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Se aaa) Pay aig Tay ZL LY aU PUMA OY Pererernne Sear UCU MENTS Aree ORUL a eet Are eLearn UMS MC estes PACU SU Ce CUCM Ud Pec CMT a Ra Pa ray Sey Pree TT ia ait) CER came PECL y TUL CLL MUL inn AT eo, 1 Prius TT OANIELA Marto PU Can a SUS UL) Pree as A Re sy alert Una ELIZANDRA SOUZA GOT Ly PCC Re TT Cae ae ae TATE XAVIER GLAUCIA TAVARES GRACE PA DT ee Da at EL llr , aera RET aa UC AICI AUy a Dera nnn ng Srrracet cst sc al Pr eee OD gen Pe oe eer A tre een fer CS ese RCS) NCR umn ATL COLUM Tt Sanremo TT RA orn TS Roc nT Mame Ee oe ie la SSE Ts nT Pett TEU rita PTT aa nee fae CTT CTT a ot Ra 5) ARN pia MARIZE VIEIRA DE OLIVEIRA PH NIK DTT a mM ena oC m iat Taal oT er mr erat PT MOA Ac AaMMeLCOR TT eNO One Ut PYRE OA Ertan Pema n orem MEST een crys SO LC PRTC eee TT Perish meailaeaer eu O Ly aoe Ta UT a ec ae Ceres a1 rere eat) ar HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA XPLOSAO| FEMINISTA ARTE, CULTURA, POLITICA E UNIVERSIDADE coptight © 2b elon Buarque de Holanda afi aaa edo oAcordo Ortorficda Lingua Portugues de ‘Gon gue en mvigr no rail 209 Capa rejoin "Tereza Betinard Prepared Julia Passos checagem {lea Miguee eto ‘Angela das Neves ‘Adana Moreira Pedro sea i arco tenon a pala» dang mers agen, ‘Slain ool 808 {ooxs] ‘Fotos dretos desta edigto reservados 8 ua Bandeire Palit, 702.32 S80 Paulo — ‘Teleone: (3) 37072500 ‘rorcompanhiodasetas. comb ‘vw blogéseompanhia.com.be {eevboolccom/ecmpanhladsseta5 Insagram com/companhadsemss titercomicialetas Para Maria, Pée duas jullas, pela parceriae pelo afeto Para Cata, Manu eduas Cia, no momento certo ‘Quando nao indicada a fonte, a citagao faz parte de depoimentos recothidos especialmente para este livro. SUMARIO 48 Introdugaa: grifo émeu PARTE 4: A NOVA GERACKO POLITICA Rua — com Maria Bogado Rede — com Cristlane Costa Politica representativa — com Antonia Pellegrino 288 PARTE 2: PALAVRA FORTE 38 Nas artes — com Duda Kuler 105 Nappoesia — com julia Klien 38 Nocinema 156 Noteatro — com Julia de Cunto 79 Namisica— com ula de Cunto e Mara Bogado 205 Na academia — com Andrea Moraes e Patrica Siva de Farias com Brea Sarmete Marina Cavalcanti Tedesco PARTE 2: OS FEMINISMOS DA DIFERENGA a4 Falo eu, professore, 79nos, mulher, brancae csgenero — (por Heloise Buarque de Hollanda age Feminisme negro — por Cidinna da silva e Stephanie Ribeiro 301 Feminismo indigena — por Marize Vieira de Olvera 25 Feminismo asitico — par Caroline Rica Lee, Gabriela Akemi ‘Shimabuko e Lats Miwa Higa ‘Transfeminismo — por Helena Vieira e Bia Pagliavini Bagait eminismo lésbico — por rica Sarmet gs ‘Feminismo radial — por Hlosa Samy ¥eminismo protestante — por ila Dias Mariano PARTE 4: AS VETERANAS OU UM SINAL DE ALERTA SOBRE UMA MEMORIA NAO PSCRITA ile Soe} Swell Carneiro Jacqueline Pitenguy Malu Heilborn Schuma Sehumaher Maria Betinia Avila Branca Motera Alves Notae (Grits das imagens rnrroougio OGRIFO E MEU Grifar quer dizer sublinhar,ressaltar, chamar atengio para. Sou uma feminista da terceira onda. Minha militinea foi feta na academia paride um desejo enorme de mudar a un vetsidade, de descolonizar a universidade, de usar, ainda que de forma marginal, o enorme capital que a universidade tem. ‘Nunca me iteressei por uma carreira académicatradicio- nal Seni, desde muito cedo, como minha missio intelectual, pesquisare abrir espago para novas vozes, novos saberes € novas politica. Meu trabalho com mulheres, especialmente na década de sgt, foi parte important dessa tarefs. "a pougufssime tempo, por volta de 2035 eu areditava que 4 minha geragao teria sido, talver, altima empenhada na lata das mulheres. até que um vozero, marchas, protestos,campa- nhas na rede meninas na rua se aglomeraram, gritando diante da ameaga de retrocesso que representava a aprovagao do Pro- jeto de Lei 30092033, que difcultaria 0 acesso de witimas de ¢estupro ao aborto legal Level um susto, Um susto alegre. Mais slegte ainda ao pereeber que aqueles nao seriam gritos passa- eis. Anovidade ea fo repentina quanto forte. Pelo menos, ninguém menor de dezoito anos precisavadisfarcar seu femi- nismo, como era toni das simpatizantes do movimento no zmeu tempo. Elas chegaram e falaram, quiseram, exigitam. O tom agora é de indignacdo. £, para meu maior espanto, suas ddemandas feminists esto sendo ouvidas como nunca Penso em Grace Pass®, artista, dramaturga, que para mim é o {cone desta geracio de jovens feministas. Grace, pura quali- dade © agudeza, consegue ativar o sentimento, 0 desejo, a revolta, a garra e a rlatividade deste momento como poucas. B la que assim expressa o diferencial das minas: “Historinhas ‘eu tenho mil, poderia contar varias, mas nao é isso que importa Importa se tessoa, importa se te importa, se me exporta para ti, leitor, importa se me ouve, se me escuta, se move tuas batidas, se acelera, se retarda" Bu ouvi, me eneantel e quis/ quero registrar esse momento, ‘Mas sou uma feminista da tereeira onda. Meu jeito ¢ minhas estratégias nao sio as que vejo em cena aberta. Como vou falar por, ou mesmo sobre, essa geragao que me tomou de assalto? O feminismo hoje nao é 0 mesmo da década de s980. Se naquela poca eu ainda estava descobrindo as diferencas entre as mulhe- res, intersevcionalidade, a multiplicidade de sua opressio, de suas demandas, agora os feminismos da diferenga assurniram, vitoriosos, seus lugares de fala, como uma das mais legitimas disputas que tém pela frente. Por outro lado, vejo claramente a existéncia de uma nova geracao politica, na qual se incluem as feministas, com estratégias préprias,criando formas de organi- acho desconhecidas para mim, autonomas, desprezando @ ‘mediagdo representativa, horizontal, sem liderancas e protago- ‘nismos, baseadas em narrativas de si, de experiéncias pessoais ‘que ecoam coletivas,valorizando mais aética do que a ideologia, mais a insurgéncia do que a revoluc2o. Enfim, outra geracao. ui me aproximando e ouvindo, ouvindo muito. Ficou logo claro para mim que este livro nao seria escrito tranquilamente em primeira pessoa, Fu precisava de um formato editorial que cenguadrasse, com um minimo de justiga, 0 que eu percebia, nas ruas, nas redes, nas artes. ‘Bu precisava trazer aquela poténcia coletiva e horizontal, suas vozes, para dentro deste projeto. Pensei,ento, num livro- ocupagio. Que venham as novas feministas e me atropelem, me falem, me contem. Mas olivro tinh que ser meu, disse ‘Alice Sant Anna, minha editors, poeta feministaetambém vor deste ivr, LembreientRo de uma outa palavracorrente nessa _geragto digital: compartlhar. isso. Neste livro, compartilho pesquisa e a escrta de todos 0s textos com as novas feminis- tas, Eserever com nao ¢ fil, como ficou comprovado durante arealizagdo deste trabalho. & uma outra experiencia de eserita, ‘ica, Densa. Afetiva, Bastante confltiva. Emprestei um pouco ‘da minha experiéncia, das minhas leituras, das minhas lutas. Recebi muitos saberes, perspectivas, vivencias. 0 resultado é uum texto feito de gros, alerts, discordéncias,identifcagtes. Quanto 20 conteido, procurei produzir um panorama da quarta onda feminista, examinando 0 contexto dos novos ati- vismos nas rues €na rede, dos véris feminismos da diferenca, do feminismo na poesia, nas artes, na misica, no cinema, no teatro ena academia, Perccbi ao longo da pesquisa, uma inex plicavel lacuna de meméria na hist6ria da tereeira onda fem- nista no Brasil. Abr, entlo, uma éltima parte, ue chamei de ‘As veterans’, com depoimentos de liderancas importantes daquele momento. A idela da criagdo desse quase anexo, com apenas sete depoimentos, entre tantos ausentes, no preten- deu dar conta dessa historia. Veio como um alerta para a ‘urgéncia de um trabalho nesse sentio. uplicadoo ivro, me explico como feminist, ou seja, de que Iugareufalo, como me encontreicom as feministas de hoje. ‘Como muitas mulheres da déeada de 1960 que participaram. dos movimentos estudantis, da UNE, dos crcs? eda cultura de coposigdo & ditadura, militei em vérias frentes, mas, inicial- mente, nio me identifiquet diretamente com as lutasfemini tas, que surgiam na Buropa e nos Estados Unidos levantando 1 bandeira "o pessoal é politico” e defendendo o direito ao corpo, 20 aborto, liberdade sexual e ao fim das desigualdades 8 no trabalho e no contexto familiar. No Brasil, a coisa foi dife- rente. A maioria dessas bandeiras confrontavam, diretamente, ‘varios dogmas da Igreja, uma das principsis instituigBes pro- sgressistas na época, Assim mesmo, as iniciativas feministas ‘conseguiam se articular com a Igreja ou com o Partido Comu- nnista que, da mesma forma, era um parceiro importante na Juta contra o regime mailitar, mas se tornava um complicador para o movimento de mulheres. A Igreja, por sua recusa a0 ‘borto e liberdade sexual, eo Partido Comunista, peta insis- ‘éncia numa luta mais ampla na qual nfo cabiam as demands singularizadas das feministas (0 resultado foi uma fragilizagao inicial do nosso feminisimo, {que mostrava certo recuo em relagio a0 feminismo internacio: nal, concentrando-se, prioritariamente, nas questoes trabalhis- tas, na demanda por ereches, no controle da violencia domés- ticae no enfrentamento das desigualdades sociais entre homens mulheres a0 longo da década de 1970. "Nesse momento, e ainda sob a pressio da ditadura, eu ta balhava com a cultura de resistencia, ou marginal, e ndo me sentia particularmente suscetivel as lutas das mulheres. Erm 1982, antes dos movimentos por eleigdes diretas, fui fazer um 1és-doutorado sobre as relagbes entre politica e cultura na Unt versidade de Columbia, nos Estados Unidos. Nio se passaram trés meses € a ficha cai. Me descobri feminista a 7666 quild- metros do Brasil. Meu caso ndo foi inico. Estudos* mostram {que a maioria das femninistas da chamada tereeira onda passou ‘um perlodo fora do pais, seja por exlio, por estudos ou por circunsténcias desfavoraveis de trabalho e criago no Brasil {dos anos de chumbo, 0 que haveria na cultura das diferengas ro Brasil que nio se mostrava solo firme para as ideins fer nistas ou raciais? Essa pergunta fica em aberto. Por outro lado, na época da transigao democratica, que cobre as décadas de 1980 ¢ 1990, 0 feminismo nos surpreendeu “ ao construir fortes articulagdes com instituigdes politicas & ‘organizagbes nao governamentais. Esse movimento procurava, sobretudo, 0 uso de ferramentas institucionais para pressionar ‘a criagao ea aprovacdo de politicas piblicas que favorecessem. as mulheres. ‘No final dest lvro, vemos, nos depoimentos das veteranas, a atuagao feminista que, jem 3085, se mostrava viva e atuante 1a campanha pelas Diretas J, na formago do Conselho Nacio- nal dos Direitos da Mulher e pelas Delegacias Especializadas no ‘Atendimento & Mulher. Nas eleiobes de 1985, a maioria dos par- tidos apresentou propostas encaminhadas por grupos feminis- as. Bm 1988, 0 Lobby do Batom, no contexto das decisoes da Assembleia Constituinte, se desdobrou em mobilizacdes por todo o pais e aleancou grandes conquistas, Na academia, lutou- -se pela institucionalizacto dos estudos feministas ede género. Foi nesse espaco que coloquei meu desejo e meu ativismo. De volta 20 Brasil apés meu periodo na Universidade de Columbia, cheia de entusiasmo ¢ pilhas de e6pias de livros e artigos da produgio académica das mulheres daquele momento, desenhei o projeto de um nécleo de pesquisa de género na Escola de Comunicagao da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UeR}}. Em vao. Levado ao Conselho da Esvola, 0 projeto {oi recusado por uma razio interessante: a érea de Comunicaco ‘no seria adequada para o desenvolvimento dos estudos de sgénero. Em vio, também, a maior parte do material contido nas rminhas tantas cépias. Pelo menos no campo dos estudos lterd+ , @ertica feminista angle-saxa parecia nao “encaixar", nao oferecer os instrumentos analticos ideals para o estudo das relagdes de poder entre homens e mulheres no Brasil. Bsse apa rente empecilho transformou-se numa paixio interpretativa, © entao mergulhei nas figuras matriarcais nordestinas, na pes- dquisa sobre as amas de lite, nas leituras regionalistas de Norte Sul do pais e suas especificidedes riquissimes. Detxei a acade- 5 americana para tras, seus modelos institucionais e analiti- 0s, ¢ inieiei um momento muito feliz de trabalho no ctec. 0 ‘cise era o Centro Interdiseiplinar de Estudos Culturais, um guerda-chuva dissimulado para a pesquisa de género, raga, classe, imigragdo e tudo mais que no eabia, segundo o Conse- tho mencionado, na enigmatiea érea de Comunicacio. Foi no cisc que organizei a Coleco Quase Catélogo, mapea- mento de mulheres em areas como cinema, cinema mudo € artes visuais. Foi ainda no clzc que, com Lena Lavinas € comité da Fundagdo Carlos Chagas, eriamos, em 99 8 Revista de Estudos Feminist, atualmente sediada no Centro de Filoso- fia e Ciencias Humanas da Universidade Federal de Santa Cata- rina (CFI UFSc). Foi Id que organizel o seminario ZY nosotras, ‘Latinoamericanas?", um encontro em busca das perticularida- des e horizontes de nosso feminismo. Estudava e dava cursos sobre relacoes de género, um termo novo naquele momento. ‘Tempo bom, Conselhos nacionais e estaduais avancavam na defesa de diteitos, oncs e apoio a mulheres proliferavam, 05 estudos de género se ampliavam (ou se infiltravam?) nas versidades. Jean Franco, minha orientadora, feminista pro- ‘essora na Universidade de Columbia, defendia com unhas eden- tes o “direito de interpretar”. "No quadro no qual se desenvolviam os estudos feministas, 05 discursos sobre identidade foram progressivamente conquis- tando posigdes mais flexiveis, passando agora a se assumir como estudos de génevo, Essa mudanca se dé por volta de 1975, ‘quando a antropologia comecava a questionar as narrativas de Marx, Engels, Freud e Lacan, Foi nesse impulso que Gayle Rubin enfrenta Lévi Strauss ¢ usa, pela primeira ver, o termo género, afirmando a existéncia de um sistema de sexo-género associado ‘a propria passagem da natureza paraa cultura. Gaye ofereca ali elementos pera a futura elaboragao do conceito de género ¢, ‘mais perturbador ainda, j enfrentava o pressuposto da hetero- 36 normatvidade. Nao € por acaso que Judith Butler demonstra frequentemente sua admiragdo ¢ mesmo compromisso com 0 trabalho de Gayle Rubin. Mas texto da autora que mais me ‘marco foi o artigo “Pensando sexo: Notas para uma teoriaradi- cal da politica da sexualidade’, publicado em 984, no qual a autora afirmava a necessidade da separacio analitica entre sénero e sexualidade, propondo que o sexo, enquanto vetor de opressto, atravessa todos os modos de desigualdade socal, como classe raga, eticidade ou género. facil percebero feito inaugural e provocador dos textos de Gayle Rubin parao fem: rnismo histéieo, hoje pereebido como branco ou univers ‘iver aquele momento foi um prvilégio. Lembro-me de meus modelos teéricos se reformulando a cada letura, da minha perplexidade com a abertura de caminhos a partir do encontro com novas teorias, novos ententamentos, novos compromissos. -Mas nada se compara com o choque produzido pela che- sada do livro This Bridge Called my Back: Writings by Radical Women of Color, oganizado por Cherrie Moraga e Gloria Anzal- ® (© rétulo “Peminismo para os 99%", presente no manifesto, remete a uma simbologia nascida dos protestos de Occupy Wall Street. Nas pracas ocupadas, os manifestantes se diziam contra 0 1% de individuos que detém a riqueza global. ‘A Greve Internacional de Mulheres foi convocada em mais decinquenta paises no dia 8 de marco. No Brasil, mobilizacées ‘ocorreram em mais de sessenta cidades, entre elas, 2 capitas, [Na pégina do Facebook das artieulagdes do “8M Brasil”, as organizadoras discutiam a dificuldade de aderéncia diante da realidade socloeconOmica do pals e enfatizavam as diferentes possibilidades de participacio: “Parar por um dia as atividedes de cuidado é uma forma de ressignificar 0 conceito de greve, ‘que ao longo da hist6ria esteve vineulado somente ao trabalho produtivo. Queremos visibilizar também o trabalho reprodu- tivo e nao remunerado que nés mulheres desempenhamos" Apesar das difculdades, as mulheres lotaram avenidas com ‘oF lis, simbolo do movimento feminista. De acordo com Analba Telxelra, ativista da Parada Brasileira de Mulheres e do Instituto Feminista para a Democracia, “quem esta parando 0 ‘mundo é 0 feminismo, nao vemos outros movimentos com a ‘mesma forca. Estamos artieuladas com mulheres do mundo todo, e esse fortalecimento do movimento feminista mundial muito importante" ‘Mulheres de diferentes grupos e bandeiras se uniram no ito de Margo brasileiro, dando o tom da pluralidade do pro testo, como é perceptive! no depoimento de Mbo'yjagua', repre sentante do Conselho das Mulheres do Mato Grosso do Sul, no Facebook: "Nossa luta ¢ divulgar prineipalmente a violéncia contra as mulheres indigenas, o genocidio que esta prolife- * rando no Mato Grosso do Sul. Estdo exterminando os povos {ndigenas. Entio, a minha vinda para c4 6 para demonstrar a disctiminagio que sofremos e, mais do que isso, que estamos na lista de exterminio"** {até aqui, temos © panorama de uma insurreigdo relativa- ‘mente recente, mas ainda é arriscado pensar essas manifesta- bes e dicebes como fundamentalmente novas, mesmo que a estrutura e 0 potencial comunicativo das redes tragam uma varidvel importante em suas possibilidades de abrangéncia e inovagio dos diseursos politicos. Nesse sentido, ¢ interessante revsitaro trabalho de Charles Tillye Sidney Tarrow sobre a trajetria do contronto politico, ‘que, de forma recorrente, se revela como um reaprendizado social de agdes de protesto. Uma leitura dessa trajetéra vai mos- ‘rar uma visivel transmissio de saberes nas formas de inventar politica. black blocs, por exemplo, vistos muitas vezes como um fendmeno politico novo, trazem forte marca zapatista em seus formatos e processos performaticos. ‘Ainda que os protestos de 2013 tenham, sem diivida, nos sur preendlido, para uma avaliagio mais criteriosa dessas manifes- tages ¢ fundamental que se examine mais atentamente a hist6- ria dos movimentos coletivos e sua dinémica de inovactes politicas socials. Esta sim, sempre surpreendente e fascinante, ‘Marla Bogedo doutoranda em teenologas da comunicago testis pela Escola de Comunicago da UF, mesma instiulgto na qual se formu em ‘zuiovsul, Tem mestado em itestra cultura econtemporaneldade, Coe- ito a Revita Beira entre ois €or. Teve poeraspubliedos nas revistat modo de war & ca ¢ Mallamargene, na coletines Cader de CEP@ na nto ogi altomar, orguninada por Kata Mace 2 REDE (COM CRISTIANE COSTA Ainda que a forea das ruas nto possa ser atribuida integral- mente as redes soca, a web sem dvida foi um fator estaté- sco central das marchas feministas. Nunca as tiicas € a riltineia das mulheres foram tio potencializadas e produzi- zam reagdes ealianeas na escala que se vé hoje. 0 fato é que as redes socias, desde sua popularizaglo na <éeada de 2010, sio 0 mecanismo mais importante de mobil- zacio politica. O Twitter, por exemplo, fol eriado explici mente para a militancia, Teve ineio com o programa TxT40b, criado nos Estados Unidos para, através do celular, organizar rmanilestagbes contra aconvencdo nacional do Partido Repu- blicano de 2004. Seu desdobramento, o Twitter tal como o conhecemos, foi langado dois anos mais tarde e manteve esse DNA aivst, tendo sido o prinipalinstrumento das manifes- tagdesiranianas de 2009 enas inglesas de ox. Um pouco mais tarde, 0s “indignados” espanhéis proclamaram sua fé na uto- pia da cidadania conectads. Surgiw a categoria smart people, defini pelo Comité Invisivel como “receptors egeradores de dela, servigose solugbes" ‘As atividades poiticasna rede so milkplas eno necessaria- ‘mente voltadas apenas para apbesdietas Mulla vezes slo pen- sadas como mecanismo de presso dante de instiuigdes estabe- Tecias. plataforma de mobilizago Avaaz, por exemplo, prope ‘uma relagdodieeta com a politica representacional. Criada em 48 2007, ela duplicou o niimero de membros no Brasil logo apés junho de 2033. Em 2036, contabilizava 8 milhoes de membros no pais. A plataforma colhe assinaturas para pressionar autorida- ‘des, de forma que, além do resultado imediato de trazervisibili- dade a uma causa e levantar debate sobre ela, ainda mantém um. foco nos efeitos da esfera politica representativa, (© mais comum, entretanto, nio € o uso das redes para a presso democritica, como 0 modelo Avaaz.O recurso mais uti- lizado pelos novos ativismos insurgentes é claramente aquele {que privlegia 2 autonomia ea acdo direta entre pares. Este sim 6 0 grande poder das redes. Em seu livro Redes de indignagdo e esperanga: Movimentos sociais na era da internet, Manuel Castells, firma, de forma categorica, que “a construcSo autnoma das redes sociais controladas e guiadas por seus usuarios €a grande transformagao social no século 200"? ‘Ainda segundo Castells, a conexfo entre a internet e 0s movimentos soeiais em rede é profunda, na medida em que seus atores comungam uma cultura especffica, a cultura da autonomia, matriz cultural basica das sociedades contempor’- reas. Neste sentido, 0s novos movimentos sio claramente dis- tintos dos movimentos de protesto. Sdo essenclalmente movi- ‘mentos culturais, que permitem a um ator social tornar-se sujeito a0 definir sua aco segundo seus proprios valores € interesses, independentemente das insti ( grau de autonomia da descentralizagao das redes abriu um ‘vasto campo de estratégias inesperadas de mobilizacao e comu- nicagio politicas, Entre elas, est20 as perspectivas capazes de mobilizar a expressio individual, assim como @ erosio parcial entre 0 piblico eo privado, que podem ser vistos como o cerne da criagdo de modulagoes mobilizadoras estimuladas pela estru- ‘ura das redes. A internet fornece ainda um modelo de plata- forma de comunicagao que permite acriagdo de umm novo padrao organizacional ariculado através da polinizaglo erwzada, da con sulta mitua e da retroalimentagio. £ importante observar que «ste padrio de comunicagf teve um efeitoparticularmente pos tivo para individuos com baixarenda, nos movimentos de “mino- rias,epara.aai politica em pases em desenvolvimento. ‘Nosso feminismo jovem confirma essa regra. Em outubro 4 2015, no ealor dos protestosfeministas, o Facebook angi ‘ontmero de 744 milhdes de usuérios no pas, conectandotrés de cada quatro internautas brasileiro. Verfiamos em janeiro de 2016 na extelra do Boom de 2035, a enorme quantidade de paginas que tratam do feminisimo com diferentes linguagens abordagens, Os nimeros de curtidasjé se mostravam surpreen- dentes: Feminismo Sem Demagogia (884075), Lugar de Mulher (75202), Feminismo Radical (54451), Feminismo de % (45972), Feminismo na Rede 2023s), Preciso do Feminism Porque (17384), entre outras ‘esse cendrio, o feminismo negro jé se destacava em 2016 com diversas piginas de alta vsiilidade, como o Geledés Ins- tituto da Mulher Negra (348680) — hoje, so mais de 60 mil seguidores. Existem centenas de piginas com niimeros meno- res de eurtidas, mas ainda consideravelmente expressivas e que vém crescendo desde entlo.Esses nimeros denunciam, de imediat, dois fatores: a demanda reprimida das vores femini- nas no espaco piiblico e seu aleance politico. [Apesar de ter se constituido antes da popularizaglo da internet, o Geledés ganhou escalae maior repercussio a partir de sua entrada na rede, Criado em 1988, om a miss¥o de com- bater o racismo, o sexismo, a violéneia contra a mulher € 8 hhomofobia, 0 Geledés pereebeu rapidamente a forga das rnidias ecriou um dos mais influentes portais do movimento feminista. Acompanhado por homens e mutheres, negros ¢ brancos, 0 portal divulga desde publicagdes propris, como 0 “Guia do enfrentamento do racismo institucional”, até repor- tagens e artigos slectonados da grande imprensa edo.campo 8 twérico feminista. 0 espago de articulagdo das questoes de sgénero e racials no Brasil, que tem Sueli Carneiro como uma das fundadoras, anuncia: “A comunieagio ¢ um diteito ‘humano e, a partir dessa perspectiva, o Programa de Comuni- cago do Geledés compreende o tema como uma questao vital ‘para os movimentos sociais em gerale para as mulheres negras ‘em particular, pois, além de instrumento de visibilidade, a ‘Comunicacao é tratada como um nexo de empoderamento"? ‘A LINGUAGEM DAS REDES ‘As linguagens que o feminismo explora na rede tém caracteris- ticas préprias. Em primeiro lugar, esté o investimento pesado nas perspectivas abertas para as muitas experimentagdes pos- siveis entre o pessoal e o piblico, como jé mencionado. & um territrio complexo, no qual as interdigdes e violéncias vividas pelas mulheres sto atualizadas, Na sequencia, vem a exploragio meticulosa da forca mobi- lizadora dos relatos pessoais, um dos principais instrumentos politicos do feminismo em rede. & descoberte, aqui, uma chave importante. As experiéncias em primeira pessoa, tornadas pliblicas na rede, passam aafetar o outro. ‘Uma das criadoras da revista on-line Capitolina, Clara Browne feza seguinte observacto via e-mail sobre as trocas afetivas nas, redes: Perce do segredo do alcance das campanhas on-line se deve a0 fato de que os debates estao comumente relacionados @ narrativas pessoais, ecuperando com forea a idela de que o pessoal ¢ politico. No entanto, é também manifesto que experiéneias diferentes podem vir de opressbes diferentes, atentando para a interseceionalidade das opressdes, Assim, 6 surge a necessidade de empatis, o movimento de se colocar no lugar do outro.) A idea é,entdo, entender a igualdade pela dferenga e, dessa maneira,criar uma nova forma de se compreender o conceit ea prétiea de uma unio que incl c reconhece sua heterogeneidade, [No caso da diversidade de ferninismos que se desdobram se anuneiam a eada dia, as redes se mostraram ainda uma base suficientemente flexivel para articular as mltiplas posigbes. ‘dentitirias feministas dentro das légicasinterseccionais inis- ppensivels para a expressio dos novos ativismos das mulheres. ‘Talvez somente agora, a partir de modos de falae uso de vores individuals em rede, o femninismo tenha conseguido encontrar ‘um modelo de comunicagio efetivamente contagioso. Respondendo ao recrudescimento de um forte conservado- smo que ameaca, inclusive, direitos conguistados, os fem rnismos em rede se empenham no uso e na forma de novos instrumentos em suas lutas. Mais do que defender racional- ‘mente ideologias, os grupos produzem lagos que tecem uma ‘expressiva pereepea0 comum. AS HASHTAGS (0s movimentos feministas descobriram o poder das hasheags em 2014.0 uso inicial da hashtag estava associado a publicdade, que pereebeu imediatamente seu potencial de organizacio edi ttibuigao de contesédo. Nao é toa que a hashtag, tao afeita as campanhas publicitaras, foi eleita como principal ferramenta politica do feminismo. A prépria nogdo de campanha traduz novas formas de ago politica. Nascidas por geracto espontanea ¢ amplamente disseminadas, as manifestacbes organizadas a partir de hashtags muitas vezes acontecem sem formar coletivos, a7 criar blogs ou sites, nem mesmo montar um perfil proprio nas redes sociais. Ao marear uma diferenga com movimentos pol 0s tadicionais, so flexveis tanto do ponto de vista organizacio- nal quanto politico, pois atuam numa esfera muito particular da sociedade civil, uma esfera na qual o consenso ndo é neces. (© potencial mobilizador do uso titico das hashtags feminis- ‘tas mostrou sua forea a partir de uma série de movimentos. Em gral, poucas pessoas sabem quem sio as liderancas ou as representantes, Nesse corpo textual formado por uma imbrica- ‘Ho de vores, aleanca-se uma horizontalidade momentaneaem {que fé nao é central quem disse, mas 0 gué e coma disse. Vamos sanalisar aqui mais detidamente algumas destas eampanhas. Criada pelo Think Olga em outubro de 2035, #PrimeiroAssé- ‘dio teve enorme repercussdo na rede e gerou propostas similares em outros palses, como a #FirstHarassment na Inglaterra € nos Estados Unidos. A hashtag surgiu como resposta 20 assédio sofrido por Valentina Schulz, naépoea com doze anos, que parti cipou do programa MasterChef Jiniore foi alvo de comentérios de teor pedéfiloe machista nas redes socias, Diante desse caso ppblico, a ampanha motivo mulheres arelatar suas primeiras exper ladas nem para os pais. ‘Acampanha gerou uma comogio surpreendente, Depols de comentérios como “Se tiver consentimento é pedofilia?” “A culpa da pedofilia é dessa mulecada gostosa” se espalharem pelo Twitter, o Think Olga comprou a briga. A #PrimeiroAssé- dio foi usada 2,5 mil vezes no primeiro dia e, em trés dias, foi ‘replicada 2 mil vezes.* Em um levantamento feito pelo pré- prio Think Olga, descobriv-se, ao analisar um conjunto de 3333, mengdes da hashtag no Twitter, que a idade média em que mulheres sofeem o primelro assédio seria 9,7 anos ‘No Brasil, o grande impacto da 4PrimeiroAssédio impulsio- ‘nou uma onda de novas campanhas e abriu decididamente as, 1cias com assédio sexual, muitas delas nunca antes reve- e ‘vas da web para as demandas feministas. Nas semanas seguin- tes, surgi #MulheresContraCunha, cujo foco era a mobiliza ‘edo de mulheres contra o PL 5069, que visava dfcultar o acesso devitimas de estupro ao aborto legal e seria colocado em vota- ‘edo logo em seguida. As mulheres inundaram as ruas de todo © pais, invadiram as redes sociaise ainda partiram para a ocu- pacao de jornais contra Eduardo Cunha e seus aliados. Foi esse impeto que veio a #AgoraéQueSaoBlas, com 5 mil com- partilhamentos no Twitter e grande repercussio no Facebook, {questionando a fraca presenga feminina nos espagos de o nlf da midia convencional. A campanha foi vitoriosa: varias ‘colunas assinadas por homens em jomais de grande circulagdo foram cedidas, por um dia, as mulheres. Antonia Pellegrino, ‘uma das propositoras dessa campanha,afirmou em entrevista para este live: “O #Agoraf.QueStoFlas fol uma articulagao a partir de uma ideia de Manoela Miklos para sermos ouvidas, ‘onde esses caras no esto acostumados a nos ouvi, nos jor- nais, Foj uma invasdo”. (0 movimento, depois de disparado, nfo cessou. Ainda em novembro surgia a SMewAmigoSecreto, mencionada 170 mil vezes no Twitter® A ideia era tornar pablicos os relatos de assé- dios realizados por homens proximos, sem identificé-los. Ficou claro que a necessidade de falar nfo vinha de um desejo de constranger determinada pessoa, e sim de divalgar compor- tamentos abusivos. Entre as muitas eampanhas feministas que tém surgido desde entto —e que justamente pelo carter espontineo e ef ‘mero sio de dificil mapeamento —, cabe elencar algumas que 'mantiveram 0 som das vozes feministas eeoando nas redes. ‘Comegamos pela campanha fNaoMerecoSerEstuprada, que surge como uma reagao aos resultados da pesquisa “Tolerancia social & violencia contra as mulheres", divulgads pelo Instituto de Pesquisa Bcondmica Aplicada (Ipea).A poreentagem de bra- 9 sileiros que concordavam, total ou parcialmente, com a afirma- ‘20 "Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merece ser atacadas’, segundo oIpea, era de 65% de 4 mil entrevstados.? Em uma semana, a hashtag gerou um movimento coletivo, om 592 postagens e quase 3 mil comentérios. Pouco depois, 0 pro- prio Tpea divulgou em uma nota a alteragio dos dados da pes- quisa. Apontava, entdo, um percentual de apenas 26% de indi- viduos que concordavam com a afirmacao e atribuia o erro a Juma confusdo entre grficos.* "Nana Queiroz, uma das responséveis pelo sucesso da cam- ppanha, postou uma foto com os seios cobertos pelos bracos, nos quais se lia: “Nao mereco ser estuprada’. Ela fleou surpresa lante do apoio rapidamente aleangado: “Quando entrei em contato com as 200 mil pessoas que participaram do protesto as nto sei quantas mithoes que acompanharam os debates na televisio, o #NaoMeregoSerEstuprada provou para mim que as brasileirasestavam muito mais preparadas para a discussto de ‘género do que eu imaginava” ‘Na sequéncia, novamente em tomo da questo do estupro, ue se revelou mais central e mais recorrente do que poderia ‘mos imaginar, surgiu a campanha #EstuproNuncaMais, provo ‘cada pela noticia do estupro de uma menina de dezesseis anos por 33 homens no Rio de Janeiro, Na mesma época, no Piaui, foi noticiado o estupro coletivo de outra menina de quinze ‘anos. Delineava-se uma caixe-preta do comportamento sexual brasileiro: cultura do estupro, bem mais ampla econsolidada do que a sociedade se dava conta. As hashtags #BstuproNunca- Mais e #PeloFimDaCulturaDoEstupro viralizaram nas redes socials. No dia 26 de maio de 20:6, a campanha chegou, em ‘menos de uma hora, ao primeiro lugar entre as mais citadas no ‘Twitter Brasil e ao terceiro lugar mundial. Anda vineulada & cultura do assédio, a revista Nova langou ahashtag #N2oENao, em outubro de 2016, preparando-se para 50 ‘0 Carnaval de 2037. No mesmo ano, o site Catraca Livre criow a ‘#CarnavalSemAssédio, esclarecendo que puxar pelo braco, bel- {Jara forga e tentar qualquer tipo de abordagem sem consenti- ‘mento configuram assédio. Promovida em parceria com a revista AzMina e os coletvos Agora € que sio Flas; Nos, Mulhe- res da Periferia e Vamos Juntas?, a campanha foi preventiva e 120 mesmo tempo diditica. ‘Uma pesquisa feita pouco antes do Garnaval de 2017 mos- tava que 54% dos homens entrevistados afirmavam que mulhe= res em um bloco carnavalesco, com roupas que revelam partes de seu corpo, bebendo, “esto fim de ser agarradas".* A partir da politizagao do comportamento masculino, as campanhas ‘por um "Carnaval sem assédio" foram inesperadamente muito ‘bem-sucedidas: 0 niimero de assédios caiu efetivamente em ‘2017, franqueando maior liberdade para as mulheres participa- rem da festa em espagos piblicos. [Em 2016, nasceu @ campanha #EuEmpregadaDoméstica, criada por Joyce Fernandes, também conhecida como Preta-Rara, apenas com relatos de abusos softidos por empregadas domésti cas no ambiente de trabalho. Em um post, ela reproduziu algo {que escutou em 2006, em seu iltimo trabalho como empregada doméstica: “Joyce, voce foi contratada para cozinhar para a ‘minha familia, e no para voe8. Por favor, traga marmita e um. pardetalheres e, se possivel, coma antes de nés na mesa da cozi- ‘nha; nao é por neds; sé para a gente manter a ordem da casa’° Assim naseeu a pégina do Facebook Eu Empregada Doméstica, gue em uma semana jé tinha 100 mil seguidores e colecionava smi elatos. ‘Hé que as mulheres participantes da campanha corriam 0 tiseo de sofrer retaliagdes nos seus ambientes de trabalho ou mesmo perder 0 emprego, muitas enviavam 0 relato para ‘outras mulheres, que o publicavam em primeira pessoa. Esse interembio estratégico de autoria assinala 0 cardter performa- st tivo desses relatos. O que importa ¢ menos buscar culpados ou resolver uma situagdo individual, e mals trazer tona testemu- ‘nhos pessoais, numa performance narrativa publics. Nao ¢ por acaso que muitas dessas campanhas trazem no ‘nome a primeira pessoa do singular. Refuta-se, assim, a objeti- vidade jomnalistica de modo a dar énfase & singularidade pes- soal de um relato. Aqui cabe ressaltar que, apesar de essas novas estratégias de fala conseguirem desafiar o regime de visi- bilidade predominante e pautar temas até entio reprimidos, seria ingénuo nao perceber a forga das relagbes de poder ins- critas e consolidedas. ‘A campanha #BuEmpregadaDoméstica, por exemplo, por ser voltada a um grupo de mulheres duplamente vulneriveis, (classe e género}, demonstra essa limitaglo. A eampanha aleangou nem de longe a mesma exposigao daquelas em que a classe média estava ativamente envolvida. Foi, contudo, uma intercessao bem-vinda e necesséria para dar visibilidade a pro- blemas de género e de classe cujos desdobramentos devem ser ‘observados com atencao, Trata-se de um setor notorlamente feminino (92% dos empregados domésticos no Brasil sio mulhe- res), ue abarca 14% das brasileiras em atividade profissional 1no pais, totalizando 5,9 milhdes de mulheres com média sala- Tial de setecentos reals (valor abaixo do salério minimo) e das ‘quais mais de 70% néo t8m carteira assinada.** Esse exemplo relativiza a aparente horizontalidade das redes, que no so uma tbula rasa independente das relages de poder offline. 0 impacto gerado pela agao em rede, ainda assim, €reeonhecido como marea dessa nova onda, Vale atentar, entretanto, como nos conta Clara Browne, para as dificuldades intrinsecas ao meio digital: # importante ter em vista também que o préprio funcions mento das redes socials ajuda essa falta de completa hor 2 zontalidade. (..] Os crtérios que as redes socials utilizar, para selecionar quais postagens apresentar para cada perfil ‘on-line nfo sto claros e geram microbolhas de diseurso dif: cilimas de sai, "Asmaneiras mais comuns defurar" essa mierobolhas [.] so por meio de influenciadores, ou sea, de pessoas que ttm. alto aleance on-line, como jomalistas, ativistas ou artistas. >Mas, mesmo nesses casos, cada um tem também suas micro bolhas, de maneiza que #6 chega a0 grande pblicoo queentra nna curadoria, evidenciando novamente os cortes de clase, ‘como no easo da campanha #EumpregadaDoméstica. PARA ALEM DAS HASHTAGS: ‘As campanhas com hashtags foram o grande momento ¢ a ‘maior novidade do ativismo feminista jovem. A quarta onda chegout mesmo a ser batizada ironicamente como ativismo de sofé, minimizando a importincia que a rede teve nessa mobi lizagio insurgente. 'Arrede foi tomada por agbes de coletivos feministas, com a produgito de veiculos de comunicagio préprios. revista Capi- tolfna, um easo dos mais interessantes e pioneitos de publica ges on-line voltadas para o feminismo Jovem, é exemplar nesse sentido, O modelo da revista eo seu modo de producto ‘compartilhada seriam impensaveis sem as redes, a que 0 pro- jeto nasceu do encontro entre desconhecidas que participavam. {de um grupo de diseussio on-line sobre o feminismo. Inicial- ‘mente dedicada ao piiblico jovem, a Capitolina é mantida por ‘mais de cem colaboradoras voluntérias entre dezesseisetrinta ‘anos e se destaca pela busca de horizontalidade em sua orga nizagio, Clara Browne, uma das fundadores, explica 0 processo de produgao compartilhada: "Tinha texto todo dia. Querfamos 53 que fosse uma coisa que as meninas pudessem chegar da escola, abrir ¢ le. Votdvamos um tema — 0 tema mais votado ‘era 0 que fariamos para o més seguinte. Todo mundo sugeria pauta. [.] Tentévamos ao maximo fazer um esquema em que todo mundo pudesse participar e opinar”. Clara e mais algumas das fundadoras deixaram a revista ‘quando 0 coletivo tomou novos rumos editoriais, mais distantes do publico jovem, porém altamente engajados no feminismo. ‘ssa transferéncia de lideranca demonstra a real abertura das fundadoras ao exerefcio de autonomia das demais colaborado- ras. No entanto, apesar da facilidade de encontzos proporcio- nada pelas redes, Clara ressalta a dificuldade de criar uma revista que realmente contemple uma representatividade ampla: gente nfo tinha muitas meninas trans e essa era uma coisa de {que sentiamos falta. Ento, proeuramos pessoas para falar disso, ‘Mais meninas negras também. Jé tina no comego, mas podia ter mais. Fomos procurando sempre outras camadas de repre: sentatividade que a gente sabia que faltavam na revista’ Em pouco mais de trés anos de existéncia, a Capitolina no apenas conquistou mais de 48 mil seguidores no Facebook e de 27800% no Twitter, como publicou dois livos pela Seguinte, selo jovem da editora Companhia das Letras. Sofia Soter, outra fundadora da revista, comenta.o papel das ublicagdes independentes frente as revistas voltadas para as adolescentes: (© meio digital nos permit escapar das restrigies das revistas impressascéssicas para 0 pbliceadolescente. As eriadoras€ colaboradoras da revista tinham, desde o comeso, a caracteris- ‘ea em comum de sentir que a midia tradicional no basta no representava avariedede ea amplitude das experiénelas reas adolescentes, e sim um molde brancorheeero-lsseo-ur- Dbano-magro que parecia sero tinico possvel, como se fosse reservado as que se encaixavam nesse molde odireto &adles- ‘én, Por sso, Captaina, desde sew inicio, buscoutatar de temas variados eserits por colaboradorasvariadas, que tra iam seus conhecimentas e experiénelas para construir um. contedo honesto falando de igual pare igual, Recentemente, as midias tradicionais tém abereado com ‘mais frequéncia temas minoritarios, como diversidade einjus- tigas relacionadas a genero, sexualidade e padries de beleza. Essa virada certamente ¢ fruto da pressao das redes. Prova disso é a passagem de blogs, revistas om line, youtubers eafins para o circuito editorial. transposicRo das redes para o papel € uma tendéncia entre os expoentes de maior destaque do feminismo vistual. Em 2016, foram langados livos assinados por Capitolina, Nao Me Kahlo, AzMina, Jout Jout — youtuber {que conquistou 3 milhes de visualizagdes em video que trata de relacionamentos abusives — e Babi Souza — criadora do movimento Vamos Juntas?, que ajuda mulheresa se organizar para no andar soainhas em locais perigosos. ‘Com sete livros publicados, Clara Averbuckeé uma das figuras plonelras e mais importantes nessa empreitada. Ela explica a importéneia da troca de experiéncias e da escuta construfda no espaco virtual:“O proceso de compreensio e aceitagao fi mais, longo, é vocada,Prfiro pensar que entre art eatvismo existem rela- 8s de mao dupla que hé muito tempo so experimentadas entre o campo da performance e de algumas teoriasfeminis- tas, Amelia Jones sugere que nfo dé para se estabelecer uma relaglo de causa e efeto entre o surgimento eo boom da pet- formance de mulheres @os movimentos de estudos feminis- ‘as, F eu me pauto um pouce por ela, porque a deta de causa efeito nesses casos é muito taxaiva. Quem tem o poder de dizer que uma obra de arte é feminista? E sempre a critics. [ami socal, arta eparqicadora de ssc] Sto infinitas as nuances entre arte e feminismo. Devemos, portanto, tentar enfrentar a questlo, quase histérica, da cria- ‘clo estética compromissada com causas politicas — neste ‘caso, a causa dos direitos das mulheres — e a variedade de ‘combinagdes possiveis entre arte c ativismo. Camila Bacellar se autodefine numa posigao especialmente interessante que ‘ultrapassava esse possivel impasse ao criar a figura da “atua- dora’, Essa posicdo restabelece o sentido de artvismo dos cole- tivos dos anos 1980. Gostaria de enfatizar que nto meconsidero uma “artista Prin: cipelmente pela aura prvlegada embutida na idea de artista’ Prefiro me pensar como uma “atuadora, pols esse termo, cumhado pelo grupo de teatro de rus Oi Néis Aqui Travel, busca articular quatro elementos importantes para sua propria priticaartistca: xvismo, organizat-se em grupo, autogestioe rmesela entre arte e vida, E ew tenho guiado minhas prticas comarte nesse mesmo sentido, [canta tacta e ‘aseisanos estou bem proxima do ativismo.Poriss,considero ‘uma postua politic dizer ue aarte que eu fagoéuma rte emi nse, spesrdeissoacabar me colocando em determinados ue- ‘0s. Minka obra tem tratamento estétco, ent poderia entrar «em contertos muito variados, mas,em geral me contratam ape nas para eventos ligados ao univers feminists [..]1sso mostra ‘que a arte feminista ¢ relegeda a um lugar especifeo, a um piblic especiico. Dessa forma, eta acaba sendo vista como ‘menor dentro do contexto mals amplo da are. Entio, ndoé que ‘me incomodeofato de estar nos lugares onde ev estive, me ito mode fato de eseslagaresserem vistos como lugares menores. (soqueinevesoncts, artiste gst cui Definir-se somente como ferinista é ainda mais complexo no caso das mulheres negras.E interessante como, no depoimentos das artistas negras elas hesitam em se dizer feministase pautam imediatamente a questo racial. No campo da performance, ainda que ndo apareca da mesma forma marcante do ativismo feminista negro, isso ndo deixa de afirmara novidade e oavango desse feminismo interseccional ndo identifcado com o ferni- nismo branco tradicional, que nfo as representa. ‘Meu tabalho sempre abord «questo do corpo negro feminine, Minha performance, Bombril,é totalmente erientada para as ‘quests racials pelo fato de eu ser mulher e negra. Bm Bombe, além da questzo de Ivar as panelas com o meu cabelo eespo, ‘uso também uma roupa que embra a roupa de eserave de uma mulher eseraviada, porque a performance fala nio sb da Segre: gto quea mulher softe por no ter esse cabel is, mas am ‘bém do fato de ndo estar dentro do padraaestétco que promove a subalterizagdo da mulher negra. A partir da, praticamente ‘ods a5 minhas obra tém relaezo com o corpo da mulher negra. (Prisca ezode, st) nm ‘que sempre me interessava era pensar aideia de represen: tatividade ede como me identifcar no mundo, Quando fala: ‘mos de feminismo, em olharinterseccional, penso a impor: tancla da questto racial: 0 quanto & necessério nos reler, refazer e propria ideia de como voct se entende uma pessoa negra e de observar em que momento voet se define, polit camente, negra Hain ars, att pesquiadora de artes ia] ‘4 aartista Virginia de Medeiros traz a questo de uma arte feminista incorporando um dos objetivos mais radicais do atual ferinismo, 0 trabalho de critica e desconstrugto das tee- de produeao das sexualidades e das subjetividades. dentificar-se como feminista significa se desidentificar com ntigas definigbes do ferninino. Aqui, Virginia destaca um fator crucial para a subjetivacao neste século marcado pela alta cir- culagao de Fotografias pessoais nas redes: as possibilidades {emininas de construedo de imagens de si no quadro da alta nologi proliferagio midistica de estereétipos. (© meu élbum de retratos de algums forma me construia 3 partir de esteredtipos do feminino. Bntao desenvolvi uma cestratégia simbélica para destult este mito de feminilidade {que via nas minhas foros. Construt um chao de conereto pré -moldado e transferi as imagens, num processo de transfer por tones, tanto do meu dibum de familia, quanto de mulhe: res da revista Caras. parti dessas imagens, fiz uma espécie de quebra-cabece com corpos e fragmentos de corpos, por que as mulheres pareciam ter sempre a mesma pose, a ‘mesma cara. Montel esse trabalho no Santander em Porto Alegre, num piso com um quebra-cabega de quinhentas pecas. Como esse piso ni estava grudado aa chlo, enquanto as pessoas fam andando, iam apagando e borrando as ima gens €0 piso ia sendo destruido. Amedida que o trabalho era destruido, rachado, quebrado, o sentido da obra se cons: ‘ruia. Expor e entender isso me levou a peteeber a arte como {erramenta politica, como lugar de autoconhecimento, um. lugar em que voe® pode construir novas subjetividades, € compartiIhétas, Daniela Mattos também encontra poténcia no embate com signos tradicionalmente associados ao feminino: Engracado, essa coisa de pensar no feminino,em coisas lige ‘das A mulher, essa nfo ere uma preocupagio para mim em primeire instineia. Desde 2003, fago uma série chamada Did {ogos, com croch®, Amerr0 no meu corpo 0s fos e fag flores ‘de croché nas suas pontas. Uma das ages dessa performance cireular com os fos no corpo ¢entregar as lores para quem passa por mim. Como a estrutura de lores ndo é arrematada eu as entrego e continuo andando, a flor vai se destazendo ‘na mio de eada um que a recebe.O fio continu ligede a mim ‘emantenbo o percurso até todas as flores se desfaerem, Esse trabalho sempre fol identileado como um trabalho sobre 0 feminino, o que me iritave, porque eu sabia que nto era 36 isso, Foo feminismo que me ez pereeberapoténcia ea force da fragilidade quando usada politcamente, Daniela chama @ atengao para o modo como a estratégia critica feminista esta programada para ser percebida como ‘uma obra feminina, ligada a atividades que geralmente ocor- rem no espaco doméstico, que sto praticadas com o uso da delicadeza, do fazer manual, das imagens de fos e flores. © trabalho com os esteredtipos da feminilidade foi bastante fre- 4 uente nas crticas dcidas expressas nas obras de artistas da 1 {eracdo imediatamente anterior a esta, como Ana Miguel eseus a pequenos e cruéis objetos adornados e mecanizados, Rosana Palazyan com suas representagoes da violencia em pequenas, ImpressBes e bordados com detalhes sutise mesmo infantis, Cristina Salgado em seu trabalho com fetiches, fantasias, nus {femininos delicadamente agressivos. [Nessa geracio que surge com visibilidade nos anos 1990, 2 autodenominaeao feminista e mesmo o compromisso com as ‘ausas das mulheres foram rejeitados enfatieamente em entre- vistas ¢ depoimentos eso, mesmo revelia, um claro exemplo de como o olhar eritico do feminismo afeta a eriagao da maio- ra de nossas artistas contemporineas. J hoje, no ealor do ‘movimento, afetar-se pelo contexto feminista se torna quase Jmpossivel de ser dissimulado publicamente, Panmela Castro radicaliza ao levar a problemética da rea- ‘propriacio dos signos do feminino a partir do olhar do femi- ‘nismo para o espago piiblico: ‘As performances eradas por mim surgram a parti das experéncis na produto de grafts pela urbe. Comece a pensar como obra nfo apenas a imagem abandonada nas paredes da cidade, mas também o processo, em esséncia a problematizagto da relagto do meu cotpofeminino em dié- logo com a paisagem urbana ¢ as questoes de alteridade. (...) Daniela Labra propés um mural, que depois de algumas pes quis foi deeidido que seria pintado no Palacete Searpa, antigo préio tombado pelo patrimenio histério municipal [de Sorocabs stu! sede ca Secretaria de Cultura Turismo da cidade. scolhi para parede coga do prédio a imagem de duas sulheres unidas por um tereir othe adomado pelo que ehiamo de For. Pela primeira ver ess cago sfre, 0 seu entender, taguesvolentos de misoginiaseiowee uma polémica na mia, internet, ruas euniversidades sobre 0 os ‘ada em um prédio piblico tombado’,palavra usedas pelo vereador Pastor Luis Santos (PRos) em sua fala contra 0 gra ‘ite ne edmara dos vereadores [.-] Quando e mulher propte caractristicas que nto sio consideradas proprias dels, hé um estranhamento,rejelgioe, ‘em muitos casos a viléncia, ome ne inchamento virtual do state do Palacete Scarpa. Enquanto desde pequenos os meni nos sio encorajados a exbiro pinto mijando na rua ou mos- trando o quanto eresceu para suas tia, percebende-o como sua ferramenta de oul poder, 6s, meninas, somos alvos ‘de riticas, obrigando-nos e nos esconder fechando as pernas, deixando de nos tocar nos frgendo sentir envergonhadas de ‘nossa parte que sequer pode ser falada: bucet.[.] Acredito que o grafite Femme Maison de Sorocaba acebou or cumpriro seu papel, fazendo toda uma cidade refletr acerca da mulher em nossa sociedade, dando vsibilidade as difculdades que enfrentemos em nosso diaadia eque ficam. veladas, de dificil conversa ridicularizadase desqualifleadas, ‘mas que aqui pulsou pela arte Nos corpo. Eleonora Fabio mostra uma sensibilidade rara ao explicar as. possibilidades de intervencao através da atte. Ao escrever sobre poéticas e politicas na cena contemporinea, mostra que a forca da performance é “turbinar o eidadao com a polis; 0 agente histérico com seu contexto. £ desabituar, desmecanizar. # disseminar dissondncias em varios campos’. A performance, enti, deve ser vista como ume ativagao do corpo como poténcia relacional, como uma tomada de cons- cigncia ativa que cria uma situacao polities 83 ‘Meu primeiro trabalho de arte foi com cabelo e se chama -Peluguera Carangl, Comeceiaexperimentar o gesto de cortar cabelos publicamente em lugares e vrou uma performance- -servigo, promovendo realmente uma relaglo entre um tee uma oferta de um servgo. E colocara pessoa dentro de uma situagto inusitada, contratando algo nfo comum, stranhel porque as pessoas me procuravam dizendo: “Quero cortaro eabelo na praca tal”. Depois isso fol se expandindo e comecei a percsber mais como as pessoas viam os signifies 4s da transformagto causados pelo poder sobre a prépria identidede. Criei entdo a agdo chamada gulhotina gréfica, que era cortar cabelos numa guilhotina gréfice industrial, ‘uma méquina pesadona, de aparéncia medieval o que dew uma forte dramaticidade & situagio do corte, ou do medo de ser

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