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PARTE VI A voz da espécie Digitalizada com CamScanner Atabula rasa era uma visdo atrativa. Prometia tornar o racismo, o sexismo £0 preconceito de classe indefensdveis com base em fatos. Parecia ser um taluarte contra o tipo de pensamento conducente ao genocidio étnico. Almeja- vaimpedir que as pessoas resvalassem para um fatalismo prematuro causado Por males sociais evitaveis, Enfocava o tratamento dispensado as criancas, aos Poios nativos e aos desfavorecidos. Por isso, a tabula rasa tornow-se parte de uma secular e pareceu constituir a decéncia comum de nossa época. Mas a tabula rasa tinha, e tem, seu lado sombrio. O vacuo que pressupu- ‘hina natureza humana foi avidamente preenchido por regimes tories 6 hinada a dios, Bla perverte a educacio, a cragio os, Bla per fez para impedir seus genoci " beeear aa stv Atotmenta sas artes, transformando-as em formas d Seer tis que trabalham fora e 0s pais cujosflhos oe aS be poderiam “jado para eles, Ameaca tornarilegais as pesauisss a roaca Beye Nia 0 softimento humano. Seu corolério, 0 bom ee ee coon bs princfpios da democracia e por “um govern? es questdes de elabo- ‘nos para nossas deficiéncias cognitivas MOT a cses vides "0 de Politicas elevou dogmas tolos acim? da busca rezar para que A tibula rasa no é um ideal que tod ae = Ver mos desejat © = vida e ancichumana que Sa ods é ‘40 lade, Nao — ela é uma abstras! Digitalizada com CamScanner nega nossa humanidade comum, nossos dnteresses inerentes ¢ ossag réncias individuais. Embora tenha pretensGes de celebrar nossy ene © contrario, pois nosso potencial provém da interacio combinatérig ice fay dades maravilhosamente complexas, e nao da brancura Passiva de ing a raspada. a Independentemente de seus efeitos bons e maus, a tabul tese empirica sobre o funcionamento do cérebro, e tem de ser na verdade ou falsidade dessa hipdtese. As modernas ciéncias da Mente, cére, bro, genes e evolucdo cada vez mais estio demonstrando qu deira. O resultado & um esforco de retaguarda para salvar a tabula asa, desf. gurando a ciéncia e a vida intelectual: negando a possibilidade de obj jetividade € verdade, reduzindo questées a tolas dicotomias, substituindo fatos ej posturas politicas. a rasaéuma hips avaliada combas le cla nao & Verda. gica por A tabula rasa arraigou-se a tal ponto na vida intelectual que a perspectiva de passar sem ela pode ser tremendamente perturbadora. Em questdes que vo da criacao de filhos a sexualidade, dos alimentos naturais a violéncia, idéias que Parecia ser imoral até mesmo pér em questo revelam-se nao s6 questionéveis mas provavelmente erradas. Mesmo quem nao tem interesse pessoal em defen: der determinada posicao ideologica pode sentir vertigem ao saber que ess tabus estiio sendo violados. “O admirvel mundo novo que contém pessoas assim!” Estar4 a ciéncia rumando para um lugar onde o preconceito nfo é ml ‘isto, onde as criangas podem ser negligenciadas, onde o maquiavelismo éace- to, onde desigualdade e violéncia sao toleradas com resignacio, onde as pessoas so tratadas como maquinas? De modo nenhum! Desatrelando valores ampl. lamente compartilhados de dogmas factuais moribundos, a base racional desse s valores s6 pode tornarst ‘mais clara, Compreendemos por que condenamos o preconceito, a crueldade Digitalizada com CamScanner idades de seus filhos, que os : tendénci lue historias, melodias ¢ ros- araentes Si0 cONStTUCOES Socials arbitrétias, M; 8 ses largaret Mead, um icone do ae século xx, disse a ibut imo 0 4 filha que atribufa seu talento intelectual a «aus genes, € posso confirmar que esses casos de personalidade dividida sfo camuns entre 08 académicos.’ Intelectuais que negam publicamente que a inte- jgtncia € um conceito significativo tratam-na como extremamente significativa ensua vida profissional. Quem argumenta que as diferencas de género séo uma construgdo social reversivel no pensa dessa maneira quando da conselhos as proprias filhas, lida com 0 sexo oposto ou faz fofocas, piadas e reflexes sobre a vida em momentos de descontracao. penanosascer livres de tendéncias egoistas on q Reconhecer a natureza humana nio significa subverter nossa visio pes- sual de mundo, ¢ eu nao teria nada para sugerir em substituicio se assim fosse. Sigifica apenas tirar a vida intelectual de seu universo paralelo e reuni-la a Gincia e, quando ela for corroborada pela cigncia, reuni-la ao bom senso. A atemativa é tornar a vida intelectual cada vez mais irrelevante para os assun- tos humanos, transformar os intelectuais em hipécritas e todas as outras pes- soas em antiintelectuais. Os cientistas e os intelectuais piblicos nfo s4o as tinicas pessoas que tém Fensado sobre como a mente funciona. Somos todos psicélogos, ¢ algumas pes- Sus, sem os beneficios de credenciais, so grandes psicélogas. Entre elas esto ‘“Poetas e os romancistas, que se ocupam, como vimos no capitulo preceden- ‘s de criar “tepresentagées fiis da natureza geral”. Paradoxalmente, no clima ‘ttlectual de hoje os romancistas talvez tenham mais autoridade que os cien- "Sara dizer a verdade sobre a natureza humana. As pessoas mais refinadas Semecem das comédias de final feliz e dos romances acucarados nos quais Risa Tesolve a contento e todo mundo vive feliz para ee pid al : ‘thy, 8°? SOMO podemos notar, € esperamos que as ar °Sdolorosos dilemas da condi¢ao humana. si Mas quando se trata da ciéncia dos seres humanos, esse mesmo publico atte | nos Sentimentalismo! ica legitima nascida de observacées da 5 i ismo! A critica legiti umana é considerada “pessimismo”, € as pessoas esperam que as t©0- ‘pessimi sr Digitalizada com CamScanner las sejam uma fonte de alento sentimental. “Shakespeare nao tinhy - Scie, cia, ¢ eu também nfo tenho”, disse George Bernard Shaw. Nao foj uma eo nfs. drematogs Os Gientisty 10 requer que Usada, Poetas e romancistas defenderam muitos dos argumentos deste livro so de psicopatia, mas uma afirmacao da obrigacio de todo bom de levar a sério 0 ponto de vista de cada um de seus personagens do comportamento humano tém essa mesma obrigacio, e isso nj cles desativem sua consciéncia nas esferas em que ela tem de ser i com mais sagacidade ¢ elogligncia do que qualquer escrevinhador académicg Hla ter esperanca de fazer. Bles me permitem concluir 0 lvro rlembracy alguns de seus principais temas sem meramente repettlos. Vers asi cinco trechos extraidos da literatura que, a meu ver, captam parte das lies da ciéncias da natureza humana, Eles salientam que as descobertas dessa cénc devem ser encaradas no com medo ¢ aversdo, mas com o equilibrio eo dscer. nimento que usamos ao refletir sobre a natureza humana em todas as outra esferas de nossa vida. O cérebro é mais vasto que 0 céu Ponha-os lado a lado, E um conterd 0 outro, Facil —e voce junto O cérebro é mais profundo que o oceano Encoste-os, azul com azul, E um absorverd o outro Como sorvem as esponjas no balde O cérebro tem o mesmo peso de Deus Pondere-os, libra por libra, E diferirdo, se tanto, Como a silaba do som* * The Brain — is wider than the Sky —/ For — tain/ With ease —and you — beside// The Bra to Blue —/ The one the other will absorb —/ As weight of God —/ For — Syllable from Sound — wil Put them side by side —/ The one he the im is deeper than the sea —/ For — holdem Sponges — Buckets — do —// The Brin Heft them — Pound for Pound —/ And they will difer — if 572 Digitalizada com CamScanner uss primeias estrofes de "The brain is wid cin eee der than the sky”, de Emil e so expressam existente na visio de que : 2 ; ae ggebro? Nesse Seu poema, € em outros, Dickinson ref ial: reno m A refere-se ao “cére- : a” ou mesmo ’ i oe mo a “mente”, como se lembrasse aos leitores ‘alm: sa = 089 pensamento e experiéncia € uma porcéo de matéria i = periéncia 6 im, a cién- Hrrto sentido, esté nos “reduzindo aos processos psicolégicos de um am de de daatraente de menos de um quilo ¢ orga q meio. Mas que érgao! Em sua estar- ago i a complexidade, explosiva computagio combinatiaecapacidade simi de imaginar mundos reais e hipotéticos, o cérebro é, verdadeiramente, mais ‘céu. © proprio poema é prova disso. Simplesmente para compreen- cao em cada estrofe 0 cérebro do leitor precisa conter 0 céu ¢ visualizar cada um na mesma escala que 0 proprio cérebro. « estrofe final, com sua espantosa imagem de Deus ¢ do cére- como couves, tem intrigado os litres desde a publicacio do tendem como criacionismo (Deus fez 0 cérebro), outros co inventou Deus). A analogia com a fonologia — 9 Som dum eantineum sem emendas, uma silaba € uma ‘unidade demarcada de som — anteismo: Deus esté em toda parte ¢ em parte nenhu- ‘uma medida finita de divindade. “Abrecha “se tanto” pro e Deus podem, de algum modo, ser 2 mesma ticismo. Essa ambigiidade segurament™ é inten- onsiga defender uma tnica interpretagéo como sasto que 0 era compara apsorver omar Acnigmatic trosendo pesados poema. Alguns a en! como ateismo (0 cérebt sugere uma espécie de p: 1ma,etodo cérebro encarna sugere misticismo — 0 cérel «0isa — e, obviamente, agnost dina, e duvido que alguém ¢ seado a correta. Gosto de interpretar a estro} ‘templar seu lugar no cosmo, @ cer" ‘tigmas que parecem pertencer 4 brepe subjetiva, por exemplo, a io a impresso de ser umacent® ead patecem: inerentes a uma realidade 4! fsa oo Mas essa separagio pode SF 8 7 isna an oe : ta ndo achar que sao separados de nés Wife * pois nés somos nossos C& . Mas se estamos assim presos, Queixar, pois é mais vasta que © e™ mais Ph ao ™esmo peso que Deus. seo de que @ mente, 20 COn- as limitagdes ¢ depara com re-arbitrio fe como uma suge a altura atinge rma esfera separada, diving: ollv ao nosso conceito de cate de nés. Moralidade sie indepenaenrermente de ge um cérebro que NOS lise, ndo temos 573 Digitalizada com CamScanner O conto “Harrison Bergeron”, de Kurt Vonnegut, é tao transparente quan. to 0 poema de Dickinson & enigmatico. Comeca assim: Era o ano de 2081, e todos eram finalmente iguais. Nao eram iguais apenas peran, te Deus e lei, Eram iguais em tudo, Ninguém era mais inteligente que ninguém, Ninguém era mais bonito que ninguém. Ninguém era mais forte nem mais velog que ninguém. Toda essa igualdade provinha das 211", 2124 € 213* Emendas Cons. titucionais e da incessante vigildncia dos agentes do Nivelador Geral dos Estados Unidos.’ O Nivelador Geral imp6e a igualdade neutralizando qualquer vantagem herdada (e portanto imerecida). Pessoas inteligentes tém de usar ridios nos ouvidos sintonizados com um transmissor governamental que emite um ruido forte a cada vinte segundos (como o som de uma garrafa de leite golpeada por um martelo), para impedi-las de conseguir uma vantagem injusta com seus cérebros, Bailarinas tém de usar pesos feitos com chumbo de caca e cobrir 0 rosto com méscara para que ninguém se sinta mal por ver outra pessoa mai bonita e graciosa, Locutores de noticirio so escolhidos por ser portadores de defeito na fala, O heréi da histéria é um adolescente com miiltiplos talentos obrigado a usar fones de ouvido, éculos de grossas lentes onduladas, cem que los de sucata de ferro e coroas pretas em metade dos dentes. A historia fale de sua malsinada rebeligo. Sutil ou no, “Harrison Bergeron” é uma reducao espirituosa de uma falé- cia muitissimo comum. O ideal da igualdade politica nfo é uma garantia de que as pessoas so inatamente indistinguiveis, E uma politica de tratar as pessoas ¢™ certas esferas (justica, educagio, politica) com base em seus méritos individuals Seer ae See sejan above on eee Poliicasiqaednsistemicn ce oor ort on, ede enda ei tone por definicéo, so raros ¢ s6 em — oe sone eee Ce : fe, mente, é mais facil atingir a lgualiade ds oie, Ped Ee forcada nivelando por baixo (¢ assim P 574 Digitalizada com CamScanner seus piadistas desi; ae ignados, dos bobos de Shakespeare a Le voz as s que sao i : i diletantes como vo sido impromunciaveis em cfrculos ed caper eel de The Oni ninegut ¢ profissionais como Richard couse rue ores de The Onin, dio contiouidade asa tradi, cdo. A fantasi itopi ne — Sac ee — foi contada em uma farsa do tamanho as fantasias desse tipo foi narrada pesadelo do tamanho de um romance. O livro 1984, de G ae vivida descric&o de como seria a vida se as fa i oe se facetas repressivas da sociedade e do governo fossem extrapoladas p: publicagdo do romance, muitas n° com o mundo de Orwell: o eufemis catteiras de identidade nacionais, cme net e até mesmo, no primeiro comercial et 018M pc, Nenhuma outra obra de fic hilo das pessoas sobre quest6es do mundo real. __Temos em 1984 uma obra literéria inesquedivel endo umamern soe litica, devido ao modo como Orwell arquitetou 0S detalhes do fancionamento de 2 sociedade, Cada componente do pesadelo encaixava-se ros forman- nip todo rico e verossimil: © ern? oni ao meios de co’ “Semana Tg a vida privada, a Noviling»™ * ae jnuma filosofia nit Ne Menos conhecido do povo €° fato deo re" iéncia em 2 Bla é explicada @ 1 samara a uma mesa ¢ # governo, O’Brien. A filose ara o futuro. No meio século decorrido desde a ovidades foram criticadas por suas associacSes smo nos pronunciamentos das autoridades, as de vigildncia, dados pessoais na inter- de televisao para 0 computador Macin- 40 produziu tanto impacto na opi- nos oul guerra contra ini- mu stiante sequ Jo e doutrinado pelo -modernis- fia do regi’ 375 Digitalizada com CamScanner ta, explica O’Brien (sem usar esse termo, obviamente). Quando Wing ton obj que o Partido nao é capaz de concretizar seu lema — “Quem controla © passadg control © fururo; quem controla o presente controla 0 passado” — gina replica: Vocé acredita que'a realidade € algo objetivo, externo, que existe por si. Tam acredita que a natureza da realidade é manifesta, Quando vocé se ude pe ver algo, supde que todos os demais vem o mesmo que vocé. Mas eu Ihe afm Winston, que a realidade nao é externa. A realidade existe na mente humana, e¢ nenhum outro ugar. Nao na mente humana individual, que pode cometer err € de qualquer modo logo perece; apenas.na mente do Partido, imortal.* que é coletivo g O’Brien admite que para certos propésitos, como orientar-se no oceano, é titi supor que a Terra gira em torno do Sol e que existem estrelas em galéxias ds tantes. Mas, ele prossegue, o Partido também poderia usar astronomias altern tivas nas quais 0 Sol gira em torno da Terra ¢ as estrelas so porgdes de fogo alguns quilémetros de distancia. E embora O’Brien nao explique isso nessa cen a Novilingua é a suprema “prisio da linguagem”, “uma linguagem que pensa0 homem e seu ‘mundo’, Alligao de O'Brien deveria refrear os defensores do pés-modernismo. Bi nico que uma filosofia que se orgulha de desconstruir o instrumental do poder adote um relativismo que impossibilita contestar 0 poder, pois nega que € referenciais objetivos em relacio aos quais os logros dos poderosos possam avaliados. Pela mesma razo, o texto deveria refrear os cientistas radicais asseveram que as aspiracdes de outros cientistas a teorias com realidade objet va (incluindo teorias sobre a natureza humana) so, na realidade, armas Pé preservar os interesses da classe, sexo ¢ raga dominantes.’ Sem uma nogio 43 verdade objetiva, a vida intelectual degenera em uma Juta para saber quem melhor consegue exercer a forca bruta para “controlar 0 passado”. Um segundo preceito da filosofia do Partido é a doutrina do superorgan mo: “Vocé nao entende, Winston, que o individuo é apenas uma célula? O es8 tamento da célula é 0 vigor do organismo, Vocé morre quando corta as unhas?™ A doutrina de que uma coletividade (uma cultura, uma sociedade, uma ¢lass um sexo) € um ser vivo com seus proprios interesses ¢ sistema de crencas €st4 576 Digitalizada com CamScanner {igo de Winston e sua amante, Julia etesses do todo. A « de prazeres huma- Conversa particular, sexo + COI MeECOU na bus, sssimples —aciicar € cafe, papel brangy = de escrever, amigo. Mas no futuro no haverd es das mies a0 nascer, como se tira um ovo da Balinha. O instinto do sexo serd erra- dicado.(... Nao haverd disting fo entre beleza e feitira,! Asnovelas antiutéy ‘fer qualquer idéia iia for ea ia a an taz04vel quando moderada. Nao estou querendo insinuar que a preo- *’si0 com og intere; fi sses da sociedade ou com a melhora das relages huma- ej — i direcdo ao totalitarismo. Mas a sétira pode mostrar como icas, obviamente, recorrem ao exagero grotesco, Pode- Parecer aterradora com uma caricatura, mesmo se essa Passo em, conti Populares eae ROCKO de qu fang, MATBEM a que lentes dos asp Podem ter esquecido os aspectos negativos — neste caso, ‘¢ linguagem, pensamento e emogées sio convengées so- 0s engenheiros sociais tentem reformiéclos. Assim que fi- ectos negativos, nio precisamos mais tratar as ideologias * irads-As quais as descobermas factuais tem de ser dubdndinadas, B finale "og SS argu, ‘ente chegamos ao niicleo da filosofia do Partido. O’Brien refatou ™mentos de Winston, extinguiu todas as suas esperancas. Informou- a7 Digitalizada com CamScanner Ihe: “Se quiser uma imagem do futuro, imagine uma bota pisotean, humano — para sempre”. Préximo ao fim desse didlogo, posigdo que torna possivel todo esse pesadelo (e que, pod falsa o impossibilitaria): do um rox, O'Brien revela a pro lemos deduzi, se foe Como de costume, a voz arrasara Winston e 0 deixara sem saida, Além do mai ele temia que, se persistisse em discordar, O'Brien tornasse a girar 0 most Mas ainda assim no conseguiu ficar calado. Debilmente, sem argumentos nada para sustenté-lo além do horror sem palavras ao que O'Brien dissera ley tou ao ataque. “Nao sei—nio me importo. De algum modo vocés fracassardo. Alguma coisa 0 derrotara. A vida os derrotars.” “N6s controlamos a vida, Winston, em todos os niveis. Vocé esta imaginando que existe algo chamado natureza humana que se revoltard com o que fazemos se voltard contra nés. Mas nés criamos a natureza humana. Os homens sio infin tamente maledve' As trés obras que citei so didaticas e desvinculadas de qualquer época lugar existentes. As duas restantes séo diferentes. Ambas tém raizes em uma) cultura, um lugar e uma época. Ambas evidenciam a lingua, o ambiente ¢ as filosofias de vida de seus personagens. E ambos os autores alertam os leitores Para que nao generalizem a partir de suas histérias. No entanto, ambos 05 autores séo célebres por seu discernimento da natureza humana, e acredito nao Ihes fazer nenhuma injustica apresentando episédios de suas obras sob esse enfoque. q As aventuras de Huckleberry Finn, de Mark Twain, é uma fonte especialmen- te perigosa de licdes, pois inicia com o seguinte decreto do autor: “Todo aque: Je que tentar encontrar um motivo nesta narrativa ser processado; todo aquele que tentar encontrar uma moral sera banido; todo aquele que tentar encontraf uma trama seré fuzilado”. Isso nao impediu que por um século os criticos nots: sem o poder dual do livro. Huckleberry Finn mostra-nos tanto as fraquezas do Sul dos Estados Unidos antes da Guerra de Secesséo como as. fraquezas da nature za humana, vistas pelos olhos de dois bons selvagens que as vao encontrado em sua jornada pelo rio Mississippi. 578 Digitalizada com CamScanner seer Fa a festa com muitas imperfeicBes humanas, mas talvez momiea seja 2 origem da violéncia em uma cultura da honra. A cul- sor tonraé, a realidad, EN8 psicologia da honra: um conjunto de emo- cn ja lealdade @ familia, a sede de vinganga e 0 impulso de manter pore ‘ se puagio de valentia © valor. Quando desencadeadas por outros pecados inveja» ioso de violéncia, pois cada lado se vé incapaz de renunciar a vin- ‘clo pode ampliar-se em certos lugares, como 0 Sul dos Juxiria, auto-engano — essas emocdes podem alimentar dyculo vi z cqcontra 0 OUtTO: Oci gandos UnidOS- vo deparou coma culvara da honra em duas ocasifes, em rapida sucesso. imei foi quando entrou como clandestino em uma barcaca tripulada por we rrma ma-encarada” de beberrdes. Quando um dele estava prestes@ 65 na décima quinta estrofe de uma cangio obscena, irrompeu uma alter- pelarse .gem relativamente banal, ¢ dois homens prepararam-se para Iutar cago de oni (Bob, o grandalho do barco] pulou alto, bateu os calcanhares ¢ berrow “Ooopat atrevido e traicociro fazedor de cadaveres do Arkansas sem ‘ou o homem que chamam de Morte Sibita e Devasta- meio-irmao do célera, parente | Dezoito crocodilos ¢ Sou o mais forcudo, lei! Olhem s6 para mi 40 Geral! Filho de pai furacdo e mie terremoto, chegado da variola pelo lado materno! Olhem s6 para mim! um aril de ufsque so meu café da manhé quando estou em bos satide, um balde de cascavéis e um cadaver quando passo mal. Ras rus, abafo 0 trovio quando falo! Ooopa! Para trés, forgaexige! Sangue é o que eu bebo para matar a sede, €05 gemidos dos moribun- ‘os sio masica para meus ouvidos. Ponham os same soltar!”. (..-] boca [..] pulou e bateu os torno- opal! Baixern ‘cho com um olhar as rochas eter me déem o espaco que minha ‘olhos em mim, cavalheiros! E se c . i Prostrem e percam o folego, pois estou prestes Entio o homem que havia comegado o bate .cou a gritar assim: “Oo chegar! Me segurem na ol e fago ser los trés vezes antes de aterrissar [...], € come’ a esth para ‘mao na cara do sc me sacudo ¢ faco ae € se espalhem, pois o reino da triste : ]Botoa press as e260 no a olho nu! Sou 0 s fee sinto meus poderes acordando! [. eo a mordo um pedaco da lua € a ae a Me contemplem através do coure — ' le coracdo petrificado ¢ entranhas de ferro derretido! Massacrar comuni- ag “ies isoladas é meu passatempo nos momentos de 6cio, destruir nacionalidades to ue fago para ganhar a vida! A infinita vastidde do grande deserto americano be 579 Digitalizada com CamScanner € minha propriedade sem cercas, € enterro os mortos 1 aS minhas 4 Ooopa! Baixem a cabeca e se espalhem, pois o Filho Favorit a8 ito da Calami chegando!”."" Smiade eng Os dois andaram @ roda agitando os bragos ¢dertubaram os chapag outro, até que Bob disse, nas palavras de Huck: = deixa pra li, nfo ia ser o fim do mundo, pois ele era um homem que anes ia e nunca perdoava, por isso era melhor a Crianca tomar cuidado ‘Pos estava che. gando a hora, Ho certo como ele era um homem vivente, que teria de responder a ele com o melhor sangue de seu corpo. A Crianga disse que nenhurn homem “sperava mais que ele por aquela hora, ¢ faria 0 justo aviso ao Bob, agora, de que ‘nunca tornasse a cruzar seit caminho, pois nunca descansaria até chafurdar em seu sangue, pois essa era sua natureza, embora o estivesse poupando agora em aten- do a sua familia, se é que ele tinha uma." E entio um “sujeitinho de costeletas pretas” estatelou os dois no chao. De olhos Toxos € narizes vermelhos, apertaram-se as mios, disseram que sempre haviam respeitado um ao outro, e.concordaram em esquecer o passado. Mais adiante no mesmo capitulo, Huck nada até a margem e depara com a casa de uma familia chamada Grangerford. Huck é paralisado no caminho por Aes ameacadores até que uma voz, da janela, diz a ele que entre bem devager na casa. Ele abre a porta e dé de cara com trés canos de espingarda, Quando 0s Grangerford véem que Huck nao é um Shepherdson, a familia com quem tém uma rixa, acolhem-no, e Huck fica morando com eles. Huck deixa-se cativat Por sua vida refinada: a mobilia bonita, as roupas elegantes ¢ os modos requitt tados, especialmente do patriarca, o coronel Grangerford. “Ele era um perfeito cavalheiro, e toda a familia também. Era bem-nascido, como se diz, € i880 vale: tanto num homem como num cavalo.” : ‘Trés dos seis filhos de Grangerford haviam sido mortos na rixa, €© “_ vivente mais novo, Buck, torna-se amigo e protetor de Huck. Quando os 2° meninos saem para passear e Buck atira em um garoto Shepherdson, Huck P ; gunta por que ele quer matar alguém que nio Ihe fizera mal. Buck explict conceito de rixa: 580 Digitalizada com CamScanner pe xa € assim: um homem briga com outro ¢ mata ele; sore irmao do que morreu € mata o que tinha matado primeiro; depois os ues smo jos dois Jados tratam de matar uns aos outros; ai vém os primos conra 29 coisa — € Passa 0 tempo € todo mundo é morto e acaba a rixa, Mas 0 orado, Jeva um tempio.” ‘on muito tempo, Buck?” que sim! Comegou faz trinta anos, por ai. Houve confusao por gegpsio eae geste ja te «olha, ev acho cgusa de alguma coisas © ‘uma aco na justica para resolver, ¢ a sentenca foi contr? “homens, ento ele pegou € matou o homem que ganhou a aco —0 que um do nacurall «Bo que causou a Cor vente era esperado que ele fizesse. Qualquer um faria.” nfusio, Buck? — terra?” “pode ser — sei lé.” syfas quem foi que atirou? Foi um Gra “ora bolas, como € que et vou saber? Faz, muito tempo.” “Ninguém sabe?” “gh, sim, meu pai sa por que comegou 2 briga.”* ngerford ow um Shepherdson?” be, acho, ¢ alguns dos mais velhos: mas 4802 nao saber suck acrescenta que a rixa € mantida pelo senso de honra das duas familias: -Nio hé nena covarde entre os Shepherdson — nenhum, E nfo hé nenhum ro © Ieitor antevé confusto, ¢ ela BAO covarde entre os Grangerford também’ erdson, os Gran- demota a viz, Uma moga Grangerford foge com 5 rapaz Sheph terford saem furiosos no encalco dos dois, e todos os homens da familia Granger ford sfo mottos em uma emboscada. “Nao vou contar tudo 0 que aconteceu”, diz Huck “Ficaria engulhado de novo se tivesse de contar, Queria nunca ter ido para a marge , em naquela noite para acabar vendo uma cos to, Huck encontro\ a dessa." No decorrer do capitulo, portant 1u dois exemplos da cul- ‘ora sulista da honra. Entre a ralé, consistia em fanfarronada cinica, © €F3 ence tala por pura diversdo; entre os aristocratas, evav® a devastagao de duas fami: "Twain estava comentando a légica rm nosso estereuip0s das Clas voral nao apenas existe Das me centido com verborragis we em sua disputa igual li . Senavieader tragédia. Creio que 8 nad ia violéncia e como ela é encontrada ! las e das vulgares. De fato, a avaliagaO a disputa sé s empenham donha. du; 8S Classes: i, tm eh es: inverte-as; a ralé resolve SU al Ivar as aparéncias; os cavalheiro Mente se ido até a m sentido até uma concluséo me 581 Digitalizada com CamScanner Embora seja inteiramente sulista, a perversa psicologia da six Grangerford e os Shepherdson é bem conhecida na histéria e na e praticamente todas as regides do mundo. (Em particular a apresenta aos Grangerford foi comicamente reprisada no célebre relato Chagnon sobre seu batismo no trabalho de campo antropolégic deparou com uma aldeia ianomami em rixa com outra e se viu ac a entre g ‘mografia \cdo de Hud) de Napol ‘©, quando “uado por cies e cercado por flechas envenenadas.) E é bem conhecida nos ciclos de viola que continuam a ser encenados por gangues, milicias, grupos étnicos e resp taveis nagSes-Estados. A descricdo que ‘Twain faz das origens da violéncia en démica em uma enredadora psicologia da honra possui uma intemporalidad que, prevejo, a faré durar mais do que teorias da moda sobre as causas ¢ da violéncia. O derradeiro tema que desejo retomar é o de que a tragédia humana res de nos conflitos parciais de interesse inerentes a todos os relacionamen humanos. Acho que eu poderia ilustrar esse argumento com praticamente qual quer grande obra de fic¢o. Um texto literério imortal expressa “todas as prin

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