You are on page 1of 33
Copprighs © 2016 ‘Annie Le Brun Copyright © dea edigio alioeaThuminuras Leda Capa proj gro Ber Caron Huminuras Revieio Jane Pessoa : 2 CIP-ARASI.CATALOGAGAO NA FUBLICACAD SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVEOS,R} sara: coma malo imepnsio/ Ane ‘hn tala Flo Fern de leds lane Rater Mone el Sto Pos mia, 216 96p20em, Tandon de Reese dae eect seep image San 976957304987 EDITORA ILUMINURAS LTDA. Rusa Indio Percia da Rocha, 389 (0542-011 - S30 Paulo - SP - Brasil Tel/Fax: 55 11 3031 iluminurss@iluminyeas.com.br ‘woiluminurss.com br Inpice APRESENTAGAO Do infinito como ponto de visa, 9 Eliane Robert Moraes: O SENTIMENTO DA CATASTROFE Uma catéstrofe inédita, 25 O sentimento da catdstrofe, 3\ PosrAcio A ‘perspectiva depravada” de Annie Le Brun, 85 Fabio Ferreira de Almeida Sobre os autores, 95 Inrropugio Uma catastrofe inédita 5 reflexbes sobre se tor- renos de duas décadas B istrofe, tema cada vez mais privilegid naram quase um género, passando da deploraga lida insirugies de uso. E bem verdad vem contribuindo para isso, ente os exemplos. Estes, por su que o leque de No entanto, se C fitos de longo prazo, ¢ xa, no deixa de ado a Fukushi sami tailandés de 26 de toridades rus: file 0 fim de magui cabia pressas a flagrante re 4 com o me cextragos estavam sob controle, ambos os desmentidos pretendiam reiterar uma ilusdo cada vez. mais men- tirosa, ao ponto de, nos dois casos, a opiniao piiblica ‘jd nao mais conseguir distinguir 0 desmentido da mentira. Assim, inaugurou-se um processo de indiferenga ao pior que ainda hoje caracteriza a recepcao de Fukushima, proceso induzido pelas sucessivas reclassficagies do acidente, ao qual se atribuiu a principio 0 nivel 4 para, alguns dias mais tarde, ser reavaliado como nivel 5 e depois, enfim, nivel 7. Avaliagéo de gravidade equivalente iquela de Chernobyl, mas que tampouco teve o efeito tranquilizador de esclarecer aquilo que definiti- vamente née est esclarecido, dando testemunho de umd nova espécie de anes vai de par com a impossibilidade de s se abatendo sobre nés, Fala ra si entre os comentarios sobre Fukushima e todo barulho em torno do tsunami tailandés, ou da erupedo do vuledo islandés, da mesma forma como 0 ntimero de participantes nas manifestagdes contra a energia nuclear apds a explosio de Fukushima ‘foi paradoxalmente proporcional i sua distiincia do teatro de um acontecimento cuja gravidade pode passar por incerta, ainda que extrapolasse tudo 0 que poderiamos imaginar. Por que, convém perguntar, 0 tsunami que enlutou as ferias de ‘Natal de turistas europeus ou as cinzas do vuledo que interromperam por vdrias semanas metade do trafego aéreo terito merecido mais atengito que o tremor no Japao? Nico foi este tltimo, enti, com 0 dilaceramento de quatro reatores nucleares, que desencadeou fendmenos imprevisiveis de contami- nagao, fenimenos estes considerados atualmente ainda mais alarmantes que os de Chernobyl? A rigor, ax catdstrofes provocadas pelo tsunami tailandés ou pelo vuledo islandés eram, aparen- temente, naturais e_néo representavam ameaga 0 que ocorre com 0 desastre de Chernobyl, que, no fim das contas, serd implicitamente atribuido & impericia do antigo sistema soviético, considerado pouco apto para controlar a energia nuclear ¢ surpreendido em sua caréncia de tecnicidade. Por outro lado, as coisas se passaram de maneira com- plesamente distinta com 0 desastre de Fukushima, (que, ao contrdrio, resultou de um conjunto de ‘fatores indissocidveis das escolhas fundamentais da sociedade pés-industrial e de sua sujeiciio @ poténcia nuclear, a ponto de se construtrem sobre uma falha sismica 54 reatores nucleares, num pats em que a fembranea das primeiras bombas atimicas jogadas sobre Hiroshima e Nagasaki, em 1945, néo podia deixar qualquer diivida sobre os riscos que estavam em jogo. Como, entio, deixar de interrogar a neutrali- zacdo imposta a tais acontecimentos, que sio, na realidade, tio emblemdticos de nossa época quanto foi terremoto de Lisboa, de 1755, em seu tempo? Nao se assiste, como no evento do séeulo XVII, a wma significativa acumulagio de fatores desenca- deantes @ por consequéncia, a uma total revisio dos valores? Passado 0 pasmo dos primeiros dias, que se pode entender como a base de certa tomada de conscitncia coletiva, é forgoso constatar que 0 debate arrefeceu muito rapidamente. E isso ndo apenas em decorrincia das intimeras promessas de avaliagto das centrais nucleares europeias ainda em atividade, mas sobretudo gracas @ escandalosa alegagao, reiteradamente repetida, de um pendor para a fatalidade que se confindiria com 0 génio Japonés. Questo que nem as mais justas andlises ambientalistas! puderam se dar conta, mesmo estando no local, pois quando se tornow impossivel camuflar certas evidéncias, governantes e gover nados viram-se envoltos numa mascarada para aceitar e fazer aceitar o inaceitdvel. Expanta ainda o fato de que tal consenso no interior do Japao, que repercute mundo afora, sob 0 pretexto de reconhecer a dignidade silenciosa de wm povo aguerrido ante toda espécie de cataclismos, ndo tenha sido percebido como uma nova etapa de submissio-cordem das coisas, correspondendo a um nivel inguietante dejservilismo]que se afere em escala mundial. Tanto que, se as relagoes entre catdstrofe imagindria e catdstrofe real me inguie- tavam em 1989, eu ainda ignorava que Giinther Anders havia pressentido desde os anos 1950 a pane do imagindrio que eu entdo descrevia. Partindo da radical novidade da\situagéo aibmica, ele real- | mente conseguia mosttar como nos encontrévamos cada vez mais subjugados pelo_que produiamos, justamente por nde podermor representar nem a | extensio nem a ys da técnica. “fato, era o mesmo fenémeno que eu evocava, mas visto do interion,constatando a que ponto a realidade atémica barrava nossa imaginagio, chegando a impor sua forga de deseruigto ao nosso poder de negacto, capaz de desdobrar o infinito de \ suas perspectivas imagindrias. ‘Assim comegava 0 reino de uma miopia geral que nos deixava cada dia mais incapacitados para avaliar as consequéncias desastrosas, ao ponto de néo mais sabermos discernir 0 que ligava a causa ao efeito. De modo que, em poucas décadas,.o.ima- gindrio catastrifica ficou redusido & figuragao de acidentescuja gravidade espeacular cervia de pre- saloadora. Que nas recusemos a enxergar isso cons- titui em si uma catdstrofe inédita, que hoje chega «a ultrapascar todas as demais, Ou seja, se coube a René Rissele a Jaime Semprun mostrar, em 2008, (quais ‘submissies durdveis” induziram os discursos do catastrofismo, quase todos trabalhando, de perto on de longe, na “adminisragao do desasire’? na Mosse, René Seon, ime. Caomephine. adnan du dear snmision ‘irae aris Ede FEneycopsie es Nuisances, 2008. nos fazer sum “capricho de inverséo dptit er as as onde elas nao estéo”? Nao ia, entiio, essa pectiva capaz. de nos revelar um ponto de fuga que, invisivel, ainda pode representar a garantia de nossa liberdade? O sentimento da catdstrofe a ampliagio de uma conferéncia ce URL te econ Botanique de Bruxelas. Sem pretender formular um ponto CoCo eet een ater ete Hé uma maneira involuntéria de recuperar 0 que nos escapa no barulho do tempo. Do acaso dos encontros por veres surge aquilo que tivemios 0 desleixo de apenas entrever sem pensar em re- tomar, ou a preguica de desenvolver, contando, a0 contrétio, com uma retomada fucura. Isso prova que ndo ¢ preciso pensar, salvo quando se torna imperativo tentar compreender ¢ imaginar uma safda,,Nesse aspecto, o pensamento estaria ‘em parte ligado & catastrofe, ¢ ao mais profundo de nés mesmos, ‘Ainda assim, quando nao sucumbimos ao desespero, tentamos seguir em frente, € até che- gamos a fingir que nao ¢ assim, apesar de tudo. A vida continua, dizem os imbecis, ¢ eles tém razo, pois néo pode ser de outro modo. Mas eles também se enganam, porque a noite, sobre a qual sempre haveré um deles para proclamar com satisfagio que todos os gatos sio pardos, tal noite é atravessada por uma fauna tanto mais inquierante na medida em que nio distinguimos nem suas formas nem suas cores. Dito de outro modo, a vida continua, e também © pensamento, mas alhures. Nem deveras incons- ciente, nem deveras consciente, aproveitando 0 mais infimo despiste para escapar & pressio da necesidade, para errar, até mesmo parare deixar passar sobre si o vento, ou quebrantar nas 4guas turvas do incerto. ‘Assim, hd pensamentos que, escondidos, en- torpecidos e, contudo, prontos a se animarem, esperam que a minima presenga estranha venha Thes atormentar 0 descanso, Talvez esperdssemos até mesmo que todo encontro viesse abalar a rarquia, quase sempre precéria e sempre ficticia, de nossas preocupacées, desviando de repente 0 curso da reflex para trazer a luz o que havia se instalado na penumbra. Ha entio ideias que, desalojadas, assumem proporgdes de tal forma inquietantes que scu retraimento talvez tivesse por fim prevenir © préprio desenvolvimento: nés as terfamos mantido a distancia para poder contorné-las sem ter que negé-las, Cada um de nés cuida de preservar tais reservas de ideias que, & condigao de parecerem inativas como vulcdes, constituem parte de nosso-ambiente, mobiliando-o, ditia, com tudo o que a expresso possui dé derrisério e de verdadeiro. Assim como muita gente nos dias de hoje, andei as voltas com a ideia de catdstrofe, que, sem diivida, me preocupava havia muito ¢ por raz6es diversas, sem encontrar em mim a forga_ para poder enfrenté-la. Pois existe uma energia_ fisica_sem_a_qual a reflexio_nio_avanca, ou melhor, no vai até onde precisaria in ainda que _ fosse apenas para mudar de perspectiva. Sé uma “fitervencio existior pode Inde a aammne exatamente a triunfar sobre a insidiosa inéreia que, no fim das contas, nos mantém em con- forto muito mais do que em equilfbrio. Fadiga de pensar? ‘Talvez. Mas sobretudo indoléncia, 0 que equivale a resisténcias até mais agudas. E por certo nao teria retornado a ideia de catdstrofe se Pierre Yves Soucy, muito mais preocupado com tudo o que dizia respeito ao tema nos anos 1980, nao me tivesse relembrado uma frase que escrevi um ano antes em Appel d'air: DE ee i ones ces aa da catistroe, persstente como o eco remoto de pulses, de longuissimo aleance cuja amplitude por vezes con- seguimos, assombrados, percebe,mias cuja escapa, Talvez vivamos mesmo ao ritmo de eruy interiores, manifestando-se & mercé de linha de f que esto tanto em nés quanto fora de nés.* Essas linhas, se bem me lembro, eu as havia escrito sem colocé-las em questéo, talver para afirmar a reflexio uma certeza {ntima que "Lith, Anni. Appel an Pais Ve, 2012. (NE) i, 0 A UL REET Ps ae! fa : servia para combater obscuramente a falsa ridade_com a catéstrofe que, doravante, fatos e ficgées|pareciam nos impor, Como se ‘© inquietante fosse menos a ampliagao de ur sentimento da catdstrofe que sua|banalizacio, Banalizagao que chegava até mesmo a modificar a curiosa dialética que, desde sempre, unia ca- tdstrofe real e catdstrofe imaginérial pois, devido s suas consequéncias — em grande parte ainda imprevisiveis —, desastres recentes tinham ultrapassado ou corriam o risco de ultrapassar tudo 0 que dava asas & nossa imaginacio. Algo estava em vias de mudar ¢ de mudar a nés mesmos, incluindo até 0 nosso medo, pois através da nocio de catéstrofe a relagio entre 0 realeo rio parecia se inverter. E inverten- do-se essa relacio, todas as perspectivas pareciam se desarran modo que talvez houvesse af outro ponto de-vista a parti considerar uma modernidade cujo fim ainda nao estavamos aptos a perceber. Tal foi, creio agora, a razio que me motivou a retornar a essa questio. Mas havia também o sentimento da neces- Je — aberrante, devo dizer — de niio deixar que o valor de uma palavra forte se perd movéncia dos tempo: virgem gens onde no a buscar suas paisagens, a palavra catdstrofe havia sido uma dessas linhas de forga que possi os mais vigorosos impulsos. E a cada vez que a la retornava, ela nunca me traiu, e melhor que qualquer varinha mégica, conseguia langar de um golpe, sobre o que entrava em_ordem, uma luz _ trémula de aurora e de caos. Fur nao aceitava que ela pudesse desaparecer nas texturas da moda? E talvez menos ainda que ela viesse a reluzir com um novo prestigio‘cientifico:) Refiro-me, evidentemente, a famosa “teoria das catdstrofes”. Essa que é, em sua acep¢io mais geral, “uma teoria do dinamismo universal”, segundo a qual “tudo 0 que existe como algo sinico ¢ individual apenas existe assim na medida em que € capar dé resistir a0 tempo)— a certo tempo”, como destacava seu inventor, René Thom. Tal uso da palavra simplesmente retira dela offalor de evento excepcional/que a carac- teriza. E, porque o termo convinha 3 andlise de todo ¢ qualquer fendmeno cujas causas variam de mancira continua para provocar efeitos des- continuos, a palavra — mas igualmente a coisa nossa cotidianidade, como talver inscrever nossa cotidianidade numa (nova ordem da catéstrofe. Alids, justificando a-existéncia dessa teoria, 20 destacar que “finalmente a escolha de fendmenos * Locale global a obra de ane’ confréncia pofrida em 22 de rio Piaget, em Genera In: De a etsrape. Genera: Cente d'Art Co 82, p43. considerados_cientificamente interessantes _¢ sem duivida largamente arbitréria”, René Thom colocava, desde 1972, a segui Fenémenos fizmiliares em quantidade (a ponto de nao. ‘mais chamarem a atencio!) sio, no entanto, diffceis de teorizat, Por excmplo, as salamandras num velho muro, a forma de uma nuvem, a queda de uma folha morta, ‘a espuma num copo de cerveja. Quem sabe se uma. reflexio matemética um pouco mais sofisticada sobre ‘essa espécie de pequenos fendmenos nio se revelaria, por fim, mais ttil & ciéncia?® Questo cujo mérito, entre outros, era o de pacto terminolégico” que, de acordo com René ‘Thom dez anos mais tarde, teria assegurado 3 “teoria das catéstrofes” sua “notoriedade tantas vezes discutida’ + Discutida ou discutivel, essa notoriedade nao era menos justificada, dado que a sofisticagio da pesquisa matemdtica colocava a catéstrofe ao nosso alcance. Pela primeira vez, com efeito, a caréstrofe parecia escapar & ordem do excesso, 7 ¢ isso precisamente no momento em que ela escapava a0 imagindrio para se tornar nossa ameaca mais real. ‘A confusao semantica era contestével, mas, ented soi nde des modal pec déerminisme” In: Len 4. Lausanne: “Locale lb dane Foeune dae’ lo. itp 42. forma havia algo de essencial que atuava em torno da ideia de catéstrofe que, até entao, a palavra tinha sua notoriedade garantida_pela estabilidade_¢ pela coeréncia_dos diferentes sentidos que havia assumido na Antiguidade. ‘Trata-se mesmo de um paradoxo que merece ser destacado: alconstincia ¢aracterizava a evocagao da mais brutal mudanga, pois desde sua aparicio na lingua francesa, cont Rabelais em 1564) as diversas acepgées do termo nfo o distanciavam de sua raiz etimolégica, para designar, antes de tudo, um transtorno produzido pof inversa causando uma\feviravolta|que, pouco a pouco, iria significar destruicao, calamidade, desastre, ismo, flagelo, drama. Quer dizer, um acontecimento stibito ¢ vio- nto que cartega em si mesmo a forca de mudar © curso das coisas. Umyacontecimento que é, a um sé tempo, ruptura e mmudanca de sentido e, por isso, pode ser tanto um comego como um fim. Em suma, um acontecimento decisivo que perturba a ordem.do mundo, embora também possa levar a um outro mundo. Dai 0 paradoxo da constincia semantica da palavra: embora por vezes contraditérios, os diferentes sentidos que ele abrange historicamente tém em comum rivilegiarem 0 momento em que a modificagio torna evidente, o instante mesmo da quebrada da onda. ~—* fundadora Pode ser bizarro, mas é 0 que ocorre com a “catdstrofe trégica”, que fez perdurar até o século XVIII alacepgao grega segundo a qual a palavra remetia aos sentidos de terminar, coneluir e até mesmo morrer. No entanto, pela devastagio fisica e espiritual que cla acarreta, levando a confundir — mesmo da maneira mais previsivel — 0 fim da tragédia ea morte, essa “catistrofe trdgica” se abre para o desconhecido € preserva ma \dimensio_imprevisivell para recuperar_a ;pSa0 forte da catdstrofe hue, implicando a re- alizacfo do improvavel, assombra desde sempre © espirito humano, Contudo, se a grande Enciclopédia nos dé precisa e exclusivamente esse sentido da “catés- trofe trégica’, ndo se poderd negligenciar 0 fato de que a nocio de catéstrofe comega a inquietar século XVIII sob outras-dénominagdes. Penso particularmente no Dilivioy que, dbvio, nunca deixou de desempenhar 0 papel da catdstrofe ra_o Ocidente, mas que, nesse momento preciso, acaba por influenciar a ciéncia geolégica entéo_nascente_atingindo-a m Epoques de la nature, Buffon ita a presumir a data dessa catéstrofe primordial, por mais que sua hipdtese sobre a formacao do si solar colocasse em jogo uma outta catistrofe:a do cometa que tocava 6 Sol, causando seu esfacelamento em_planetas. as stibitas revolugées climaticas trazem a reno- vagio catastréfica das faunas, ha de se destacar a insisténcia do século XVIII em fazer da ideia de catdstrofe uma nocio-chave em matéria de evolusio. Assim, 0 gedlogo Deluc, estimando que a “formacéo de montai 5 soluco sobre revolugio”, fica “chocado coma desordem das camadas que apresentam uma ‘apaténcia de jfetida' ou ‘de edificio reduzido a pufnas”.> Mas ( pode-se também enxergar, na prépria constincia ¥ |da referéncia d catéstrofe, oGrg a época escolhecinconsclentement®> para si, a fim de sgn Ta THEE pescnte sob a pes pectivas reconfortantes de uma razao triunfante. ‘Como se a nogio de catdstrofe emergisse desde que o homem se interroga sobre si mesmo. Com efeito, do caos a0 Apocalipse, do Di a0 fim dos tempos, da torre de Babel a0 Ano mi da desordem que engendra a ordem nos mitos fundadores & tébula rasa que conduz & “grande” noite”, intimeras so as construgoes imagindrias IE que remetem & catéstrofe como a uma constante em torno da qual a humanidade buscou se de- finir, estabelecendo sua relacio com 0 mundo (sob o signo do acidental. Primeiro, transformando o curso do tempo: se © Apocalipse, catéstrofe das catéstrofes, introduz a0 fim dos tempos — “Quando tiver chegado 10, G. Hire de a flee. Psis: La Décousene, 1987, p 131. 6 fim dos tempos, lé-se nos Bscrits intertesta- mentdrios, 0 mundo cessard, grassard a morte € o inferno fecharé sua boca’ —, nao hé catéstrofe que nao quebre a continuidade e modifique radicalmente nossa relagao com o tempo. Mas também mudando nossa relagio com o espaco, pois, com a catistrofe, o excesso se torna realidade, acarretando uma mudanga de escala que, por vezes, pode aré mesmo sugeri sivel de uma|percepcio fisica do infini homem para fora de suas medidas e de suas representagbes do mundo, chegando a reduzi-lo> a nada mais que o elemento insignificante de um fenémeno cujas leis Ihe escapam, a nogao de catistrofe implica entio uma reviravolta da relaggo_do|humano com 0 inumano.\ Assim sendo, ela se torna uma maneira inestimavel de medir a desmesura que nos funda. Mas também de nos lembrar 0 quao desconhecidos somos de nds mesmos. Disnre dk fan ieeren\io xenical tre, talve Fosse esa brusca intimidade com 0 inumana_o que eu desejava salvaguardar como “Zeesso a uma riquezailimicada da qual estévamos seado, privados, como: usm, poke nan tivesse estado 20 nosso alcance e que pouco a Pouco nos era retirado. Nao que tivesse me con- siderado minimamente detentora dele quando quer que fosse. Talvez eu estivesse tio somente mais consciente do feixe de infinito, que os homens, desde sempie, viam e nao viam através de sua fascinacao pela caréstrofe, buscando nessa grandiosa figura da destruigio, para além de uma especulagio sobre a morte, a repentina revelacio. fisica do que cles nao cram. Poi inada ou real, a catéstrofe possui a forcaprodigiosa de surgit como a objetivacio daquilo que nogexcede. E justamente por se desdobrar em arcobotante entre o real ¢ 0 imagindrio que ela continua nos atraindo como uma das mais belas linhas de fuga. do espirito humano, ~ Allds, nao conhego infinciajdigna desse nome que nao tenha escalado massivos de trens des- arrilhados, que nao tenha navegado por rios de lava, que nao tenha constituido um reino sobre cidades libertadas [...]. O sentimento da catdstrofe é sem diivida, a primeira-figuragao da_ fenda do imagindrio no mais profundo de nés. Fenda constante, cujo desenho é uma forma de interrogar nosso destino, tanto quanto de responder a ele. Mas também um expediente pa- tadoxal para enfrentar, tentando representé-las, as situagbes da mais extrema desordem ética. No ‘mais, ainda que vista como punicao divina que serve para confortar a ordem crista, nao hé fim do mundo que nao remeta a essa necessidade de figurar um caos, cuja emergéncia é para nds, sempre esperada e temida. Precisamente por essa razo, o terremoto de Lisboa constitui um acontecimento capital, que, marcando o fim da concepeio religiosa da_ catdstrofe, se abré para a liberdade de um ima- indrio Catastr6fico pululante que se revelard 0 o meio de apreender um mundo em vias de escapar a toda compreensio. Mas hd primeiro a evidéncia: 0 fato de que 0 desastre de Lisboa, com suas 20 mil vitimas, leva cientistas e filésofos — Leibniz, Pope, Wolff, Voltaire ou Rousseau — a debaterem a questéo (1756), trés anos bastam a Voltaire para daé tirar as consequéncias filoséficas em Candido (1759), cuja doutrina do otimismo é, no fim das contas, definida como “a fiiria de sustentar que tudo esta bem quando tudo est4 mal”. Ainda assim, em sua andlise de O pensamento europe no século XVIIL, Paul Hazard, ao designar essa catéstrofe como acontecimento maior que carrega em si ee mesmo a Yefutagao imediatalda tese dominance: ‘tudo vai bet melhor dos mundos”, insiste com razo na lentidao de suas repercussoes defi- nitivas. Prova disso € que em suas Considenagbes Preliminares acerca do otimismo de 1759, Kant ainda se coloca préximo de Leibniz, ¢ s6 muda seu ponto de vista em 1791, quando escreve Sobre.o insucesso de todos os ensaios de teodiceia, Lentidao altamente significativa de uma side- fagdo-da racionalidade que, de repente, se mostra inapta a dar conta do que esta sendo vivido pelos homens. A tal respeito, nunca é demais insistir sobre o alcance ilimitado do Candido, cuja forca de reflexdo derriséria é, em si, um anacron no momento em que o terremoto de Lisboa também inverte a expressio de uma razao que, por meio di doutrina do-otimismo,|se reconcilia com 0 mundo, Pois esse desastre é, antes de tud a catdstrofe que rompe 0 acordo extraordindrio. — jamais realizado antes dos anos 1740-1750 — entre fildsofos, moralistas, religiosos.¢ poetas.em defesa do otimismo, reunindo todos em torno de uma visio de mundo tao moderadora quanto ra- cionalizante, Com efeito, a forca de tal consenso em do fato de que a doutrina do otimismo corresponde a consumagdo de uma formidsvel tentativa de racionalizagio do religioso. Donde a importincia do terremoto, que, de um s6 golpe, poe fim a uma das mais consequentes.tentativas, de pacificasao do pensamento, Realmente, 0 desastre de Lisboa atinge tanto a nogdo de Pro- videncia quanto 0 sonho racionalizante do qual entao ela ainda se nutria, Nao é por outra razio que esse rascunho filosdfico que € 0 Candido cambaleia, completamente impotente para deter a forca das nascentes do indefintvel mal de v que vai se impor em seguida, Espanta que, ainda hoje, continua-se a celebrar 0 Cndido sem levar em conta.a que ponto o recurso & razdo, ainda que magnificamente reluzente no conto de Voltaire, ‘maostre-se inutil em face da prova desconcertante de sua inaptidao em coneeber a turbuléncia dos seres e das coisas. De Leibniz a Pope, passando por Madame du Chatelet, Von Haller e mesmo Kant, nao ‘4, realmente, doutrina nem sistema que esteja & altura nem sequer de evocat,a amplitude do que se produziu com 0 aniquilamento de Lisboa. Essa cidade rica, acolhedora, pitoresca, mas ainda muito devora, repleta de igrejas ¢ de conventos, de repente foi devastada pelo terremoto, 20 qual se seg ramente uma inundacio, ¢, por fim, ainda foi pilhada por seus préprios habitantes. A verdadeira catéstrofe é que o im- pensavel aconteceu, dado que Deus, a natureza € os homens revelaram-se de um s6 golpe rotal- mente diferentes do que havia se pensado que cram até entdo. Impressionante também, mas nao do mesmo modo que as casas em escombros, ‘os monumentos destruidos ou as igrejas ao chao, € esse amontoado de teorias fracassadas, de ideias _ em ruinas ¢ de crengas esfaceladas que fazem. com que o desastre de Lisboa deixe o século desamparado. Estou conyencida de que o sentimento da ca- astrofe nasce af, nesse|horizonte transtornado} a partir do momento em que tal sismo sem pre- cedentes, despedagando repentinamente bali igiosas ¢ filos6ficas, faz surgir, catastrdfica, a questao do sentido; cujas infinitas repercussdes. evocam, em aca9) 0 excessa de imagindrio, ‘Questéo verdadeiramente catastrdfica: basta que ela se coloque para que, de stibito, desabem as construgées éticas € os sistemas de represen- aio, Assim, em menos de vinte anos a fensibilidade) curopeia € invadida pela figuracao de desastres imagindrios que tém_por caracteristica essencial fazer emergit| a catdstrofe em estado puro,\|i- vrando-a de toda referencia Feligiosa, como se 0 recurso ao imagindrio servisse, antes, para liberar © espirito de suas travas, a fim de tornar pensar de outro modo. Bis que as cléssicas repre- sentagdes do Diivio ou as tradicionais figuracoes do Apocalipse substituem-se, depois do impres- sionante Recueil des plus belles ruines de Lisbonne, de Jacques-Philippe Le Bas (1757), inumeros quadros de tempestades (Vernet), de nauftégios (Pillement), de ventanias (Lautherbourg), de vuledes (Voltaire), de enchentes (Valenciennes), cada um menos realista que 0 outro, como que para figurar, por sualdesmedida imagindria) o impossivel enfrentamento com um sentido) que jamais cessard de se esquivar, Ilusao, talvez. Mas ilusdo de éptica particular- ‘mente atuante, pois nao é apenas o olhar que se encontra modificado, mas, ao que parece, também. aj paisagem| onde se distingue 0 que no se sabia ver, onde se leva em conta 0 que no se queria ver, Outras energias surgem ai, transformando aos poucos a ideia que o homem tinha da natureza e de si mesmo, Nada ha de fortuito no fato de que nesses anos florescem os estudos de vulcanologia, com os primeiros trabalhos de Faujas de Saint Fond (1788) e os de m Hamilton, ligados as célebres erupcdes do Vestivio de 1771 e1779. Por si sé, as duas relagGes — suntuosamente ornadas de “desenhos idos de acordo com a natureza” — que William Hamilton elaborou sucessivamente em 1776 ¢, depois, em 1779, sugerem o inte- resse suscitado por tais catstrofes. Eo marqués de Sade, de quem se conhece a fascinacao pelos vulcdes que visitou na Itélia entre 1775 € 1776, até ser preso em Vincennes, mantinha-se informado da grande-erupgao.de 1779 por seu criado Carteron, cujas cartas de 7, 23. 29 de setembro fornecem uma narrativa muito bem circunstanciada, enriquecida de excertos de de passagem, o que testemunha um dos herdis de La nouvelle Justine: Um dia, observando 0 Etna, cujo scio vomitava chamas, desejei ser este célebre vuleio. O sentimento da catéstrofe jamais havia sido formulado assim, no esplendor de seu desdobra- ico. E nunca mais o seria, com exce¢io de Os cantos de Maldoror$ como jamais o serd depois da censura se impor as im- que assombra 0 imaginério catastréfico. Alids, se 0 individuo romAntico, reconhecendo-se nos descaminhos da natureza, pouco a pouco toma consciéncia das terriveis forcas que ele carrega, convém notar que tal apropriagio do sublime, marca distancia da perspectiva erética revelada por Sade. Esta, 20 contrétio, € logo assimilada pela concepsio romantica da paisagem, que, na verdade, supde um formidével recalque. Sempre grandioso, o espetéculo da natureza teria inclusive a fungao de incitar 0 individuo a se confundir com ela, para que se apagasse nele todo indicio natural de um enraizamento negador do di do qual o sentimento da catéstrofe seria uma longinqua mas persistente arborescéncia, Nesse a : : sentido, a/verdadeira poesia — e nisso ela vai a0 encontro da catéstrofe — consistiria em sacudir os bosques adormecidos de uma paisagem cuja grande perspectiva erdtica se tenta o tempo todo camufla, “Laurmdawown, Conde de: Os ont de Malderr:Tad Clio Wil ‘mina, 2005. (NE Sto Palo: 4 ismo ateu. Por mais excepeional que seja, a paixao sadiana nao poderia disfarcar 0 im- acto real e imagindrio das erupgdes do Vestivio, duas décadas depois do evento de Lisboa, Antes de tudo, a impressdo que tais erupcdes suscitam, diferem radicalmente daquelas do desastre de 1755, por ‘ndo mais suscitarem especulagoes de ordem religiosa. O fato de serem apreendidas unicamente de um ponto de vista cientifico ou imaginério (as ilustrag6es nao raro tornam difuso © que separa um do outro) impoe a mudanga de perspectiva. Nao se trata mais de flagelo de Deus nem de punigio divina, mas de acontecimentos cujas imagens tomam a diantei bilidade inquieta. ‘Tampouco ¢ por acaso que a Europa, no mesmo momento, se veja tomada_por fascinio por |Herculano e Pom tepentino 10s quiais se comeca a prestaratengio depois de uma espera de dezoito séculos. Com efeito, em 1754 io empreendidas escavagbes que, descoberta apés descoberta, resgatam a cidade sepultada, € as imagens ¢ perspectivas revolvidas si tantas que organizam um verdadeiro {teatro da catéstrol Como se uns ¢ outros fossem aos poucos reco- nhecendo ali 0 cenério que os liga de novo a um mundo cuja compreensio hes havia escapado, ira de uma sensi- 55 a Um gosto contemporineo por livros sombrios, por tempestades e ventanias — que & época sdo chamados de romances negros ou géticos — também carregam, nas profundezas do ima- gindrio, o pressentimento da imensa mudanga de sensibilidade que vai corroendo a época das Lames. (Birr Todos os que nao se deixam seduzir pelos tons pastéis do idilio, ou pelas imagens reconciliadoras de uma idade de ouro, opdem ao imaginario solar um{Sentimento de catdstrofe, que passa a figurar entaocomio-atinica Felagao que um indi- viduo pode conceber com a natureza, Individuo afrontado, dentro ¢ fora de si, com a questao do mal ¢, forgosamente, com a questo do sentido, em paralelo ao aumento da descrenga. Nesse momento de incerteza geral, desenha-se contudo uma nova ¢ inquietante certeza: a mesma vio- léncia assombra a natureza e 0 cora¢io humano, uma violéncia incomensurdvel. E precisamente nesse momento, quando ainda nao se tem consciéncia de que um mundo est prestes a ruir, um abalo cada vez mais intenso faz surgis{ruinag por toda parte: das rufnas de Young, aqu jiderot ou de Thomas Whately, das ruinas de Hubert Robert as de Pirandse, sem * esquecer as de Panini e de Jackson, todas elas vém ocupar afpaisagem imagindria)para evocar, nao mais a catéstrofe como tal, mas o que dela resulta, a devastagao. Essas florestas de ruinas por certo cederam lugar, hoje em dia, as nossas ruinas de floresta. ‘Além disso, resta ainda um estranho paralelo centre a emergéncia do > catastréfico do final do século XVIII ¢ sew‘tessurgimentO> no decurso dos tiltimos cinquenta~anos. “Até “mesmo numa determinagao do pés-catdstrofe, a aproximagao parece possivel, pois, h4 mais ‘ou menos dez anos, as imagens de devastacao) se impdem as imagens fle Weed Ce oa tanto, perguntar 0 que pretende nossa época a0 deixar de levar em conta uma catistrofe que the serviu. para imaginar, desde a Segunda Guerra Mundial, as mais diversas formas de interrogar ‘um universo privado de sentido. Ser4 esse o meio de dissimular, mas igualmente de evocar, uma dificuldade ansloga aquela que 0 fim do século XVIII experimentava para conceber 0 mal num: mundo em que a referéncia divina se esvanecia? Dificuldade para a qual a filosofia das Luzes, vale Tembrai logo se revelou incapaz de dar uma res- posta, mas que Kant, Schelling e Hegel, cada qual a seu modo, decidiram enfrentar indiretamente por meio da|nocao de negatividade, jque parece ter sido concebivel apenas depois do imaginério catastréfico ter lograds livrar a consciéncia eu- ropeia da impregnacao ética dé um principio do mal. izmente, isso no quer dizer que tal prin- efpio tenha desaparecido em definitivo de nosso horizonte, Para vé-lo reaparecer numa escala coletiva, acompanhado de toda quinquilharia transcendente ¢ culpabilizante, basta que 0 homem no mais compreenda sua infelicidade ou, melhor, que sua infelicidade exceda 0 que a nogio de negatividade — por mais claborada que seja— pode acpi ol cu ces aconteceu nos diak 6 e 9 de agosto de 1945,Jcom os primeiros bombardeios atémicos, revelando sem controvérsias a catdstrofe inimaginavel, no. is como fato divino ou natural, mas_como fato humano, Fato que recolocou em questo 0 imagindrio inteiro e, com cle, a possibilidade de um sonho de catéstrofe que pudesse nos ajudar, como no século XVIII, a considerar a condigao humana além ou aquém do bem e do mal. Niio ha duivida de que as atuais variagoes sobre © tema da devastacdo procedem do desejo de imaginar, juntamente com a insensata esperanga de conjuré-los, os resultados ainda imprevisiveis de uma _situagio_cuja_complexidade _nosso, Pensamento nao consegue_alcangat: entre os campos de exterminio nazistas ou soviéticos ¢ as calamidades nucleares do mundo dito livre, sem mencionar a poluigio planetéria, haveré ainda sentido para a“nocio de escolha? Porém, ainda que se trate de uma dispersio de pontos de apoio essenciais — comparivel & que resultou da crescente incredulidade no fim do século XVII —, seu esclarecimento € completamente distinto. Hé devastagao e devastagio: a que hoje nos ocupa nio resulta, como no século XVIII, de catéstrofes naturais, mas de catistrofes pro- vocadas devido 20 menosprezo pelo equilibrio da natureza. Com ou sem razéo, desmesura ou excesso parecem jd néo_mais nos amedrontar, 2850. que receamos os efeitos mais ou menos Previsiveis de uma natureza ultrajada. A grande novidade agora € que, dia apés dia, os fatos vem, confirmar e amplificar esse medo. “Isso muda tudo: se 0 espetéculo da catistrofe natural incitou o século XVIII a sonhar com a catdstrofe a ponto de suscitar meditagées tio Portentosas como as de Sade, as catistrofes reais das_ultimas décadas_parecem_ter_levado-esse sonho as raias do possivel(Virada que destréi por completo o lirismo negador que, com sua perspectiva infinita, da época das Luzes até a nossa, caracterizou 0 imagindtio catastréfico. Nio sei se a ilustragao disso tudo pode ser en- ontrada nas intimeras ficgdes cinematogréficas ou literétias, frutos de uma mesma siderag em face da bomba nuclear, em que — sah rarissimas excegdes, como o filme On the beach (1959) ou a novela de Jean-Pierre Andrevon, uma lfetragao do imaginério catastréfico,) Nesse monde enfin (1975) —, 9 fim do mundo deixou, de ser representado, precisamente quando, pela rimeira vez, dispomos dos meios de provocé-lo. igualmente quando nos langamos na mai frenética especulagéo a respeito dos mi desastres que se prefiguram com a modernidade. Continua sendo verdade que o fato de se poder prefiguré-los nao suscita mais que imagens pre- vistveis, para nao dizer realistas, dando provas de sentido, também se poderia dizer que as atuais catdstrofes— epifendmends de uma relacto com o mundo cuja natureza essencialmente catastréfica desejamos ocultar —, nao 6 dete- ioram a pai real como atentam contra fazendo 0 sonho infinico para a fi nitude, E a pobreza do que chamamos de filme de catdstrofe 0 mostra com toda brutalidade dos produtos de grande consumo: incéndios de arranha-céus gigantescos, rupruras de barragens colossais ou inundagGes de arquiteturas subter- rlneas so apresentados como casos particulares para evidenciar, de modo mais pontual, o prego que 0 homem deve pagar por no ter querido prestar atengdo a0 mundo no qual vive. Mas, a0 mesmo tempo, para esconder que a evocagao dessas catdstrofes, apesar de parciais, serve para nos{divertir com a catastrofe nuclear|que, dora- vante, ameaca o planeta “ Inversio de perspectiva sem precedentes: pela ira vez, ao inyés de levar ao mais longinquo 0 imagindrio tra para_o limite mais_ préximo; também pela primeira vez, em vex de abrir 0 horizonte, ele o fecha, valendo-se essen- cialmente do que pode ser verossimilj de modo que as atuais encenacées da catdstrofe a simulam. para Ihe negar, antes de tudo, seu carter im- “Assim, reduzindo-se a extrapolacio de uma situagao-limite, tais encenagdes acabam por privar a catistrofe do alcance imagindrio que ela Sempre teve, bastando para isso suprimir aquela parte de desconhecido implicito de que ela era a portadora. Dificil me convencer de que nao assistimos af a uma censura progressiva do sentimento da catds- trofe, que, desde o fim do século XVIII, aparecia como negacio global da ordem d: i por ser ficticia, fornecia_a medida infinita de Tiberdade. Com o surgimento da situagao nuclear ea efetivacao do recalque do perigo da aniquilagao geral, essa forga esta sendo exaurida.. como a fonte mesma de nossa capacida se crer em socidlogos, filésofos e jornalistas, seria caracteristico da nossa época. Ao se interrogar com justeza sobre a comple- xidade desse novo “ Dai a forga de fascinagio da catéstrofe, impondo-se durante séculos como virtualidade realizada. Ocorte que, a partir do momento em que o real sequestra o imaginério, como acontece hoje, podemos nos perguntar se a poesia — semelhante & catéstrofe pela liberdade com que surge, impelindo rumo a loucura do infinito —, ainda pode encontrar, através da forma, 0 meio de nos contrapor ao indeterminado que hnos ameaga, Podemos inclusive interrogar se a forma — justamente por organizar 0 caos que nos funda, tal qual uma catéstrofe desejada — nao esta nos escapando. Da resposta a essas questdes depende tanto o nosso futuro quanto © da poesia, se for verdade que esta, como a catdstrofe, esta na origem do sentido. A meu ver, como a poesia nos faz sistematicamente “ver as coisas onde elas nao estio”, ela é a catéstrofe que ctia sentido. Foi o que me coube lembrar aqui ¢ agora, quando a prépria nogio de catdstrofe vem servindo de modelo a faléncia do sentido para, assim, bloquear todas as saidas, Mas, afinal, onde esto os nossos vigias? jento, uma evasfo que implica um 3 Ce eS a cc sR ne CS a oe ne eter eC an ee UML nee eer eR CON gee sce CoCr Cuero See desabamentos e toda sorte de cataclismos. Um desejo de fim do Ge aces cL CR Pa eee cued Depois da bomba atémica, porém, a paisagem sensivel passou a eee eee ie ¢80 como dado real, cuja tenebrosa evidéncia vem sendo dada pelos SUC ee mete Mg eo eae Ce cer ue mn eee Pen ct PE ee teen ore Cn a een eect Dg CE ecm Cn ent ei de privar a catastrofe do devir imagindrio que ela sempre teve e de Se gC can Pee ese representar os perigos que de fato nos ameagam e, impotentes para sonhar com 0 que nos excede, tornamo-nos resignados diante dos ee ee “ayonseie UDC %, Saag i RLU rr ENTRE © REAL E O IMAGINARIO

You might also like