Porque 0 rumor (vé-se pelo exemplo,dty, Sade e pelo exemplo japonés) implica uma comunidade de corpos:*hos ruidos do prazer que ‘funciona’? nenhuma vor se eleva, conduz ou se afasta, nenhuma vor se constitui; 0 rumor ¢ construido mesmo do goz0 plural — mas de nenhum modo macico (a massa, pelo contrério, ten ‘uma s6 vor, terrivelmente forte). Ea lingua, pode rumor permanece, parece, cos dénada a0 balbucio; escrita, jos signos: de qual- quer modo, fica ainda muito sentido para que a linguagem realize um cebivel: o rumor da lingua forma uma utopia. Que utopia? A de uma musica do sentido; com isso entendo que em seu estado ut6pico a lingua seria ampliada, eu diria mesmo desnaturada, até formar uma imensa %.,_tratnia sonora em que 0 aparelho semantico se achatia irrealizado; 0 sig- métrico, vocal, se desfraldaria em toda a sua suntuosi~ ais dele se despegasse um signo (viesse naturalizar eise pure lengol de goz0), mas também — e ai estd o mais dificil — sem'que o sentido seja ‘brutalmente despedido; dogniaticamente excluido, enfim.- 4 (© RUMOR DA LINGUA Rumorejante, confiado a0 significante por um movimento desconhecido de nossos discursos racionais, nem por isso a lingua deixaria um horizonte do sentido: o sentido, indiviso, i vel, inominavel, seria no entanto posto longe como uma mit zendo do exercicio vocal uma paisagem dus ‘mas em lugar de a musica dos fonemas ser o ‘‘fundo’? das nossas men- sagens (como acontece na nossa Poesia), o sentido seria aqui o ponto de fuga do gozo. E da mesma forma que, atribuido a méquina, 0 rumor no émais que 0 ruido de uma auséncia de ruido, referido a lingua, ele seria esse sentido que faz ouvir, uma isengdo de sentido, ou — ¢ a mesma coisa — esse ndo-sentido que faria ouvir 20 longe um sentido agora liber- to de todas as agressdes de que o signo, formado na “triste e selvagem historia dos homens"’, é a caixa de Pandora. E sem chivida uma utopia; mas a utopia € que muitas vezes guia as pesquisas da vanguarda, Existem pois, aqui e ali, por instantes, o que se poderia chamar de experiéncias de rumor: tais sdo algumas produgdes da misica pos-serial (¢ muito significativo que essa miisica dé uma impor- ‘tancia extrema a voz: é a voz que ela trabalha, buscando desnaturar nel ido, mas nao 0 volume sonoto), certas pesquisas de radiofonia; tais ainda os iltimos textos de Pierre Guyotat ou de Philippe Sollers. mos levé-la a efeito, ¢ na vida, nas aventuras da vida; no que a vida nos ttaz de maneira inopinada, Noutra noite, a0 assistir a0 filme de Antonio- ni sobre a China, experimentei de repente, na virada de uma seqiténcia, © rumor da lingua: numa rua de aldeia, algumas criancas, enicostadas a fem em voz alta, cada um para si, todos juntos, um livro diferente; aquilo rumorava da melhor maneira, como uma méq fancionasse bem; o sentido era para mim duplamente impenetrave desconhecimento do chinés e pelo emaranhamento dessas leituras simul- tdneas; mas eu ouvia, numa espécie de percepcdo alucinada, to inten- samente recebia ela toda a subtileza da cena, eu ouvia a musica, 0 sopro, @ tensio, a aplicagdo, enfim, algo como uma meta, Qué! todos juntos para fazer rumorejar a lingua, da maneira rara, impregnadd de gozo, de que se acabou de falar? De jeito algum, claro; para. cena” sonora ¢ preciso uma erética (no sentido mais amplo do termo), o impul- asta falaremy ‘0 RUMOR DA LINGUA 95 0, ou a descoberta, ou o simples acompanhamento de emogio: o que era trazido justamente pelo rosto dos meninos chineses. Fico imaginando hoje, um pouco & moda do grego antigo, tal como co descreve Hegel: interrogava, diz ele, com paixfo, sem esmorecimento, © rumor das folhagens, das fontes, dos ventos, enfim, 0 estremecer da Natureza, para ali captar 0 desenho de uma inteligéncia. E eu, 0 estre- mecer do sentido que interrogo escutando o rumor da linguagem — dessa linguagem que é a Natureza pera mim, homem moderno. In Vers une Esthétique sans Entraves (Mélanges Mikel Dufrenne) © U.GE.,1975

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