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OBSERVACGOES PSICOLOGICAS SOBRE O SELF-GOVERNMENT" A fungdio da Agencia internacional de educagao € a de favo- recer 0 desenvolvimento da instrugao e da educagiio exclusivamen- te pela via da informagio mtitua, Seu método proprio é, portanto, 0 da pedagogia comparada: sem tomar partido a favor ou contra qual- quer procedimento educacional, a Agéncia tenta fazer compreen- der por que cada um adotou essa ou aquela metodologia e a que resultados esta o conduziu efetivamente na pratica da vida escolar. Assim, cada um € 0 juiz dos fins que persegue e da maneira como estima té-los atingido, consistindo o papel de comparacao sistema- tica a que a Agéncia se dedica apenas em fazer o balango das aqui- sigdes em fungdo dos respectivos objetivos. Embora esta atitude, comandada pela objetividade cientffica, possa parecer & primeira vista pouco frutifera, ela acaba, na verdade, permitindo que cada um aproveite da experiéncia dos outros, mas acaba também consti- tuindo um melhor conhecimento das relagGes existentes entre os métodos to diversos do ensino ou da educagao e os ideais nao menos diversos que as organizagées escolares piblicas ou privadas se atribuem, em fungio de seu meio social. No caso do self-government dos estudantes, 0 papel da ‘Agéncia internacional de educagiio nao é, portanto, tomar partido a favor ou contra este método, mas mostrar por que ele foi adota- do ou rejeitado e que resultados ele trouxe. Essa imparcialidade € ainda mais necesséria visto que sob a expressio self-government 1. InJ. Heller... fe al.}, Le Self-Government a l’école. Genebra, BIE, 1934, p. 89-108. 4, ‘SopRS A FEDAOOGIA cconfunde-se uma multidio de procedimentos que vio da completa autonomia até a simples delegagio momentinea ¢ limitada dos poderes do professor a certos alunos nomeados por ele. Por outro Jado, muitos métodos incluem-se no self-government sem levar esse nome. O problema nao é, portanto, louvar ou criticar, mas mostrar ‘as relagdes existentes entre os muiltiplos tipos de self-government ‘ou de educagio antoritéria e os diversos objetivos atribufdos & edu- cago morale intelectual pelas ideologias dominantes. Em outras palavras, as verdadeiras conclusdes de nossa pesquisa sfio de ordem psicossociolégica, e essa andlise do esta- do atual do self-government poderé realmente servir a todos na medida em que possa vir a identificar 0 mecanismo psicolégico das diversas relagdes que unem os alunos aos professores. Com efeito, seja qual for o ideal social que se procura inculear nos alunos — do liberalismo mais individualista aos sistemas mais autoritérios —, encontram-se os mesmos problemas quanto d ago das geragdes umas sobre as outras. A simples autoridade do adul- to basta para conduzir a crianga e, sobretudo, o adolescente, 20 objetivo que nos propomos a atingir ou as organizagées de juven- tude sio indispensdveis? B, nesse caso, quais sio os resultados das diferentes combinagdes possiveis entre a cooperagio dos jo- vens e a coer¢o dos mais velhos? ‘Comecemos analisando as principais relagdes psicol6gi- cas em jogo no exercicio do self-government. Depois tentaremos compreender como elas explicam os principais resultados do método. Por fim, veremos como essas relagées sZo utilizadas ou utilizéveis em vista dos diversos tipos de educago moral, inte- lectual e social. Quer consideremos que a consciéneia moral e a razio pro- vvém de tendéncias inatas ou so inteiramente devidas & ago da sociedade sobre 0 individuo, 6 evidente que o exercfcio da moralidade ¢ o da légica supdem a vida em comum. Cada grupo social caracteriza-se, com efeito, por um certo niimero de regras (Ose3va0O8s PICOLOGICAS SOBRE O SELF-COVERNIENT us morais e de maneiras de pensar obrigat6rias, que os individuos se impem mutuamente porque cada um foi levado por outros a respeité-las. Mas, se mesmo os aspectos mais gerais dessas regras morais ¢ légicas devem-se a uma consciéneia humana independen- te da sociedade, esta nem por isso é menos necesséria para dar um contetido concreto aquela e para obrigar o individuo a se submeter. Dito isso, devemos invocar um certo ntimero de fatores psi- colégicos para compreender 0 funcionamento e os resultados do self-government. Em primeiro lugar, como é de fora que o individuo recebe as regras ou a obrigagao de a elas obedecer, é bvio que a evolu- ‘so da crianga néo consiste apenas no florescimento progressivo de suas aptidées inatas, mas, sobretudo, numa socializagio real que transforme qualitativamente sua personalidade. A sociedade, com efeito, nfo se limita a povoar seu espirito, ela também con- tribui para formé-1o e para lhe dar uma estrutura, Do period ini- cial, durante 0 qual o bebé, por ainda ndo saber falar, nada conhe- ce da realidade social — exceto as tendéncias instintivas que 0 impelem a procurar o outro ¢ a imité-lo—, até 0 estado adulto, no qual as regras morais e légicas est parece emanat dos préprios individuos, assistimos a uma con- versio gradual do individuo. Na medida em que as regras conti rnuam the sendo exteriores, a crianga — ainda incapaz de real- ‘mente socializar sua conduta e seu pensamento — nfo consegue de modo algum situar-se no mesmo plano que os outros individu- 08, ela permanece dominada por um egocentrismo inconsciente e espontineo, que é a atitude natural do espirito em presenca das, realidades nao assimiladas. Com efeito, assim como 0 homem, antes de compreender as leis do mundo extemno, acreditava que 0s fendmenos estavam centrados nele mesmo [homem], ao invés de cle mesmo se situar num universo objetivo e independente do eu, da mesma maneira, antes de interiorizar as leis do mundo so- cial, o individuo considera o grupo em fungdo de si mesmo, ao invés de se situar entre os outros num sistema de relagées recf- procas e impessoais, Do ponto de vista moral, esse egocentrismo é bem conhecido. 116 Sones A Feaacoata Nas relagdes entre as criangas © os adultos, ele se manifesta pela dificuldade que os pequenos tém de compreender 0 porque das re- gas e obedecé-las. Nas relagSes entre as proprias criangas, ele apa- rece como um obsticulo & coortenago, Por exemplo, quando brin- ‘cam com bolas de gude, os pequenos, antes dos 6 ou 7 anos, aplicam ‘as regras cada um & sua maneira ¢ inclusive acreditam poder ganhar todos ao mesmo tempo, por ndo se preocuparem com 0 aspecto rnormativo desse jogo social, A socializagao ainda é apenas superti cial eas regras em nada modificam a arbitrariedade do prazer indivi- dual. Mas esse egocentrismo permanece inconsciente e cada umn acre- dita de boa fé que todo o mundo pensa como ele. (O mesmo ocorre do ponto de vista intelectual. Por um lado, quando os interesses do eu esto em conflito com as normas da verdade, o pensamento prefere inicialmente a satisfagdo & objetivi- dade: donde as «pseudo-mentiras», a fabulagdo e, de modo geral, 08 jogos de imaginagao ou jogos «simbdlicos» dos pequenos. Por outro lado, quando, nas suas conversas ou discussoes, a crianga tenta compreender o outro e se fazer compreender, observamos um certoniimero de deformagies sistemiticas devidas ao egocentrismo: incapaz, ainda de se colocar do ponto de vista alheio, o individuo no comego no consegue nem expor sem equivocos seu pensamento nem aprender o dos outros sem assimnilé-lo ao seu. Ble ndo sabe, portanto, nem discutir nem refletir,e isso na medida em que a re- flexao é uma discussdo intera que tempera a afirmagao pessoal imediata confrontando-a com a obje¢o possivel dos outros. Mai do que isso, € toda a estrutura do julgamento e do raciocinio que est mais ou menos condicionada pelo egocentrismo e pela sociali- ‘zagiio do pensamento. Com efeito, a definigdo e a estabilidade dos cconceitos dependem em parte de sua utilizagio coletiva. Por outro lado © sobretudo, a l6gica dag relagdes supde a reciprocidade e, ‘enquanto o egocentrismo domina o espftito, a crianga esté exposta ano compreender o manejo das relagdes mais usuais (um peque- no poderé dizer que tem um irmio, mas nfo que sew irmio também possui um; ele saberd designar sua diteita, mas nfo ado interlocutor 2.Ner J Piaget. Le agement moral che enfant, cup: «Les roles du jeu, Pris, lean, 1932 {0 Julgamenio roca da cringe, $80 Paulo, Mestre Jou, 1977) (QasenvAgds PSiCOLOGICAS SOORE 0 SELF-COVERNMENT 7 sentado na sua frente ete) fato de a crianga ainda nto ter interiorizado as regras soci- ais exteriores a ela néo é, portanto, algo destitufdo de importineia: isso se traduz sob a forma de um egocentrismo inconsciente ¢ es- pontineo cujas repercussées morais e intelectuais so consideré- veis, Como, portanto, 0 individuo se liberta desse egocentrismo para socializar sua conduta e seu pensamento? Isso nos remete os ‘outros fatores psicol6gicos cuja existéncia tem de ser evocada para compreendermos o mecanismo do self: government. O primeiro processo de socializago € naturalmente cons- titufdo pela agao dos pais, ¢ dos adultos em geral, sobre o espitito da crianga. Essa agio € eficaz na medida em que esta sente pelos ‘mais velhos um sentimento sui generis feito de amor e de med © respeito, Denominaremos de coer¢do social essa pressio espi- ritual (¢ 2s vezes material) dos grandes sobre os pequenos e de respeito unilateral essa espécie de respeito que o inferior sente pelo superior e que torna possfvel a coergdo. E quais sio os efei- tos do respeito unilateral? Do ponto de vista moral, o respeito unilateral leva a crian- ga a considerar obrigat6rias as regras recebidas dos pais ou dos mais velhos. Seja porque todo dever se origine desse processo, ou Porque decorra de outras fontes, é incontestével que qualquer or- dem proferida pelas pessoas respeitadas traduz-se, na conscién- cia dos pequenos, sob a forma de uma obrigago imperativa, Assim se explica o sucesso da autoridade. Os resultados indiretos dessa situagdo silo to faceis de compreender quanto seus efeitos imediatos: na medida em que a moralidade € adquirida de fora, cla permanece heterSnoma e produz uma espécie de legalismo ou de «realismo moral», no qual os atos nio sio avaliados em fun- «40 das intengbes, mas de sua concordéncia externa com a regra*. Do ponto de vista intelectual, o respeito unilateral toma igualmente possivel uma coereo do adulto sobre © pensamento da erianga, e essa situagdo contém tanto um aspecto positive como 3. Ver Pitre Bovt, Les condition de 'oligation de conscience, Année psychologiqe, 1912, 44 VerJ. Piaget, op, cit, exp I: La contrainte ste ct le ssisne mora aspecto negativo, este dltimo sendo muito pouco conhecido pela maioria dos educadores. Por um lado, o que sai da boca dos adultos € imediatamente considerado verdade; por outro, essa verdade de autoridade no apenas prescinde de verificago racional, mas tam- bém retarda freqtientemente a aquisigfio das operagées da légica, que supdem oesforgo pessoal e o controle miituo dos pesquisadores. ‘Mas existe um segundo processo possivel de socializacio, aliés ligado ao primeiro por uma série de intermedirios (ambos 9s processos talvez sejam inclusive indissociveis): ele é consti- tufdo pela ago dos individuos uns sobre os outros quando a igual dade (de fato ou de diteito) suplanta a autoridade. Nesse caso, a coercdo desaparece dando lugar & cooperaciio, ¢ 0 respeito torna- se mtituo. Ora, embora a cooperagao nunca se desvencilhe comple- tamente de toda coergao e embora o respeito no possa chegar a uma total reciprocidade, o segundo processo define um ideal cujos. efeitos so qualitativamente diferentes dos da coergiio. Enquanto que esta tltima tem por resultado essencial impor regras e verda- des ja elaboradas, a cooperagio (ou as tentativas de cooperagio) provoca, ao contréio, a constituigdio de um método que permite a0 espirito superar a si mesmo incessantemente e situar as normas acima dos estados de fato. Do ponto de vista moral, a cooperugio leva nfo mais & sim- ples obediéneia as regras impostas, sejam elas quais forem, mas a uma ética da solidariedade e da reciprocidade. Essa moral caracteri- za-8e, quanto & forma, pelo desabrochar do sentimento de um bem interior independente dos deveres externos, ou seja, por urna pro- _gressiva antonomia da consciéneia, prevalecendo sobre a heteronomia dos deveres primitivos. No que tange 20 contetido, certas nogbes fun- domentais, tais como a da justica, devern a esséncia de seu desenvol- vimento a cooperacao gradual entre igiais, e permanecem quase que por completo & margem da agiio dos adultos sobre as criangas (com freqiiéncia, é inclusive a despeito do adulto que aparecem os primei- 10s sentimentos do justo e do injusto)*. Do ponto de vista intelectual, essa mesma cooperaciio entre 5, Ver J. Pnget, op. cif, cap. II: « La coopération et le développemeat de ta notion de os individuos leva a uma critica métua e a uma objetividade pro- gressiva. Cada sujeito pensante constitui, com efeito, um sistema proprio de referéncia e de interpretagdo, e a verdade resulta de uma coordenagdo entre esses pontos de vista, Pensar em fungdo dos outros é, portanto, substituir 0 egocentrismo do ponto de vista pr6- prio e os absolutos ilusérios da coergo verbal por um método de estabelecimento de relagdes verdadeiras, que garante néio apenas a compreensio reefproca, mas também a constituicao da propria ra- 20. A esse respeito, o produto essencial da cooperagio niio é outro senio a «légica das relagdes», esse instrumento de ligagio que per- mite & crianga libertar-se simultaneamente das ilusGes de perspec tiva mantidas pelo egocentrismo e das nogdes verbais devidas & autoridade adulta mal-compreendida, Além disso, 0 respeito mti- tuo, no plano da cooperagao intelectual dos individuos, conduz a uma espécie de «moral do pensamento», ou seja, a observancia de uum certo niémero de regras, por exemplo, o prinefpio de no-con- ttadigdo (a obrigagio de permanecer fiel as afirmagGes anteriores) — do ponto de vista formal —c a concordancia com a expetiéncia objetiva — do ponto de vista real. Em suma, no campo da légica bem como no da agéo, a vida em comum e a solidariedade dos individuos impéem uma série de obrigagdes especificas, bastante diferentes das que resultam da simples autoridade. Para compreender 0 mecanismo psicolégico das diversas formas do self-government é portanto essencial situar-se sempre do triplo ponto de vista do egocentrismo dos individuos, da coer- 40 dos mais velhos € da cooperagao entre os iguais. O self: government 6 um procedimento de educago social que tende, como todos os outros, a ensinar os individuos a sair de seu egocentrismo para colaborarem entre si e a se submeter a regras comuns. Mas esse procedimento e suas diversas variagées impli- cam numa série de combinagdes possiveis entre ambos os pro- cessos, de coergiio e de cooperacio, cujos efeitos to diferentes sobre 0 individuo acabamos de constatar, Sao essas relagdes com- plexas entre 0 egocentrismo, 0 respeito unilateral © 0 respeito miituo que, a nosso ver, explicam a diversidade dos resultados obtidos pelo método, como tentaremos demonstrar. ‘Soars 4 recxaoau u Pela descricdo das experiéncias realizadas, as respostas a0 nosso questionério evidenciam a exiséncia dos processos psicol6- gicos descritos acima. Em primeiro lugar, no que tange & idade, as respostas obti- ddas mostram que, embora possa ter alguma aplicago desde os 7 ou 8 anos, 0 método do self-government s6 adquire seu pleno rendi ‘mento a partir dos 1 anos, aproximadamente. Bssas observagSes pedag6gicas convergem de maneira notével com o resultado de estudos psicoldgicos recentes sobre a vida social da crianga. Com efeito, até os 7 ou 8 anos, on seja, durante toda a pequena infincia», a erianga & pouco suscetivel de cooperagio, ‘mesmo nos seus agrupamentos espontineos: ela oscila entre 0 egocentrismo € 0 respeito pelos grandes, ou melhor, ela os alia ‘numa combinacio sui generis. & assim que, no easo dos jogos ‘com regras (0 jogo de gude, por exemplo), os pequenos brincam juntos sem, no entanto, realmente cooperar: cada um interpreta & sua maneira as regras fornecidas pelos mais velhos ¢ todo 0 mun- do ganha a0 mesmo tempo, 0 jogo nio tendo ainda uma significa «40 social’. A partir dos 7 ou 8 anos, ao contrrio, hé vontade de ‘cooperagio: as regras comegam a ser unificadas € o controle nni- ‘tuo passa a substituir a obedincia aos grandes. ‘A evolugtio da nogo de justiga ¢ tipica a esse respeito: ‘enquanto que para os pequenos 0 justo quase se confunde com a vontade dos grandes, as idéias de igualdade ¢ de reciprocidade ppassam a se impor desde o final da primeira infincia. Torna-se, portanto, possivel, a partir dessa idade, comprometer a crianca com a administracio da classe dando-lhe um certo niimero de responsabilidades. E, como a evolugdo psicolégica ni € coman- dada apenas por fatores internos, como ela depende estreitarnente do meio externo e da atitude dos adultos, ¢ incisive posstvel ace- Terar essa evolugio nas escolas cujo método de trabalho repousa, sobre a atividade da crianga, 6 eed. Pog op cit, cap. Les ngs je. Onsen ies scoucicas SoMRE 0 se covenmUENE Por outro lado, se # idade de 11 a 13 anos foi identificada por nossos colaboradores como o periodo mais favordvel para a pritica do self-government & porque, desde os 10 ou 11 anos, a ‘cooperagiio gradual das sociedades espontineas de eriancas atin- ge seu pleno desenvolvimento e gera uma obedigncia refinada As rogras decorrentes do respeito mituo. O estudo das regras do jogo é nuit caracteristico a esse respeito. Quando se pede acs peque- ‘hos que inventem novas regras, eles se opGem a qualquer modifi- ‘cagio dos modelos sagrados transmitidos pelos mais velhos, © que no os impede, como acabamos de ver, de, na prética, tomar todas as liberdades em relagdo a essas regras consideradas obri- gatérias. Os grandes, ao contrrio, desde 0s 10 ou 11 anos, admi- tem as inovagbes, mas s6 se submetm a uma nova regra se ela for aceita pela maioria do grupo. Nesse caso, eles a colocam em prética com uma escrupulosa lealdade e punem com rigor as pos- siveis infrag6es: sua submisslo ei é,portanto, sinda maior quan- do essa lei emana do grupo dos iguais e quando a personatidnde ‘auténoma de cada uma participou de sua elaboragiio. Ao compa- ratnigs 0 comportamento das criangas de 11 ou 12 anos corn © dos pequenos, encontramo-nos, portanto, em presenga de um novo tipo de estrutura social: respeito miituo fundado sobre @ autono- mia dos iguais engendra a reciprocidade ea obedincia mais pro- funda as regras, enquanto que o respeito unilateral fundado sobre ‘a heteronomia dos pequenos em relagdo aos grandes apenas man- tém uma obediéneia superficial. Essas observagGes, junto com aquelas que se pode fazer sobre a arbitragem espontinea em caso de conflito na aplicacio das regras do jogo, mostram bem que, desde a idade de 11 ow 12 ‘anos, a crianga torna-se capaz. de self-government & margem da vvida escolar. E portanto natural que a escola possa utilizar esse progresso da cooperagto para dela tirar vantagens educativas que ‘a coergio ¢ 0 respeito unilateral nfo permiter, ‘Quanto as diferengas de sexo, 0 estudo dos mesmos jogos sociais parece mostrar que as meninas so, nas idades correspon- deates, mais obedientes ¢ mais conservadoras que os meninos, 08, quais liam a uma maior iniciativa um maior espirito jurfdieo. Os rea 122 Soon PEDAGOGIA {jogos com regras préprios das meninas siio mais polimorfos e me- nos coerentes que 0s dos meninos, e nfo devido a uma modificagdo contfnua das leis e da jurisprudéncia, mas, a0 contrério, pela falta cde um interesse sistemitico por esse aspecto da vida social. Tam- bbém af os dados fomecidos por nossos colaboradores convergem com os da observacio psicolégica. Os diferentes tipos de relagdes entre professores e alunos explicam, por outro lado, tanto a extensdo varidvel do self: government segundo as escolas como, sobretudo, a diversidade dos sistemas de self-government No que tange & extenso do método, nunca se sublinhou 0 suficiente © quanto as relagGes sociais vinculadas & disciplina ‘moral eram paralelas &s que determinam a disciplina intelectual. A vida social constitui, com efeito, um todo indissocivel, ¢ em cada uma de suas atividades, por mais abstratas que sejam (tal como o estudo da matemiftica ou da fisica), a crianga e o adoles- cente podem oscilar entre o egocentrismo do pensamento, a sub- missio & autoridade do adulto (no caso particular, & autoridade do discurso ou da convicgfo) e a livre pesquisa de personalidades autdnomas colaborando umas com as outras. Isso considerado, 6 evidente que a extensio ou o sucesso do self-government, no pla- no da conduta moral do estudante, dependem mais do que se pen- sados métodos empregados no plano intelectual. Nas escolas onde a énfase € colocada principalmente sobre o ensino verbal, e onde a autoridade do professor torna inttil o trabalho de pesquisa —a crianga sendo essencialmente receptiva —, € bvio que ser mais dificil generalizar a utilizago do self-government e este s6 terd sucesso nas classes mais adiantadas, ou nas fungdes & margem da propria vida da classe (a administragiio material). Ao contrétio, na medida em que, no teseno do trabatho escolar, hé lugar para a verdadeira atividade da crianca, ou seja, para alivre pesquisa con- junta, essa espécie de self-government intelectwal constitufdo pela educagao ativa da raza favorece evidentemente 0 sucesso do self- government moral que the € paralelo, A extensio deste tltimo método ser, portanto, completamente diferente numa escola em que exista a intengio de que seu espfrito penetre o conjunto das relagdes sociais, inclusive as relagdes propriamente intelectuais. Percebe-se, assim, o quanto as questdes levantadas pela pratica do self-government relacionam-se com o problema cen- tral da psicologia pedagdgica: o da ago dos individuos uns sobre 08 outros, Essa ago constitui uma totalidade indissocivel, tanto intelectual como moral, e se estiverem dados todos os intermedi- frios entre a coergao ¢ 2 cooperag%o serd imposstvel praticar si- multaneamente um método de pura autoridade num dos dois pla- nos, intelectual ou moral, ¢ um método de autonomia e de cola- boragiio no outro. ‘Mas, embora a vida social repouse sobre uma unidade dos diversos processos espirituais bem mais profunda do que costu- mamos imaginar, ela comporta também uma diversidade de es- truturas e de relagdes que explica, por outro lado, a multidao das formas do self-government. Essa diversidade decorre das combinagGes possfveis entre 2 coergio social (fundada no respeito unilateral) e a cooperagao (respeito mitvo). Podemos distinguir aqui pelo menos trés gru- pos de combinagdes, que inclusive interferem entre si. Temos de considerar, em primeiro lugar, as relagGes entre 0 professor ¢ 0 estudante: a esse respeito, sdo possfveis todas as transigées, como bem notou M. Ferrigre, entre a monarquia constitucional, na qual © adulto limita-se a confiar certas fungdes & crianga, e uma demo- cracia igualitétia em que o professor desfruta exatamente dos mesmos direitos que seus alunos Existem, portanto, todos os in- termediaiios entre o sistema que faz da cooperagio um simples coadjuvante da obediéncia e aquele que procura suprimir toda coergio em prol da reciprocidade. Mas podemos nos perguntar até que ponto, nos sistemas extremos deste tiltimo tipo, prest: gio do adulto age implicitamente. Para analisar psicologicamente estas dltimas formas do self-government, convém portanto co- hecer exatamente sua hist6ria: nos casos em que os estudantes acabaram adiitindo a igualdade integral expressamente deseje- da pelo adulto por um respeito unilateral inconsciente por este iiltimo, a estratura do grupo é, na verdade, mais dependente da autoridade do que pareceria; ao contrério, pode haver mais coo- 18 peragio verdadeira do que pareceria numa organizagdo onde os proprios estudantes decidiram reservar para 0 adulto uma situa- Ho diferente da deles, Em segundo lugar, € preciso considerar as relagdes entre irmios mais velhos e caculas. Em toda instituicdo social infantil, aestrutura que se transmite de geragiio em geragiio (por exemplo num jogo coletivo com regras tradicionais), 0 cagula que recebe as regras dos mais velhos experimenta em relagdo a estes um sen- timento decorrente do respeito unilateral, de tal forma que as or- dens do mais velho, bem como as do adulto, tornam-se obrigaté- rias para a consciéncia do cacula. B a esse prestigio dos grandes que se deve, em grande medida, a permanéncia das regras, da ‘mesma maneira que a gerontocracia é um fator de conservagao nas sociedades adultas elementares. Esse elemento néo deve ser desconsiderado na compreensio do self-government: 0 sucesso do escotismo, por exemplo, explica-se em grande medida pelo equilfbrio que ele garante entre a cooperagdo entre iguais e a obe- digncia aos mais velhos, podendo-se, portanto, encontrar todas as nuangas psicolégicas nos escoteiros — entre 0 respeito miituo nas diversas idades e 0 respeito unilateral votado aos mais velhos e ao adulto. Em terceiro lugar, ainda que as diferengas de idade nao imponham necessariamente as variagdes de estrutura a que aca- bamos de aludir, novas combinagdes so possiveis segundo o grau de «cefalizagaio» do grupo. Mesmo entre coetiineos, os estudan- tes podem preferir escolher um lider absoluto a um presidente parlamentar, e a autoridade do Ifder pode decorrer de suas quali- dades pessoais ¢ nao da diferenga de idade, Ha af uma terceira causa de diferenciagées, que pode se somar as precedentes (quando 0 prdprios lideres esto submetidos aos mais velhos e estes aos adultos), ou simplesmente se superpor. Percebe-se, em suma, que se combinarmos entre si as dife- rentes relagdes psicossociais que ligam os adultos e as criangas, ‘os mais velhos e os cagulas, ou os dirigentes e os dirigidos, de- sembocaremos numa variedade de formas de self-government tio grande que cada ideal pedagdgico pode encontrar nesse método [USSEAVAGUES PSICULUGILAS SUMRE O SBLE-GUvEsMEaE 122 um instrumento dtil. Quer se busque consolidar a autoridade e a obediéncia fazendo uso da cooperagao como de um simples co- adjuvante, quer se busque, ao contrério, suprimir toda obediéncia em prol da reciprocidade e do respeito miituo, ou quer se tenda para um equilibrio entre o respeito pela autoridade ¢ a recipro. dade na autonomia, a cada um desses tipos de estrutura social pode corresponder uma forma de self-government. Passemos por fim & questiio da justiga retributiva ou das ‘Sangées. Também nesse caso podemos distinguir os efeitos diver- gentes dos tipos opostos de relagGes sociais constituidas pela co- ergdo e pela cooperagio. O respeito unilateral, fonte de heteronomia, engendrae legitima aos olhos da consciéncia a idéia de sangio sob sua forma mais acentuada: a sangio expiatéria, que faz corresponder ao ato delituoso uma angio proporcional, mas sem relagio de contetido ou de qualidade com a prépria falta. Ao contrétio, a cooperagao, que repousa sobre a autnomia, coloca em questo 0 valor moral da idéia de sang e tende a substituir a punic&o propriamente dita por um sistema de medidas de reci- procidade que atestam simplesmente a ruptura dos lagos de soli- dariedade em que consiste o ato culposo. E assim que, nas formas do self-government onde a coergao social desempenha um papel preponderante, as sangGes diferem pouco do que sio no exercicio da pura autoridade adulta, e quanto mais a cooperacio prevalecer sobre a coer¢io, mais a sangdo se confunde com a expressao dire- ta da desconfianga coletiva (ou da confianga, em caso de recom- pensa): 0 culpado é simplesmente afastado dos cargos honorificos, das responsabilidades e até, no limite, privado de seus direitos de cidadio, ou seja, momentaneamente exclufdo do grupo cujas re- gras ele violou. Neste ultimo caso, a reciprocidade € suficicnte para motivar a sangdo, sem que intervenha necessariamente a idéia da punigdo. Mas, insistamos, todas as nuangas so possfveis, dada a multiplicidade das relagGes sociais que interferem no seio do grupo escolar, Assim, na medida em que as criangas, quando prati- cam hé pouco tempo 0 self-government, continuam imbuidas do espirito autoritério no qual foram criadas anteriormente, elas po- dem impor, aos colegas faltosos que so chamados a julzar, puni- 126 Sone 4 pepacoata ‘ges mais severas do que os préprios adultos aplicariam, durante um perfodo inicial mais ou menos longo. i A andlise dos resultados obtidos por nossos colaboradores na pratica do self-government confirma 0 acerto das interpreta- ges precedentes, No que tange & educagdo moral, pode-se dizer em uma pa- lavra que o self-government contribui para desenvolver a0 mes- ‘mo tempo a personalidade do aluno e se espfrito de solidarieda- de, Nao ha nisso nenhuma contradigao. Com efeito, a personali- dade de maneira alguma se confunde com o eu e seu egocenttrismo: ela é 0 eu na medida em que este impde a si mesmo uma discipli- na, ou seja, na medida em que ele aceita e encarna as normas coletivas. Nos métodos fundados sobre a coeredo ¢ apenas sobre © respeito unilateral, contudo, a disciplina permanece por muito tempo exterior ao individuo: embora aceita pela ctianga, ela nfio adere ao seu eu e s6 dé lugar a uma obediéncia legalista sem ade- sii profunda. Enquanto acoergdo permanece exterior ao espitito, as condigdes sto desfavoriveis tanto para 0 desenvolvimento da personalidade como para o da solidariedade, Estando submetido uma coergdo vinda de fora, 0 individuo ndo atinge a autonomia da disciplina interior que caracteriza a personalidade e, por falta de interiorizagao das regras, ele 6 sai aparentemente de seu egocentrismo, em vez de sentir-se solidério a todos. Ac contrétio, a disciplina préptia ao self-government & ao mesmo tempo fonte de autonomia interior e de verdadeira solidariedade. Sendo obra dos prOprios alunos, ela € concebida por cada um deles como sendo em parte coisa sua: ela favorece asim a interiorizagéo das normas, que permite ao individuo adquirir estatuto de personali- dade. Mas, por isso mesmo, ela cria entre os individuos um lago bem diferente daquele que resulta da simples obediéncia comum: uma solidariedade interna ou «orginica», tanto mais forte quanto as personalidades diferenciadas concorram para o mesmo fim € se sintam responsdveis pela permanéncia do lago social. Disso decorrem essas observagées de nossos colaborado- res sobre 0 maior senso de responsabilidade, 0 progress no autocontrole, a formagao do carter, que acompanham o desen- volvimento da solidariedade. f claro que esse processo dé lugar a imimeras deformagdes. Ou a pressio do grupo prevalece sobre a cooperaciio e a crianga inspira-se em demasia na disciplina im- posta pelos adultos, exagerando-a inclusive (donde os julgamen- tos severos demais dos tribunais de estudantes, ou essa seriedade excessiva que ameaga, segundo vérias respostas, sufocar a alegria infantil), Ou eno, a personalidade desabrochando répido demais, 6 individuo se afirma desmedidamente e rompe, por excesso de zelo, o equilibrio necessétio & cooperagio. Mas 0 exercicio pro- longado da solidariedade e do controle mituo constitui precisa- mente o remédio para esses inconvenientes: nada ensina mais umanidade do julgamento e a verdadeira modéstia do que ocon- tato cotidiano com iguais exercendo sua liberdade de expresso e possuindo o espirito de camaradagem. Do ponte de vista da educagiio intelectual, o self-government desenvolve qualidades paralelas ao que € o respeito mituo no plano moral: a compreensio recfproca e, sobretudo, a discussio objetiva, aquela que consiste em se colocar do ponto de vista alheio para pesar 0s prés ¢ os contras das opinises contestadas. Também aqui, 20 lado do indubitsvel enriquecimento resultante da coope- ago das criangas do ponto de vista dessa «moral do pensamen- to», que é a ldgica ou a pesquisa da verdade, certas deformagdes continuam sendo um perigo: a tagarelice, por exemplo, e a prima- zia da palavra sobre a ago. De maneira geral, é necessdrio insistir, a propésito da edu- cago moral e da educacao intelectual, sobre os perigos do self- government quando ele nao se desenvolve numa atmosfera de ‘compreensio psicolégica, de espfrito experimental e de reflexdo critica, em suma, de bom senso, Nada € mais precios peito que a confissio das dificuldades encontradas ou mesmo as descrigdes de fracassos, contidas em algumas das respostas que chegaram até nés. Elas mostram com toda clareza até que ponto a ideologia doutringria ou as reformas bruscas demais podem com- alesse res- 128, Sone A PeDAGOGIA prometer os resultados de uma experiéncia que, quando se desen- rola normalmente e sem pressa, como um processo natural, 6 sem- pre fecunda. Um pouco de psicologia pratica deve prevalecer, aqui como em qualquer situagao, sobre toda a teori Examinemos, por fim, a titulo de conclusio, os efeitos do self-government no terreno da educagio social e especialmente da educagio cfvica e politica. E a esse respeito, sobretudo, que se co- loca o problema das relagGes entre 0 self-government ¢ 0s respecti- ‘vos objetivos que cada grupo social ou nacional se propée atingir: © método do self-government € especialmente adequado a certos ideais sociais ¢ politicos, ou pode ser utilizado seja qual fora estru- tura das sociedades adultas dominantes em fungo das quais as criangas sio educadas? De acordo com as respostas de nossos cola- boradores, parece evidente que a diversidade mesma das formas de self-government toma os métodos educacionais agrupados sob esse nome suscetiveis de setem utilizados na maioria dos sistemas de organizagdo social atualmente em vigor nas sociedades civil das. Sem diivida, a pratica do self-government orienta o espirita da juventude numa dirego oposta A da gerontocracia, pois repousa sobre a autonomia relativa dos estudantes. Mas, além do fato de que a gerontocracia integral nfo constitu o princfpio de nenhuma grande civilizagdo contempordnea, nao se pode dizer que o self: government prejudique o respeito pelos mais velhos, j4 que esse respeito pode desempenhar um papel essencial em intimeras apli- cages do sistema (como no escotismo, por exemplo, onde um per- feito equilfbrio foi encontrado entre a cooperagio entre os iguais ¢ o respeito pelos Ifderes). Pareceria que o self-government & sufi entemente plistico para poder ser utilizado em qualquer forma de organizagao social ou politica, Com efeito, quer se trate dos diversos tipos de democracia liberal ou das méltiplas variedades de regimes autoritérios, o self- government dos estudantes continua sendo uma preparagio para a vida do cidadao, tanto melhor quanto mais o exercicio concreto © @ experiéncia mesma da vida cfvica substitua a aula te6rica e verbal. O self-government pode, portanto, adotar tanto a forma parlamentar e democratica (0 que foi denominado «a democracia QnstRvnCORs PSICOLSGICAS SoMRE 0 SELF-GOVERNMENT 129 SERRACORS PSCOLOCICAS SOBREO SELA-GovERNMENT 129 na escola») quanto insistir no principio dos Ifderes. O essencial nil € a estrutura varidvel ou a morfologia exterior do grupo, mas esse fato geral de que, nos métodos de autonomia e de coopera- , a juventude constréi a sua propria educagao, Além de seu valor de exereicio, esta iniciago dos jovens as dificuldades da vida cfvica ganha, nos perfodos conturbados, uma significago particular, Dentre as numerosas causas de desequilibrio social, existe uma que pode permanecer latente em tempos normais, mas ue se junta a todas as outras em tempos de crise: é o antagonis- mo difuso entre as sucessivas geragdes. O self-government, habi- (wando primeiro a crianga a colaborar com o adulto, ao invés de ‘he obedecer sem mais nem menos, outorgando depois ao adoles- cente poderes cada vez mais amplos, acaba reduzindo esse anta- gonismo ao invés de intensificé-lo. Enquanto que a coergo ¢ a submissio forgada ameagam provocar a revolta, a colaboragiio com 0 adulto ¢ a educagao da juventude por ela mesma prepara- ram uma inseredo gradual das geragGes vindouras nos quadros Dreparados pelos mais velhos e, sobretudo, uma transmissio nor- ‘mal — de uma geragao & outra —dos miiltiplos valores que cons- tituem a heranga social. E essa continuidade de espirito e de es- trutura é 0 objetivo perseguido por toda educagio cfvica, seja qual for a forma da sociedade adulta, Bis porque 0 método do self: government pode prestar grandes servigos a todos.

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