You are on page 1of 7
A comunidade dos abandonados: uma resposta para Agamben e Nancy Divya Dwivedi e Shaj Mohan Traducao Paula Chieffi e Wanderley M. dos Santos Ha muito que a india esta repleta de povos “excepcionais”, o que torna sem sentido a nogdo de “estado de excecdo” ou sua abrangéncia. os Brahmins so excepcionais, pois sd eles podem comandar os rituais que regem a ordem social e ndo podem ser tocados (muito menos dese‘jados) pelas pessoas das castas inferiores, por medo da poluigdo ritualistica. Nos tempos modernos isso envolve, em alguns casos, banheiros piblicos separados para eles. Os Dalits, pessoas pertencentes as castas mais baixas, também nao podem ser tocados nem desejados pelas castas superiores, pois séo considerados os mais “poluidores”. Como se vé, a excecdo dos Brahmins é diferente da exclusdo dos Dalits. uma das castas Dalit chamada “Pariah” foi transformada em um “paradigma” por Arendt, o que infelizmente deu visibilidade 4 realidade de seu sofrimento. Em 1896, quando a peste bubénica entrou em Bombaim, a administragao colonial britanica tentou combater a propagacao da doenga utilizando a Lei das Doencas Epidemiolégicas de 1897. Contudo, as barreiras de castas, incluindo a exigncia das castas superiores de terem hospitais separados assim como sua recusa em receber assisténcia médica de pessoas de castas inferiores que compéem as equipes médicas, somaram-se as causas da morte de mais de dez milhdSes de pessoas na india. A propagacao do coronavirus [1], que ja infectou quase 200.000 pessoas segundo os nimeros oficiais [atualizados], revela o que hoje nos perguntamos sobre nés mesmos - vale nos pouparmos, e¢ a gue custo? Por um lado, estdo as teorias da conspiracdo que evocam as “armas biolégicas” e um projeto global para reduzir a migracao. Por outro, ha mal-entendidos problematicos, incluindo a crenca de que a COVID-19 4 propagada pela “cerveja corona”, além dos comentarios racistas sobre 0 povo chinés. Mas uma preocupagao ainda maior € que, nesta conjuntura e conjungdo entre a morte de deus € o nascimento de um deus mecAnico, persiste uma crise sobre o “valor” do homem. Isso @ visivel nas respostas As crises climAticas, A “exuberancia” tecnolégica e ao coronavirus. Outrora, o homem ganhara seu valor através de varias teo-tecnologias. Por exemplo, podia- se imaginar que o criador e a criatura eram as determinagdes de algo anterior, digamos o “ser”, onde o primeiro era infinito e o segundo finito. Em tal divisdo é possivel pensar em deus como o homem infinito e no homem como o deus finito. Em nome do homem infinito, os deuses finitos atribuiram fins a si mesmos. Hoje, confiamos A m4quina a determinagao dos fins para que o seu dominio possa ser chamado de tecno-teologia. & nesta conjuntura peculiar que se deve considerar a recente observagao de Giorgio Agamben de que as medidas de contengado contra a COVID-19 estdo sendo utilizadas como uma “excegao” para permitir uma expansdo extraordinaria dos poderes governamentais de imposicdo de restricoes extraordinarias 4s nossas liberdades. Ou seja, as medidas tomadas com um atraso consideravel pela maioria dos paises para evitar a propagagdo de um virus que pode potencialmente matar ao menos 1% da populagdo humana, poderiam significar © nivel seguinte da implementacao da “excecao”. Agamben pede-nos para escolher entre “a excecao” @ a regra, enquanto a sua preocupagdo € com a regularizagSo da exce¢4o[2]. Desde ent&o, Jean- Luc Nancy respondeu a esta objegdo observando gue hoje em dia s6 existem excegdes, ou seja, tudo o que uma vez consideramos como regra esta estilhagado[3]. Deleuze se refere em seu Qltimo texto Aquilo que se destaca ao fim de todos os jogos entre regularidades e excegdes como “uma vida"[4], ou seja, uma pessoa é tomada pela responsabilidade ao ser confrontada com uma vida individual frente a morte. morte e responsabilidade andam juntas. Entdo vamos atentar para a ndo-excepcionalidade das excegées. Até o final do século XIX, as gestantes internadas em hospitais tendiam a morrer em grande nimero apés o parto devido 4 febre puerperal ou a infeccdes pos-parto. Em certo momento, um médico austriaco chamado Ignaz Semmelweis percebeu que isso acontecia devido As mios dos profissionais que levavam patégenos de uma autépsia para a proxima paciente, ou do ttero de uma mulher para a proxima, causando infecgées ¢ morte. A solucdo proposta por Semmelweis era lavar aS mos ap6s cada contato. Por causa disso ele foi tratado como uma excegdo e banido pela comunidade médica. Ele morreu de septicemia em um manicémio provavelmente em decorréncia dos espancamentos realizados pelos guardas. De fato, hé interminaveis sentidos para excegées. No caso de Semmelweis, a propria técnica para combater a infeccao foi a excegdo. Na Politica, Aristoteles discutiu o caso do homem excepcional, por exemplo aquele que poderia cantar melhor que o coral, e que seria ostracizado por ser um deus entre os homens. Nao existe um unico paradigma para a excecdo © caminho de uma patologia microbiana € diferente do caminho de outra. Por exemplo, os estafilococos vivem dentro do corpo humano sem causar dificuldades, embora desencadeiem infecgdes quando a resposta do nosso sistema imunolégico é “excessiva”. No extremo das relagdes nao patolégicas, os cloroplastos nas células vegetais @ as mitocOndrias nas células do nosso corpo sao coabitagdes antigas e bem estabelecidas entre diferentes espécies. Acima de tudo, virus e bactérias no “pretendem” matar seu hospedeiro pois nem sempre é do seu “interesse”[5] destruir aquilo sem o qual ndo poderiam sobreviver. No longo prazo - milhdes de anos no tempo da natureza “todos a conviver uns com os outros”, ou, pelo menos, a obter equilibrio entre si por periodos longos. Este é 0 sentido biolégico da temporalidade da natureza. Nos altimos anos, devido em parte as praticas agricolas, os micro-organismos que viviam separados se uniram e comecgaram a trocar material genético, as vezes apenas fragmentos de DNA e RNA. Quando esses organismos “saltam” para o ser humano, as vezes comegam os desastres para nds. Nosso sistema imunolégico acha chocante esses novos participantes e depois tende a exagerar seus préprios recursos, desenvolvendo inflamagdes e febres que, muitas vezes, nos matam juntamente com os micro-organismos. Etimologicamente “virus”[6] se relaciona a veneno. £ veneno no sentido de que quando um novo virus conseguir entrar em acordo com animais humanos, nés ja estaremos longe. Ou seja, tudo pode ser pensado no modelo “pharmakon” (tanto o veneno como a cura) se considerarmos o tempo da natureza. Entretanto, a distingéo entre medicina e veneno, na maioria das vezes, diz respeito ao tempo dos seres humanos, o animal infamiliar. 0 que € chamado de “biopolitica” tem por pressuposto a temporalidade da natureza, negligenciando, assim, 0 que € desastre do ponto de vista do nosso interesse - nossa responsabilidade - por “uma vida”, ou seja, a vida de todos que correm o risco de morrer ao contrair o virus. Aqui reside o cerne do problema: fomos capazes de determinar os “interesses” do nosso sistema imunolégico, constituindo excegdes na natureza, inclusive através do método Semmelweis de lavagem de mAos e vacinagdes. Nosso tipo de animal nao tem épocas biolégicas A sua disposigdo para aperfeicgoar cada intervengdo. Assim, nés também, como a natureza, cometemos erros de codificagdo @ mutagdes na natureza, respondendo da melhor forma possivel a todas e (a) cada uma das nossas exig&ncias. Como observou Nancy, 0 homem como este eriador de excectes técnicas, que é infamiliar para si mesmo, foi pensado desde muito cedo por Séfocles, em sua ode ao homem. De maneira correspondente, ao contraério do tempo da natureza, © homem est4 preocupado com este momento, que deve ser levado ao momento seguinte com a sensagado de que ndés somos os abandonados: aqueles que $40 condenados a perguntar pelo “por que” do seu ser, mas sem ter os meios para fazé-lo. Ou, como Nancy o qualificou em uma correspondéncia pessoal, “abandonados por nada”. O poder deste “abandono” é diferente dos abandonos constituidos pela auséncia de coisas particulares de uns em relacdo aos outros. Este abandono exige, tal como descobrimos com Deleuze, que atentemos para cada vida como preciosa, sabendo ao mesmo tempo que nas comunidades dos abandonados é possivel experimentar o apelo da vida individual abandonada, 4 qual sO nés podemos responder Em outro texto, chamamos a experiéncia deste apelo do abandonado e a possivel emergéncia da sua comunidade a partir da metafisica e da hiperfisica, de “andstasis”. [7] [1] Coincidentemente, o nome do virus ‘corona’ significa ‘coroa’, a metonimia da soberania. [2] Que, claro, tem sido percebido como uma no escolha pela maioria dos governos desde 2001, como objetivo de securitizar todas as relagdes sociais em nome do combate ao terrorismo. A tendéncia notavel nestes casos é que a securitizacdo do Estado é proporcional a corporativizacao de quase todas as fungdes do Estado [3] Ver Jean-Luc Nancy, L’Intrus. Paris: Galilée, 2000. [4] Ver Gilles Deleuze, “L’immanence: une vie", in Philosophie 47 (1995). [Gilles Deleuze, “A imanéncia: uma vida”, in pois regimes de loucos, David Lapoujade (org), trad. Guilnerme Ivo. Sao Paulo: Editora 34, 2016. [5] 6 ridiculo atribuir um interesse a um microorganisno, © os esclarecimentos poderiam ccupar muito mais espaco do que esta nota permite. Ao mesma tempo, hoje é impossivel determinar o “interesse do homem”. [6] Devemos observar que o “virus” existe na linha critica entre (0) vivo € (0) n&o-vivo. [7] Em Shaj Mohan e Divya Dwivedi, “Gandhi = Filosofia”, in Theological anti-Politics, pretacio de Jean-Luc Nancy. Londres: Bloomsbury Academic, 2019 Anastasis pode ser traduzido por ressurrei¢do Publicado pelo site “Antinomie” (https: // antinomie.it/), em 08/03/2020 Divya Dwivedi © Shaj Mohan sao filésofos e residem no subcontinente indiano.

You might also like