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VERA MALaGutTi BATISTA Professora Visitante de criminologia da Faculdade de Direito da UERJ Secretdria-Geral do Instituto Carioca de criminologia INTRODUGAO CRITICA A CRIMINOLOGIA BRASILEIRA Prof. Hugo Leonardo R. Santos FDA/ UFAL Mat. SIAPE 2279377 R Editora Revan CapriTuLo I PENSANDO A QUESTAO CRIMINAL Comecemos por situar o marco em que vamos trabalhar; esse territério de fronteiras confusas, transdisciplinar por exceléncia, mo- vendo-se do direito penal para a histéria, a sociologia, a psicanilise, a economia politica, a literatura, a comunicagio, a geografia. Areias moyedigas. Nosso objeto nao é ontoldgico, nao esta dado pela natu- £eza como 0 mat e os peixes, é uma construcio histérico-social por- tadora de medos e perigos concretos, o principal deles naquele dile- ma que o urbanista Carlos Nelson dos Santos' enunciava ao analisar a metodologia do trabalho de campo: o problema consiste em inven- \, | tar um instrumento de observago que nao seja uma parafernilia tao complexa que afaste 0 objeto em vez de aproximé-lo. A criminologia aparece como tal, historicamente, na conflu- éncia de um discurso médico-juridico na virada do século XIX na Europa Ocidental. Vamos trabalhar com um conjunto de defini- goes. Para Lola Aniyar de Castro, é a “atividade intelectual que estu- ee da os processos de criagdo das normas penais e das normas sociais que estao relacionadas com o comportamento desviante dessas mormas; e a reacao social, formalizada ou nao, que aquelas infra- ges ou desvios tenham provocado: o seu processo de criacao, a sua forma e os seus efeitos”.” Essa definicao abrangente e critica ja se contrap6e 4 definicao positivista dos manuais juridicos: exame causal-explicativo do cti- me e dos criminosos. va ws 1 C£ SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos urbanos no Rio de Janeire. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.; _. A cidade como um jogo de cartas, Niterdi: Universitaria, 1988; _3 SEGAWA, Hugo. Arquiteturas do Brasil 1900-1990. So Paulo: Editora da USP, 2" ed. 1999.5 etal. Quando a rua vira casa, Sio Paulo: Projeto Arquitetos Asociados, 1985. 2 CASTRO, Lola Aniyar de. Criminologia da reagao social. Rio de Jancio: Forense, 1983, p. 52. 15 aor" = 4d “YS do direito, na perspectiva de um modelo integrado de ciéncia penal. persp 8 PI Ps » Anitua apresenta a tradugao simples e cabal do grande ctimindlogo estadunidense Edwin Sutherland: a criminologia seria © corpo de conhecimentos que observa o delito como fenédmeno social. Sua singela locugéo em inglés é mais expressiva ainda. O objeto da criminologia seria “making the law, breaking the law and the socal reaction to it”.® Alessandro Baratta trabalha com o enfoque macrossociolégico, que historiciza a realidade comportamental, ilu- minando as relagdes com a estrutura.‘ Para Baratta, a tarefa funda- mental da criminologia é realizar a teoria critica da realidade social Para ele, o jurista seria um cientista social que domina uma técnica jaridica. Ele convida seus leitores a levantar os olhos de sua mesa de trabalho, na torre de marfim, e olhar pela janela. Na forma- Ao juridica académica do Brasil, os alunos sao privados dessa mira- da de longo alcance: sio convencidos de que essa fécnica é ciénvia e sao privados de conhecer histéria, filosofia ou sociologia. Conhe- cem, no maximo, a histéria do direito, a filosofia do direito e a sociologia do direito. A proximidade e 0 acesso ao poder resolvem, na pratica, as limitagdes decorrentes desse saber compartimentado. Grimindélogos criticos fundamentais como Dario Melossi, Massimo Pavarini e Roberto Bergalli afastaram-se dos desvaos ctiminoldégicos positivistas pata trabalhar o objeto na perspectiva do controle social. f O grande jurista brasileiro Heleno Fragoso trabalhou o direi- to penal como parte da politica social: a criminologia seria a interlocugao entre a parte e o todo. Enfim, nfo faltarao defini¢des simples ou complexas da criminologia. Mas duas aproximacées de >*Pretendo fugic das citacdes sistematicas e dos enormes pés de paginas dos manuais ¢, com toda a honestidade académica, pego que consultem e mergulhem, como cu fiz, no livro de Gabriel Ignicio Anitua, Histéria dos Pensamentos Criminolégicos.’Vaducio de Sérgio Lamario, Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2008. * CE, sempre, BARATTA, Alessandro. Criminologia critica e critica do direito penal: introdugao @ sociolgia do direito penal. Tradugio de Juarez Cirino dos Santos, 3* ed. Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologia/Revan, 2002. 16 Raul Zaffaroni me encantam: a criminologia seria “saber e arte de?” despejar discursos perigosistas” e nada mais do que o “curso dos discursos sobre a questao criminal”.> Todos esses marcos tedricos e definigdes nos conduzem a tra- balhar a criminologia na perspectiva da histéria social das ideias, através daquilo que Zaffaroni chamou de aproximagies marginais. No curso dos discursos, falamos da margem brasileira. O caudaloso rio criminolégico segue seu curso. A nossa histéria nao é linear, nem evolutiva; ela é feita de rupturas e permanéncias. Se a histéria da criminologia é uma acumulagio de discursos,‘ podemos ver o positivismo como uma grande permanéncia: transfigurado em fun- cionalismos, estruturalismos e outros isos, mas sempre 14, como en? um corpo teérico, uma maneira de pensar e pesquisar que sempre quets™ eee ected Povo! Alita a pecgutita de Zaffaroni (comb pode Lombroso florescer na Bahia?) é atual: que dispositivos fo- fam necessarios para inculcar tao profundamente um corpo teérico que é contra nés mesmos? A nossa perspectiva é oswaldianamente antropofagica: como recebemos e digerimos as teorias do centro hegem6nico. E esse o dilema da reconstrugio das criminologias criticas, suas tradugies trai-_ yom doras, seus objetos transplantados, suas metodologias reinventadas.” 5” ct De que maneira a criminologia faz parte da grande incorporacio Yfyo* colonial no processo civilizatério? Quantas rupturas criminoldégicas serao necessarias para reconstruir nosso objeto, nossa metodologia, a nosso favor? Na genealogia dos saberes/poderes, Michel Foucault foi um divisor de aguas. Trabalhamos as histérias dos pensamentos criminolégicos * ZAFFARONI, Eugenio Raul. Criminologia: apraximacin desde un margen. Bogota: Temis, 1988. CE a interessante dissertagiio de mestrado de André Magalhiies Barros (A acumulagiio do poder punitive no Brasil. (Mestrado em Dircito Penal, Processo Penal ¢ criminologia] = Programa de Mestrado em Direito da UCAM-Centro, 2006). 7 SOZZO, Maximo. “Reconstruyendo las criminologias criticas”. In: Cuadernos de Doutrina y Jurisprudéncia Penal, ano VII, n° 13. Buenos Aires: Ad Hoc/Villela Editor, 2006. 17 ee Ne er ote como ideologias, teorias, discursos sob intenso e constante risco de se constituirem em racionalizacGes justificadoras da repressio ili- mitada e da morte, como nos ensinou Zaffaroni. Para Marc Bloch, o demSnio do historiador é a angustia pela origem. 8 E também Zaffaroni quem afirma que a criminologia nio “comega” na virada do século XIX para 0 XX, mas no saber/ /pode t médico-juridico introduzido pela Inquisi¢ao. Para ele, O martelo das Séiticeiras seria o primeiro livro de criminologia, os demondlogos seriam os primeiros teéricos e os exorcistas, os primeiros clinicos. O cenario erguido naquele entao, com seus dispositivos, nao dei- xou mais de se instaurar ao longo dos séculos: estabeleceu-se um tipo de procedimento que iria criar uma demanda por uma cena judiciaria que necessitava de um saber complementar: o saber mé- dico. Eta o cirurgiio que comprovaria o punctum diabolicum, evidén- cia pioneira e necessdria para legitimar e comprovar a existéncia e a etiologia do mal.’ A criminologia nao se esbocaria, entio, no iluminismo, mas ja naquele século XIII, nos primérdios da Inquisi¢ao, no estabelecimento da confissio, com a implantagio dos procedimentos do poder punitivo. Enfim, uma questio politica ligada ao movimento de centralizagao do poder da Igreja Catdlica, As estruturas nascentes do Estado e 4 gestacio lenta e constante do capital. Quando escolhemos percorrer a questao criminal através da histéria das ideias, nos alinhamos 4 grande ruptura epistemoldgica realizada por Karl Marx. Tanto em O Capital, como na Ideologia ale- ma ou na Critica ao Programa de Gotha, Marx acusava o carater formal da igualdade proposta histérica e materialmente pelo processo de acumulagao do capital. Na pratica, a questao sempre foi simbidtica 4 conflitividade social presente no que ele definiu como “luta de ® BLOCH, Mare. Introdugao a Historia. Lisboa: Publicagdes Europa-América, sd;___. Apologia da Historia: on o oficio de historiador, 1° ed. Rio de Janciro: Zahar Ed., 2001. ZAFFARONI, Eugenio Ratil. E/curso de la criminologfa. Aula proferida no Programa de Mestrado em Direito/UCAM-Centro. Rio de Janeiro: mimeo, 2000. 18 ra ee classes”. O capital precisou sempre de um grande projeto de assujeitamento coletivo, de corpo e alma. A culpa e a culpabilidade, propostas pela Igreja Catdlica e pelo Estado, constituiram-se nos alicerces fundamentais da subjetividade e das praticas da pena. E por isso que todas as definigdes da criminologia sio atos discursivos, atos de poder com efeitos concretos, nao sao neutros: dos objetivos aos métodos, dos paradigmas 4s politicas criminais. Aqui reside o enigma central da questao criminal. Talvez seja essa a ligao principal do inspirador livro de Pavarini'®: para entender o objeto da criminologia, temos de entender a demanda por ordem de nossa formacao econémica e social. A criminologia se relaciona com a luta pelo poder e pela necessidade de ordem. A marcha do capital e a construgio do grande Ocidente colonizador do mundo e empreendedor da barbarie precisaram da operacionalizagao do po- der punitivo para assegurar uma densa necessidade de ordem. Es- petamos tentar aprofundar essa reflexao daqui do lado selvagem. 1 PAVARINI, Massimo. Control y Dominacién: teorias criminoligicas burguesas y proyecto begemonico. México: Siglo Veinteuno Editores, 1983. 19 CapiTuLo II CRIMINOLOGIA E POLITICA CRIMINAL oN afte Sempre comeco meus cursos de criminologia tentando Re onccito de ctime como algo ontolégico, que teia oP aparecido na natureza como os peixes, os abacates e as esmeraldas. 38 Entender o crime como um constructo social, um dispositivo, é o prtimeiro passo para adentrarmos mais além da superficie da ques- tao criminal. Nilo Batista, ao falar sobre “a grande criminalidade econémi- co-financeira”, propGe um giro axial no objeto de reflexao: “Promoverei, intencionalmente, uma alteragio no objeto da reflexdo, proposto como “a grande criminalidade econdmico- financeira”. Hi diversos motivos para efetuar tal alteracdo. Em primeiro lugar, h4 muito tempo — sob 0 influxo das tendéncias criminoldgicas criticas de algum modo enraizadas no rotulacionismo — desconfio das pretensdes de objetividade da expressio “criminalidade”. E, de fato, se considerarmos a seletividade operativa dos sistemas penais seu reflexo na cha- mada cifra oculta, a “ctiminalidade” — entendida como o so- matério das condutas infracionais que se manifestam na reali- dade social — é sempre um incognoscivel, do qual no temos como nos aproximar segundo critérios metodologicamente confidveis. Nossa possibilidade de conhecer a “criminalidade” econémico-financeira, nesse sentido, é a mesma de conhecer- mos a “criminalidade” dos abortamentos ilicitos ou talvez, nao fora a abolitio criminis de um ano e meio atrds, a dos adiltérios. Se alguém, desprezando os atquivamentos e as absolvigdes que tornam a incorporacio dos dados dos inquéritos um contrassenso em colisio direta com a presungcao de inocéncia, argumentasse que poderiamos nos satisfazer com os indicado- res das estatisticas policiais, eu Ihe responderia desde logo que 21 entdo ja estariamos tratando da “criminalidade registrada”, « nio da “criminalidade” simplesmente, esse conceito sugestive de uma falsa totalidade que, nao obstante, cumpre no discurso politico-criminal tarefas ideologicamente importantes. Mas, sobretudo, eu tentaria convencé-lo de que é muito mais verda deiro chamarmos a “criminalidade registrada” de criminalizaao, * porque a seletividade operativa do sistema penal, modelando ___ qualitativa e quantitativamente o resultado final da criminaliza- 2S _ Gao secundaria — isto é, quem e quantos ingressarao nos regis- iste tros —, faz dele um procedimento configurador da realidade social. Podemos acreditar ou nao que o ntimero de carros que ___ ultrapassaram a velocidade permitida (“criminalidade”’) é idén- tico a0 mimero de multas impostas, sob esse motivo, pelas au- toridades do transito (criminalizazao); mas é apenas neste segun- oy Bees do ntimero, em verdade um construto humano (na dependén- cia de fatores tao distintos quanto os humores do guarda, a _ localizagao da camera de vigilancia etc.) que poderemos estu- on = se RR Por que afosti- lo cas: condi- objeto, a criminologia, tenha senti- 1a comum da criminologia esta na iva de luta de classes. Embora 9 conceito de luta de classes, a vel e palpavel como na dura de barbarie: garotos rca. A criminologia como as necessidades de Direito Comparado. Rio ordem que vao mudando no processo de acumulagio de capital. Para compreender o seu léxico, seu vocabulario, sua linguagem, te- mos de ter a compreensio da demanda por ordem. A politica criminal também esta historicamente subordinada a essa demanda. Nilo Batista trabalha a politica criminal como o con- junto de principios e recomendagées para a reforma ou transfor- _ magio da legisla¢ao criminal e dos érgios encarregados de sua apli- &y \ cago"? O conceito de politica criminal abrangeria a politica de se- €\ See 2 a publica, a politica judicidria e a politica penitencidria, mas ©» estaria intrinsecamente conectado 4 ciéncia politica. 2 A partir da critica das exposigdes globais articuladas entre crimi- ,nologia, direito penal e politica criminal em von Liszt, a criminologia j ja Se nao estaria em busca das causas da delinquéncia e dos meios para pre- x sos veni-la, e a politica criminal nao se reduziria 4 fungio de “conselheira © dasangio legal” lastreada na aceitagio legitimante da ordem legal. A partir de Foucault, Zaffaroni trabalha a criminologia como © uma questio politica que provém do século XIII, da conjuntura do Ee - > inicio do processo de centralizacao do poder da Igreja Catélica e do ow Estado, do processo de acumulagao de capital e de poder punitivo que comeg¢a operar a traducao da conflitividade e da violéncia no sentido “do criminal”."* A questo criminal se relaciona entéo com a posigao de poder eas necessidades de ordem de uma determinada classe social. As-. at? sim, a criminologia e a politica criminal surgem como um eixo es- ats = ‘| pecifico de racionalizacao, um saber/poder a servico da acumula- © "eZ cao de capital. A histéria da ctiminologia est4, assim, intimamente ; ey. ligada a hist6ria do desenvolvimento do capitalismo. ow E nessa cadéncia, nesse baiao de Marx com Foucault, que a RA a 9 ee ¢ pe ctiminologia critica, em especial a de Zaffaroni, trabalha o século £6, =, XIII como um marco na mudanga das relagdes de poder.'® A ae a ro 13 BATISTA, Nilo. Introdugao erttca ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990. © a 4 FOUCAULT, Michel. Historia da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1977. 15 ZAFFARONI, Eugenio Rail; BATISTA, Nilo ef al. Direito Penal Brasileiro I: Teoria seral do dircito penal, 1* ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. 23 ° 1 Ps? ee wo ° ¢ao da pena publica supe o confisco do conflito da vitima, que se torna apenas uma figura secundaria na reconfiguragao do poder punitivo. Esse processo politico institui um método para a busca da verdade, que se constituira numa permanéncia subjetiva do Oci- dente. Este método pressup6e uma averigua¢ao, numa rela¢io de forga entre quem exerce o poder e o objeto estudado. Esse eixo racionalizante é composto pela articulagao entre um discurso médi- co e um discurso juridico desenvolvidos através de técnicas de do- minio sobre 0 objeto “averiguado”. Os manuais dos inquisidores sao testemunhos dessas técnicas de apuragao da “verdade”. Estamos pensando, historicamente, na categoria da longa du- ragao da escola francesa dos Annales. Quando pensamos, dos séculos XIII ao XVIII, até chegar ao XIX, queremos entender as projecdes pata o futuro, a permanéncia histérica desse método de busca da verdade. A objetificagio do “herege” ou da “bruxa” pressupunha uma possibilidade técnica de dominio: técnicas de interrogatério, di- agnéstico, constru¢g6es da identidade “criminal” e incorporacao de identidades “ctiminosas”. Foi o historiador italiano Carlo Ginzburg quem propés o método indiciério para desvelar entre os discursos dos vencidos, dos perseguidos pelos processos inquisitoriais, os frag- mentos de uma outra verdade: a dos ritos pagaos demonizados pelos movimentos de centralizacao do poder da Igreja Catdlica.' Também na categoria da longa duragao, do século XIV ao XVIII Jean Delumeau vai trabalhar a utilizagio do medo para a constru¢ao de uma mentalidade obsidional na Europa crista, cerca- da pelas pestes, na conjuntura da expulsao dos mouros e judeus e nos movimentos do cisma e das reformas na Igreja Catdlica." Se a ctiminologia corre o risco de ser “saber e arte de despejar discursos petigosistas”{conhecer 0 eixo dos medos é tracar 0 caminho das criminalizagdes ¢ identificar os criminalizaveis. Ses eee 16 GINZBURG, Carlo. Histéria noturna. Sio Paulo: Companhia das Letras, 1991. 17 DELUMEAU, Jean. Histéria do medo no Ocidente (1300-1800). Sao Paulo: Companhia das Letras, 1983. oe oe Entio, entre 05 séculos XIII « XVIUL, articulam-se as técnicas da Inquisigao com o surgimento das cidades, a aparicao da ideia de contrato, o fortalecimento da burguesia ¢ o absolutismo, configuran- do o Estado moderno ¢ suas estruturas penais. Mais especificamente entre o século XIV eo XVIII, a acumulacio de capital que impulsio- naré o mercantilismo, a manufatura e, logo, a Revolucao Industrial 18% forjard uma sociedade de classes através da luta para o disciplinamento de contingentes de mao de obra para o trabalho.” O disciplinamento ges as técnicas de dominio dos homens ¢ da natureza. A violéncia ¢ a batbarie fazem parte desse cenario, produzidas pelo excesso de civilizagao, e nao pela sua antitese.” A partir do século XVIII, 0 processo histérico de fortalecimen- to do contrato social determina outras necessidades de ordem. As execugées piblicas vao se tornando perigosas com o protagonismo da multidio que vai produzir a critica do absolutismo. A revolucao bate 4s portas da Europa, com suas multiddes de pobres a produzir o a 2 tener Roch” O poder punitivo vai precisar de novas propostas ¢ novas ~stécnicas para dar conta da concentragio de pobres que o processo de acumulacao do capital provocou. E pobres, agora, com uma pers- E nessa conjuntura que na critica do absolutismo surge o discurso juridico de principios. Ressalta Nilo Batista que, historica- mente, o direito penal surge para limitar o poder punitivo do Anti- go Regime. Aparecem as ideias de legalidade e de outras garantias, e 18 Sugiro aos criminélogos que se interessam pclo tema que aprofundem as leituras de Karl Marx sobre a producio de mais-valia e de Edward Thompson sobre o surgimento das classes sociais a partir da luta de classes. 19C£. MENEGAT, Marildo. Depois do Fim do Mundo: a crise da modernidade e a barbérie. Rio de Janeiro: Faperj/Relume Dumara, 2003. 2CE T, Michel. Vigiar e punir. Petropolis: Vozes, 1977; RUDE, Georges. A multidao na historia: estudos dos movimentos populares na Franga e na Inglaterra (1730- | 1848). Rio de Jancico: Campus, 1991. oe dos pobres para a extragio de mais-valia, energia viva do capital, vai yah precisar da ideologia, da racionalidade utilitarista a legitimar as rela- os conceitos chave de delito e pena. Sao estabelecidos limites para o método moderno de organizacao da verdade: punir em vez de vin gar e estabelecer uma gestao seletiva das ilegalidades populares. A ascensao da burguesia contra a figura do monarca absoluto vai ensejar novos discursos criminolégicos, novas instituigdes, novas politicas, a partir do enquadramento cartesiano e iluminista do mundo. A prisao, subordinada 4 fabrica, se converte na principal pena do mundo ocidental. O delito passa a ser definido juridica- mente. A Revoluc¢ao industrial precisa de novos dispositivos de con- trole social para o disciplinamento e o assujeitamento dos contin- ° gentes miseraveis que produziu. Nao é por acaso que Karl Marx ve @y_ cita Charles Dickens em O capita: sua literatura narra as historias de oa a? > fome e exploracao sem limites da mao de obra na velha Londres. E nesse sentido que as luzes produzem um aprofundamento da racionalidade das técnicas de dominio do capital: como diria Marildo Menegat, o olho da barbarie espreita a Europa. No século XIX, a Europa ja péde produzir teoria acerca do grande internamento iniciado no XVIII sobre os indesejaveis des- trocos do exército industrial de reserva. A sociedade disciplinar cria a sua rede de prisdes, manicémios, internatos e asilos. E nesse mo- mento que o pensamento criminoldgico da o seu grande salto a frente, com uma reflexao “cientifica”, aut6noma, do discurso juri- dico e, por isso, sem o embaraco das garantias e dos limites. Esse pensamento tenebroso e tautolégico se alimenta da clien- tela seletivamente estocada nas institui¢gdes totais. E um discurso que surge das préprias agéncias do poder sobre 0 “objeto” estudado. Se a maioria dos presos é pobre, o paradigma etiolégico ira concluir, atra- mo vés da legitimacao do discutso médico, que a causalidade criminal esta reduzida a figura do autor do delito. A prépria descrigio/classi- ficagao biolégica do sujeito criminalizavel sera a explicacao do seu crime e de sua “tendéncia” 4 “criminalidade”. Passa a reinar uma tacionalidade falsamente autonomizada do politico que produzira um recuo do iluminismo, que se imaginava haver superado o absolutis- mo punitivo. Na ctiminologia, o positivismo transfere o objeto do delito demarcado juridicamente para a pessoa do delinquente. Contra 26 08 perigos revolucionarios da ideia de igualdade, nada melhor do que uma legitimagao “cientifica” da desigualdade. O criminoso, agora bi- ologicamente ontoldgico, vai demandar mais pena, mais poder puni- tivo indeterminado: corrigir a natureza demanda tempo. Enquanto isso, o capital vai intensificando o dominio utilitario da natureza, produzindo novas tecnologias e novos dispositivos. No século XX, as guerras vao incrementar as crises ciclicas com as prati- cas de destrui¢ao do outro. Enquanto o nazifascismo vai ocupando a Europa ocidental de corpo e alma, os Estados Unidos produzem, junto com a critica ao /aissexfaire, uma nova ruptura na criminologia. A luta contra a depressdo econémica, a alianga de Roosevelt com os comunistas ea constru¢ao do Welfare System vai repolitizar a “questao sso criminal”. A sociologia e as ciéncias humanas vio avangar do - positivismo segregador para um funcionalismo integrador. A crimi- <2 ‘nologia estadunidense vai se apoderar do conceito de anomia de Durkheim, reciclado na perspectiva de Merton. O comportamento desviante passa a fazer parte da estrutura social, cumpre fungdes integradoras.|O limite do desvio é a anomia, a ruptura da coesio “pactuada”.|Os intelectuais estadunidenses da sociologia e da crimi- nologia estao buscando saidas para a profunda conflitividade social decorrente da concentracao urbana heterogénea, composta de gru- pos de migrantes e imigrantes culturalmente diferenciados. O delito, ou desvio, nao ¢ mais um fenédmeno natural, é uma definicio, uma construgao do sistema de controle. A criminologia levanta os olhos da prisio e consegue enxergar as relacdes entre o gueto e a “crimina- lidade”. As instituigdes de controle social passam a ser objeto de es- tudo, bem como as areas segregadas com concentragao de imigrantes pobres, e as formas de controle social. Surge uma criminologia funcionalista, funcional 4s novas demandas do capital, mas que se distingue do correcionalismo positivista europeu. Foi essa criminologia estadunidense, revigorada pela constru- gio do Welfare System, que conduziu 4 ruptura do rotulacionismo (labeling approach), que no cruzamento com a teoria psicanalitica e o marxismo péde produzir, junto com a ebuli¢ao politica dos anos 60 e 70, a ctiminologia critica como teoria de longo alcance. Embora 27 nao tenha sido um pensamento hegemSnico no século XX, produ ziu avancos generosos nao sé na produgao académicz bém na busca de paradigmas e praticas de politica criminal que nao apostavam na dor, na repressio e no dogma da pena. O fim do século XX e os albores do XXI constituem cenario de barbarie aprofundada. © tao festejado fim do socialismo (talvez estejamos apenas come¢ando) abriu espaco para uma hegemonia do capital e do mercado que ampliou a pobreza, a desigualdade ca violéncia no mundo. O dominio estadunidense parece nfo ter limi tes, nem aqueles impostos pela natureza. Na esteira da queda do socialismo, foram-se também o estado previdencidrio e as redes como tam. at Srcoletivas de seguranga. Incéndio na floresta, diria Leonel Brizola. oh Para conter as massas empobrecidas, sem trabalho ¢ jogadas a pr6- eve < A we ae a See x2 — ptia sorte, o neoliberalismo precisa de estratégias globais de crimi- nalizagao e de politicas cada vez mais duras de controle social: mais tortura, menos garantias, penas mais longas, emparedamento em vida... A midia, no seu processo de inculcagao e utilizagao do medo, ptoduz cada vez mais subjetividades punitivas. A pena torna-se eixo discursivo da direita e de grande parte da esquerda, para dar conta da conflitividade social que o modelo gera. Loic Wacquant demons- trou como o estado previdenciario nos Estados Unidos foi substi- tuido pelo estado penal. O vento punitivo que sopra dos EUA se difunde junto com a verdade Gnica do mercado.”! O capital precisa cada vez mais da prisao, conjugada as estratégias de criminalizacao de condutas cotidianas (juizados especiais, penas alternativas, justi- ga terapéutica etc.) e mais a transformacao das favelas e periferias do mundo em “campos de concentragao”. O criminal e o bélico se amalgamam no que Raul Zaffaroni analisa como direito penal do ini- migo.” Os territérios nao controlados sio classificados como Eixo do Mal, territérios a serem ocupados a partir da legitimacao produ- zida por duas categorias fantasmiticas: o traficante ¢ o terrorista. 21 WACQUANT, Loic. Pumir os Pobres: a nova gestio da miséria nos Estados Unidos ‘Tradugio de Sérgio Lamaria Rio de Janeiro: Instituto Carioca de criminologia/ Revan, 2003. 22 ZAFFARONL E. Rati. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 28 2 os ao “ ’ “Os novos tempos produzem niveis de encarceramento nunca oe vistos na histéria da humanidade. O disciplinamento do tempo li- vre, da concorréncia desumana e da conflitividade social despolitizada vai requerer novos argumentos “cientificos”: surge o neolombrosianismo determinista com as neurociéncias e as desco- bertas de novos “criminosos natos”. E importante ressaltar que os 1) fegdcios do crime e da criminalidade vao fazer parte da “nova econo- RD su Sinia” ¢ as agdes das empresas que os exploram integram o indice Sct Nasdaq, A indéstria do controle do crime, a que se referiu Nils Christie, é um dos setores mais dinamicos do capitalismo de barbarie. Sao essas quest6es que se colocam para nés, crimindlogos, no século XXI. A que ordem servir? Na periferia do capitalismo, e no Brasil em particular, tudo isso vai se agregar ao genocidio coloniza- dor, 4s marcas da escravidao, a reptblica nunca consolidada, ao es- tado previdenciario ja ma/hado antes de nascer, aos paradoxos da cidadania. Devemos ser os criminélogos que formularemos a poli- tica criminal da ordem necessaria 4 reprodug¢ao do capital video- financeiro, ou estaremos na trincheira da resisténcia 4 barbarie? Pata os que esto na nossa trincheira, lembremo-nos das indi- cages estratégicas de politica criminal do imprescindivel Alessandro Baratta”:

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