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Introdugao chamamos Ante nio existe, Existem apenas De fato, aquilo a « artistas, No passado, eram homens que usavam terra colorida para esbocar silhuetas de bisdes em paredes de cavernas; hoje, algui tapumes. Fizeram e fazem muitas outras coisas. Nao hi mal em. compram suas tintas ¢ criam cartazes para colar em chamar todas essas atividades de arte, desde que nio nos esquesamos de que esse termo pode assumir significadas muito distintos em diferentes tempos ¢ lugares, e que a Arte com maiiisculo mio existe, Com efeito, a Arte com A > tornou-se como que um bicho-papio, ou um fetiche. Podemos esmagar um artista dizendo-lhe que o que ele fez tem la seu valor, mas nio é “Arte”. Ou confundir uma pessoa que contempla uma tela declarando que o que apreciou no quadro fol nio a Arte, mas outra coisa qualquer. Na verdade, nio ereio que haja motivos errados para gostar le uma estitua ou quadro. Uma pessoa pode gostar de uma por lembrar-lhe sua terra natal, ou de um retrato por de errado nisso, parecer-se com um amigo ~¢ nio ha nada Diaz de um qua m a mente mil iro, & inevitivel que nos venhi © uma coisas que influenclam aquilo de que gostamos e de que nio gostamos; se essas referéncias nos ajudam a apreciar aquilo que vemos, nio ha com que se preocupar. £ s6 quando alguma sociagio irrelevante cria um preconceito qualquer, quando sentimos uma repulsa instintiva por uma agnifica paisagem alpina s6 por nio gostarmos de alpinismo, que deveriamos nos ‘questionar quanto 4 causa da aversio que vem estragar 0 prazer que, do contririo, poderfamos tet. HA, sim, motivos errados para nio gostarmos de uma obra de arte A majoria de nés prefere ver nos quadros 0 que gostaria de fer na realidade. & uma inclinagio bastante natural, Todos admiramos a beleza que hi na natureza, ¢ somos gratos aos artistas que a preservaram em suas obras; estes, por sua vez, nio nos censurariam por nosso gosto. Quando Rubens, 0 grande pintor flamengo, fez. umn desenho de seu filho pequeno, 22 Intodesio figum 1, sem diivida tinha orgutho de sua beleza, e queria que nés também admirassemos a crianga. Todavia, a propensio a0 belo © ao encantador pode converter-se numa peda de tropeco se nos levar a rejeitar obras que representem algo menos sedutor, O grande pintor alemao Albrecht Diirer certamente desenhou sua mie, figure 2, com a mesma devogio e amor que Rubens nutria por seu rechonchudo rebento. A fidelidade de seu estudo das afligdes da velhice pode causar no espectador tum choque e levi-lo a desprezar o retrato; todavia, se resistirmos 4 repugnincia inicial, seremos amplamente recompensados, pois o desenho de Diirer é, em sua tremenda honestidade, uma grande obra. Como logo veremos, de fato, a beleza de um quadro nio correspond & beleza de seu tema, Nio sei se 08 pequenos maltrapilhos que o pintor espanhol Murillo gostava de pintar,figum 3, eram efetivamente belos ou rio ~ mas, tal como foram retratados, sem diivida se revestirarn de grande charme. Por outro lado, a malorla das pessoas considleraria sem graca a menina no Lindo interior holandés de Pieter de Hooch, figu 4, 0 que nio reduz a beleza do quadro. © problema da beleza é que os gostos e parimetros que definem 0 que é belo sio muito varidveis. As figuas § € 6 foram, pintadas no século XY, e ambas representam anjos tocando alaiide. Muitos vio preferir 0 quadro italiano de Melozzo da Forli, figura 5, com todo 0 seu charme e graciosidade, 20 de seu ‘contemporineo flamengo Hans Memling, figura 6. Pessoalmente, gosto dos dois. A beleza intrinseca do anjo de Memling talvez demore um pouco para se revelar ~ mas, uma vez superada sua Linguida deselegincia, ele pode parecer absolutamente adorivel. O que vale para a beleza vale também para a expressio. Com feito, em geral é a expressio de uma figura no quadro que nos leva a apreciar ou detestar a obra como um todo. Algumas pessoas preferem expresses de ficil entendimento, e que por isso Ihes inspiram profunda emogio, Quando o pintor 23 See certee osartines seiscentista italiano Guido Reni retratou a cabega de Cristo nz cruz, figura 7, sua intencio, sem diivida, era que o espectador cenxergasse naquele rosto toda a agonia e toda a gléria da Paixio, Muita gente, nos séculos subsequentes, encontrou fora « consolo nessa representacio do Salvador. O sentimento por cla transmitido é tio. poderoso e claro que reprodugées dessa obra sio encontradas em meros oratérios de beira de estrada e remotas casas no campo, onde as pessoas nada sabem sobre “Arte”. Por mais envolvente que tio intensa expressio de sentimeanto possa ser, porém, nio devemos rejeitar obras cua expressao seja talvez de menos ficil entendimento, O artista italiano que pintou o crucifixo medieval da figure 8 certamente alimentava pela Paixo um sentimento tio sineero quanto © de Reni, mas hi primeiro que se conhecer seu método de desenho para entender seus sentimentos. Uma vez compreendidas essas diferentes linguagens, podemos até preferir obras de arte cuja expressio é menos dbvia que a de Rent. Assim como alguns preferem pessoas econémicas nos gestos ¢ nas palavras e que deixam algo no ar, ha também quem se sinta mais atraido por pinturas ¢ esculturas que deixam algo por perceber, algo sobre © que ponderar. Em periodos mais “primitivos”, quando os artistas no tinham ainda desenvolvido as técnicas hoje existentes para representar rostos ¢ gestos humanos, tornam-se ainda mais comoventes seus esforgos para, nio obstante, cexpressar os sentimentos que pretendiam transmiti. ‘Aqui, porém, os principiantes.costumam deparar-se com outra dificuldade. Querem admirar a pericia do artista em epresentar aquilo que veem. Preferem pinturas que “parecam reais", Nio nego, é claro, que essa seja uma consideracio importante. A paciéncia e a habilidade mecessirias para uma reproducio fiel do mundo visivel sio de fato admiraveis. Grandes artistas do passado dedicaram muito trabalho a obras em que cada minimo pormenor é cuidadosamente registrado. estudo de uma lebre feito por Direr em aquarela,figum 9, & Imurotie ‘um dos mais célebres exemplos de tio amorosa paciéncla, Mas quem diria que o desenho de um elefante por Rembrandt, figume 10, € necessariamente pior por ser menos detalhado? De fato, Rembrandt era de tal génio que, com alguns poucos tragos de giz preto, logrow transmitir a sensa¢io do couro enrugado do animal De todo modo, nio é 6 esquematismo grifico que costuma incomodar os apreciadores de quadros “realistas". Incomodam- znos ainda mais obras que thes paregam mal desenhadas, sobretudo quando pertencem a um periodo mais moderno, em que o artista "ji nio deveria incorrer em tais erros". Entretanto, nio hi mistério nessas distorgdes da natureza, acerca das quais ainda se ouvem tantas queixas em discusses sobre arte moderna. Qualquer um que jé tenha assistido a um filme de Disney ou lido uma historia em quadrinhos sabe disso; sabe que as vezes € aceitivel desenhar as coisas diferentes de como se apresentam aos nossos olhos, transformando-as distorcendo-as de algum modo. Mickey Mouse nao se parece em nada com um rato verdadeiro, e nem por isso as pessoas escrevem cartas indignadas para os jornais criticando 0 comprimento de sua cauda. Aqueles que adentram o mundo ‘encantado de Disney nio estio interessados na Arte com A mahtisculo. Nao vio assistir aos seus filmes munidos dos ‘mesmos preconceitos com que visitam uma exposigio de pintura moderna. Mas, se um artista moderno desenhar algo & sua propria manelra, estara sujeito a ser considerado um incompetente. Qualquer que seja a nossa opiniio sobre os artistas modernos, porém, podemos estar certos de que eles dispdem de conhecimento mais que suficiente para desenhar “corretamente”. Se nio o fazem, pode ser por motivos muito similares aos de Walt Disney. A figure 11 mostra uma ilustracio de um livro de Histiria Netra feta pelo famoso pioneiro do movimento moderno, Picasso, Por certo ninguém encontrar defeitos nessa encantadora representagio de uma galinha e seus a5 fofos pintinhos. Ao desenhar um frango, porém, figure 12, Picasso nio se contentou com um mero retrato fiel do aspecto fisico da ave. Hle quis expor sua agressividade, insoléncia ¢ estupidez, Em outras palavras, recorreu & caricatura. Mas que ccaricatura convinoente produziu! Hi, portamto, das coisas que devemos sempre ter em mente ao encontrar falhas na exatidio de um quadro. Uma é se ‘© artista ndo teve suas razbes para modificar a aparéncia daquilo que viu ~ e voltaremos a elas com o desenrolar da historia da arte. Outra é que no devemos jamais condenar ‘uma obra por estar mal desenhada — a menos que tenhamos convicgio de que estamos certos € © pintor, errado, Todos tendemos a ser ripidos no veredicto de que “as coisas nio sto assim” Temos 0 curioso habito de achar que a natureza deve ‘sempre ter o mesmo aspecto dos quadros com os quais ‘estamos habituados ~ 0 que € facil de tlustrar com uma descoberta espantosa feita nio muito tempo atrés. Geragdes ‘observaram cavalos galopando, assistiram a corridas de cavalos © cagadas, apreciaram pinturas e gravuras mostrando a carga de avalos em batalha ou correndo junto aos perdi gueiros. Nenhuma dessas pessoas parece ter notado como “realmente” um cavalo corre. Os quadros e gravuras erm geral os mostravam de pernas estendidas cortando 0 ar. Assim os representou 0 grande artista francés do século XIX Théodore Géricault, por ‘exemplo, numa célebre representacio das corridas no Ihipédromo de Epsom, figuw 13. Cerca de cinquenta anos mais tarde, quando a cimera fotogrifica ji havia sido ‘suficientemente aprimorada para tirar fotos de cavalos em rapido movimento, estas provaram que tanto os pintores ‘quanto seu piblico estavam enganados. Nenhum cavalo a galope move-se cdo modo que nos parece tio “natural”. Ao sairem do chio, as pernas se posicionam alternadamente para o ‘impulso seguinte, figuw 14. Se pararmos para pensar um pouco, ‘vamos nos dar conta de que nem poderia ser de outra forma. ‘Ainda assim, quando os artistas comegaram:a aplicar a nova descoberta e a pintar os cavalos executando seus movimentos tais como so, todos reclamaram que os quadros pareciam errados. Trata-se de um exemplo extremo, sem diivida, mas equivocos desse género nio sio de modo nenhum tio raros quanto talvez se possa crer. Todos tenclemos a aceitar as formas € cores convencionais como as tinicas corretas. As criangas as vezes pensamn que as estrelas tém de ser em forma de estrela, embora obviamente no sejam. Aqueles que insistem que num quadro o céu deve ser azul e a grama, verde nio sio muito diferentes dessas criangas. Enchem-se de indignagio se veem outras cores num quadro; mas, se procurarmos esquecer tudo ‘0 que aprendemos sobre gramados verdejantes ¢ céus azuis, € olharmos para o mundo como se fossemos recém-chegados de ‘outro planeta numa viagem de descobrimento vendo tudo pela primeira vez, vamos constatar que as coisas podern apresentar as cores mais surpreendentes. Hoje em dia, os pintores as vezes se sentem como desbravadores em viagens assim. Desejam ver o mundo com novos olhos ¢ descartar todas as nogdes aceitas € preconceitos que determinam que a pele humana é rosada ¢ as ‘maga, amarelas ou vermelhas. Nio é facil despir-se dessas ideias preconcebidas, mas os artistas que mais éxito logram nessa empreitada tendem a ser os que produzem as obras mais instigantes, Sio eles que nos ensinam a enxergar na natureza novas belezas com cuja existéncia sequer sonhavamos. Se 0s acompanharmos € aprendermos com eles, qualquer mero relance da janela de casa poderd constituir uma aventura emocionante. Nao hi obsticulo mator fruigio de grandes obras que nossa relutincia em abrir mio de hibitos ¢ preconceitos. Uma pintura que represente um tema familiar de maneira inesperada costuma ser condenada pelo tinico ¢ exclusivo motivo de nzo parecer correta. Quanto mais corriqueira for a representacio. Seite atte es etistes artistica de uma determinada hist6ria, tanto mais firme nossa convicgao de que ela deve ser sempre apresentada de determinado modo, Em se tratando de temas biblicos, em ‘especial, os animos tendem a se acirrar. Embora estejamos todos cientes de que as Escrituras nada dizem acerca da aparéncia de Jesus, ¢ de que 0 proprio Deus no pode ser visualizado em forma humana, ¢ por mais que saibamos que foram os artistas de outrora que criaram as imagens com que nos acostumamos, alguns ainda tendem a pensar que qualquer afastamento dessas formas tradicionais constitui uma verdadeira blasfémnia. Na verdade, em geral eram os artistas que liam as Escrituras com maior devogio € atengio que tentavam elaborar representagies originais dos incidentes da histéria sagrada, Empenhavam-se em esquecer todas as pinturas que ja tinbam Visto e imaginar como devia ter stdo quando © Menino Jesus Jazia na manjedoura ¢ 0s pastores vieram adorivLo, ou quando ‘um pescador comegou a pregar o Evangelho. Nio raro, a tentativa de algum grande artista de ler 6 texto antigo com olhos inteiramente novos chocava ¢ irritava os desavisados. Um “escindalo” tipico desse genero irrompeu em torno de Caravaggio, audacioso e revolucionirio pintor italiano que trabalhou por volta de 1600 e fol incumbido de pintar um retrato de Sio Mateus para o altar de uma igreja em Roma, O santo deveria ser representado escrevendo o Evangelho; para mostrar que se tratava da palavra de Deus, haveria no quadro um anjo inspirando seus escritos. Caravaggio, uum jover artista de grande imaginacio e nio muito dado a concessbes, pOs-se a pensar sobre a situagio de um velho e pobre trabalhador, um simples publicano, a0 ver-se subitamente tendo de sentar para escrever um livro. Assim, retratou Sio Mateus, figura 15, calvo, de pés descalgos e sujos de terra, desajeitadamente agarrado a uum enorme volume, franzindo 0 cenho com ansiedade no esforgo incomum da escrita,A seu lado, postou um jovem anjo, 28 laerogio que parece recém-chegado das alturas e que guia gentilmente a mio calejada como faria um professor a uma crianga. Quando Caravaggio entregou o quadro na igreja em cujo altar ele seria instalado, o piblico escandalizou-se com o que se considerou ‘um profundo desrespeito ao santo. A pintura foi recusada, € Caravaggio teve de fazer uma nova tentativa. Dessa feita, nio correu riscos. Ateve-se estritamente as ideias convencionais sobre como um anjo ¢ um santo deveriam ser, figua 16. resultado também é um bom quadro, pois o artista empenhou- se 20 maximo para torné-lo vivo e interessante, mas nio hi. ‘como nio sentir que 0 novo trabalho foi menos honesto € sincero do que o primeiro, Esse caso ilustra os estragos que podem causar os que desaprovam e criticam obras de arte pelos motivos errados. Sobretudo, mostra que o que chamamos de “obras de arte” nio sio fruto de alguma atividade misteriosa, mas objetos criados Por seres humanos para outros seres humanos, Uma obra pode parecer muito distante quando pendurada na parede em sua moldura atris de um video. Em nossos museus, muito apropriadamente, é proibido tocar os objetos expostos; originalmente, porém, as obras foram feitas para serem tocadas, ‘¢ manuseadas, como objetos de barganha, disputa ¢ preocupagio. Recordemos também que todos os seus tragos sio resultado de escolhas do artista, que talvez tenha refletido sobre cada um deles, decidido modificd-los vezes sem conta, hesitado ‘entre manter aquela drvore no fundo ou repinti-la outra vez, se surpreendido positivamente com uma pincelada feliz que conferiu um brilho inesperado a uma nuvem banhada pelo sol ‘ou incluido com relutineia tas ¢ tais figuras por insisténcia do ‘comprador. Afinal, a maioria das pinturas e estituas que hoje vemos enfileiradas ao longo das paredes dos nossos museus € galerias mio fot feita para ser exibida como Arte, Foram criadas para alguma ocasiio especifica, com uma finalidade definida, que o artista tinha em mente quando pés mios 4 obra. 29 Sobre arte es etites Por outro lado, os artistas raramente fazem referéncia as preocupades com beleza e expressio de que nés, forasteiros, lanto nos ocupamos. Nem sempre foi assim, mas esse estado de coisas vigorou por muitos séculos no pasado, e voltow a instaurar-se agora. A razdo é, em parte, que os artistas muitas vvezes so pessoas timidas, para as quais seria embaragoso langar mio de palavras grandiosas como “o Belo”, Talvez. se sentissem pedantes se falassem em “expressar suas emogdes” e palavras de ordem afins. Sio, para eles, pontos pacificos, com relagio 20s quais € indtil discuti, Essa é uma razio — ao que parece, uuma boa razao. Mas hi outra. Nas preocupagées concretas do cotidiano do artista, essas ideias desempenham um papel muito menor do que os forasteiros podem, creio eu, suspeitar. Ao. planejar 0 quadro, preparar seus esbocos ou indagar-se se a tela std pronta, suas preocupagdes sio muito mais dificeis de colocar em palavras, Ele talver dissesse que sua preocupagio sentral € se “ficou bom”. Ora, 36 quando entendermos o que ele quer dizer com essa despretensiosa palavrinha, “bom”, que comecaremos a entender o que o artista de fato busca. Penso que s6 poderemos compreender a partir da nossa propria experiéncia, Nio somos artistas, & claro; talvez nunca tenhamos tentado pintar um quadro, e sequer tenhamos a intengio de fazé-lo algum dia, Mas isso nao quer dizer que ‘nunca nos vejamos diante de problemas semethantes Aqueles de que o artista se ocupa. Com efeito, estou ansioso por provar que dificilmente encontraremos alguém que nunca se tenha deparado com esse tipo de problema, ainda que na menor das eescalas, Qualquer um que ji tenha tentado preparar um arranjo floral, mesclando ¢ combinando as cores, acreseentando um pouquinho aqui e tirando um bocadinho acoli, experimentou 2 estranha sensagio de combinar formas e tons sem conseguir cexplicar exatamente que tipo de harmonta procurava obter, Simplesmente sentimos que um toque de vermelho aqui pode fazer toda a diferenga, ou que esse azul & bonito, mas nio 30 Imredo “compée” com os demais, e de repente uma hastezinha verde parece ser 0 toque final para que fique “bom”. "Nio mexa mais", exclamamos, “agora esta perfeito.” Nem todos, reconheso, seriam tio meticulosos ao preparar um arranjo de flores, mas quase todo mundo tem algo que quer que “fique bom”. Pode ser apenas tuma questio de encontrar 0 acessdrio ‘que vai bem com um determinado vestido, ou nada mais, impressionante que a melhor proporsio de, digamos, pudim e ‘ada no prato. Fim todos esses casos, por mais triviais que sejam, sentimos que um detalhe a mais ow a menos rompe 0 equilibrio e que so uma combinagio especifica deixa tudo como deve ser. ‘Talvez consideremos excessivamente meticulosas as pessoas {que dedicam tamanha atengio a flores, vestidos ou pratos, por parecer-nos que colsas assim nio sio dignas de tamanha atengio. Mas © que as vezes pode constituir um mau hibito no dia a dia, ¢ tende assim a ser suprimido ou encoberto, adquire vida propria no dominio da arte. Quando se trata de combinar formas ou compor cores, 0 artista nunca é “meticuloso” demais; deve, muito pelo contririo, ser minucioso ao extremo. Pode detectar nuances em tons e texturas que provavelmente nos passariam despercebidas. Ademais, sua tarefa é infinitamente mais complexa do que qualquer uma com que nos deparamos no dia a dia. £ preciso nio 6 equilibrar duas ou trés cores, formas ou preferéncias, mas realizar verdadetros malabarismos com um sem-mimero delas. Em sua tela, 0 artista introduz talvez centenas de matizes e formas que Ihe cumpre equilibrar até tudo ficar “bom”. Um toque de verde pode ficar demasiado amarelo por estar junto a um azul forte~ e parece- Ihe entio que tudo estd arruinado, que hi uma nota dissonante no quadiro e agora seri preciso recomecar do zero. 0 problema pode angustié-lo; o artista pode atravessar noites em claro remoendo-o em pensamentos; pode plantar-se ciante da tela dias a fio tentando acrescentar um toque de cor aqui ou ali s6 BL Sobre arte ox amines para apagi-lo outra vez, embora eu e vocé provavelmente nio hotissemos a menor diferenga de um jeito ou de outro, Quando ele consegue, porém, sentimos que alcangou um resultado ao qual nada hi a acrescentar. “icou bom” — um exemplo de perfeigio neste nosso mundo tio imperfeito. fo caso de uma das wélebres Madonas de Rafael: a "Virgem no prado”, por exemplo, figua 17. & bela, sem diivida, ¢ encantadora; as figuras estio admiravelmente bem desenhadas, € a expressio da Virgem Maria pousando o olhar nos dois ‘meninos é inesquecivel. Entretanto, se examinarmos 0s esbosos de Rafael para o quadro, fue 18, notaremos que nio foram ‘esses elementos que mais o preocuparam. Para ele, ji estavam resolviclos, Suas reiteradas tentativas giraram em torno do bom equilibrio entre as figuras, da relagio correta, que criaria 0 todo mais harmonioso. No ripido esbogo do canto esquerdo, Cogitou a possibilidade de o Menino Jesus afastar-se olhando para tris, na direcio de Sua mie. Experimentou varias posigdes da cabega da mie em resposta ao movimento do Menino. Depols, resolveu viri-Lo e erguer Seus olbos para ela. Tentou ainda outro arranjo, agora introduzindo © pequeno Sio Joao; ‘mas, em lugar de o Menino Jesus olhar para ele, colocou-O olhando para fora do quadro. Depois, nova tentativa; aparentemente, 0 artista impacientou-se, ensaiando a cabega do Menino em diversas posigoes diferentes, Havia varias paginas assim no seu caderno de esbogos, nas quais procurou insistentemente encontrar o melhor equilibrio entre as trés figuras. Mas, se olharmos de novo agora para a obra acabaca, ‘Yeremos que ele chegou, finalmente, & melhor solucio. Tado na {cla parece estar no lugar certo; 2 postura ea harmonia aleangadas pelo artista gracas a seu esforgo parevem tio naturais © espontineas que mal lhes prestamos atengio. Entretanto, justamente essa harmonia torna a beleza da Madona ainda mais bela, e a docura das criangas ainda mais doce. 34 Intedagho acalentar aquele tipo de meio conhecimento propicio & afetacio. O perigo é real. Hi aqueles, por exemplo, que compreendem 0s pontos de vista simples que procurel expor neste capitulo e que entendem haver grandes obras de arte destituidas de qualquer das Sbvias qualidades de beleza de expressio ou corregio técnica, mas que ficam de tal modo orgulhosos de sens conhecimentos que fingem gostar somente daquelas que nio sio nem belas, nem corretamente desenhadas. Vivem atormentados pelo receio de serem considerados incultos se admitirem gostar de uma obra que parega muito obviamente agradivel ou tocante. Acabam tornando-se esnobes que passam ao largo da verdadeira fruicio da arte ¢ classificam como “muito interessante” tudo aquilo que na realidade consideram até repulsivo. Bu detestaria ser responsivel por algum equivoco similar. Antes nio acreditarem em mim que aceitarem de forma acritica tudo aquilo que eu disser. Nos capitulos que se seguem, examinare! a historia da arte, que é a histéria da construcio de prédios, da pintura de quadros € da confecgio de estétuas. Creio que saber algo dessa histéria nos ajuda a compreender por que os artistas trabalham de determinado modo, ou por que visavam a obtengio de determinados efeitos. £, sobretudo, um bom modo de agucat nosso olhar para as caracteristicas particulares das obras de arte, refinando assim nossa sensibilidade para as nuances mais sutis. Talvez seja mesmo a tinica maneira de aprender a desfrutar ‘uma obra de arte per se. Contudo, cada caminho oferece seus perigos. As vezes vernos pessoas flanando por galerias de arte, catilogo em punho, e, a cada vez que param diante de um quadro, buscam avidamente por seu niimero, Folhelam seus livros, ¢, assim que encontram 0 titulo ou o nome da obra, seguem adiante. Nao faria a menor diferenca se tivessem ficado em casa, pots mal olharam 0 quadro; limitaram-se a conferir 0 catilogo. £ uma espécie de curto-circuito mental que nada tem a ver com o prazer que a pintura pode proporcionar. 35 Rebeca arte os ertites As pessoas que adquiriram algum conhecimento de historia da arte is vezes correm 0 risco de cair em uma armadilha semelhante: Diante de uma obra, no param para olhé-la; preferem revirar a meméria em busca do rétulo adequado, Entio, como ouviram dizer que Rembrandt se celebrizou por seu uso do chiaroscuro ~ 0 termo téenico italiano para designar 0 jogo de luz e sombra ~, meneiam sabiamente a cabera diante de um Rembrandt, murmuram “magnifico chiaroscuro”, € passam para © quadro seguinte. Sou muito franco com relacio 4 esses perigos do conhecimento parcial € do pedantismo, pois ninguém esta imune a tais tentagSes, € um livro como este pode ajudar a reforgi-las. Gostaria de ajudar a abrir olhos, nto a soltar linguas. Nao € muito dificil filar com inteligéncia sobre ante, porque as palavras usadas pelos criticos ji foram empregadas numa tamanha variedade de contextos que acabaram destituidas de toda e qualquer precisio. Por outro lado, olhar para um quadro como se nunca 0 tivéssemos visto antes e arrisear-se numa viagem de descoberta é tarefa bem. mais ardua, embora igualmente recompensadora. £ incalculavel © tesouro que podemos encontrar numa jornada assim. Figura 4 Figura S Figuraé Figura 7 Figura 8 Figura 9 Figura 13 Figura 15 Figura 16 Figura 18 Figura 17

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