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Por mais estapaftirdia que possa parecer esta maneira lesumana de pensar, atualmente no Brasil se esta criando Im outro mito: a necessidade de se preservar a negritude, Jm fato novo surge e sérios podem ser seus resultados, Despertar a consciéncia negra e estabelecer o culto da cor, idolatria da pigmentagao da pele, numa exaltacéo mérbi- la da pretura, € a misséo ingléria dos novos profetas da uta de classes, bem na linha marxiana de desestabilizagéo la ordem social, E um outro tipo de racismo, baseado no also pressuposto de que ainda reina o ideal do branquea- nento ou que perdura uma estratégia de dominagao dos rancos. rtalecer emocional e passionalmente ica cooperar para que no porvir uma E evidente que al movimento sig uta de classes se detone com prejuizos gravissimos para oda @ sociedade, jées de vitimas do racismo, imoladas nos infaustos hol E facil, demagégico provocar o narcisismo oletivo. Ai a razéo pela qual 0 movimento negro cre ssustadoramente, movido por paixdo que the confere inamismo, A porta para a violéncia logo se abre. A animosidade que se esté fomentando é ai fere 0 néicleo da doutrina evangélica, suscitando uma ise em potencial, pois tem caréter segregacionista. Pags. 128/129 VIDIGAL DE GARY, O EM FACE DA ESCRAVIDAO \ A CATOLICA®ESCRAVIDA\ JAIME JAIME BALMES A IGREJA CATOLICA aS 4086 GERALDO VIDIGAL DE AIGREJA E A ESCRAVIDAO NO BRASIL JAIME BALMES A IGREJA CATOLICA. EM FACE DA ESCRAVIDAO Tradugéo de JOSE G. M. ORSINI WWII ADENDO §) JOSE GERALDO VIDIGAL DE CARVALHO A IGREJAE A ESCRAVIDAO NO BRASIL 1988 — CENTENARIO DA ABOLICAO DA ESCRAVATURA NO BRASIL Editado pelo CENTRO BRASILEIRO DE FOMENTO CULTURAL Caixa Postal 9667 CEP 01051 — Sao Paulo — SP NOTA PREVIA DO EDITOR JAIME BALMES URPIA é mundialmente conhecido sobretudo por sua obra El Criterio, um dos mais valiosos guias para a disciplina da mente © organizagio dos estudos, ¢ que em nossos dias continua a ser traduzido para praticamente todas as linguas cultas. Dela — hum testemunho que explica téo marcante éxito editorial — disse outro escritor de génio, Marcelino Menéndez y Pelayo (0 autor da célebre Historia de los Heterodoxos Espafioles), que se trata de uma fonte de “higiene do espirito”. . No entanto, o significado cultural de Balmes ultrapassa de muito ‘0s limites da popularidade. Basta lembrar que, por ocasiio do cente- natio da publicago daquela sua obra, em 1944, 0 Instituto do Livro Espanhol promoveu uma série de conferéncias em homenagem a0 ilustre sacerdote ¢ escritor, conferéncias essas depois enfeixadas num volume editado no ano seguinte pelo Conselho Superior de Invest gages Cientificas, de Madri. E 05 conferencistas que abordaram os aspectos mais salientes de seu pensamento se incluiam entre os ‘maiores Juminares da cultura espanhola, Assim falaram: Juan Zara- gueta sobre Balmes fildsofo, Irenco Ganzalez sobre Balmes socidlogo, Salvador Minguijon sobre Balmes apologista e José Corts Grau sobre Balmes politico. A par dessa amplitude da visualizagéo balmesiana ‘que esses enunciados indicam, muito digno de nota que nosso autor no foi somente fildsofo © soci6logo e apologista ¢ politica: ele f a um 86 tempo e em cada instante, filésofo-sociélogo-apologista-pol tico, pois em todos 0s temas que abordava jamais perdia de vista essis miltiplas facetas da realidade, demonstrando uma sensibilidade apurada para as interagbes ¢ 05 miituos condicionamentos que na ordem tedrica e pritica se estabelecem entre esses virios fatores. Essa compreenstio da integralidade da problematica humana € um dos tragos que mais contribuem para assegurar a vitalidade © a per- manente atualidade de seu pensamento. Contemporineo de Marx ¢ de Comte, mas nutrido em melhor filosofia (estudou a fundo e apreciava muito Santo Tomas de Aquino), sabia vislumbrar as conexoes profundas subjacentes aos aconteci- mentos e por isso teve intuigdes geniais que s6 muito depois a Psicolo- gia, a Sociologia ou a Historiografia vieram corroborar exaustiva~ mente. Quando o calvinista Frangois Guizot publicou na Franca o livro Histoire Générale de la Civilisation en Europe (que logo se tornou uma arma de primeira linha para 0s ataques de protestantes, magons, agnosticos © ateus contra a Igreja Catdlica), escreveu em coniradita sua obra principal, El Protestantismo Comparado con el Catolicismo en sus Relaciones con la Civilizacién Europea (na ‘so original em 4 volumes), na qual perpassa toda a historia da civilizagao ocidental desde os primérdios do cristianismo e analisa detidamente cada um dos grandes problemas e episédios que marca- ram a caminhada da humanidade desde entio, a fim de demonstrar a influéncia benéfica que sobre os rumos dos acontecimentos exerceu a Religido Verdadeira, Mas sempre voltado para as miiltiplas exigéncias dos problemas de seu tempo (que em grande parte continuam a ser os dos dias atuais), escreveu uma Filosofia Elemental (4 volumes) para propor- cionar aos iniciantes uma boa orientagao no estudo dessa disciplina, €.a Filosofia Fundamental (também em 4 volumes), para estudiosos mais avancados, Numa época de florescente impiedade, alimentada principalmente pelos mitos cientificistas entdo em plena voga, escre- veu um notivel trabalho de defesa da fé: Cartas a un Escéptico en Materia de Religién, Inémeros outros estudos ainda produziv sobre Teologia, Histéria Eelesistica e Politica, Sem falar em sua continua atividade como jornalista, em revistas e jornais que fundou ou em que colaborou, influindo consideravelmente nos aconteci edigo completa de seus escritos pela B.A.C., de Madri densos volumes, E é de espantar gue todo esse intenso labor como homem de pensamento ¢ como homem de ago se tenha desdobrado em tio somente 8 anos. Nascido em 1810, publica sua primeira obra (¢ dai em diante desenvolve persistente atuacdo piblica) aos 30 anos ¢ morte em 1848, com apenas 38 anos, vitimado pela tuberculose. De sua fina percepeio das realidades deu abalisado testemunho Leao XIIL, que antes de tornar-se papa o conheceu durante estada de ambos na Bélgica (em 1845) © que 0 qualificou como “o maior talento politico do século XIX © um dos maiores que houve na historia dos escritores politicos”. Ena sua Historia de la Filosofia Espaiiola, 0 categorizado especialista Guillermo Fraile consigna: “Bal- mes preparou o ress:rgimento da filosofia crista no século XIX, Mas mais exato do que consideré-lo como precursor da restauragdo esco listica posterior € enquadré-lo dentro da linha de apologistas caté- licos da primeria metade daquele século, a todos os quais supera ‘em formagio filoséfica, em erudigao hist6rica e em elevagio e solidez de pensamento” 0 texto balmesiano que neste volume se insere, tratando especi- ficamente do problema da escravidio ¢ da influéncia da Tgreja para sua aboligéo, corresponde aos capitulos XIV a XIX de sua magna obra El Protestantismo Comparado con el Catolicismo en sus Relacio- nes con la Civilizacién Europea. Enriquece e complementa este volume o estudo especialmente escrito pelo cénego JOSE GERALDO VIDIGAL DE CARVALHO sobre a mesma problematica no caso patticular do Brasil. Suas ere- denciais para abordar o tema sto bem conhecidas dos especialistas. Mas cabem algumas palavras de apresentagio a um piblico mais amplo. Entre seus titulos e fungées, citem-se 0 de membro do Instituto Historico e Geogrifico Brasileiro, do Instituto Histérico ¢ Geograti de Minais Gerais, da Sociedade Brasileiri de Fildsofos Cat6licos, da Sociedade Interamerica de Filosofia ¢ da “Societa Internazionale Tom- ‘maso d’Aquino”, além de professor de Introducio aos Estudos Hist6- ricos, na Universidade Federal de Ouro Preto (MG), € de Historia da Igreja, no Seminério Maior de Mariana (MG). Espirito voltado para os vérios aspectos da problemética hu- mana em nosso tempo (dir-se-ia que tal como Balmes...), de sua visualizagio abrangente das realidades, de sua erudicio ampla e atua~ lizada, ¢ de sua sélida orientasio doutrinéria, dio testemunho os bem langados estudos que esto reunidos em volumes cujos titulos falam por si acerca das diversificadas preocupagies do autor — uni- ficadas porém pela atengio conferida ao mesmo protagonista que imprime sua presenca em todos esses cenérios: 0 homem concreto, corpo e espitito, inserido no tempo mas votado a eternidade. Bi-los: Temas Histéricos (1980), Temas Oratérios (1981), Temas Sociais (1982), Temas Filosdficos (1982), Temas Pedagdgicos (1984), Te- mas Teolégices (1984) e Temas Marianos (1986), aos quais proxi- mamente se juntaré Temas Biblicos, ‘No campo das. pesquisas histéricas, entre varios outros traba- thos, muitos safdos em jornais e revistas, publicou o volume Jdeologia @ Ratzes Sociais do Clero da Conjuracéo — Século XVIII — Minas Gerais (1978), e no que se refere ao nosso tema, A Igreia e a Escra- vidéo — Uma Anélise Documental (1985) € A Esvravidiio — Con- vergéncias e Divergéncias (1988), A IGREJA CATOLICA EM FACE DA ESCRAVIDAO JAIME BALMES INTRODUCAO Situagio religiosa, social e cultural do mundo 4a época de apariglo do cristianismo. O Direito Romano. Conjecturas sobre a influéncia exer- cida pelas idéias cristas sobre 0 Direito Roma- no. Vicios da organizagéo politica do Império. Sistema do cristianismo para regenerar a so- ciedade: seu primeiro passo se dirigiu & mo- dificagio des idéias. Comparagao entre 0 cris- tianismo © © paganismo no ensino das boas doutrinas. Em que estado o cristianismo encontrou o mundo? Nesta ques- tao temos de fixar agudamente nossa atenclo se quisermos apreciar devidamente os beneficios.proporcionados por essa divina religiio a0 individuo © & sociedade, se quisermos enfim conhecer 0 verda- deiro carter da civilizacdo erista Tnegavelmente era sombrio 0 quadro que apresentava a socie- dade em cujo centro brotou o eristianismo. Coberta de belas apa- réncias ¢ ferida em seu corago por enfermidade mortal, oferecia a imagem da corrupgio mais asquerosa, aureolada por brithante rou- pagem de ostentacio ¢ opuléncia. A moral sem base, os costumes sem pudor, as paixdes sem freio, as leis sem sangdo, a religiio sem Deus, fiutuavam as idéias & mercé das preocupacdes imediatas, do fana- tismo religioso e das cavilagées filos6ficas. Constitufa 0 homem um profundo mistério para si mesmo, e nem sabia ele avaliar sua digni dade, pois consentia em ser rebaixado ao nivel dos brutos ¢, mesmo quando se empenhava em ponderi-la, no lograva enquadré-la nos pardmetros indicados pela razio ¢ pela natureza, Neste sentido é bem significative que, enquanto uma grande parte da linhagem hu- mana gemia na mais abjeta escravidio, se exaltassem com tanta facilidade os herdis e até os mais detestaveis monstros fossem vene- rados nos altares dos deuses ‘Com tais componentes, teria de ocorrer mais cedo ou mais tarde ‘8 dissolugo social. Mesmo que no tivesse sobrevindo a violenta arremetida dos bérbaros, mais cedo ou mais tarde aquela sociedade teria entrado em decomposi¢io, porque néo existia em seu seio nenhuma idéia fecunda, nenhum pensamento consolador, nenhum vislumbre de esperanga que fossem capazes de preservé-la da ruina, ‘A idolatria jé tinha perdido sua forca: mola propulsora desgas- tada pelo tempo e pelo uso grosseiro que dela fizeram as paixdes, exposta sua frigil contextura ao dissolvente fogo da observagio filo- sGfica, estava extremamente desacreditada. E se, por efeito de arrai- gados habitos, ainda exercia sobre 0 animo dos povos algum influxo ‘maquinal, este no era suficiente nem para restabelecer a harmonia da sociedade nem para engendrar aquele fogoso entusiasmo inspira- dor de grandes ages. A julgar pelo relaxamento dos costumes, pela frouxidio dos caracteres, pela efeminagao e pelo Iuxo, pelo com- pleto abandono as mais repugnantes diversGes © aos mais asquerosos prazeres, torna-se claro que as idéias religiosas nada conservavam daquela’ majestosidade que se notava nos tempos herdicos e que, exercendo escassa ascendéncia sobre 0 animo dos povos, agora jé serviam até como lamentaveis instrumentos de aceleragiio do processo de dissolugio. Nem era possivel que acontecesse de outro modo: povos que se tinham elevado ao alto grau de cultura de que se podem gloriar gregos e romanos, que tinham ouvido seus sébios debater as grandes questes referentes & Divindade e ao homem, néo seria normal que permanecessem naquela candidez que sc fazia necesséria para acreditar de boa £6 nos intolerdveis absurdos de que esté satu- rado paganismo; e, seja qual fosse a disposicio de espirito da parte mais ignorante do povo, é evidente que nao podiam concordar com isso todos quantos se algavam um pouco acima da média — eles que tinham ouvido filésofos to sensatos como Cicero e que agora se compraziam com as maliciosas agudezas dos poetas satiricos. Se a religiio era impotente, restava aparentemente outro fator: fa ciéncia. Antes de entrar no exame do que se poderia esperar dela, € necessério observar que jamais a ciéncia fundou uma sociedade rem jamais foi bastante para restituir-lhe 0 equilibrio perdido. Revol- vya-se a histéria dos tempos antigos: sera possivel encontrar & frente de alguns povos homens eminentes, que, exercendo um magico in fluxo sobre o corago de seus semelhantes, ditam leis, reprimem abusos, retificam idéias, endircitam costumes ¢ assentam sobre sébias stituigdes © seu governo, edificando em maior ou menor escala a 2 vanyiiilidade © 9 prosperidade das coletividades entregues & sua dlirego e cuidado, Mas estaria muito enganado quem supusesse que ses homens agiram em fungio do que nés denominamos combi ees cientificas: como regra geral, simples, e até rudes & grosseiros, agiram por forea de impulsos de seu reto coragéo © guiados por aquele bom senso, aquele prudente realismo que marca o pai de familia no manejo dos negécios domésticos; nunca tiveram por norma essas miseriveis cavilacOes que nds apelidamos de teorias, essa mis- celanea indigesta de idéias que nés aureolamos com © pomposo rotulo de ciéncia, Tanto assim que ninguém teré a ousadia de afirmar que os melhores tempos da Grécia foram aqueles em que floresceram 0 Plates ¢ os Aristételes... E aqueles férreos romanos que subju- garam o mundo nao possufam por certo a extensio e vatiedade de conhecimentos que admiramos no século de Augusto; mas quem rocard aquele tempo por este. aqueles homens por estes? Os séculos modernos poderiam também proporcionar-nos abun- dantes provas da estetilidade da ciéncia nas instituigoes sociais, coise tanto mais facil de notar quanto mais patentes se fazem os resultados praticos dimanados das ciéncias naturais. Dir-se-ia que nestas se concedeu ao homem o que naquelas the foi negado, se bem que, examinando-se as coisas a fundo, a diferenca nao € tao grande como & primeira vista poderia parecer. Quando o homem trath de fazer aplicagiio dos conhecimentos que adquiriu sobre a natureza, se ve forcado a respeité-la; e-como, ainda que o quisesse, nio conseguiria com sua débil mio causar-Ihe considerdvel transtorno, se limita em seus ensaios a tentativas de pequena monta e é estimulado, pelo proprio desejo de acertar, a obrar em conformidade com as leis a que estio sujeitos os corpos sobre os quais atua. Jé em se tratando de aplicagdes das cincias sociais tudo se passa de modo muito diferente: © homem pode agit direta e imediatamente sobre toda a sociedade; com sua mio pode transtorné-la. nao se vé constrangido sunscrever suas tentativas a objetos limitados ¢ nem a respeitar as eternas leis da vida social, podendo mesmo imaginar estas dltimas ao seu paladar, proceder conforme suas cavilagdes deflagrar desa: tres dos quais se lamente a humanidade. Recordem-se as extravagin- cias que sobre 8 nutureza correram como muito vélidas nas escolas filosoficas antigas € modernas, e veja-se o que teria sido da admirévet maquina do universo se os fildsofos tivessem podido manejé-la a0 seu arbitrio. Por desgraca, nao acontece assim com a sociedade: os ensaios se fazem sobre ela mesma, sobre suas eternas bases, € ento 3 dai decorrem males gravissimos, a evidenciarem a debilidade da éncia do homem. E preciso no esquecer: a ciéncia propriamente dita vale pouco para a organizacao das sociedades e, nos tempos ‘modernos. em que cla se manifesta tao orgulhosa de sua pretense fecundidade, é bom recordar que se tem atribuido a seus trabalhos © que € fruto do transcurso dos séculos, do sadio instinto dos povos @ as vezes das inspiragdes de um génio: e nem o instinto dos povos nem o génio tém algo que ver com a ciéneia, Mas deixando de lado esas consideracdes. genéricas (sempre muito dteis porque conducentes ao melhor conhecimento do homem), © que se poderia esperar dos falsos vislumbres de cignein que se conservavam sobre as ruinas das velhas escolas ao tempo de surgi- mento do cristianismo? Escassos como eram em semelhantes matérias 6s conhecimentos dos fil6sofos antigos. mesmo dos mais esclarecidos. Indo se pode deixar de reconhecer que os nomes de um Sderates, de uum Platio, de um Aristételes recordam algo de respeitivel, que, em meio a desacerios ¢ aberracies, contém conceitos dignos da elevacao desses génios. Mas, quando apareceu o ctistianismo, estavam sufo- cados os germes do saber espargidos por esses grandes homens:.os desatinos tinham ocupado o lugar dos pensamentos altos ¢ fecundos, (© prurido de disputar deslocava o amor & sabedoria, ¢ os sofismas @ as cavilagdes substituiam a maturidade do juizo e a severidade do raciocinio. Destrocadas as antigas escolas e erigidas sobre seus escom- bros outras tao esdraxulas quanto estéreis, brotava por toda parte um sem nimero de sofistas, como aqueles insetos imundos cuja presenea anuncia a corrupgao do cadaver. A Igreja conservou-nos tum dado preciosissimo para julgar da ciéneia daquele tempo: a histé- ria das primeiras heresias. De fato, se prescindirmos daquilo que nelas causa indignagio (ou seja, sua profunda imoralidade), pode haver coisa mais vazia, mais insipida, mais merecedora de Iéstima? Basta recordar as monstruosas stitas que pululavam por toda parte, naqueles primeitos séculos da Igreja, ¢ que reuniam em suas doutri- ‘nas 0 emaranhado mais informe, mais extravagante ¢ mais imoral que se possa conceber. Cerinto, Menandro, Ebiio, Saturaino, Basil des, Nicolau, Carpécrates, Valentino, Marciiio, Montano € outros sic nomes que recordam nicleos em que 0 delirio andava irmanado com 2 jralidade. Langando uma olhada sobre essas_seitas filos6fico-reli- giosas, verifica-se que no eram capazes nem de conceber um sistema filosofico razoavelmente estruturado, nem de idealizar um conjunto de doutrinas ¢ de priticas que pudesse merecer 0 nome de religido. 4 Distorcem, misturam ¢ confundem tudo. Judaismo, cristianismo, re- tminiscéncias das antigas escolas, tudo se amélgama nas delirantes cabegas de seus adeptos, sem esquecer, porém, de soltar as rédeas para toda linhager de corrupcdo ¢ obscenidade. Abundante campo oferecem, pois, aqueles séculos & verdadeira filosofia para conjectu rar sobre 0 que tetia sido do humano saber se o cristianismo nio tivesse vindo iluminar 0 mundo com stia doutrina celestial! Por sua vez, a legislagdo romana, apesar da justica e. eqiiidade nela entranhadas e do tino e sabedoria que deixa transparecer. ¢ se hem que poss contarse como um dos mais preciosos esmaltes da civilizagdo antiga, nao constituia fator eficaz para prevenir a disso- lugfo de que estava ameacada a sociedade. Esta nunca deveu sua salvagio a juistas, porque obra de tamanha envergadura nfo se cireunscreve ao campo de influéncia de legisladores e magistrados. Que sejam as leis to perfeitas como se queira, que os tribunais se elevem ao mais esplendoroso grau de funcionamento, que os juizes estejam animados dos mais puros sentimentos € sejam guiados pelas mais retas luzes, de que servird tudo isso se 0 coragto da sociedade estiver corrompido, se os prinefpios morais tiverem perdido forga, se 05 costumes estiverem em perpétuo conflito com os ditames legais’ ‘Af esto 05 quadros que dos costumes romanos nos deixaram seus préprios historiadores — e veja-se se neles se encontram retratados a eqiiidade, a justica, 0 bom senso que fizeram com que as leis romanas merecessem 0 honroso epiteto de “razdo escrita” Como prova de imparcialidade, omito de propésito toda refe- réncia as nédoas de que nao estava isento o Direito Romano, para que nfo se me assaque que procirro rebaixar tudo aquilo que nio seje obra do cristianismo. A propésito, porém, no se pode deixar sem registro que nao é verdade que ao cristianismo nao cabe nenhuma parcela de crédito pelo que de admiravel se encontra na legislagio romana. E isto no s6 no perfodo dos imperadores cristios (0 que esté fora de divida), mas também em épocas anteriores. E certo que algum tempo antes da vinda de Cristo jé era considerdvel 0 nimero das leis romanas e que sett estudo e ordenamento mereciam 1 atengdo dos homens mais ilustres. Sabemos por Suct6nio (in Caess., ©. XLIV) que Jillio César se propusera a utilissima tarefa de reduzir a poucos livros 0 que de mais essencial e necessério se encontrava sparramado na imensa abundancia de leis; pensamento semelhante wia ocottido a Cicero, que escreveu um livro sobre a metodologia de redagio do diteito civil (De iure civili in arte redigendo), como 15 atesta Gélio (Noet. Att, |. 1°, c, XXIN; ¢ segundo nos infor Técito (Ann., |. 32, c. XXVIID, esse trabalho tinh ocupado també a atengio do imperador Augusto. Tais projetos revelam que certe- mente jd entiio a legislago no estava em sua infancia; mas nem por isso deixa de ser yerdade que 0 Dircito Romano tal como nos chegou & quase inteiramente um produto de séculos posteriores. Varios dos jurisconsultos © magistrados mais afamados, cujos pare- ceres € sentencas formam uma boa parte desse acervo douirinicio, viveram muito tempo depois da vinda de Cristo, Assentados esses fatos, deve-se ter presente que, da circunstancia de serem pagios determinados imperadores e jutistas, no se infere que as idéias ctistis ngo exerceram influéncia sobre suas obras. O mimero de cristdos era enorme por toda parte e, em meio a crucl perseguisdo que Ihes era movida, a herGica fortaleza com que arros- tavam 0s tormentos e a morte deveria ter chamado 2 atencio de todos, sendo impossivel que entre os homens de pensamento nfo se excitasse a cutiosidade em saber qual era o ensinamento que aquela nova religiéo transmitia a seus prosélitos. E as apologias do niismo escritas j4 nos primeiras sécuios com tanta forca de raciocfnio @ clogiigncia, as obras de varias categorias publicadas pelos primeiros Padres, as homilias dos bispos dirigidas aos povos etc. encerram um caudal to grande de sabedoria, respiram tanto amor & verdade © & justica, proclamam tio altamente os eternos prinefpios da moral que sua leitura no pode ter deixado de exercer influéncia mesmo sobre aqueles que condenavam a religiio do Crucificado. Quando se vio espraiando doutrinas que tenham por objeto aquelas grandes questdes que mais interessam ao homem, se tais doutrinas so apregoadas com fervoroso zelo, accitas com ardor por crescente mimero de disefpulos e sustentadas com talento e sabedoria por homens ilustres, elas lancam em todas as diregdes suleos profun dos ¢ acabam afetando até mesmo aqueles que as combatem zcalora- damente. Sua influéncia nessas circunstincias € imperceptivel, mas nfo deixa de ser muito real e verdadeira. Assemelham-se aguelas exalagées de que se impregna a atmosfera: com o ar que respiramos absorvemos as vezes a morte, as vezes um aroma saudavel que no: purifica © conforta. Nao poderia deixar de verificar-se 0 mesmo fendmeno com peito a uma doutrina pregada de modo 10 extraordinario, propagada com tanta rapidez, chancelada por torrentes de sangue ¢ defend Por escritores to ilustres como Justino, Clemente de Alexandria, 16 Irinea ¢ ‘Tertuliano. A profunda sabedoria ¢ a cativante beleza das doutrinas explanadas pelos doutores cristaos teriam de chamar atet io para os mananciais em que eles se abeberavam ¢ é normal que ssa instigante curiosidade tenha acabado por colocar em miios de muitos fil6sofos e juristas os livros da Sagrada Escritura. Que ha de estranho que Epiteto tenha consumido muitos momentos na leitura do Sermio dz Montane, ou que os oréculos da jurisprudéncia tenham recebido, sem disso se darem conta, as inspiragoes de uma religio que, crescendo de modo admirdvel em extensio © pujanca, estava se apoderando de todos os ramos da sociedade? O ardente amor & verdade e & justiga, o espirito de fraternidade, as grandiosas idéias sobre a dignidade do homem — temas perpétuos do ensinamento ctistio — nao eram para ficar circunscritos exclusivamente a0 &m- bito dos fithos da Igreja. Com maior ou menor lentidéo iam-se inoculando em todas as classes e quando, com a conversio de Cons- tantino, adquiriram influéncia politica predominio pablico, © que se deu nio foi outra coisa senéo a repetigiio do fendmeno de um sistema que, tornado muito poderoso na ordem social, passa a exercer senhorio ou pelo menos influéncia marcante no plano jurfdico. Com inteira confianga deixo estas reflexdes & avaliagio dos homens de pensamento. Vivemos numa época fecunda em transfor- mages e que Ievou a cabo revolucdes profundas. Por isso estamos em condig6es privilegiadas para compreender os imensos efeitos das influéncias indiretas © lentas, a poderosa ascendéncia das idéias @ a forga irresistivel com que as doutrinas abrem caminho nas realidades Voltando a falta de principios vitais para regenerar a sociedade que se registrava ao tempo da aparigo do cristianismo, hi ainda a ressaitar que, aos poderosos elementos de dissolucdo que 0 Império Romano abrigava em seu seio, se juntava outro fator, ¢ nBo de pequena monta, no plano da viciosa organizagio politica, Dobrada a espinha do mundo anie 0 jugo de Roma, viam-se centenas © cente- ras de povos, muito diferentes em usos € costumes, amontoados em. desordem como os vencidos num campo de batalha forgados a uma formagio arbitréria, tal como troféus enfiados na haste de uma lang A unidade no governo no podia ser proveitosa porque obtide com violéncia. Ademais, essa unidade era despética, desde a sede do Império até os iiltimos mandarins, e por isso nao podia produzir outro resultado que nao o abatimento © a degradagao dos povos, aos quois se tornava impossivel desenvolver aquela clevagio energis de finimo que si os frutos previosos do sentimento da propria dignidade ¢ do amor a independéncia da patria. Se pelo menos Roma tivesse conservado scus antigos costumes, se abrigasse em seu seio aqueles guerreitos tdo célebres pela fama de suas vitérias como pela simplicidade e austeridade de sua conduta, entao se poderia conceber 4 esperanca de que se irradiasse para os povos vencidos algo dos predicados dos vencedores, como um coragio jovem ¢ robusto reani- ma com seu vigor um corpo extenuado pelas mais rebeldes doencas Mas desgracadamente no era assim: 03 Fabios. os Camilos, os Cipides nao teriam reconhecido sua indigna descendéncia, ¢ Roma, a senhora do mundo, jazia escrava sob os pés de verdadeiros mons. tros que ascendiam ao trono pelo suborno pela vilénia, macule vam 9 cetro com sua corrupedo ¢ crueldade, ¢ terminavam a vide nas mos de algum assassino. A auloridade do Senado ea do povo tinbam desaparecido: dela restavam apenas vos simulactos, vestigia morientis Iibertatis (vestigios da liberdade expirante), como os chama Tacito, ¢ aquele povo-rei, que antes distribuia o império, os cetros, as legides ¢ tudo, agora ansiava tio somente por duas coisas: pio citco. Panem et circenses (Juvenal, Satyr., 10). Veio por fim a plenitude dos tempos. O cristianismo apareceu sem proclamat nenhume alteracio nas formas politicas, sem aten- tar contra nenhum governo, sem imiscuirse em nada que fosse mundano ¢ terreno, trouxe aos homens uma dupla satide, chamando- 0s a0 caminho de uma felicidade eterna ao mesmo tempo que ia distribuindo a mancheias seja o tinico preventivo contra a dissolucao social, seja 0 getme de uma regeneragao lenta e pacifica, mas grande, imensa, duradoura, & prova dos transtornos dos séculos, E esse pre- ventivo contra a dissolugio social, ¢ esse germe de inestimaveis melhoras, eram constituidos por um ensinamento elevado e puro, derramado sobre todos os homens, sem excegio de idades, de sexos, de condigdes sociais, como uma chuva benéfica que cai em suavissi- ‘ma torrente sobre uma campina murcha ¢ seca Nao hé religiio que se tenha igualado ao cristianismo, nem em conhecer 0 segredo de ditigir o homem, nem em desdobrar nessa diregao uma conduta que seja testemunho mais solene do reconheci- mento da alte dignidade humana, O cristianismo partiu sempre do principio de que 0 primcito passo para apoderar-se do homem todo € apoderat-se do seu entendimento, de que, quando se trata ou de extirpar um mal ou de produzir um bem, € necessério tomar por objetivo principal as idéias, desferindo dessa maneira um golpe ts mortal nos sistemas de violéncia que tanto tém predominado onde quer que ele ndo esteja presente. Proclamando a verdade benéfica tccunda de que, quando se trata de dirigir os homens, 0 meio mais indigno e mais débil € o da forga, 0 cristianismo abriu para a huma- nidade um novo © venturoso porvir. Somente a partir do cristianismo se passou a encontrar cétedras sla mais sublime filosofia abertas a toda hora, em todos os lugares, para todas as classes do povo. As mais altas verdades sobre Deus © 0 homem ou as regras da moral mais pura jé nao se limitaram «1 ser comunicadas a um niimero seleto de discipulos, em ligdes ocul- tas € misteriosas, A sublime filosofia do cristianismo foi mais intré- vida, atraveu-se a dizer aos homens a verdade inteira e nua, e isso cm piblico, em alta voz, com aquela generosa ousadia que € com- panheira insepardvel da verdade. “© que vos digo de noite dizei A luz do dia, ¢ 0 que vos digo w ouvido apregoai de cima dos telhados.” Assim falava Jesus a seus \iscipulos (Mat., X, 27). Logo que se defrontaram o ctistianismo e 0 paganismo, mostrou- se palpavel a superioridade do primeiro, nao s6 pelo conteddo das loutrinas como também pelo modo de propagé-las. Pode-se perceber desde logo que uma religido cujo ensinamento era tao sibio € tio pro, e que para difundislo se encaminhava sem rodeios, em linha fa, ao entendimento e ao coracio, haveria de desalojar bem depressa de seus usurpados dominios a outra religifo de impostura © de mentira. E, com efeito, que fazia o paganismo para o bem dos homens? Qual era seu ensinamento sobre as verdades morais? Que \liques opunha & corrupcdo de costumes? “No que se refere aos costumes, diz a este propésito Santo Agostinho, como nao ws deuses de que seus adoradores no os possuissem em padries tao epravados? O verdadeiro Deus, a quem néo adoravam, os repeliu, © com razio, Mas os deuses, cujo culto esses homens ingratos se syucixam de que hoje Ihes seja proibido, esses deuses por que nao niudaram seus adoradores com lei alguma para bem viver? Ja que vv, homens cuidavam do culto, justo seria que os deuses nao se esque- resem do cuidado com a vida e os costumes. Dir-se-é que ninguém mau senfo por sua vontade, Quem o nega? Mas era funcio dos Le uses no ocultar aos povos seus adoradores os preceitos da moral, sim pregéslos as claras, insistir e repreender por meio dos vates + pecadores, ameagar publicamente de punigdo os que agiam mal ios aos que agiam bem. Nos templos dos deuses, © prometerpré 19 quando ressoou uma yor alta © vigorosa que se referisse a tais temas?” (De Civitate Dei, 1. 2°, c. IV). Traga em seguida o santo Doutor um negro quadro das torpezas © abominagées que se cometiam nos espeticulos e jogos sagrados celebrados em homenagem aos deuses, aos quais ele mesmo havia assistido em sua juventude, e actescenta: “Infere-se disto que nio se preocupavam esses deuses com a vida € os costumes das cidades fe nagdes que hes rendiam culto, deixando que se entregassem a males to horrendos e detestaveis, sem infligir danos nem sequer a seus campos ¢ vinhedos, nem as suas casas ¢ fazendas, nem a0 corpo sujeito & mente, mas ao contrério até permitindo-thes, a falta de qualquer proibisao imponente, que embriagassem de maldade a dire tora do corpo, sua prépria alma. E se alguém alegar que vedavam tais males, que apresente as provas. Hé quem se jacte de ndo sei que sussurros que soavam aos ouvidos de muito poucos, © nos quais, sob um véu misterioso, se ensinavam os preceitos de uma vida honrada e pura; mas ento que se nos mostrem os lugares destinados a semelhantes reunides, nfo os lugares onde os farsantes executavam. (0s jogos com vozes © avGes obscenas, no onde se celebravam festas com a mais desbragada licenciosidade, mas sim onde ouvissem os povos os preceitos dos deuses sobre reprimir a cobiga, moderar a ambigio e refrear os prazeres; onde aprendessem esses infelizes aquela ligio que com linguagem severa thes ministrava Pérsio (Satyr., 3) quando dizia: Aprendei, 6 miseréveis, a conhecer as causas das coisas, o que somos, para que nascemos, qual deve ser nossa conduta, quio incerto & 0 fim de nossa caminhada, qual é a razodvel tempe- ranga no amor ao dinheiro, qual sua utilidade verdadeira, qual a norma de nossa liberalidade para com nossos patentes € nossa patria, para onde vos chamou Deus € qual € 0 lugar que ocupais entre os homens. Esclareca-se em que lugares costumavam os deuses recitar semelhantes preceitos para que pudessem ouvi-los com freqiéncia fs povos seus adoradores; mostrem-se esses lugares, assim como nds mostramos igrejas instituidas para esse fim onde quer que se tenha difundido a religiéo crista.” (De Civitate Dei, I. 2°, c. VI). Essa religido divina, profunda conhecedora do homem, nao olvidou jamais a fraqueza e inconstincia que 0 caracterizam, e por esse motivo teve sempre por invaridvel regra de conduta inculcar-the sem cessar, com incansdvel persisténcia, com pacincia inalterdvel, as saudiveis verdades de que dependem scu bem-cstar temporal © sua felicidade eterna. Em se tratando de verdades morais, © homem 20 sajuece com facili os jade 0. que no ressoa continuamente a seus auvi- mesmo quando as boas mfximas se conservam em sett enten slimento, elas correm 0 risco de permanecer como sementes estércis, vm fecundar 0 coragio. Por isso é muito bom e muito salutar que vs pais comuniquem esse ensinamento a seus filhos; € muito bom © inuito salutar que isso seja_um objetivo preferencial na educacdo privada; mas & necessério que. além disso, exista um magistério iriblico que nio o perca nunca de vista, que se estenda a todas as classes ¢ a todas as idades, que supra o descuido da famflia, que wive & recordagdes ¢ as impresses que as paixOes ¢ o tempo vio continuamente debilitando. FE, pois, sumamente importante pata a instrucio ¢ moralidade los povos esse sistema de permanente pregacdo ¢ ensino praticado cm todas as épocas e lugares pela Igreja Catdlica PRIMEIRA PARTE ‘A Igreja nae foi sé uma grande © fecunds escola, mas também uma associagao regenera- dora, Objetivos que teve de preencher. Difi- culdades que teve de vencer. A escravi Quem aboliu # escravidio. Opiniéo de Guizot. Néimero imenso de escravos. Com que tino se devia proceder na aboligio da escravatura. ‘A aboligio repentina era impossivel. Impugns io de Guizot, Por maior que fosse a importancia dada pela Igreja & propagagaio dla verdade, e por mais convencida que estivesse de que, para dissipar 1 informe massa de imoralidade & degradagio que se oferecia & sua vista nos primeitos tempos, 0 cuidado prioritério devia oriemtar-se no sentido de submeter © erro ao dissolvente fogo das doutrinas verdadeiras, niio se limitow a isso, mas sim, descendo a0 terreno dos fatos ¢ seguindo um sistema pleno de sabedoria e prudéncia, agiv de maneira que a humanidade pudesse saborear 0 precioso fruto que até nas coisas terrenas dio os ensinamentos de Cristo. A Tgreja do foi s6 uma escola grande ¢ fecunda, mas também uma associagio regeneradora; nao espargit suas doutrinas gerais aremessando-as como ao acaso, na esperanca de que frutificassem com o tempo, mas sim as desenvolveu em todas as sas implicagoes, aplicou-as a todos 9s objetos, procurou inoculi-las nos costumes ¢ nas leis ¢ coneretiza- fas em instituigdes que servissem de silenciosa mas elogilente diret para as geragoes vindour Viase desconhecida a dignidade do homem, imperando por toda parte a escravidio; degradada a mulher, espezinhando-a a corrupga0 de costumes e abatendo-a a tirania do vardo; adulteradas as relagées de familia, concedendo a lei a0 pai faculdades que jamais The dera a natureza; desprezados os sentimentos de humanidade, no abandono da infancia e no desamparo do pobre ¢ do enfermo; levadas 20 mai alto grau a barbirie © a crueldude, no dircito atroz que regulava os procedimentos da guerra: ©, por fim, coroando o edificio social, iosa tirania, contemplando com depreciativo desdém os infelizes povos que jaziam a scus pés airelados a miiltiplas correntes. Ante esse quadro, no constitufa empresa féeil banir 0 erro, reformar ¢ suavizar os costumes, abolir @ escravidio, corrigir os vicios da legislacio, moderar o poder © harmonizé-lo com os interes- ses piblicos, dar nova vida ao individuo, reorganizar a familia es sociedade — e, néo obstante, tudo isso a Igreja fez. Tal € 0 caso da escravidio, Esta é uma matéria que convém aprofundar, pois encerra uma das questées que mais podem excitar 4 curiosidade cientifica e falar aos sentimentos do coragio. Quem aboliu entre os povos cristiios a escravidao? Foi o cristianismo? E foi ele $6, com suas idéias grandiosas sobre a dignidade do home, com suas méximas © espirito de fraternidade © caridade, e ademais com sua conduta prudente, suave ¢ benéfica? Sinto-me gratificado por poder afirmar que sim J no se encontra quem ponha em diivida que a Igreja Catélica eve uma poderosa influéncia na aboligio da escravatura: é ume verdade demasiado clara e que salta aos olhos com gritante evidéncia para que seja possivel contesté-la, Guizot, reconhecendo 0 empenhe © a eficécia com que trabalhou a Igreja para a melhoria do estado sccial, afirma: “Ninguém ignora com quanta obstinacio combatcu os grandes vicios daquele tempo, a escravidio por exemplo.” Mas em continuagdo, tal como se Ihe incomodasse estabelecer sem nenhu- ma restrieio um fato que necessariamente teria de carrear para a Igreja Catélica as simpatias de toda a humanidade, observa: “Mil vezes se disse e repetiu que @ aboli¢io da escravatura nos tempos modernos € devida inteiramente &s maximas do cristianismo. Isso é, @ meu ver, um exagero: por longo tempo subsistiu a escravidio em meio & sociedade crist sem que semelhante situacio a confundisse ‘ou iiritasse muito.” Esté errado Guizot ao querer provar que a aboligao da escravatura ndo é devida exclusivamente a0 cristianismo jd que tal-estado subsistiu por muito tempo em meio & sociedade crista. Se se quisesse proceder em boa ldgica seria necessério primeiro considerar se a abolicdo repentina cra possivel, e se o espirito de ‘ordem e de paz que anima a Igrjea podia permitir que se. lancasse numa empreitada com a qual teria transtornado 0 mundo sem alcan- gat 0 objetivo a que se propunha, O nimero de escravos era imenso; a escravidao estava profundamente arraigada nas idéias, nos costu- 4 mes, nas feis, nos interesses individuais © sociais; sistema funesto, sem diivida, mas que era uma temeridade pretender erradicar de tum s6 golpe. pois suas raizes penetravam muito fundo, estendendo-se por largo trecho nas entranhas da terra Contaram-se num censo de Atenas vinte mil cidadios ¢ quarenta mil escravos: na guerra do Peloponeso, passaram para o lado do inimigo nada menos do que vinte mil, segundo narra Tucidides. O mesmo autor diz que em geral era tio grande o ntimero de escravos por toda parte que nio poucas vezes por causa deles estava em perigo a trangiilidade publica. Por esse motivo era necessétio tomar precaucdes para que nao pudessem arreglar-se. “E- muito convenicn- te, diz Platio (Dial. 6.°, Das Leis), que os escravos nao sejam de lum mesmo pais ¢ que, na medida do possivel, sojam discordantes seuls costumes € vontades; pois repetidas experiéncias ensinaram. nas freqiientes defecgdes que se viram entre os messénios ¢ nas demais cidades que possuem muitos escravos de uma mesma lingua, quantos danos dai costumam decorrer. Aristételes, em sua Economia (I. 1.’, c. V), dé varias regras sobre © modo como devem ser tratados os escravos, € € de notar que coincide com Platio ao advertir expressamente que “nio se devem ter muitos escravos de um mesmo pais”. Em sua Politics (L. 28, ¢. VIN, afirma que os tessélios se viram em graves apuros evido & multidao de seus escravos penestas, acontecendo © mesmo com os lacedeménios em relacdo aos ilotas. “Com freqiiéncia, diz ule, tem sucedido que os penestas se sublevam na Tessélia, os facedemdnios, sempre que sofrem alguma calamidade, se véem ameagados por conspiragdes dos ilotas.” Essa era uma dificuldade que chamava seriamente a atengio de politicos, que no sabiam como contornar os inconvenientes que consigo trazia essa enorme multid’o de escravos. Lamentase Aristételes de quio dificil era acertar no melhor modo de traté-los, reconhecendo ser esta uma matéria que dava muitas preocupag6es. Eis suas proprias palavras: Na verdade, 0 methor modo de tratar essa classe de homens é tarcfa trabalhosa e cheia de cuidados, porque, se se usa de brandura, eles se tornam petulantes ¢ querem igualar-se a seus donos, € se se age com dureza, engendram édio e maquinam traigdes.” Em Roma era tal a multidao de escravos que, tendo-se proposto que usassem um traje indicative, 0 Senado se opés a essa medida, com 0 temor de que, se eles chegassem a conhecer a quantos monta- vam, viessem a por em perigo a ordem péblica, E seguramente nio 25 eram vos esses temores pois ja ha tempos vinham os escravos cau- sando considerdveis transtornos na Ttélia. Platdo, em apoio ao con- selho acima citado, recorda que “os escravos repetidas vezes haviam devastado a Itélia com atos de pirataria c latrocinio”; e em tempos ‘mais recentes Espértaco, & testa de um exército de escravos, chegara a constituir-se em verdadeito terror para todo 0 pais, dando muito trabalho a destacados generais romanos. Tinha chegado a tais excessos o ntimero de escravos em Roma que muitos donos os tinham a centenas. Quando foi assassinado © prefeito romano Pedinio Segundo, foram sentenciados 4 morte qua- trocentos escravos seus (Técito, Ann., 1. 14). E Pudéntila, mulher de Apuleu, tinha-os em tal abundancia que deu a seus filhos nade menos do que quatrocentos deles. Esta matéria chegou a constituir demonstragiio de luxo e, por forca da competicfo social, os romanos esforgavam-se em se distinguir pelo néimero de seus escravos. Que- riam que, ao ser-lhe feita a pergunta Quot pascit servos? (Quantos escravos mantém?), segundo relata Juvenal (Satyr., 3, v. 140), pu- dessem osienté-los em grande quantidade. As coisas chegaram a tal extremo que, segundo testemunha Plinio, 0 séquito de uma nobre familia mais se parecia ao desfile de um exéreito, Nao era somente na Grécia © em Roma que abundavam os escravos. Em Tiro, por exemplo, chegaram a sublevar-se contra seus donos e, favorecidos por seu grande nimeru, no puderam ser impedidos de degolar todos eles. Passando a povos birbaros e pres- idindo de outros mais conhecidos, refere Herédoto (1. 3.°) que, ao retornarem da Média, os citas defrontaram-se com os escravos sublevados, que tinham tomado conta da situagdo © banido seus donos para fora da patria, E César, em seus comentarios (De Bello Gallico, 1. 6.%, atesta quo numerosos eram os escravos na Gila Sendo tio vultoso em todas as partes o contingente de escravos, jd se vé que era de todo impossivel pregar sua libertagao sem lancar © mundo em conflagracio. O estado intelectual © moral dos escra- vos tornava-os incapazes de desfrutar de um tal beneficio em pro- veito préprio e da sociedade; ©, em seu embrutecimento, aguilhoados pelo rancor e pelo desejo de vinganca nutridos em seus peitos com (© mau tratamento que Ihes era dispensado, teriam reproduzido em grande escala as sangrentas cenas com que ja haviam deixado man- chadas em tempos anteriores as paginas da histéria. E que teris acontecido entio? Simplesmente que, ameagada por tio terrivel perigo, a sociedade se colocaria em guarda contra os princfpios 2 favorecedores da aboligao, passaria a observé-los com prevengao € desconfianga, e, longe de afrouxar as correntes dos escravos, as reforgaria com mais afinco ¢ tenacidade. Daquela imensa massa de homens embrutecidos ¢ furibundos, era impossivel que, postos sem preparagdo em liberdade ¢ em movimento, brotasse uma organizagao social — porque esta no se improvisa, ¢ muito menos com seme- Ihantes elementos. E em tal caso, tendo-se de optar entre a escra- vatura ¢ 0 aniquilamento da ordem social, o instinto de conservagao que anima a sociedade, como a todos os seres, teria determinado dubitavelmente a continuidade da escravidio onde ela ainda exis- tisse © 0 seu restabelecimento onde tivesse sido abolida. Portanto, os que se queixam de que o cristianismo nao tenha atuado mais rapidamente na abolicgo da escravatura devem tomar consciéncia de que — mesmo supondo-se possivel uma emancipagao repentina ou muito répida e mesmo prescindindo dos sangrentos transtornos que inexoravelmente dai decorreriam — a propria forca das coisas, erigindo obstéculos insuperdveis, teria inutilizado seme- Ihante medida, Deixemos de lado todas as consideragées sociais € politicas, fixando-nos unicamente nas econémicas. De pronto seria necessério alterar todas as relagdes de propriedade; isto porque, figurando nela os escravos como uma parte principal, cultivando eles as terras, exercendo eles os oficios manuais, estando, numa palavra, distribuido entre eles 0 que se chama trabalho, e estando feita essa distribuicto no pressuposto da escraviddo, € evidente que, a0 se retirar abruptamente do sistema a sua base, se provocaria um deslocamento tal que a mente ndo consegue alcangar quais seriam stuas tltimas conseqiiéncias, Se hoje, depois de dezoito séculos, retificadas as idéias, suavi- zados os costumes, melhoradas as leis, amestrados 0s povos © os governos, fundados tantos estabelecimentos piblicos para socorro da indigéncia, ensaiados tantos sistemas para a boa distribuigdo do trabalho, repartidas de modo mais equitativo as riquezas, ainda subsistem tantas dificuldades para que um niimero imenso de homens nao sucumba vitima de horrorosa miséria; se € este o mal terrivel que atormenta a sociedade e que pesa sobre seu futuro como um trigico pesadelo — que teria ocorrido no caso da emancipagao uni- jo do cristianismo, quando os escravos nao eram reconhecidos jutidicamente como pessoas mas sim como coisas, quando sua unio conjugal nao era considerada como matriménio, quando a pertenca dos frutos dessa uniéo era estabelecida pelas 2 mesmas regras que se aplicavam aos animais, quando 0 infeliz es- crayo eta maltratado, atormentado, vendido ¢ até morto conforme 0s caprichos de sew dono? Nao salta aos olhos que a cura para males dessa magnitude tinha de ser obra de séculos? Se se tivessem feito insensatas tentativas, nfo tardaria muito e 5 prdprios escravos estariam protestando contra elas, reivindicando uma escravatura que pelo menos Ihes assegurava pio ¢ abrigo, ¢ desprezando uma liberdade que punha em isco sua sobrevivéncia Pois essa é a ordem da natureza: o homem necesita antes de tudo ter 0 indispensével para viver, e se Ihe faltam os meios de subsistén- cia no The serve de consolo a propria liberdade. Nao € preciso recorrer a exemplos de particulares que nos séo proporcionados em abundancia; em povos inteiros se viu a prova patente dessa verdade. Quando a miséria é excessiva, 6 dificil que nao traga consigo o aviltamento, sufocando os sentimentos mais generosos ¢ desvirtuando 6s encantos que exercem sobre nosso coragio as idéias de indepen- déncia e liberdade. “A plebe, afirma César a propésito dos gauleses (De Bello Gellico, 1. 6°), esti quase na situagio de escravos, e de si mesma ndo se atreve a nada, nem seu voto conta para nada; ¢ muitos que, assoberbados de dividas e tributos, ou oprimidos pelos poderosos, se entregam aos nobres em escravidio.” Nos tempos modernos nao faltam tampouco exemplos andlogos, porque é sabido que entre os chineses abundam os escravos cuja escravatura no tem utra origem sendo que eles préprios ou seus pais ndo se viram capazes de prover sua subsisténcia, Estas reflexdes, apoiadas em dados que ninguém pode contestar, poem em evidéncia a profunda sabedoria do cristianismo em proce- der com tanta circunspeccao na aboli¢ao da escravidio. Fazendo tudo © que era possivel em favor da liberdade do homem, ndo avancou ais rapidamente nessa direcfo porque nfo podia isso ser feito sem ocasionar o malogro de toda a empresa, sem suscitar gravissimos obsticulos & desejada emancipacao, Bis aqui o resultado a que afinal vém dar sempre as criticas que se levantam contra algum_procedi- mento da Igreja: se se examina o problema & luz da razio, se se estabelece 0 competente cotejo com os fatos, acaba-se por concluir que 0 procedimento pelo qual € ela inculpada esta muito de acordo com o que dita a mais alta sabedoria e com 0 que aconselha a mais refinada. prudéncie © que pretende, pois, Guizot quando, depois de ter reconhecido que © cristianismo trabalhou com afinco pela aboli¢io da escrava- 28 tura, the lariga na face o consentimento pela sua longa duragéo? Com que Igica pretende daf inferir que no é verdade que seja devido exclusivamente ao cristianismo esse imenso beneficio di pensado & humanidade? Durou séculos a escravatura em meio ao cristianismo, € certo; mas durante esse periodo foi sendo continua- mente minorada, até chegar & extingio total, ¢ essa duragio foi siria pata que o beneficio visado se realizasse sem s, Sem transtornos, e assegurando sua universalidade © sua perpétua conservacdo, E desse tempo que durou, deve-se ainda deduzit uma parte consideravel, em razo dos trés primeiros séculos, nos quais a Igreja esteve quase sempre proscrita, olhada com aversio © inteiramente privada da possibilidade de exercer influxo direto sobre a organizagéo social. Deve-se também descontar muito dos séculos posteriores, porque havia decorrido pouco tempo desde que @ Igreja exercia sta influéncia pablica e direta, quando sobreveio a irrupodo dos bérbaros do Norte, que, combinada com a dissolucio de que estava contaminado o Império © que o arrastaria & ruina completa, ocasionaria tal transtorno, uma mescla tio informe de Iinguas, de usos, de costumes, de leis, que quase se tornava im vel excreer com muito frufo uma acio social reguladora. Se em tempos mais préximos custow tanto trabalho extinguir o feudalismo; se depois de séculos ainda permanecem vivas muitas de suas mazi las; se 0 tréfico de negros, ape nad paises € a peculiares circunstancias, continua resistindo a0 grito uni- versal de reprovagdo que contra tal infamia se levanta nos quatro cantos do mundo — como pode haver quem se atreva a manifestas estranheza € a inculpar o cristianismo pelo fato de a escravidio ter durado alguns séculos depois de proclamadas a fraternidade entre todos os homens ¢ sua igualdade perante Deus? 29 | | | | SEGUNDA PARTE empregou, para a aboligio da escravatura, no somente um sistema de deutrinas, miiximas © espirito de caridade, ‘mas também um conjunto de meios priticos. Ponto de vista sob 0 qual se deve considerar esse fate histérico, Idéias erradas dos antigos sobre a escravidio, Homero, Platio, Aristé- teles. O cristianismo se empenhou desde logo em combater esses erros. Doutrinas cristis sobre as relagGes entre escravos e senhores. ‘Como a Igreja se dedicou a suavizar o trata- ‘mento cruel que era dispensado aos escravos. Felizmente a Igreja Catdlica foi mais sbia que os filésofos ¢ ‘ube proporcionar 4 humanidade o beneficio da emancipagao dos cseravos, sem injusticas nem transtornos. Ela regenera as sociedades, co faz sem banhos de sangue. Vejamos, pois, qual foi sua conduta cm relacio ao problema especifice de que ora nos ocupamos. Muito ja se enfatizou o espirito de amor ¢ fraternidade que anima 0 eristianismo, e isso basta para que se admita que deve ter sido grande a influéncia que exerceu para que se lograsse aquele resultado. Mas talvez nao se tenha ainda esmingado devidamente os meios positives, préticos, digamo-lo assim, de que langou mio para conseguir tal objetivo. Através da obscuridade dos séculos, em meio 4 tamanha complexidade variedade de circunsténcias, ser possivel sletectar alguns fatos que sejam como que as pegedas indicadoras do caminho percorrido pela Igreja Catélica para libertar uma imensa porgdo da linhagem humana da escravidéo sob a qual gemia? Seré possivel aduzir algo mais que os encOmios gerais relativos & caridade crist? Sera possivel assinalar um plano, um sistema, ¢ provar sua xisténcia e desenvolvimento apoiando-se nao simplesmente em ma- nifestacdes particulates, em pensamentos altos. em sentiments gene~ rosos, em ages isoladas de alguns homens ilustres, mas sim em fatos marcantes © em documentos irrefutéveis que manifestem qual era o espitito © a tendéncia do proprio corpo da Igreja? A resposta| € afirmativa e, como se verd, em abono dessa tese pode ser invocado © que de mais convincente ¢ decisivo poderia existir, a saber: 0s mo- rnumentos da legislacdo eclesidstica. Antes de tudo, no ¢ fora de propésito ressaltar que, quando ; de tendéncias da Igreja, nio ¢ necessirio presummir que csses méveis © esses _movimentos estejam| presentes por inteiro na mente de qualquer individuo em particular, nem que todo o mérito € efeito de semelhantes procedimentos fossem perfeitamente compreendidos por todos e cada um dos que intervi ham nessas agdes. Assim, pode-se dizer que nao que 0s primeitos cristios estivessem conscientes de toda a forca lar tente no cristianismo relativamente & aboli¢ao da escravatura, O que convém deixar claro ¢ que se obteve o resultado por conseqiiéncial das doutrinas © da conduta da Igreja. Pois no seio do embora se prezem os méritos € @ grandeza das pessoas pelo que valem, quando se fala da Igreja desaparecem os individuos: os. pen- samentos ¢ @ vontade destes so nada, porque o espirito que anima, que vivifica ¢ que ditige a Igreja nio € 0 espirito de nenhum homem, mas sim 0 Espirito do proprio Deus. Os que no participam de nossa fé lancario mao de outras explicagSes; mas estaremos todos concor- des pelo menos em que, vistos dessa maneira, sobrelevados aos. pen- samentes e vontades dos individuos, os acontecimentos revelam muito melhor seu verdadeiro cardter € ndo se rompe, no estudo da histé a cadeia continua dos sucessos. Digase que @ conduta da Igreja foi inspirada ¢ ditigida por Deus, ou prefira-se admitir que foi filha de um “instinto”, que foi o fruto do desenvolvimento de uma “tendén- cia” entranhada em suas doutrinas, empreguem-se estas ou aquelas expressoes, falando-se como catdlico ou como fildsofo, nessa questio nao é preciso deter-se agora, pois o que aqui importa & constatar que esse instinto foi generoso e bem orientado, que essa tendéncia se Girigia a um grande objetivo, e que o alcangou, A primeira coisa que fez 0 cristianismo com respeito aos escra- vos foi dissipar os erros que se opunham no s6 sua emancipagao universal mas também a melhoria de suas condigdes de vida: isto quer dizer que a primeira forca que desencadeou no ataque foi, como de costume, a forca das idéias. Era esse primeiro passo tanto. mais necessirio pata curar © mal quanto com ele acontecia — como s6i se trata de conduta, de designio: tolicismo, 32 wontecer — estar vinculado a um erro, que o gerava e fomentava, Naw s6 havia a opressio, a degradacéo de uma grande parte da hu- manidade, como era muito acatada uma opinido falsa que resultava vm humithar ainda mais essa parte da humanidade. Os escravos, sliciase, constitufam uma raga vil, que no conseguia sequer aproxi arse do nivel da dos homens livres. Era uma Tinhagem degradada elo proprio Japiter, marcada desde © nascedouro com um estigma infamante, destinada de antemao a esse estado de abjesao ¢ vileza. Doutrina perversa, sem davida, desmentida pela natuteza, pela his- © pele experiéncia, mas que nem por isso deixava de contar com destacados defensores, ¢ que, para ultraje da humanidade ¢ ‘selindalo da razio, foi sendo proclamada por séculos a fio, até que © eristianismo veio dissipé-la, tomando a seu cargo a afirmagio dos direitos do homem. Homero nos diz (Odisséia, 17) que “Jtipiter subtraiu aos escra- vos metade da mente". Em Platéo encontramos o rastro da mesma dloutrina pois, se bem que pela boca de outrem (como costumava fazer), nfo deixa de asseverar: “Diz-se que no animo dos escravos nio existe nada de sadio e integro, e que um homem prudente ngo dove fiar-se nessa casta de criaturas, coisa que atesta 0 mais sibio dle nossos poctas”, citando em seguida a passagem de Homero acima Lranscrita (Didl. 6.2, Das Leis). Mas onde se encontra exposta essa doutrina com toda a sua lugubridade e nudez & na Politiea de Aris- tételes. Nao faltou quem quisesse defendé-lo, mas em vaio, porque suas prOprias palavras o condenam sem apelagéo. Explicando, no primeiro capitulo da referida obra, a constituigfo da familia © pro- pondo-se a definir as relagdes entre marido ¢ mulher ¢ entre senhor € escravo, sustenta que, assim como a fémea é naturalmente di rente do macho, o escravo € diferente do dono: “E assim a fémea © o escravo se distinguem por sua pripria natureza.” Tal conceitua- do nio corresponde a um Iapso de Finguagem do fildsofo, mas sim ele @ expressou com plena consciéncia e nio constitui outra coisa que ndo um compéndio de sua teoria. Tanto assim que, no terceiro capitulo, continua a analisar os elementos que compéem a familia fe, depois de consignar que “uma familia perfeita consta de pessoas livres e de escravos”, fixa sua atenc#o em particular sobre estes ¢ comeca combatendo uma opinido que parecia favorecé-los demasia- damente: “Hé alguns que pensam que a escravidio € coisa fora da fordem da natureza, visto que procede somente da lei o fato de este ‘avo e aquele livre, jd que naturalmente em nada se distin- 33 guem.” Antes de rebater essa opinido, explica as relagées entre senhor € escravo, valendo-se de comparagées entre o artifice e seu instru- mento ¢ entre a alma e 0 corpo, prosseguindo: “Se se comparam macho e fémea, aquele & superior € por isso manda, esta ¢ inferior € por isso obedece, © mesmo ocorte com todos os homens. Assim, aqueles que sao to inferiores quanto 0 corpo 0 é em relago & alma e quanto o bruto o & em relagao ao homem, ¢ cujas faculdades consistem principalmente no uso de seu fisico, sendo este uso o maior proveito que deles se pode extrair, estes sio escravos por natureza.” A primeira vista poderia parecer que o filésofo esti se referindo exclusivamente acs mentecaptos, mas veremos em se- guida que no é essa sua intengéo. Mesmo porque, se estivesse falando apenas dos idiotas, nada provaria contra a opinido que se propde a impugnar pois, sendo o niimero destes tao reduzido, nao constituem praticamente nada em comparacdo com a generalidade dos homens. Ademais, se apenas aos néscios quisesse referirse, de que valeria sua teoria, entéo fundada unicamente sobre uma excegio monstruosa ¢ muito rara? Mas no hé necessidade de se perder tempo em conjecturas sobre 0 que teria realmente em mente o fildsofo, Ele mesmo se en- carrega de esclarecé-lo, revelando-nos ao mesmo tempo por que se tinha valido de expresses tio fortes que até pareciam subtrair a questo de seu eixo, Segundo se prope a demonstrar, cabe & natu- reza 0 expresso designio de produzir homens de duas categorias: uns nascidos para a liberdade, outros para a escravidio. O trecho & demasiado importante e curioso para que deixemos de transcrevé-lo: “Bem aprouve & natureza procriar diferentes os corpos dos livres € dos escravos, de modo que os destes sejam robustos e apropriados para os usos necessérios, ¢ os daqueles bem formados, iniiteis sim para trabalhos servis, mas adequados a vida civil, que consiste no manejo dos negécios da guerra e da paz; mas muitas vezes ocorre © contrétio, © a uns cabe corpo de escravo ¢ a outros alma de livres. Nao ha diivida de que, se no corpo alguns se avantajassem tanto como as imagens dos deuses, todo mundo seria de opinigo que deve- riam servir-thes aqueles que nio tivessem alcancado tanta galhardia. Se isto € verdade falando do corpo, muito mais o é em se tratando da alma, se bem que nao é to facil ver a formosura desta quanto a daqucle. Assim nfo se pode duvidar de que hé alguns homens nascidos para a liberdade, enquanto hé outros nascidos para a es cravidio — escravidio que, além de ser Gtil aos préprios escravos, 34 «também justa.” (Politica, 1. 2°, c. VID. Miserdvel filosofia que, para sustentar um estado de coisas de- yradante, tinha de apelar para tamanhas cavilagdes, assacando contra natureza a intengao de gerar diferentes castas, nascidas umas para luoninat, outras para servir! Filosofia cruel, que assim procurava romper os lagos de fraternidade com que o Autor da natureza qui vincular toda a linhagem humana, que assim se empenhava em le- \antar uma barreira entre homem e homem, que assim elocubrava tvorias para sustentar uma desigualdade que nao aquela que resulta necessariamente de toda organizacio social, mas sim uma desigual- shide tho terrivel e avillante quanto a da escravidio! Levanta entio a voz o cristianismo ¢, nas primeiras palavras sine pronuneia sobre os escravos, declara-os iguais em dignidade de natureza aos demais homens; ¢ iguais também na ‘participagdo nas yragas que o Espirito Santo vai derramar sobre a terra. E notével cuidado com que insiste sobre este ponto 0 apéstolo Séo Paulo; esta laro que tinha sob a vista as degradantes diferencas que, por funesto lvido da dignidade do homem, se queriam assinalar; por isso nunca © esquece de inculear a nulidade da diferenca entre 0 escravo © 0 livre, *“Fomos todos batizados num s6 espitito, para formar um mesmo corpo, judeus ou gentios, eseravos ou livres” (I Cor., XII, 15). “Todos vés sois filhos de Deus pela f¢ em Jesus Cristo, pois ‘odos os que foram batizados em Cristo se revestiram de Cristo, Nao hui judeu nem grego. nao ha servo nem livre, nfo hé homem nem muther. Todos vés sois um s6 em Jesus Cristo” (Gél., III, 26-28). “Onde nao hé gentio ot judeu, eircuncidado ou incircuncidado, bar- haro ow cita, servo ow livre, mas sim Cristo € tudo em todos” (Colos., ML, 1D. Parece que 0 coragao se ditata ao ouvir serem proclamados em alta vor esses grandes principios de fraternidade ¢ de santa igualda- tle, Quando acabamos de ouvir os oriculos do paganismo ideando loutrinas para abater ainda mais os desgragados escravos, parce que despertamos de um pesadelo angustiante e nos defrontamos com luz do dia, em meio a uma fagueira realidade, A imaginagio se compraz em considerar tantos milhées de homens que, curvados sob © peso da degradacéo e da ignominia, Ievantam seus olhos a0 eéu exalam um suspiro de esperanca. Acontece com este ensinamento do ci com todas as doutrinas generosas e fecundas: penetram a go da sociedade, ficam af depositadas como um germe precioso ¢, ianismo 0 que acontece desenvoltas com o tempo, produzem uma érvore enorme que abriga sob sua sombra as famflias © as nagdes, $6 que, difundidas entre homens, néio_puderam também escapar de serem mal interpretadas @ de setem distorcidas, nfo faltando quem tenha protendido que a iberdade crista equivalia & proclamago da liberdade universal ‘Ao ressoar aos ouvidos dos escravos as doves palavras do ctistianis- ‘mo, ao tomarem eles conhecimento de que se os prockamava filhos de Deus ¢ irmios de Jesus Cristo, ao verificarem que nio se fazia distingao alguma entre eles © seus amos, nam que fossem estes os mais poderosos senhores da terra, nio & de estranhar que homens acostumados tio somente as correntes, a0 trabalho ¢ a toda espécie de maus tratos e envilecimento exagerassem os principios dessa dou- trina nova ¢ fizessem dela aplicagdes que nem eram em si justas nem tampouco exeqiifveis. Sabemos por Sio Jerénimo que muitos, ao ouvirem que eram chamados & fiberdade cristd, pensaram que com esta se thes estava concedendo @ ruptura dos grilhies da escravatura, E talvez, fosse a esse erro que aludia 0 Apéstolo quando, em sua primeira carta a Timéteo (VI, 1), dizia: “Todos ox que esto sob o jugo da escravidio hontem com todo respeito scus donos para que @ nome e a doutrina do Senhor nao sejam blasfemados.” Tamanho eco enconttara esse erro que depois de trés séculos ainda estava corrente, vendo-se obri- gado 0 Coneflio de Gangra, celebrado por volta do ano 324, a exco- mungar os que, sob pretexto de piedade, ensinavam que os escravos deviam desligar-se de seus amos e retirarse de seu servigo, Nao"era isso 0 que ensinava o cristianismo, mesmo porque ficou jé bem evidenciado que nao era esse 0 caminho que realmente permitiria chegar emancipacio universal Assim € que 0 mesmo Apdstolo que ouvimos empregar a favor dos escraves ami linguagem thes inculea repetidas veres a obedigncis:a seus donos. Mas é notivel que, enquanto cumpre esse dever imposto pelo espirito de paz © de justiga que anima o cristianismo, explica de tal mancira os motivos sobre os quais 52 ha de fundar a obedigncia dos escravos, recorda com tio sentidas © vigorosas palavras as obrigacdes que pesam sobre os donos, & assenta (Go expressa ¢ terminantemente a igualdade de todos as homens ante Deus que transparece nitidamente quao intensa cra sua compaixio para com essa parte desgragada da humanidade ¢ quio diferentes eram sobre esse particular suas idéias comparativamente as do mun- do endurceido e cego cevado pelo paganismo. 36 Abriga-se no intimo do homem um sentimento de nobre inde- madéncia que nao Ihe permite sujeitarse & yontade de outro homem, 1 nfo ser que Ihe sejam apresentadas justificativas legitimas sobre ws quais se apiam as pretenses de mando, Se tais justificativas cotiverem bem fundadas ¢ sobretudo se estiverem radicadas em altos chjetivos que © homem ama e acata, a razio se convence, 0 coracio se abranda e¢ a vontade cede. Mas se 0 motivo do mando ¢ 86 0 querer de outro “homem, se simplesmente se acham colocados face 1 face homem com homem, entéo fervem na mente os pensamentos ic igualdade, arde no coragéo © sentimento de independéncia, » fronte se impée altaneira e as paixGes rugem ameacadoramente. Pot isso, em se tratando de alcangar obediéncia voluntéria ¢ duradoura, mister se faz que quem manda se encubra, desapareea 0 homem © sé se veja o representante de um poder superior ou a personificagio dos mctivos que transmitem ao stidito a justia e a utilidade da submissio: dessa maneira no se obedece & vontade alheia pelo que cla é em si, mas sim porque representa um poder superior ou € 0 intérprete da razio e da justica; entdo quem deve obedecer nio sente ultrajada sua dignidade e a obediéncia se the afigura suave suportével Bem é de ver que no cram dessa indole os titulos em que se fundava a obediéneia dos escravos antes do cristianismo. Os costu mes 08 equiparavam aos brutos € as leis vinham, se € que isso fosse possivel, acentuar a humilhagdo, usando de uma linguagem que nio se pode ler sem indignagio. O dono mandava porque tal cra sua vontade, ¢ © escravo se vin compelido a obedecer, nao por forca de motives superiores nem de obrigagdes morais, mas sim porque era uuma propriedade do seu sonhor, era como um cavalo, comandado pelo cabresto, como uma maquina que devie responder ao impulso do manobrista. Que pode haver de surpreendente, pois, que aqueles infelizes, carregados de infortiinio ¢ de ignomfnia, abrigassem em seus peitos uma profunda e concentrada mégoa, uma virulenta ira, uma terrivel sede de vinganga, prontas para explodir de forma es- pantosa na primeira oportunidade? A horrorosa degola em Tiro, exemplo ¢ terror do universo, na expresso de Justino; as repetidas sublevagées dos penestas em Tessélia e dos ilotas em Lacedeménia; as defecgdes em Atenas, como durante a guetra do Peloponeso; a insurreigio comandada por Herdénio ¢ 0 terror por ela semeado entre todas as familias de Roma; o$ sangrentos episédios propor- cionados pelas hostes de Espértaco e sua tenaz e desesperada re- sisténcia — que foram senfo o resultado natural do sistema de violénicia, de ultraje © de desprezo com que se tratavam os escravos? Tal 6 a natureza do homem que quem semeia ventos colhe tem- pestades. Esta verdade nao escapou ao cristianismo e, por isso mesmo, se ptegou a obediéncia, procurou fundéla em titulos divinos; se resguardou os direitos dos senhores, também thes ensinow com Enfase suas obrigagbes; e assim, onde prevaleceram as doutrinas cristis, puderam os escravos dizer: “Somos infelizes, € verdade; & desgraga nos condenaram 0 nascimento, a pobreza ou os reveses da guerra; mas afinal somos reconhecidos como homens, como irmfos, entre nés © nossos amos hé uma reciprocidade de obrigades e de direitos.” Ougamos, a propésito, 0 que ensinou o Apéstolo: “Esera- vvos, obedecei a vossos senhores temporais com reveréncia e solic tude, na sinceridade do vosso coragao, como a Cristo, ndo os servindo 86 quando sob suas vistas, apenas para agradar aos homens, mas como servos de Cristo fazendo de coragio a vontade de Deus, set vindo-os com boa mente, como se servisseis 0 Senhor © no os homens, sabendo que cada um receberd do Senhor a paga do bem que tiver feito, quer seja escravo ou livre. E vés, senhotes, fazei o mesmo com vossos eseravos, pondo de parte as ameagas, sabendo quie 0 Senhor, tanto deles como vosso, esti nos eéus e nao faz acep- Go de pessoas” (Efés., VI, 5-9). Na carta aos colossenses (c, [I1) volta a proclamar a mesma doutrina da obe: 3 e como que consolando os infelizes escravos Ihes diz: “Do Senhor recebereis a heranga do céu como recompensa. Servi, pois, a Cristo Senhor. E aquele que cometer injustica receber segundo 0 que fez injusta- mente, pois nfo ha acepeo de pessoas diante de Deus” (III, 24-23) E mais abaixo, dirigindo-se aos senhores, acrescenta: “Vés, senhores, tratai os vossos escravos com justica e eqiiidade, sabendo que tam- ‘bém és tendes um Senhor no eéu” (IV, 1). Disseminadas doutrinas to benéficas, jd se vé que teria de methorar grandemente a condicéo dos escravos, sendo o seu resul- tado mais imediato a moderagio daquele rigor to excessivo, daquele crueldade t@o aguda que nos pareceriam incriveis se a respeito nao dispuséssemos de testemunhos irtecusfveis. Sabe-se que o dono tinha 0 direito de vida e de morte sobre os escravos e que abusava dessa faculdade até 0 ponto de maté-los por simples capricho, como o fez Quintio Flaminio em meio de um festim, ou de langé-los as moréias 38 ‘iponas por terem involuntariamente quebrado um vaso, como no cpisédio que narra Védio Poliao. E tamanha crucldade nfo estava citeunscrita a algumas familias que tivessem chefes especialmente sem entranhas, mas sim estava erigida em sistema — resultado fu- hnesto mas inexordvel do extravio das idéias ¢ do desvanecimento dos sentimentos de humanidade; regime violento © que s6 se podia sustentar mantendo continuamente os escravos sob mio de ferro; situagio que s6 se interrompia quando os oprimidos conseguiam prevalecer e lancar-se sobre seus opressores para fazé-los em peda- os. Daf a razio do antigo provérbio: “Tantos inimigos quantos eseravos. Ja vimos os estragos que faziam esses homens furiosos e seden- tos de vinganga toda vez que podiam romper os grilhdes que os oprimiam, Mas nfo thes ficavam atrés os senhores quando se tr tava de inspirar-thes temor. Em Lacedeménia, suspeitando-se um dia das mas intengdes dos ilotas, foram estes reunidos préximo ao templo de Jiipiter © passados todos pelo cutelo (Tucidides, 1. 4.°). E em Roma havia 0 bérbaro costume de, sempre que fosse assassinado algum senhor, todos os seus escravos serem condenados & morte. Causa arrepios ler em Técito (Ann, I. 14, 43) a horrorosa cena ocorrida depois de ter sido assassinado por um de seus escravos 0 prefeito da cidade, Pedinio Segundo. Eram nada menos que qua- trocentos os escravos do defunto e, segundo a norma, deviam todos set levados ao suplicio, Essa perspectiva tao lastimével e cruel de darse morte a tantos inocentes suscitou a compaixéo do povo, que chegou ao extremo de amotinar-se para impedir tamanha carnificina, Perplexo, 0 Senado examinava a questio quando tomou a palavra tum orador de nome Céssio, que sustentou com energia a necessidade de levar a cabo a execugio coletiva, nao s6 porque assim o prescrevia © antigo costume, mas também porque era a Gnica mancira de pre- venit-se a animosidade dos escravos para com seus donos. Em suas palavras s6. se fazem ouvir a injustica e a tirania; vé perigos e traigGes por toda parte; no sabe cogitar de outros preventivos que nfo a forga e o terror; e é particularmente notavel este trecho de seu artazoado, porque €m breve espaco retrata as idéias ¢ costumes dos antigos sobre o assunto: “Suspeita foi sempre para nossos maio- tes a indole dos escravos, mesmo daqueles que, por terem nascido em suas proprias possessdes © casas, poderiam desde o bergo ter engendrado afeigao pelos donos; ainda mais agora que dispomos de escravos de nacées estrangeiras, com diferentes usos ¢ miltiplas re- 39 ligides, © tinico meio de conter essa canalha € o terror." No epis6dio em foco a crueldade acabou prevalecendo: reprimiuse a ousadia do ovo, encheu-se de soldados 0 caminho para 0 patibulo, e os qua- trocentos desgracados foram executados. Suavizar esse tratamento cruel, banir essas horrendas atrocida- des, esse era o primeiro fruto que deveriam proporcionar as doutrinas eristis. E pode-se assegurar que a Igreja jamais perdeu de vista esse importante objetivo, procurando fazer com que a condigao dos es- cravos melhorasse cada vez 0 mais possivel, que em matéria de castigos se substituisse a crucldade pela indulgéncia, e que — o que era mais relevante — a razio passasse a ocupar o lugar do capricho, trocan- do-se a impetuosidade dos senhores pela serenidade dos tribunais, Com isso se iam aproximando os escravos aos livres, passando a reger também em relacdo aqueles néo 0 fato mas si A Igreja no esqueceu jamais a formosa ligéo do Apéstolo quando, escrevendo a Filémon, intercedia por um escravo (¢ escravo fugitivo!) chamado Onésimo, .usando de uma linguagem como nun- a até entio se ouvira em favor dessa classe de infelizes: “Rogo-te pelo meu filho Onésimo, (...) 0 qual outrora te foi indtil (...) que tornei a te enviar, Recebe-o (...) nfo ja como um esctavo mas, muito mais do que isso, como um irméo carissimo, (...) Se me amas, recebe-o como receberias a mim; se ele te causou algum dano ou se te deve alguma coisa, debita tudo em minha conta” (Fil, 10-19). Néo, a Igreja no esqueceu essa liglo de fraternidade e de amor, € procurar suavizar a sorte dos escravos foi uma de suas ta refas. prediletas. © Concilio de Elvira, realizado em prinefpios do séeulo 1V, sujeita a peniténcia a mulher que tenha golpeado e ferido gravemente sua escrava, O de Orleans, celebrado em 549, prescreve (cin. 22) que, se se refugiar numa igreja algum escravo que tenha determi nadas faltas, seja ele devolvido ao seu amo, mas exigindo-se previa- mente deste o juramento de que nfo the faré nenhum mal; e caso tal juramento seja quebrado ¢ 0 escravo submetido a maus tratos, 40 perjuro se aplique a pena de exclusio da comunhio e da mesa dos catdlicos. Este cinone evidencia duas coisas: a crueldade costu- meira dos senhores ¢ o zelo da Igreja em suavizar 0 trato dos escra- vos. Para pér freio a crueldade era necessério exigit nada menos do que um juramento, ¢ a Tgreja, de si muito prudente em matéria de juramentos, considerava 0 assunto de importincia tal que se jus- tificava af © emprego do augusto nome de Deus. 40 © favor ea protegio que a Igreja dispensava aos escravos estendiam-se rapidamente e, a0 que parece, introduziu-se em alguns lugares 0 costume de exigir no juramento que o escravo refugiado no 86 nfo receberia danos pessosis, mas também que nio seria onerado com trabalhos extraordinérios nem receberia qualquer mar ca ov traco distintivo. Desse costume, procedente sem diivida do zelo pelo bem da humanidade, mas que talvez tenha acarretado inconve- nientes a0 afrouxar com demasiada rapidez os lagos de obediéncis © dar lugar a excessos por parte dos escravos, encontram-se indicios numa disposigdo do Coneilio de Epaona, celebrado por volta do ano 517, ena qual se procura atalhar o mal prescrevendo uma prudente moderagao, sem no entanto abrir mio da protegio estatuida. Em seu cénone 39 ordena que, se um escravo réu de algum delito atroz se refugiar na igreja, somente seja ele isentado das penas corporais, nio se obrigando o dono a prestar juramento de que nao the impord trabalho extraordinério ou nfio the raspard os cabelos a fim de que sua condigao fique para todos evidente. Mas note-se bem que esse limitagao se aplicaria somente quando 0 escravo tivesse cometido delito grave e, nesse caso, a faculdade que se deixa a eritério do amo é to somente a de importhe trabalho extraordinério ou distin- guiclo pela raspagem do cabelo. Talvez néo falte quem rectimine semelhante indulgéncia, mas € mister advertir que, quando os abusos sio grandes ¢ arraigados, © empuxo para arrancé-los tem de ser forte e, se bem que & primeira sta pareca ultrapassar os limites da prudéncia, esse aparente ex- cess0 nfo é mais do que aquela oscilagdo que freqiientemente sofrem as coisas antes de encontrar seu verdadeiro equilibrio, Aqui néo tratava a Igreja de proteger o crime, nfo reclamaya cleméncia para quem nio a merecesse; 0 que tinha em vista era por cobro vio- lencia ¢ a0 capricho dos senhores; no podia consentir em que um homem sofresse tormentos e até morie 6 porque assim 0 queria ‘outro homem. O estabelecimento de leis justas ¢ a legitima acao dos tribunais so coisas as quais jamais se opds a Igreja, mas com a violéncia dos particulares nfo pode concordar nunca, Desse espitito de oposigdo ao exereicio da forca privada encon- trase uma mostra que vem muito a calhar no cénone 15 do Coneilio de Mérida, celebrado no ano de 665. E sabido, e jé 0 “deixamos consignado em outro ponto, que os escravos eram uma das partes principais da propriedade e que, estando regulamentada a distribu: ‘¢do do trabalho de acordo com essa base, nao eta possivel prescindit at de ter escravos a quem fosse dono de propriedades, sobretudo se alcangavam estas proporgdes consideraveis. A Igreja se achava neste caso €, como no estaya em suas mos modificar repentinamente a organizagio social, teve de acomodar-se aquela necessidade © pos- suiclos também. Entéo, se com respeito a eles queria introduzit_me- horas, bom scria que comecasse dando ela mesma o exemplo; @ esse exemplo se encontra no cénone conciliar hd pouco citado. Nele, depois de se proibir bispos e sacerdotes de castigar os serventes da igreja com mutilagbes, dispoe-se que, se eles cometerem algum delito, sejam entregues a juizes seculares, mas rescrvando-se & autoridade cclesidstica a faculdade de moderar as penas a que fossem condena- dos. E digno de nota que, segundo se deduz desse cinone, estava ainda em uso 0 direito de mutilagdo aplicado pelo dono particular, e devia tal costume conservar-se ainda muito arraigado, ja que o concilio se limita a vedé-lo aos eclesidsticos e nada diz com relagio 05 leigos. Nessa proibicdo influia sem divide a consideragio de que, mesmo derramando sangue humano, ndo se tinham tornado os eck sidsticos incapazes de exercer aquele clevado ministério cujo ato principal € © augusto sacrificio em que se oferece uma vitima de paz e de amor; mas isto em nada diminui o mérito da decisio ou restringe sua influéneia na melhoria da sorte dos escravos: sempre era substituir a vindita particular pela punigao piblica; era uma nova proclamagao da igualdade dos escravos com os livres, quando se tratava de efusio de sangue; era declarar que as maos que derra- massem o de um escravo ficavam to manchadas como se tivessem vertido o de um homem livre. E se fazia necessério inculear de todos os modes essas verdades salutares, jé que estavam em tao aberta contradigio com as idéias © os costumes antigos; impunha-se traba- Thar assiduamente para que desaparecessem as aberragées._vergonho- sas cruéis que mantinham a maior parte dos homens privados da participacdo nos direitos humanos. No cinone ha pouco citado hé uma circunstincia notavel que atesta a solicitude da Igreja em restituir aos escravos a dignidade e consideragio de que se achavam despojados. A raspagem dos cabclos era entre os godos uma pena muito degradante © que,. segundo in- forma Lucas de Tuy, quase thes era mais temfvel que a morte, Mas compreendase que, qualquer que fosse a preocupacio com esse onto, podia a Igreja permitir a raspagem sem incorrer na ignominia fem que implicava 0 derramamento de sangue, Mesmo assim, niio 42 quis fazé-lo, porque procurava apagar qualquer marca de humilhagéo que se estampasse na fronte do escravo. E entio, depois de ter pres- erito aos bispos © sacerdotes que entregassem a0 juiz os servos culpados, dispde que “no tolerem que sc Ihes raspem os cabelos ‘com oprébio”. Nenhum cuidado era demais nessa matéria: era necessério apro- veitar todas as ocasies favordveis para conseguir algum progresso nna extirpagdo das odiosas aberracoes que afligiam os escravos. Essa necessidade se manifeste bem claramente no modo como se expressa © XI Coneflio de Toledo, celebrado no ano de 675. Em seu cfnone 6 profbe aos bispos julgar casos de delitos dignos de morte, bem como de mandar aplicar a pena de mutilacdo de membros. Mas veja-se que julgou necessério advertir que nao admitia nenhuma excegio, “nem mesmo contra os servos de sua igreja”. O mal cra grave no podia ser curado sendio com solicitude permanente. Desse modo, até em relacdo ao direito mais cruel de todos, qual seja o de vida € motte, verifica-se como extirpé-lo exigia muito trabalho. Em prin- cipios do século VI nio faltavam exemplos de excessos nessa maté- ria, tanto que © Coneilio de Epaona, em seu cfnone 34, dispde que “seja privado por dois anos da comunhio da Igreja o amo que, por propria autoridade, faca perder a vida seu escravo”. Jé iamos por meados do século IX e ainda eram encontradigos atentados semelhantes, que o Concilio de Worms, celebrado em 868, se propos reprimir, sujeitando a dois anos de peniténcia 0 amo que, por sua autoridade privada, tivesse dado morte a scu escravo. a TERCEIRA PARTE A Igreja defende com zelo a liberdade dos alforriados. Manumissio nas igrejes. Saudiveis efeitos desta pritica. Redengio de cativos. Zelo da Igreja em praticar e promover esta obra. Preccupagio dos romanos a respeito deste Ponto, Influéneia que teve na abolilcao da escravatura 0 zelo da Igreja pela redencio dos cativos. A Igreja protege a liberdade dos ingénuos. Enquanto se suavizava 0 tratamento dos escravos ¢ eram eles aproximados 0 quanto possivel dos homens livres, impunha-se nao descuidar da obra de emancipagao universal, pois no bastava me- Ihorar aquele estado mas sim era preciso aboliclo. A forga da dou- trina crista, de per si, € 0 espfrito de caridade que com ela se ia difundindo por toda a terra golpeavam tao vivamente a escravatura que, mais cedo ou mais tarde, teria de sobrevir a completa aboligo deste, porque € impossivel que a sociedade permaneca por longo periodo numa ordem de coisas que esteja em contradi¢ao com as idéias de que uma grande maioria de seus membros se ache imbufda. Segundo o cristianismo, todos os homens tm uma mesms origem € um mesmo destino, todos so irmaos em Jesus Cristo, todos estfio obrigados a amarse desde 0 intimo de seus coragdes, todos devem socorrer-se mutuamente nas necessidades, a todos é vedado ofender- se mesmo por palavras, todos so iguais perante Deus e sero julga- dos sem acepeio de pessoas. Essas’ doutrinas se iam estendendo, arraigando em todas as partes, apoderando-se de todos os ramos da sociedade: como seria entio possivel que continuasse a escravidii. esse estado degradante em que o homem € propriedade de outro, em que € vendido como um bruto, em que ¢ privado dos doces lagos da familia, em que no participa de nenhuim lox enc da sociedade? Coisas tao antagonicas poderiam viver juntas? As leis estavam a favor da escravatura e, na verdade, 0 cristia- nismo no deflagrou nenhum movimento de desobedi¢ncia dircia cessas leis; mas em troca fez 0 que? Procurou apoderar-se das idéi € costumes, transmitiuthes um novo impulso, dew-thes uma di diferente — ¢, feito isso, 0 que podem as leis? Viu-se entdo afrou- xarse seu rigor, ser progressivamente descuidada sua observancia, comecar a ser questionada sua eqiiidade, proliferarem as discussdes sobre sua conveniéncia, agucar.se a consciéncia de seus maus efeitos, fe assim as antigas normas foram caducando pouco a pouco, de maneira que as vezes nem se fez necessério um golpe frontal para derrubé-las: elas simplesmente foram postas de tado © esquecidas por se terem tornado intiteis. Ou, se mereceram 0 trabalho de uma aboligdo expressa, isto foi feito por mera formalidade: como um cadaver que se enterra com honratias, Mas no se infira dai que, por dar tanta importincia as idéies € costumes cristios, se tenha abandonado o éxito da causa aos exclu- sivos efeitos dessa forga, sem que ao mesmo tempo cuidasse a Igreja de, conforme as circunstincias de época e lugar, tomar medidas coneretas conducentes a0 objetivo visado. Nada disso. Conforme jé foi anteriormente referido, a Tgreja lancou mao de vérios metos, os mais apropriados em cada caso para surtir os resultados desejados, Se se queria assegurar a efetividade da obra de emancipacio, era muito conveniente, em primeiro lugar, colocar a salvo de todo ataque a Tiberdade dos escravos alforriados — liberdade essa que era com freqiigncia combatida e que se via gravemente ameacada. Deste triste fenémeno nio € dificil encontrar as causas nos. rest duos de idéias e costumes antigos, na ambi¢io dos poderoso’, no sistema de violéncia generalizada implantado com a irrupgio dos bérbaros, e na pobreza, desamparo e despreparo em que com cer- teza se encontravam os infelizes reeém-saidos da escravatura (porque € de supor que muitos deles no conhecessem todo o valor da liber- dade, nfo se portassem sempre no novo estado de avordo com 0 qué mandam a razo e a justica, © nio soubessem cumprit todas as obrigagdes decorrentes dos direitos de homem livre que tinham abado de recuperar ou dos quais pela primeira vez se tinham. tor- nado possuidores). Mas todos esses inconvenientes, insepardveis da nnatureza das coisas, ndo deveriam entravar a consumacio de uma obra reclamada pela religido © pela humanidade. Era necesséric resignar-se a sofré-los, levando em conta que na patte de culpa que pudesse caber aos manumitidos havia muitos motivos de escuss, 46 porque 0 estado de que acabavam de sair embargava o desenvolvi- mento de suas faculdades intelectuais e morais Cuidou assim a Igreja de colocar a liberdade dos manumitidos a coberto dos ataques da injustica, vinculando @ alforria a objetos que na época exerciam mais poderosa ascendéncia sobre a conscién- cia coletiva €, de certa forma, revestindo de ume inviolabilidade sagrada a emancipacio, Dai o costume que se introduziu de reali- var-se a manumissio no interior dos templos. Esse ato, ao mesmo tempo que revogava e lancava no esquecimento antigos usos, vinha constituirse numa dectaracao ticita do quao agradavel a Deus era a liberdade humana ¢ correspondia a uma procfamacéo prética da igualdade de todos perante o Criador. Tanto assim que a emancipagio xe exeetitava no mesmo local onde com freqiiéncia se liam trechos das Escrituras que falavam que perante Ele nfo hd avepgio de pessoas, onde desaparcciam todas as distinges mundanas, onde ficavam misturados todos os homens, unidos por suaves lagos de traternidade © amor, Efetuada desse modo a manumissio, ficava a Igreja com mais expedito direito para defender a liberdade do ma- numitido pois, tendo sido testemunha do ato, podia dar {8 de todas as circunstincias configuradoras de sua validade c, ainda, reclamar sa observancia sob o argumento de que sua violacdo equivalia de certa forma a uma profanacdo do lugar sagrado, ao descumprimento lo prometido diante do proprio Deus. Nao esquecia a Igreja de aproveitar todas as oportunidades para reafirmar semelhantes circunstincias favoriiveis aos manumitidos. ‘Assim € que oT Concilio de Orange, celebrado em 441, dispde em set canone 7 que € preciso impor censuras cclesiésticas aos que quiserem submeter a qualquer tipo de servidio os escravos emanci- pados na igreja. E, um século depois, a mesma proibigio & repetida no eanone 7 do V Coneilio de Orleans, realizado no ano de 549. A. protecdo dispensada pela Igreja aos manumitidos era tio manifesta e conhecida de todos que se adotou 0 costume de imendé-los particularmente ao seu zelo, Fazia-se essa recomendacio is vezes em testamento, como no-lo indica o Concitio de Orange ha povco citado, ao ordenar que, por meio de censuras eclesidsticas, se impeca que sejam submetidos a qualquer género de servidio os eseravos emancipados recomendados & Igreja por testamento. Mas hem sempre se fazia por testamento essa recomendagao, segundo se infere do cAnone 6 do Concilio de Toledo, celebrado em 589, ¢ onde se dispde que, quando tiverem sido recomendados & Igreja quaisquer ‘manumitides, nio sejam privados da protegdo da mesma néo somente eles mas também seus filhos: aqui se fala em geral, sem se limitar 05 casos em que o instrumento utilizado tenha sido testamento. O mesmo se pode constatar em outro Concilio de Toledo celebrado no ano de €33: af se estabelece que a Igreja receberd sob sua protecdo tunicamente os emaneipados por particulares que a ela os tenham re. comendado. Mesmo quando a manumissio no tenha sido feita no templo nem tenha havido recomendacéo particular, a Igreja no deixava de tomer parte na defesa dos manumitidos quando via perigar sua liberdade, Quem preze em algo a dignidade do homem, quem abrigue no peito algum sentimento de humanidade seguramente no levaré ‘2 mal que a Igreja se intrometesse nessa matéria; nao Ihe desagra- daré saber que 0 cénone 29 do Concilio de Agde, no Languedoc, celebrado em 506, determinou que ‘a Igreja, se necessério, tomasse 4 defesa de todos aqueles aos quais seus amos tinham legitimamente dado a liberdade, Na gtande obra de abolicao da escravatura efetivamente teve relevante participagio 0 zclo que, em todos os tempos ¢ lugares, Igreja despendeu pela redencio dos cativos. Considere-se a propé- sito que uma patcela considerdvel de escravos devia esta sorte a0s reveses da guerra. Ai dos vencidest, podia-se exclamar nos tempos antigos. Para os derrotados nfo havia alternativa além da morte ou da escravidio. Agravava-se 0 mal com uma preocupacio funesta que se havia desenvolvido contra a redencio dos cativos — preocupacio essa que se apoiava em vislumbres de assombroso herofsmo. Admi- ravel é sem divida a extraordindria forga de énimo de um Régulo; arrepiam-se os cabelos quando se 1éem as vigorosas pineeladas com ‘a5 quais o retrata Horicio (1. 32, Odes 5); € 0 livro cai das mos quando se chega ao terrivel lance em que Fertur pudicae coniugis osculum Parvosque natos, ut capitis minor, A se removisse, et virilem Torvus humi possuisse vultum. Mas, sobrepondo-se & profunda impressdio que nos causa tanto heroismo ¢ ao entusiasmo que suscita em nosso peito tudo quanto revela uma grande. alma, nfo podemos deixar de reconhecer que aquela virtude chegava as raias da ferocidade e que, no terrivel dis- 8 curso que brota dos lébios de Régulo, esté consubstanciada uma politica cruel, contra a qual se Ievantariam vigorosamente os senti- mentos de humanidade, se nossa alma néo estivesse cativada € como ‘que subjugada pelo exemplo de sublime desprendimento do homem que fala daquele modo. © cristianismo néo podia pactuat com semelhante doutrina: ndo admitiu que se sustentasse o prinefpio de que, para tornar os homens valentes, era necessério deixé-los sem esperanga; © 0s ade lances de valor, as espantosas cenas de inalterivel fortaleza © constincia que iluminam paginas da histéria de nagbes modernas sio um elogiiente testemunho do acerto da religiso cristi a0 procla- mar que a suavidade de costumes nao exclui o heroismo. Os antigos coscilavam sempre entre dois extremos: a moleza ou a ferocidade; centre esses extremos hé um meio termo, que foi o que veio ensinar sus homens s religifo crista. Covrentemente, pois, com seus principios de fraternidade ¢ de amor, 0 cristianismo teve como um dos objetos mais dignos de seu ritativo zelo 0 resgate dos cativos. E quer contemplemos os for- mosos lances de ages particulares que nos conservou a histéria, quer atentemos para o espirito que ditigiu a conduta global da Igreja, encontraremos um novo e belissimo motivo para que a humanidade tribute sua gratiddo & religido crista Um eélebre eseritor moderno, Chateaubriand, mostrou-nos, no meio dos bosques dos francos, um si rdote que era escravo, € seravo voluntério, por ter-se entregue A escravidio em resgate de tum soldado cristo que gemia no cativeiro e que havia deixado no desconsolo € no abandono a esposa € trés filhos. © sublime espe- ticulo que nos oferece Zacarias, softendo com serena calma a eseravidao pelo amor de Jesus Cristo ¢ daquele infeliz a quem tinha libertado, nao € uma mera ficedo do poeta. Nos primeiros séculos da Igreja, viram-de exemplos semelhantes em abundan ventura tenha chorado a0 contemplar o herdico desprendimento de Zacarias pode estar seguro de que, com suas légrimas, pagow um lributo & verdade. “Conhecemos muitos dos nossos que se entregaram les mesmos ao cativeiro para fesgatar outras pessoas”, conta-nos © papa Séo Clemente (I Cor., LV). ‘A redencio dos cativos era um objetivo tio privilegiado que estava previsto por antiquissimos cinones que, se para isso fosse necessério, se vendessem os adornos das igrejas, até seus vasos sa- grados. Em se tratando dos infelizes cativos, a caridade nao tinha © quem por- 49 limites, 0 zelo transpunha todas as barreiras, chegando-se mesmo a0 ponto de estatuir que, por mais avariada que estivesse uma igteja, antes de sua reparagdo deveria atender-se & redengdo dos cativos (Caus. 12, Quaest. 2). Em meio aos transtornos que consigo trouxe @ irrupgdo dos bérbaros, a Igreja, sempre constante em seu prop6- sito, nfo esmorecea na generosa conduta encetada desde seus pri- mérdios. Nao cafram em olvido nem em desuso os dispositivos benéficos dos antigos cénones, © as generosas palayeas do santo bispo de Milao em favor dos cativos continuaram encontrando um eco que nio se interrompeu nem mesmo com 0 caos daqucles tempos (vide Santo Ambrésio, De Offic, 1. 2°, c. XV). Pelo cénone 3 do Coneflio de Macon, celcbrado em 585, constata-se que os sacerdotes se ocupavam do resgate de cativos, empregando para isso os bens colesidsticos. O Coneilio de Reims, celebrado em 625, impde a pena de suspensio de suas fungdes a0 bispo que se desfaga de vasos sagrados, mas estabelece generosamente esta ressalva: “a nio ser pelo motivo de redimir cativos”, E muito tempo depois se encontta consignado no cdnone 12 do Coneilio de Verneuil, eelebrado em 844, que 0s bens da Igreja tm a serventia de proporcionar a redengio de cativos. Restituido a liberdade 0 cativo, nfo o deixava a Igreja sem protesdo, mas sim a prolongava com solicitude, fornecendo-Ihe cartas de recomendacdo, certamente com 0 duplo objetivo de res- guardé-lo contra novas tropelias durante a viagem & terra natal e de ensejarhe meios com que recuperarse dos danos sofridos no ¢ veiro, Deste tipo de protecdo nos da testemunho 0 cénone 2 do Coneflio de Lyon, celebrado em 583, e no qual se dispde que os bispos devem fazer constar das referidas cartas de recomendagio a data e 0 prego do resgate. De tal mancira se desenvolveu no seio da Igreja o zelo pela redengio dos catives que se chegaram a cometer imprudéneias que as auloridedes eclesiasticas tiveram de reprimir. Mas esses proprios excessos atestam até que ponto chegava aquele zelo, pois era a impaciéncia por resultados mais amplos que gerava os extravios. Assim, sabemios por um concilio celebrado na Irlanda, chamado de io Patricio e que se realizou entre os anos 451 e 456, que alguns clérigos se empenhavam em obter a liberdade de cativos ajudando-os a fugit — comportamento esse que 0 concilio reprime com muite prudéncia, dispondo em seu cénone 32 que os eclesiésticos devem promover a redencdo de cativos por meio do pagamento do resgate 50 vin dinheiro, j4 que seqiiestré-los para dar-thes fuga redundava em uywe os sacerdotes fossem vistos como ladrdes e a Igreja ficasse sksonrada, Documento notével que, embora nos manifeste 0 espirito le ordem e eqiiidade que dirige a Igreja, nao deixa de ao mesmo impo indicar-nos quio profundamente estava gravado nos dnimos como era santo, meritério © gencroso dar liberdade aos cativos: tanto assim que alguns chegavam a persuadir-se de que a bondade da obra sutorizava o emprego da violéncial E também muito louvavel 0 desprendimento da Igreja ness matéria: aplicando seus bens na redencao de um cativo, nao aceitava uenhum ressarcimento, mesmo quando o redimido viesse « reunir condigdes para fazé-lo, Disto temos um claro testemunho nas cartas lo papa Sao Gregério, pelas quais se constata que, estando algumas pessoas liberadas do cativeiro com dinheiro da Igreja receosas de ‘que com o passar do tempo se Ihes viesse a pedir o reembolso quantia despendida, 0 santo pontifice exclui terminantemente essa hipdtese © manda que ninguém se atteva a molestar nem a elas em 4 seus herdeiros, em tempo algum, tendo em vista que os sagrados cdnones permitem que os bens eclesidsticos sejam utilizados para a redengio de cativos (I. 7°, carta 14). © zelo da Igreja por tio santa obra no poderia deixar de con- tribuir significativamente para a diminuigio do niémero de escravos, © sua influéneia foi muito mais benfazeja por terse exercido cabalmente nas épocas de maior necessidade, ou seja: quando, pela issolugio do Impsrio Romano, pela irrupgdo dos bérbaros, pela mobilidade dos povos (que foi o estado da Furopa durante muitos séeulos) e pela ferocidade dos invasores, eram téo freqiientes as guerras, to repetidos os transtornos ¢ to corriqueiro 9 teinado da forga por toda parie. Se nio se tivesse Feito presente a ago educa dora e libertadora do cristianismo, longe de diminuir 0 imenso ndmero de gados pela sociedade velha a sociedade nova, © que se teria € 0 seu continuo creseimento porque, onde quer que prevaleca o direito brutal da forga. se nfo se the antepe nenhum poderoso elemento para conté-la ¢ suavizé-la, a Tinhagem humans caminha rapidamente para o envilecimento, com 0 que a eseravatura incaoravelmente ganha terreno. Esse lamentivel estado de oscilagio © de violéncia era por si 56 muito propicio para inutilizar os esforgos que com vistas & abolicgio da escravatura favia a Igreja, nao the eustando pouco trabalho im- pedir que, enquanto se dava um passo adiante aqui, ocorresse sin escraves k retrocesso acold. A falta de um poder central e a complicagio das relagées sociais (poucas bem definidas, muitas violentas € todas sem cardter de estabilidade) faziam com que estivessem inseguras as pro- priedades e as pessoas, e assim como eram invadides aquelas, eram estas privadas de sua liberdade. De modo que era preciso evitar que nfo produzisse agora a violencia de particulares aquilo que antes era fruto dos costumes ¢ das leis. Dai que o cénone 3 do Coneflio de Lyon, celebrado por volta do ano 566, puna com a pena de excomu- hao quem injustamente submeter & escravidio pessoas livres; 0 canone 17 do Concilio de Reims, realizado em 625, proiba, também sob pena de excomunhao, perseguir pessoas livres para converté-las cm escravos; 0 cdnone 27 do Concitio de Londres, reunido em 1102, fulmine o bérbaro costume de fazer comércio de homens como se fossem animais; e 0 capitulo VII do Concilio de Coblenca, ocorrido em 922, declare réu de homicidio quem seduza um eristao para vendélo — declaragio notavel, na qual a liberdade ¢ tida em tio alto.prego que se a equipara & vida. Outro meio de que se valeu a Igreja para ir abolindo a escra- yatura consistiu em abrir caminho para que os infelizes que por pobreza tivessem caido nesse estado pudessem sair dele. Ja se men- Gionow que a indigéncia era uma das fontes da escravidio ¢ foi até transcrito o trecho de Jtlio César que relata como isso acontecia comumente entre os gauleses. Também € sabido que, pelo direito ‘antigo, quem tivesse caido na escravidio ndo podia recuperar a liber- dade sendo pela vontade de seu amo; isto porque, sendo o escravo tuma auténtica propriedade, ninguém podia dispor dela sem consen- timento do dono, e muito menos 0 pr6prio escravo. Tal era o diteito corrente, baseado nes doutrinas pags, mas o ctistianismo via as coisas com outros olhes. Assim, ainda que juridicamente considerado ‘uma propriedade, nem por isso deixava 0 escravo de ser homer; dai que neste ponto a Igreja nfo tenha concordado em acatar as tsttitas regras aplicdveis @ outras propriedades; ¢, surgindo alguma diivida ou oferecendo-se alguma oportunidade, sempre se colocava ao lado do escravo. No caso especifico ora em referéncia, introduziu a Igreja um principio novo, segundo 0 qual as pessoas livres que tivessem sido vendidas ou penhoradas por necessidade podiam retor- nar ao estado anterior mediante o pagamento do prego pelo qual haviam sido adquiridas. Esse novo direito, que se acha expressamente consignado num concilio celebrado na Franca por volta do ano 616 (segundo parece 32 na localidade de Boneuil), descortinava novos horizontes para 0 eseravo pois — além de manter aces a chama da esperanca em seu coragdo, animando-o a excogitar © executar fSrmulas para a obtencao lo resgate — fazia com que sua libertagdo dependesse de qualquer hyessoa que, compadecida da sorte de um desgracado, se dispusesse " pagar ou etmptestar a quantia necesséria, Recorde-se, a propésito, © que se registrou anteriormente sobre 0 ardente zelo despertado entre os cristdos por obras dessa natureza, assim como sobre 0s ulispositives eandnieos que consideravam bem empregados os bens da Igreja que fossem aplicados com essa finalidade, ¢ se poderé avaliar 1 enorme influéncia que aquele dispositive exerceu na pritica. Ha le reconhecer-se que isso equivalia a estancar um dos mais abun- cies manancinis de eervidSo e » abrir para Hoerdnds um largo wcanuinhe. 53 QUARTA PARTE Sistema seguido pela Igreja a respeito dos es- cercvos dos judcus. Motives que impulsionavam a Igreja & manumissio de seus escravos. Sua indulgéneia neste ponto. Sua generosidade para com seus libertes. Os eseravos da Igreja eram consideredos como consagrados a Deus. Sau- daveis efeitos desta consideracdo. Concessio da Lberdade a escravos que queriam sbracar a vida monéstics. Efeifes deste pritica. Conduta da Igreja na ordenacio de escravos. Repressao de chusos que neste matéria se introduziram, Con duta da Igreja de Espanha a esse resp Nao deixou também de contribuir para a aboli¢fo da escravatura a conduta da Igreja em relacio aos judeus. Esse povo singular, que Jeva em sua fronte a marca de um proserito, que se acha disperso por todas as nagées sem se confundir com elas, tal como sobrenadam num Iiquido os pedagos de um material insoldvel, procura mitigar seu infortiinio acumulando tescuros ¢ parece que se vinga do desde- nhcso isolamento a que o relegam outros povos stigando-Ihes o sangue com incontrolivel usura. Em tempos de grandes transtornos ¢ cala- miidades que necessariamente deveriam acarretar miséria, podia im- perar scm travas 0 detestivel vieio de uma cobica desapiedada, E recentes como eram a dureza ¢ a ctueldade das antigas leis e dos velhos costumes acerca da sorte dos devedores, av mesmo tempo que no faltavam exemplos de quem estivesse pronto a dispor da liber- dade de outrem ou da sua propria para escapar de um apuro, era urgente evitar o perigo que um excessivo ineremento do poderio eco- némico dos judcus poderia acarretar para a liberdade dos cristios. Que nao era imaginério o perigo demonstra a ma fama de que desde époces imemoriais os judeus gozam nessa matéria € com- provam-no fatos que ainda em nossos dias se esto presenciando. O célebre Herder, em seu Andrastéia, no hesita em prognosticar que os filhos de Israel, com 0 correr do tempo © por forga de uma conduta sistemética © calculada, chegarao a reduzir os cristios & condigio de seus escravos. Se, pois, em circunstincias infinitamente menos favorveis aos judeus, personalidades destacadas chegam a abrigar tais temotes, que ndo seria de recear da cobica inexorsvel de membros desse povo nos desgracados periodos a que estamos nos referindo? Por estas consideragdes, um observador imparcial; um obser vador que nio esteja dominado pelo miseravel prurido de advogar a causa de qualquer seita, desde que isto enseje oportunidade de inculpar a Igreja Catélica, mesmo em detrimento dos intetesses da humanidade; um obsetvador que ndo pertenca a classe daqueles que no se alatmatiam tanto com uma irrupcio de bérbaros quanto com um dispositivo legal em que a potestade eclesiéstica parega alargar de alguma forma suas atribuig6es; um observador que nao seja. tio ancor0so, to mesquinho, to desprezivel — vera, nio com escandalo, mas sim com satisfacdo que a Igreja seguia com prudente vigilineia ‘5 passos dos judeus, aproveitando toda ocasido que se oferecia para favorecer os ctistdos seus escravos, até atingirse 0 ponto de proibir aqueles de t€-los © III Coneflio de Orleans, celebrado no ano de 538, em seu einone 15, protbe que os judeus obriguem seus escravos cristios a fazer coisas contrarias & religiao de Jesus Cristo, Esta disposigao, que assegurava ao escravo a liberdade: no santudrio de sua consciéneia, tornava-o respeitvel aos olhos de seu préprio dono ¢ constituia uma proclamacao solene da dignidade do homem, pois deixava evidenciado que a escravatura nao podia estender scus dominios a sagrada regiéo do espfrito. Isto, 0 entanto, no bastava e era necessério Facilitar aos escravos dos judeus a recuperagao da liberdade. Por isso, passa- dos apenas trés anos, celebrou-se 0 IV Concilio de Orleans © & noté- vel 0 quanto este se adiantou com respeito ao anterior, pois em seu eanone 50 permitiu que se resgatassem os escravos cristios que se refugiassem na igreja, desde que fosse pago aos donos judeus o prego correspondente, Bem & de ver que uma disposigdo semelhante teria de produzir abundantes resultados em favor da liberdade, jé que dava 70 a que escravos cristdos fugissem para o interior das igrejas ¢ dali, fazendo apelo a caridade de seus irméos, mais facilmente conseguissem que se Ihes socorresse com a quantia do resgate ‘© mesmo conei Yerta um escravo cris em seul canone 31, dispde que o judeu que per- Jo seja condenado a perder todos os seus 36 eseravos. Nova sango & seguranga da consciéncia do escravo, novo caminho que se abria para dar passagem & liberdade! Ta, assim, a Igreja avancando com aquela unidade de designio. com aquela constancia admiravel que Ihe reconheceram seus préprios inimigos. E, no breve espago de tempo que medeia entre a época indi- cada e 0 iiltimo tergo do mesmo século, s8o considerdveis os progres sos, traduzidos por disposigdes candnicas mais tachativas e, se se pode dizer essim, mais ousadas. No Coneilio de Macon, celebrado no ano de 581 ow 582, chega-se em seu cfnone 16 a proibir expressamente que os judeus tenham escravos eristdos, permitindo que os jé existen- (3 sejam resgatados mediante 0 pagamento de doze soldos. A mesma proibicaio se repete no cinone 14 do Concilio de Toledo celebrado em 589, de modo a deixar bem clara a vontade da Igreja: nao queria absclutamente que um cristo fosse eseravo de um judeu. Constante em seu propdsito, a Igreja atalhava o mal por todos os meios possiveis, inclusive limitando a faculdade de vender os escra- vos se houvesse o perigo de que caissem em macs de judeus. Assim & que © canone 9 do Concilio de Chalons, celebrado no ano de 650, profbe a yenda de escravos cristaos fora do reino de Clodoveu, a fim de que nao venham a ser adquitidos por judeus. Nem todos com- preendiam o espirito da Igreja neste ponto, nem observavam de mente suas determinaces. Mas cla nao se cansava de repel incules-las. Em meados do século VII se constata que nio faltavam Icigos e mesmo eclesidsticos que tinham vendido escravos ctistéos a judeus: prontamente acorre para reprimir esse abuso 0 X Coneilio de Toledo, realizado no ano 656 © em cujo canone 7 se profbe aquela prética, explicando belamente que “no se pode ignorar que esses eseravos também foram redimidos com 0 sangue de Cristo, motivo pelo qual antes se deve compré-los do que vendé-los” Essa inefavel referéncia a um Deus feito homem que verte seu sangue pela redengao de todos os homens era © mais poderoso argu mento que induzia a Igreja a interessar-se com tanto zelo pela manu- missio dos escravos. E, com efeito, néo poderia haver nada mais propicio a engendrar aversdo a desigualdade (a0 afrontosa do que pensar como aqueles mesmos homens, rebaixados até 0 nivel dos rutos, tinham sido objeto do olhar bondoso do Altissimo, tanto como seus donos, tanto como os monarcas mais poderosos da terra. “Ia que nosso Redentor ¢ Criador de todas as coisas — dizia o papa Sao Greg6rio — se dignou tomar carne humana para que, rompido pela graga de sua divindade 0 vinculo de servidio que nos las e mantinha em cativeiro, nos restitufsse a liberdade original, € obra salutar restituir pela manamisséio sua nativa Jiberdade aos homens, pois no principio todos foram criados livres pela natureza e sé foram eles submetidos a0 jugo da escravidio pelo direito das gentes” (L. 5.", carta 12), A Igreja sempre julgou necessério limitar ao maximo a possi- bilidade de alienacao de seus bens, © pode-se mesmo assegurar que em geral foi sun regra de conduta nesta matéria confiar pouco na discricdo de qualquer de seus ministros tomados en particular. Agindo dessa maneira, propunha-se evitar as dilapidagdes que, de outro modo teriam sido freqiientes, face as circunstéi esses bens se encon- trarem espalhados por toda parte © de estarem a cargo de presbi- teros oriundos de diversas classes sociais © expostos & multiplicidads de influéneias derivadas das relagdes de parentesco © amizade, bem como as imprevisiveis comptilsdes de sua propria indole, de seu grau de conhecimentos, de sua maior ou menor prudéncia e de fatores li- gados & época, lugar, clima etc. Por isso a Igreja sempre se mostrou receosa em se tratando de conceder a faculdade de alienar e. dava 0 caso, sabia exercer saudavel rigor sobre os ministros qui enciassem suas obrigacdes quanto & preservagao do patriménio @ eles confiado. Nao obstante, conforme jd se mostrou, esas restrigdes ‘nao subsistiam quando se tinka em vista a redengao de cativos, Ao mesmo tempo, quanto & propriedade constituida por escravos, a Igreja encarava a coisa com outros olhos e trocava aquele rigor por indulgén Assim & que bastava que os escravos tivessem servido bem & Igreja para que os bispos pudessem conceder-thes a liberdade, doando- Ihes também alguma quantia em dinheiro e/ou bens que os ajudasse em sua manutengao. Esse sobre 0 mérito dos escravos estava confiado, segundo parece, ao critério do respective bispo. E pode- desde logo antever como tal disposicao abria uma larga porta & cari dade dos prelados, assim como paralelamente estimulava os escravos a terem um comportamento que os fizesse merecedores de tio preciosa dadiva, Como podia ocorrer que 0 bispo sucessor levantasse chividas sobre a sufi dos motivos que haviam, induzido seu antecessor a dar liberdade a um escravo e pretendesse reabrir a questio, foi determinado que todo prelado acatasse integralmente nesta matéria as disposicdes de seu predecessor, nfo $6 se abstendo de questionar a liberdade dos manumitidos, como também respeitando tudo 0 que Ihes tivesse sido concedido, seja em terras, vinhedos:ou moradia. 1880 58. 6 0 que prescreve 0 cAnone 7 do Concilio de Agde, do ano de 506. Ressalte-se que as alienacdes ou empenhos de bens cclesiésticos feitos por um bispo que nada deixasse a0 morrer deveriam ser revo- gados. Como desde logo se depreende. tal dispositivo se aplicava Aqueles casos em que ocorrera infracdo aos cénones relativos & pre- servagio do patriménio da Igreja. Nao obstante, se entre aquelas de- feccbes patrimoniais se incluisse a manumissio de escravos, abran- dava-se 0 rigor candnico, determinando-se que os manumitidos conti- nuassem em liberdade, Assim ordenou 0 Concilio de Orleans cele brado no ano 541, em seu cénone 9, com a ressalva apenas de que estes prestassem servicos & Igreja — servigos que, & claro, seriam compativeis com a condigao de homens livres e que, ademais, impli- cavam na recompensa da protecio que a Igreja dispensava a todos os dessa classe. Como cutro indicio da indulgéncia com relagdo aos escravos, pode-se citar o cénone 19 do Concilio de Celchite (Inglaterra), cele- brado em 816, 0 qual implicava em nada menos do que no prazo de poucos anos dar liberdade a todos os servos ingleses das igrejas alcangadas por essa disposicao. De fato, estabelecia-se que, quando da morte de um bispo, se desse liberdade a todos os seus servos ingleses, ‘além do que cada um dos demais bispos ¢ abades deveria manumitir ttés servos, doando a cada um deles trés soldos, Semethantes dispo- sigdes iam aplanando 0 caniinho para que se avancasse mais ¢ mais, de modo que, preparados os animos € as coisas, no devido tempo se pudessem presenciar acontecimentos tio generosos como os que mar- caram 0 Concilio de Armach, em 1171, quando se deu liberdade a todos os ingleses que eram esctavos na Irland Essas condig6es vantajosas de que desfrutavam os escravos da Igreja eram de muito maior valor por causa de uma norma adotada € que as colocava a salvo do perigo de virem a ser perdidas. Com efeito, se os escravos da Igreja pudessem passar para as méos de outros donos, ocorrido isto ficariam eles sem direito aos beneficios que cabiam aos que continuassem sob seu podet. Mas felizmente esta- va proibida a permuta desses escravos por outros € os que safssem da jurisdigio da Igreja s6 poderiam ter por destino a liberdade. Deste sistema temos expresso testemunho nas Decretais de Gregorio IX (1 32, titulo XIX, c. 5 e 4). E € notavel que nesses documentos se considerem os escravos da Igreja consagrados a Deus, fundando-se histo a disposigo de que nao poderiam passer para outras mios ¢ de que s6 poderiam sair da jurisdigao eclestéstica para se tornarem 59 livres, Vé-se também nesses documentos que os figis, em recomen- ago de suas almas, costumavam oferecer escravos a Deus e a0s santos, e a0 passarem desse modo ao poder da Igreja ficavam fora do comércio comum, livres da hipétese de retornarem 0 pre fana, Nao é preciso repisar o salutar efeito que necessariamente pro- duziam essas idéias c costumes, em que a religiio se enlagava com a causa da humanidade: basta observar que o espirito da época era altamente religioso e que tudo que tivesse a chancela da religiio estava seguro de ganhar cada vez maior terreno, E acontece que a forga das idéias religiosas que se desenvolviam dia a dia, ditigindo sua acio a todos os setores da vida, se voltava de modo especial para a tarefa de subtrair © homem, por todos os meios possiveis, ao jugo da escravidio. A propésito, 6 muito digno de nota um dispositive canénico do tempo de Siio Gregério, o G Num concilio celebrado em Roma no ano de 597 ¢ presi Papa, abriu-se aos escravos uma nova porta para que safssem desse abjeto estado, ao ser determinado que ganhassem a liberdade todos quantos quisessem abracar a vida mondstica, Sio dignas de atencio as palavras do santo papa, pois nelas se descobre a ascendéncia dos motivos religiosos © a forma como estes. se sobrepdem a todas as consideraydes e interesses mundanos. Esse importante documento se encontra entre as Epistolas de Sio Gregorio e & transcrito mais adiante (no EPILOGO). Seria desconhecer 0 espitito daquelas épocas supor que seme- Ihantes dispesicbes permanccessem estéreis: néo foi assim e, muito 20 contrério, tiveram enormes resultados. Disso nos di uma idéia co que se 1é num decreto de Graciano (Dist. 54, c. 9-12), pelo qual se verifica que a coisa chegava &s raias do escdndalo, pois se tornou preciso teprimir severamente © abuso cometido por escravos que fugiam de seus amos e, pretextando razdes religiosas, iam para os mosteiros. Como quer que seja, © mesmo prescindindo do que possa nio ter sido mais do que uma distorcio abusiva, nao é dificil conjee- turar quio abundantes deve ter sido os frutos colhidos, quer pela liberdade que por esse meio alcancaram muitos escraves, quer pelo efeito que produziu aos olhos do mundo o fato de estes passarem para uum estado que logo foi se expandindo e adquirindo imenso p @ poderosa influéncia, Contribuiré também de forma significativa para que se tenha uma idgia da profunda transformago que por esses meios se ia promovendo na organizacao social considerar 0 que acontecia com igio 60. relagdo a ordenagio de escravos. A disciplina da Igreja sobre este ponto era um cosrente reflexo de suas doutrinas. O escravo era um hhomem como os demais e, portanto, podia ser ordenado tal como qualquer magnata. Mas enquanto estivesse sujeito & potestade de seu dono carecia da independéncia necesséria & dignidade do augusto ministério. Por isso se exigia que 0 escravo s6 pudesse ser guindado ao sacerdécio depois de libertado. Nada mais razodvel, mais justo mais prudente do que essa limitagao num ordenamento que por todos os titwlos se mostrava nobre © generoso; ordenamento que por si s6 era um eloguente protesto em favor da dignidade do homem, tuma solene declaragdo de que, por ter a desgraca de estar sofrendo a escravidio, ninguém ficava rebaixado do nivel dos demais, pois a Igreja nao tinha vergonha de escolher seus ministros entre os que haviam estado sujeitos & servidio; ordenamento altamente humano € benevolente pois que, colocando em esfera tio respeitavel quem tinha sido eseravo, tendia a dissipar os preconceltos contra os que ainda se encontravam nesse estado e engendrava fortes e fecundas relacées entre estes © os membros das mais proeminentes classes de homens, livres. A. propésito, merece atengao 0 abuso que se chegava a cometer © que consistia em ordenar escravos sem 0 consentimento de seus doncs. Por contratiar frontalmente os sagrados cAnones, essa prética foi reprimida com saudivel zelo pela Igreja. No entanto, também esse tipo de desvio é muito ilustrativo para dar a conhecer devidamente © profundo efeito que estavam produzindo as idéias e instituigde: religiosas. Pois, sem que se pretenda relevar 0 que nisso pudesse haver de culpavel, deve-se reconhecer que os abusos muitas vezes nndo so sendo exageros de um bom principio. O que, em iiltima ané- lise, se verificava ¢ que as idgias religiosas repeliam a escravatura, mas esta era sustentada pelas leis, ¢ dai a luta incessante que se apre- sentava sob diferentes formas. porém sempre voltada para o mesmo fim: a emancipagao universal. E muito curiosa a leitura dos documentos que nos chegaram a respeito do tipo de abuso a que se acaba de fazer referéncia, notada- mente 0 j@ citado decreto de Graciano (cujas principais partes sio transeritas, adiante, no EPILOGO). Examinando-os com atencio, ve- rifica-se que: 19) O néimero de escravos que por esse meio (a ordenacio sacerdotal) aleangavam a liberdade era muito grande, pois as queixas © 08 clamores que contra isso se levantavam cram gerais. a 22) Os bispos comumente estavam a favor dos escravos ¢ levae vam essa sua postura as diltimas conseqiléncias, tanto assim que se afirma que quase nenhum prelado podia ser isentado de ter caido em excessiva condescendéncia nessa matéri 3.) Os escravos, conhevendo esse espitito de protegdo, se apres- savam em desfazer-se de seus grilhdes e langar-se nos bragos da Igreja. Esse conjunto de circunstincias teria de produzir nas conscién- cias uma disposigao muito favordvel liberdade. E, entabulada uma tao afetuosa integrago entre os escravos ¢ a Igreja, entio ja bastante poderosa ¢ influente, necessariamente teria de resultar que a escravar tura se fosse debilitando cada vex mais, até chegarem 05 povos & liberdade que séculos adiante estaria plenamente implantada, A Igreja de Espanha, 2 cujo influxo civilizador tributaram tantos clogios homens nada inclinados ao catolicismo, manifestou também nesta matéria sua elevagdo de vistas ¢ sua consumada prudénci Sendo to grande, como se vit, 0 zelo caritativo em favor dos esera- vos e tendo-se tornado tio decidida a tendéncia & sua promogio a0 sacerdécio, era conveniente refrear um pouco esse impulso gencrvso, conciliando-o, na medida do possivel, com 0 que era exigido pele santidade do ministério. A esse duplo objetivo se encaminhavam sem diivida as disposigées adotadas nesse pais no sentido de permitir a ordenagio de escravos da Igreja, efetuando-se previamente sua manu- missio. E 0 que se verifica pelo cdnone 74 do IV Concilio de Toledo, celebrado no ano de 633, ¢ também pelo canone 11 do 1X Coneflio de Toledo, realizado em 655, onde se estabelece que os bispos néo podem introduzir os servos da Igreja no clero sem antes dar-thes a liberdade, Como se nao bastasse, essa disposigao foi ampliada pelo cinone 18 do Coneflio de Mérida, do ano de 666, pelo qual se concede sos pé- rocos a Faculdade de escolher entre seus servos 0s que pudessem tor arse saccrdotes ¢ exercer 0 ministério na propria pardquia, compro- metendo-se porém a manté-los de acordo com suas rendas. Com essa disciplina, sem cometer nenhuma injustiga, evitavam-se os inconve- nientes que podia trazer consigo a ordenagao de esctavos e, ademais, se conseguiam benéficos resultados por uma via mai ordenando-se servos jé radicados na pardquia, era mais facil escolhé: fos com tino, dando preferéncia aos que mais 0 merecessem por seus dotes morais e intelectuais, Com isso também se abria ampla porta para que a Igreja pudesse emancipar seus servos, fazendo-o por tum canal tio honroso como o era inserevé-los no ntimero de seus suave, porque, 62 ministros, E, finalmente, dava-se aos leigos um exemplo muito salutar, pois se a Igreja se desprendia to generosamente de seus escravos © era neste ponto tio indulgente que, nio se limitando aos bispos, tstendia essa faculdade até aos pérocos, aos seculares no deveria parecer descabido o sacrificio de abrirem mio, eles préprios, de set interesses materiais e concederem liberdade Aqueles seus servos que parecessem chamados a0 santo ministério, QUINTA PARTE Doutrinas de Santo Agostinho sobre a escravi- dio, Importincia dessas doutrinas para acar- retar a aboligdo. Impugna-se a opiniio de Guizot, Doutrinas de Santo Tomés sobre a mesma matéria. Matriménio de eseravos, Dis: posigdes de Direito Candnico sobre esse matri ménio. Doutrina de Santo Tomés a esse respei- to. Resumo dos meios empregados pela Igreja para abolicio da escravatura, De como esse resultado € devido exclusivamente a0 cato- licismo. \Vimos assim como a Igreja ia desfazendo por mil ¢ um meios as cadeias da escravatura, sem no entanto ultrapassar os limites assina- lados pela justica e pela prudéncia. Procurava com isso obter que desaparccesse do meio dos cristdos esse estado degradante e que de forma to gritante repugnava a suas grandiosas idéias sobre a digni- dade humana e a seus generosos sentimentos de fraternidade e amor. Porque onde quer que se introduza o cristianismo as correntes de ferro dao lugar a staves lagos © os homens abatidos podem levantar com nobreza sua fronte A propésito, ¢ sobremaneira agradavel ler o que pensava sobre este ponto um dos maiores génios do cristianismo: Santo Agostinho (De Civitete Dei, 1, 19, ec. XIV-XVI). Depois de em poucas palavras deixar assentada a obtigagao que tem todo aquele que manda (seja pai, marido ou chefe) de zelar por seus comandados, com 0 que a obediéncia encontra um de seus alicerces na prépria utilidade que proporciono @ quem obedece; depois de dizer que os justos nfo man- dam por vontade de poder ou soberba, mas sim pelo dever & desejo de fazer o bem a seus stiditos (“Neque enim dominandi cupiditate imperant, sed officio consulendi, nec principandi superbia, sed provi- dendi misericordia"); depois de ter banido com tio sublimes doutrinas toda opinigo que se encaminhasse para a tirania ou que fundasse a cobediéncia em motives aviltantes; € como que temends alguma réplica contra a dignidade do homem — incendeis-se de tepente sua grande alma, aborda entfo de frente a questi, eleva-a a sas alturas culm nantes ¢, deixando aflcrar livremente os nobres pensamentos que fervilhavam em sua mente, invaca em favor de suas teses a ordem da natureza ¢ a vontade do préprio Deus, exclamando: “Assim o pres: creve a ordem natural, assim criou Deus homem: disse-the que domi- naria os peixes do mar, as aves do céu e os répleis que se arrastam sobre a terra, Néo quis que a criatura racional, feita & sua seme- Ihanga, dominasse Sendo ¢ irracionais; jamais os outros homens; os brutos sim.” Essa passagem de Santo Agostink ¢ um daqueles briosos lam- pejos que se encontram nos eseritores de génio quando, atormentados pela visio de um objeto angustiante, soltam as rédeas da. generos dade de suas idéias ¢ sentimentos, expressando-se com ousada valentia. O letor, espantado com a forga da expressfo, passa com grande expec tativa para as Jinhas soguintes, temeroso de que o autor se tenha extraviado, seduzido pela nobreza de seu coragio ¢ arrastado pelo impulso de sua alta inspiragdo; mas logo experimenta um tranqiil- zante prazer ac descobrir que ele ndo se afastou do camino da si doutrina, e tio somente saiu, com a gathardia de um atleta, em defesa da causa da razio, da justica ¢ da humanidade. Assim se nos apre- senta agui Santo Agostinho: a contemplagao de tantos desgracados gemendo na escravidio, vitimas da violéncia ¢ do capricho de seus amos, atormentava sua alma generosa; analisando o homem & luz da razio e da doutrina cristé, no encontrava justificativa para qué wma vasta porcdo da Tinhagem humana tivesse de viver em tanto avilta- niento; €, por isso, enguanto proclama as teses héi pouco mencionadas, esforgarse por identificar a origem de tamanha ignominia — que, G0 se encontrando na natureza do homem, s6 pode decorrer do pecado, da maldicio, “Os primeiros justos, diz ele, foram constituidos: mais como pastors de gado do que como reis de homens, dando-nos Deus a entender com isso 0 que reclamava a ordem das eriaturas © 0 que cxigia a pena do pecado, pois a condigao de servidao foi de fata imposta ao pecadcr © por isso mio encontramos nas Eserituras a palayra ‘servo" até que o justo Nog a langou como um castigo sobre scu filho culpado, Donde se segue que esse nome veio da culpa, no da natureza, Esse modo de encarar a escravatura como filha do pecado, como | 66 Iruto da maldigo de Deus, era da maior importéncia pois que, deixando a salvo a dignidade da natureza do homem, cortava pela ruiz todas as veleidades de superioridade natural que orgulhosamente a si pretendessem attibuir os livres. Desse modo também se despojava a escravatura do valor que se lhe pudesse conferir quando vista como pensamento politico ou meio de governo, pois s6 se devia consideré-la como uma das tantas pragas arremessadas sobre a humanidade pela edlera do Altissimo. Em tal caso, 0s escravos tinham um motivo de resignacdo, mas a arbitrariedade dos amos encontrava um freio e @ compaixao dos livres recebia um estimulo, pois tendo nascido todos em culpa todos poderiam ter-se encontrado naquele estado, ¢ aqueles que se envaidecessem por no terem caido nele agiriam como quem. cm meio a uma epidemia, se vangloriasse de ter permanecido so ¢ se julgasse por isso com direito a insultar os infelizes enfermos. Numa palavra, a escravidio era uma praga e nada mais: era como a peste a guerra, a fome ou coisa semelhante; e por esse motivo era dever de todos os homens procurar de imediato aliviar a sorte dos que a sofriam ¢ tabalhar para aboli-la definitivamente. Semelhante doutrina ndo permanecia estéril, Proclamada & face do mundo, ressoava vigorosamente pelos quatro cantos do orbe caté fico e, além de ser posta em pritica (como se viu pelos intimeros mencionados), cra conservada como uma teoria preciose através do caos dos tempos. Passados oito sécullos, € reproduzida por outro dos luminares mais resplandecentes da Igreja Catdlica: Santo Tomas de Aquino (Summa Theclogize, Pars 1.3, Quaest. 96, Art. 4) Esse grande espirito também nao vé na escravidéo em problema de raga, nem imagindria inferioridade, nem meio de governo, e nio consegue explici-la sendo considerando-a uma praga carreada para humanidade pelo pecado do primeiro homem. pois. que grau de repugnancia suscitava entre os cristios ravatura ¢ como ¢ falso 0 comentatio de Guizot de que a sociedade se teria deixado perturbar nem irvitar com esse estado. Por certo no houve aquela perturbacdo ot irritago cegas que, arremeten- do contra todas as barreiras sem atentar para o que dita a justica € aconselha a prudéncia, procuram atabalhoadamente varrer da face da terra a marca da humilhagio ¢ da ignominia, No entanto, se se falar daquela perturbacio ¢ daquela irritacdo que resultam da contempla- gio do homem oprimido e ultrajado, mas que no excluem uma sania resignaco e longanimidade © que, sem esmorecer pelo zelo caritativo, nao querem pre exemplos j cist na aco inspirads ita inresponsavelmente os acon- 6 tecimentos, mas sim preparé-los maduramente para que no seu devido tempo se aleance resultado mais completo; se se falar desta santa perturbacdo © desta santa irritagio — poderé haver maior prova de sua presenca do que os fates citados e as doutrinas relatadas? Caberia protesto mais elogiiente contra a existéncia da escraviddo do que a doutrina dos insignes Doutores da Igreja hé poupo nomeados © que 1 classificam como fruto da maldi¢ao, como castigo da_prevaricagio da linhagem humana, ¢ que ndo a podem conceber senio colocando-a ng mesmo plano das grandes pragas que afligem a humanidade? ‘As profundas razées que interferiram para que a Igreja recomen- dase aos escravos obediéneia ja foram devidamente expostas e no pode haver ninguém imparcial que as atribua a um esquecimento dos direitos humanos. Mas nem por isso se pode supor que tenha faltado na scciedade crista a firmeza necesséria para dizer a verdade inteira sem subterfiigios, desde que isso fosse salutar. Uma expressiva prova que se pode invocar a respeito é 0 que aconteceu com relacao a0 matriménio dos escravos: sabe-se que ndo era considerada como tal unio entre um casal de escravos, nem podia tal uniao consumar-se sem prévio consentimento dos respectivos donos, sob pena de inteira nulidade. Havia nisso uma arbitrariedade que entrava abertamente em choque com a razio ¢ a justica. Que fez entio a Igreja? Repudiou sem rodeios tal violencia. Sendo vejamos o que proclamou o papa Adriano 1: “Segundo as palavras do Apéstolo, assim como em Jesus Cristo nfo se ha de excluir dos sacramentos da Igreja nem livres nem escravos, tampouco entre os escraves se deve por qualquer modo prcibir os matriménios: e se tiverem sido contraidos sem consenti- mento cu com desaprovacio dos amos, nem por isso deve de forma alguma ser dissolvidos” (De Conj. Serv., 1. 4. titulo IX, c. 1). Essa disposigdo, que assegurava a liberdade dos escravos em matéria tao importante, nao deve ser tida como limitada a determinadas circuns- tancias: era uma proclamacéo de alcance geral, pela qual a Tgreja fazia saber que nao consentia em que 0 homem fosse colocado ao nivel dos brutes, vendo-se forgado a obedecer so capricho ou ao interesse de cutro homem, sem atender aos sentiments do coragio. Assim entendia também Santo Tomas de Aquino, pois sustenta abertamente que. quanto a contrair matriménio, “nao devem os esctavos obediéncia a seus donos" (Sum, Theol., Pars 2* 2%, Quaest, 104, Art. 5). 68 No rapido esbogo aqui apresentado procurou-se cumprir o que de inicio foi ressaltado, ow seja: que de nada adiantatia uma proposicao, que ndo estivesse apoiada em documentos irrecusdveis, sob pena de © entusiasmo a favor do catolicismo levar a atribuir-lhe créditos que na verdade nao the pertencem. Velozmente, € verdade, atra © caos dos séculos e, em tempos ¢ lugares muito diversos, deparamos com provas convincentes de que foi 0 catolicismo que promoveu a abolicdo da escravatura, apesar das idéias, dos costumes, dos interesses € das leis que a isso antepunham barreiras aparentemente insuperd- veis. E 0 fez sem injusticas, sem violéncias, sem transtornos. Tudo se consumou com a mais recatada prudéncia ¢ com a mais admi- vel temperanga, Vimos a Igreja Catdlica desfechar contra a escra- vVatura um ataque t80 vasto, to variado, to eficaz que, para romper essa ominosa cadeia, néofoi necessério nenhum golpe violento, mas sim, exposta & acto de poderosos agentes, foi ela se afrouxando, s desfazendo, até cair em pedacos. Primeiro se ensinam em alta voz as verdadeiras doutrinas sobre a dignidade do homem, se estabelecem as obrigagdes de amos € escravos, se declara ambos iguais perante Deus, reduzindo assim a p6 as teorias degradantes que mancham os escri tos dos maiores fildsofos da antigiiidade; logo se inicia a aplicagio das doutrinas, procurando-se suavizar o tratamento dos escravos, mo- vendo-se luta contra 0 atroz direito de vida e morte, abrindo-se para asilo os templos, proibindo-se que & sua safda os refugiados sejam maltratados, e trabalhandose para substituir a yindita privada pela ago serena e justa dos tribunais; ao mesmo tempo, se garante a liberdade dos manumitidos enlacando-a com motivos religiosos, s defende com tenacidade e solicitude a dos ingénuos, ¢ se procura estancar as fontes da escravidio — ora despendendo vivissimo zelo na redengao dos cativos, ora reprimindo a cobica dos judeus, ora abrindo répidos caminhos pelos quais os vendidos pudessem recuperar 2 Tiberdade; por sua vez, a Igreja dio exemplo de suavidade e des- prendimento, facilitando a emancipacao pela admissio. de escravos nos mosteiros e na vida eclesidstica, e por outros meios que a caridade ia sugerindo; © assim, apesar das rafzes profundas que a escravidao ganhara na sociedade antiga, apesar dos transtornos trazidos pela irrup- ‘gio dos barbaros, e apesar de tantas guerras © calamidades de todos (0s géneros que frustravam boa parte dos efeitos de uma benéfica acto reguladora, viu-se a escravidao, essa lepra que infamava as civiliza goes pagis, ir diminuindo rapidamente nas nagdes cristas até desapa- recer por completo. amos 6a

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